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O Quintal + Abrir Portas e Janelas (Milagros Mumenthaler, 2004 e 2011)

Por Virgilio Souza

Milagros Mumenthaler venceu o Leopardo de Ouro do Festival de Locarno com seu primeiro longa-metragem, Abrir Portas e Janelas (Abrir Puertas y Ventanas, 2011). Oito anos antes, havia realizado um curta, O Quintal (El Patio, 2004), de enorme proximidade com esse premiado trabalho. Não se trata, aqui, de apontar marcas próprias e muito concretas da cineasta, ainda jovem e cuja obra é não apenas breve como também restrita tematicamente, o que talvez até justifique a repetição de determinados traços. A continuidade pode ser tanto uma imposição da limitação do universo explorado quanto uma vontade narrativa consciente da realizadora — ou, naquela que parece a opção mais acertada, um pouco das duas coisas. A ideia é partir de um trabalho anterior para enxergar reflexos em outro, já bastante amadurecido, e vice-versa, buscando suas inspirações mais primárias. Serão abordadas quatro esferas principais: o isolamento, o espaço, o poder e a sexualidade.

Para além da semelhança em termos de trama — O Quintal observa duas irmãs fechadas em uma casa; Abrir Portas e Janelas acompanha três, um pouco mais velhas, sob as mesmas circunstâncias —, os filmes dedicam atenção especial a essa ideia de retiro em um local muito bem definido. Em ambos, os créditos iniciais dão lugar, de imediato, a interferências pontuais do mundo externo. No curta, o telefone toca enquanto Martina está deitada, resistindo a despertar; no longa, o som da campainha (também presente e muito marcante em um momento específico do curta) anuncia a chegada do (ex-)namorado de Marina, de quem ela foge.

Abrir Portas e Janelas
Abrir Portas e Janelas

O Quintal
O Quintal

A resistência em atender aos chamados de fora é indicativa da tônica que se seguirá nos dois casos: as jovens lutam para manter esse isolamento erguido em torno da casa e do que ela representa. As razões para tanto variam da preguiça de ir à escola a uma espécie de inércia para ir ao centro da cidade, como se o longa fosse uma continuação natural do curta não apenas para a cineasta, mas para as figuras em tela. Quando não é apenas válvula de escape, como o caso da televisão constantemente ligada em ambos, ou recurso para rupturas ainda maiores, como a ligação que termina um namoro, essa invasão externa à vontade se torna uma perturbação inevitável e só é atenuada por soluções que mantém certa reclusão — o uso de um guarda-sol e um banho de chuveiro no quintal ou um copo d’água e o deslocamento de um ventilador para aliviar o calor. As personagens se prendem a esse muro erguido por falta de opção ou vontade, e somente o ultrapassam brevemente para logo retornar, em uma lógica de pertença.

Abrir Portas e Janelas
Abrir Portas e Janelas

O Quintal
O Quintal

O Quintal
O Quintal

Para que essa ideia tenha efeito, Mumenthaler se dedica a percorrer cuidadosamente os cômodos. Em uma mesma cena de O Quintal, a primeira em que se explora a casa das garotas, a câmera passeia por um corredor que, através de janelas e portas, fornece o reconhecimento espacial necessário e localiza o ambiente em que se dará a maior parte da ação — justamente os fundos do imóvel, o mais distante possível da rua. A atenção a essa geografia ajuda a construir personagens acuados, em especial Martina, que interrompe de forma abrupta suas conexões com o externo (a vizinha, o vizinho, a escola), por telefone ou em curtas trocas de palavras à porta, talvez por sentir a ausência da mãe, sobre quem pouco se sabe para além da ausência em si. No longa, o casarão em que as garotas vivem é herança da avó falecida e, não havendo menção objetiva aos pais, resta a sensação de que esse enclausuramento é algo muito mais consciente. Sofía, a irmã infernal, ativamente fecha cortinas, portas e janelas e escurece o ambiente para, no limite, impedir que o sol penetre pelas frestas para ver televisão, em uma ligação artificial e de distância segura do lado de fora. Nesse sentido, as portas e janelas do título são, muitas vezes, espaços de interação quase negativa, que buscam evitar o que está além, como o antigo namorado, não oferecer acessos.

Abrir Portas e Janelas
Abrir Portas e Janelas

Abrir Portas e Janelas
Abrir Portas e Janelas

O Quintal
O Quintal

O único fator de ruptura seria a presença de Francísco. A relação entre uma personagem e o rapaz da casa ao lado — que no curta era apenas insinuada, mas impossibilitada pela idade (“Ele é velho demais para você”, dizia a irmã) — se estabelece também por meio de vidraças e finalmente se concretiza. O que pode ser visto como a libertação de Marina, porém, demora a se realizar em função da presença de um elemento adicional, a namorada do rapaz, e ocorre dentro dos limites daquela cercania. Assim, mesmo suas aventuras mais distantes ocorrem dentro de espaços programados e que raro são vistos em campo (o carro dele, o local de trabalho, o jardim).

Abrir Portas e Janelas
Abrir Portas e Janelas

Abrir Portas e Janelas
Abrir Portas e Janelas

Abrir Portas e Janelas
Abrir Portas e Janelas

É dentro desse universo restrito e claustrofóbico por natureza que as personagens frequentemente entram em disputas de poder e autoridade. Outro objeto que ganha significado quando posto em análise nos dois filmes é o controle remoto: no curta, ele é representante máximo de uma autoridade juvenil, disputado inclusive fisicamente; no longa, o conflito é mais sutil e banal, talvez sinal de maturidade, mas não livre de uma tensão implícita que rodeia todo movimento.

Abrir Portas e Janelas
Abrir Portas e Janelas

O Quintal
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Mantém-se no longa, por outro lado, uma briga descabida por espaço, um resquício de infantilidade que parte — principal, mas não exclusivamente — de Sofía. Ela é a principal fonte de distúrbio, a única capaz de arroubos maiores em uma relação marcada apenas por pequenas explosões — a primeira e última de Marina, por exemplo, ocorre na mesa de almoço, mas não é nem mesmo dirigida a um ser específico. Violeta (curiosamente, o nome de uma terceira irmã nunca vista no curta, outro indício da importância do extra-campo) existe entre as duas, nesse espaço entre o destempero e a apatia, mas não funciona necessariamente como um ponto de equilíbrio, muito embora apazigue os ânimos vez ou outra. Sua principal característica é uma inquietação contida da qual ela somente se livra ao partir e deixar as irmãs se engolirem, intensificando a tensão das rusgas anteriores (“[As roupas] não combinam com você” e “Eu não suporto você” é apenas um dos diálogos mais agressivos), que posteriormente se torna física. A falta de um terceiro vértice, no curta, se não elimina, ameniza o conflito.

Abrir Portas e Janelas
Abrir Portas e Janelas

O Quintal
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As motivações para que ele exista, contudo, são similares e particulares deste universo essencialmente feminino, ainda que próprias de cada contexto. No fim das contas, a maior parte dos ataques se dá em direção à sexualização que permeia toda a narrativa. Em O Quintal, a irmã mais nova acusa a mais velha de “putita” e recebe como troco um nada sutil “Pelo menos eu não me toco” — firme, a tréplica vem: “Isso não é verdade”. Em Abrir Portas e Janelas, Marina diz que Sofía resolve seus problemas na universidade e consegue favores em troca de sexo ou da insinuação do sexo. A ideia parece ser de que nem mesmo o isolamento corrige ou atenua uma ótica tipicamente machista, nem mesmo em um universo ocupado quase que exclusivamente por mulheres.

O que varia são as preocupações das personagens sob este aspecto. As adolescentes do curta se fixam (e se provocam com relação) a fatores típicos da puberdade (pré e pós), tais como o crescimento dos seios e a  primeira menstruação, mas a mais jovem ainda preserva enorme infantilização, tanto no porte quanto na personalidade, ao passo que Sofía já se interessa pelo vizinho e almeja algum distanciamento das fases mais precoces. No longa, as garotas também questionam o próprio corpo, porém sob uma ótica de insatisfação, mais que de estranhamento ou novidade — até mesmo quando uma dela fala de seus seios, a perspectiva é distinta, adulta. Em termos gerais, todavia, o incômodo de Sofía remete tanto a ciúme (ela namora uma aliança que encontra, as irmãs encontram seus pares) quanto ao fato de que uma delas não se parece com as demais (daí a insistência em afirmar que ela é adotada).

Abrir Portas e Janelas
Abrir Portas e Janelas

Abrir Portas e Janelas
Abrir Portas e Janelas

O Quintal
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O Quintal
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No que diz respeito à maneira como os dois filmes caminham rumo a suas resoluções, há marcas muito fortes do olhar da autora, por mais que as tramas exijam encerramentos bem diferentes. Em ambos, a reclusão parece ter caráter imutável, variando apenas as dinâmicas sob as quais ela se estabelece. Há briga e reconciliação, temor e alívio, e brechas são abertas ao que há de externo, mas as coisas sempre voltam à lógica original de isolamento — a mãe que chegará apenas para visitar as meninas; o rapaz que passa a fazer parte da casa em vez de tirar a garota de lá. A câmera que transita pelos cômodos e reenquadra a ação para produzir mudança volta a repousar para indicar uma permanência essencial e, nesse sentido, a forma como Mumenthaler trabalha o plano final de cada um deles é bastante reveladora: de um lado, as duas irmãs na saída entre a casa e o quintal; de outro, a sala de um casarão vazio e modificado, e seus habitantes do lado de fora, mas definitivamente prestes a retornar.

Abrir Portas e Janelas
Abrir Portas e Janelas

O Quintal
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O curta-metragem foi disponibilizado legalmente no Vimeo.

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Blackhat (Michael Mann, 2015)

Por Arthur Tuoto

A tônica política do cinema de Michael Mann está quase sempre diretamente ligada a uma subversão do espaço e a uma redefinição de um senso de propriedade, a um desprezo muito evidente pela institucionalização domesticável do indivíduo frente um estado totalizador por natureza. Se Thief (1981) invoca o roubo como uma ação direta contra a mais-valia, com um ladrão que se recusa a trabalhar sob uma relação de classe e é constantemente marginalizado por todas as instituições que recorre, em Public Enemies (2009) temos uma semelhante consciência social quase anarquista nas ações de John Dillinger: a subversão que, ainda que brote do gesto criminoso, transforma a ação de roubar bancos em um ato humanista. Se Heat (1995) é um filme sobre o espaço público, sobre a clara subversão desse espaço através de um constante fogo cruzado nas ruas de Los Angeles, onde o possível dano colateral são os próprios civis norte-americanos, Manhunter (1986) é um filme sobre o espaço privado, o espaço íntimo, a propriedade em sua fisicalidade mais clara, visto a maneira com que o filme se apropria do gosto do assassino por ambientes domésticos, pela desconstrução simbólica desse ambiente. Sem falar em Miami Vice (2006), onde os personagens vão sacrificando a própria individualidade em prol da instituição policial, vão sendo absorvidos por um sistema que é intrinsecamente contra o bem estar do indivíduo e em algum sentido até venera uma objetificação profissional. Ou seja, o que fica sempre muito evidente ,no cinema de Mann, é essa clara relação entre indivíduo e espaço que, em vários sentidos, é a projeção de uma dinâmica bastante complexa entre cidadão e instituição.

Closes assimétricos em prol de um horizonte visível, porém desfocado. O indivíduo é sempre a chave do espaço.
Closes assimétricos em prol de um horizonte visível, porém desfocado. O indivíduo é sempre a chave do espaço.

Sendo assim, que situação mais utópica do que uma em que um simples indivíduo, munido de um computador, é capaz de revirar instituições inteiras? É capaz de recontextualizar dinâmicas espaciais inimagináveis? Um pequeno gesto individual que gera um efeito coletivo catastrófico: o toque na tecla enter que explode um reator nuclear, o comando em um teclado que desestabiliza todo o mercado financeiro. Em Blackhat (2015), mais do que nunca, temos a revanche alegórica e concreta desse indivíduo, agora munido de uma dimensão tecnológica, de um espaço que agora é virtual e, por isso mesmo, infinitamente possibilitador em sua vocação criminosa.

A própria formação do hacker aqui, mesmo o hacker “do bem”, não faz questão de esconder essa aspiração anti-institucionalizadora. Hathaway, sobre a vida na prisão, afirma: “I do my own time, not the institutions”. Um homem que literalmente se programa, se dedica tanto a mente como ao corpo, sempre em busca de uma independência intelectual, de uma liberdade que, mesmo dentro de uma cela, ele faz questão de usufruir: quando o homem não pode ler, ele se exercita, enfatizando uma máxima obstinação por esse equilíbrio individual. Mesmo na sequência em que Hathaway ganha a liberdade, no começo do filme, Mann faz questão de filmar seu personagem com closes assimétricos para dar espaço a um horizonte agora visível, concreto para um condenado, porém ainda desfocado, centrado no indivíduo, esse sim a chave daquele espaço.

Minuciosidades luminosas que se projetam entre a dimensão física e a dimensão tecnológica.
Minuciosidades luminosas que se projetam entre a dimensão física e a dimensão tecnológica.

Mas afinal, como filmar esse embate tecnológico? Como mediar esse espaço virtual no espaço físico, no espaço fílmico? É óbvio que um cyber-thriller, nas mãos de Mann, será tão concreto quanto qualquer outro thriller. Se existe uma dimensão imaterial aqui, ela funciona sempre como o mote de um físicalidade muito evidente no espaço, como o gerador de uma dinâmica que só se concretiza na dimensão física, com direito aos tiroteios realistas de praxe, mortes absolutamente desoladoras e aterradoras, e até mesmo uma briga de bar. Mesmo na tradução desse espaço virtual mais literal, Mann situa muito bem todo um ambiente realista de data centers e servidores, faz os personagens literalmente caminharem entre corredores de hardwares, em uma iconografia futurista comparável com as paisagens urbanas noturnas que descortinam toda uma vastidão luminosa de prédios nas panorâmicas do filme. O próprio uso do CGI, nas sequências dos ataques virtuais, já denota toda uma minuciosidade luminosa que se projeta tanto nesse ambiente do hardware, nessa fantasia tecnológica, como no ambiente físico, na encenação em si. O corpo de Chen Lien é iluminado com a mesma minuciosidade que uma luz microscópica se acende em um chip.

Ações manuais meticulosas que enfatizam um princípio elementar dos gestos.
Ações manuais meticulosas que enfatizam um princípio elementar dos gestos.

É um pouco como se o filme todo funcionasse entre uma objetividade quase técnica – tanto na própria temática como na violência em si – e uma sutileza já implícita em qualquer aproximação, em qualquer relação interpessoal. A mesma mão que, com uma objetividade assustadora, enfia uma chave de fenda na cabeça de um personagem, é a mão que toca um ombro nu, que abraça um outro corpo com ternura. Os pequenos gestos – do toque no teclado ao toque corporal – geram resultados tão sutis como destruidores. E toda essa sutileza, toda essa sutileza destrutiva, denota também um processo de humanização, um cinema de ação onde o indivíduo não é só uma peça formalista, um elemento gráfico em prol de uma dinâmica delirante, mas um indivíduo em toda a sua natureza. O close na personagem de Viola Davis, quando seu olhar desvanece ao agonizar na calçada, fitando um edifício, em seu último suspiro, é dos momentos mais poderosos nesse sentido. Aliás,  a maneira com que os personagens vão morrendo, como eles vão sendo deixados para trás, faz surgir toda uma camada de desolação, todo um peso dramático muito inerente àquela trajetória, o que vai, aos poucos, transformando toda essa sutileza realista em uma iminência digna de um filme de terror.

Dessa relação de proximidade com o corpo, desse constante embate entre indivíduo e espaço, o digital ainda é uma peça fundamental para Michael Mann exercer uma autonomia cênica, uma liberdade espacial muito cara ao seu cinema. Em tempos de 4K e outras obsessões cristalinas, só Mann mesmo pra filmar uma briga de bar em que a imagem faz questão de preservar a sua aparência digital, a sua textura chapada; além, é claro, de invocar toda uma maleabilidade muito inventiva do dispositivo, reiterando toda a sua vocação natural com a bitola, o seu gosto por um realismo que ao mesmo tempo que assume o ruído da imagem e a instabilidade do aparato, articula uma força essencialmente dramática, essencialmente encenativa em sua dinâmica ficcionalizante.

A desmaterialização do espaço que isola os indivíduos.
A desmaterialização do espaço que isola os indivíduos.

Na sequência final, quando Hathaway parte finalmente para o embate físico com o seu rival virtual, o ambiente assume uma pictoriedade quase abstrata dessa imagem digital, um jogo de cores onde o vermelho e o amarelo, ao contrastar com o preto da noite e os mil passantes em um ritual, criam um jogo figurativo quase impalpável, cheio de silhuetas e espectros no limiar da sua materialidade. É quase como se o ambiente articulasse uma nova dimensão em prol desse encontro, onde o concreto se projeta no figurativo e o virtual no abstrato, uma perspectiva estilística que parte desse impressionismo, dessa confusão épica do olhar, apenas para isolar o mais sutil, e ao mesmo tempo ultra objetivo, dos gestos: a mão que apunhala, o braço que estende a arma. A mais meticulosa distância focal aqui, ao enfatizar a arma e a elementaridade desses gestos, não deixa de evidenciar, sempre, um esmiuçamento vital do quadro cinematográfico.

Se toda essa desestabilização formal do cinema de Mann funciona em prol tanto de uma agenda política como de uma essência dramática, sem falar em uma reverência clara a um gênero policial que ele mesmo ajudou a estabelecer, definitivamente o homem é um dos poucos diretores que sabe articular como ninguém todo um arsenal de modelos, já mais do que implícitos na natureza desses gêneros, em uma lógica absolutamente contemporânea, uma fábula criminal que sempre se atualiza e se reinventa tanto em sua temática (Thief, Heat e Miami Vice são claras proles seu tempo histórico, ainda que conservando um anacronismo muito possibilitador), como em seu método. A depuração artesanal de um drama que, muito mais do que enfatizar um realismo, de fato constrói uma mitologia cinematográfica.

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Cobertura XI Fantaspoa – Parte II

Por Daniel Dalpizzolo e Pedro Tavares

A XI edição do Fantaspoa segue até o próximo dia 31, nas salas do Cine Santander e do CineBancários em Porto Alegre, com uma seleção que mescla novidades e revisões especiais de clássicos do cinema fantástico. Neste segundo e último artigo sobre o festival, publicamos novos comentários para filmes vistos durante o festival. O primeiro artigo da cobertura pode ser lido aqui.

fabulasnegras

As Fábulas Negras (idem, Brasil, 2015), de Rodrigo Aragão, Petter Baiestorf, Joel Caetano, José Mojica Marins

Reafirmação cultural como gesto político. E quando falamos de política, aqui, diz respeito menos ao que há de mais evidente nos comentários sociais que fundamentam algumas histórias, e mais à defesa de um fazer cinematográfico que abraça a margem e levanta o dedo médio a todo um sistema pelo qual foi duramente oprimido nessas décadas todas de cinema brasileiro. Aragão e os cineastas convidados (entre eles o maior representante do ignorado cinema de horror brasileiro, José Mojica Marins, popularmente reconhecido – mais que propriamente conhecido – como Zé do Caixão) defendem um horror legitimamente tupiniquim reinventando fábulas e folclores de uma cultura bastante rica em imaginação, tanto quanto desprezada pela indústria local. Se autores como Stephen King e Chris Carter (X Files) exploraram lendas e promoveram uma leitura fantástica do espaço rural estadunidense no centro da cultura de massa, esse As Fábulas Negras, cuja produção, pelo contrário, é totalmente independente, se desloca por caminhos que atentam a esse enorme potencial. Das lendas e desse espaço mítico da mata brasileira o filme extrai pequenos contos sempre instigantes, mesmo quando imperfeitos, partindo de um olhar amparado pela riqueza da imaginação infantil, base de um prazer cinematográfico que nos recorda que, para fazer e ver cinema, tem-se muito a absorver do espírito destemido e aventuroso das crianças e sua capacidade de se encantar/espantar pela mais simples e elementar das narrações. (Daniel)

lisathefox

Liza, the fox-fairy (Liza, a rókatunder, Hungria, 2015), de Károly Ujj Mészáros

O filme de Károly Ujj Mészáros se faz nas margens – boa parte do filme é composto por cenas suspostamente intensas que encontram uma saída cômica surpreendente. No miolo, o romance sintético sobre uma enfermeira em busca do amor. Ao redor, algo muito parecido com as gags de programas humoristicos japoneses com sensibilidade narrativa, algo que só Hitoshi Matsumoto sabe fazer atualmente. A enfermeira é vítima do espírito ciumento de um popstar japonês morto há décadas que gradualmente aumenta o nível de violência conforme os pretendentes aparecem, calhando em uma investigação policial interminável. Por Liza, The Fox-Fairy parecer um filme de temas indefinidos no sentido de qual suporte usará para definir um desfecho (e consequentemente definir sobre o que é o filme), ele consegue ser tanto um filme romântico quanto um escracho sem limites sem que pareça uma contradição ambulante. (Pedro)

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Starry Eyes (idem, Bélgica/EUA, 2014), de Kevin Kölsch e Dennis Widmyer

Bastante cultuado pela imprensa norte-americana, onde as críticas geralmente defendiam-no evocando nomes como Lynch – aquela comparação básica e infundada sempre atribuída a filmes minimamente “bizarros” ambientados em Hollywood após Mullholand Drive e Inland Empire –, Cronenberg e Polanski. Na verdade, não mais que um filme cínico e grotesco, mais facilmente comparável a Cisne Negro. A escalada para o sucesso de uma atriz inclui ritos de transição como chupar o pau de um produtor, pactuar com o demônio em culto satanista e “renascer” sob forma de uma entidade estranha – promovendo uma matança no meio do caminho e transformando o drama intimista num slasher na cidade dos sonhos. Se para atingir o sucesso é necessário transformar-se em monstro, esse trabalhinho “bem sucedido” de Kölsch e Widmyer não me despertou muito mais que uma legítima repugnância. (Daniel)

hardkor-disco

Hardkor Disko (idem, Polônia, 2014) de Krzysztof Skonieczny

Há na transição de Krzysztof Skonieczny da direção de clipes para a narrativa uma dose considerável de influência de Michael Haneke. O suspense está na economia de palavras, na sinalização de uma ação futura ou na distância e cinismo que um abismo (social ou existencial) traz na história que se esconde por opção. Hardkor Disko é feito pela repetição de gestos, de planos e situações através do olhar tendencioso ao nicho criticado (uma família polonesa de classe alta), extremamente preocupado com a perfeição (geométrica, arquitetônica) e inibe qualquer sugestão política pela noção de que isso não interessaria a quem consome sensacionalismo. Eis o tiro no pé do filme: o separatismo completo oriundo da ideia que gênero deve esvaziar qualquer tipo de discussão. Enfim, Hardkor Disko é ônus e bônus como rotina e surpresa, respectivamente, em um mundo frio e autodestrutivo. (Pedro)

zombie

Zombie (Zumbi 2, Itália, 1979), de Lucio Fulci

Infelizmente não pude participar da sessão de Zombie e Terror nas Trevas (que estampou o primeiro artigo da cobertura) no festival, com participação do músico e compositor de diversas trilhas de Lucio Fulci, Fabio Frizzi. Entretanto, os eventos culturais sempre passam, mas os filmes permanecem, o que nos impede de ignorá-los na cobertura – especialmente pela possibilidade de incentivar outros a redescobri-los. Produzida para ser lançada como continuação de O Despertar dos Mortos (George Romero) na Itália (o que explica o ‘2’ do título original), essa obra supera plenamente a picaretagem comercial dos produtores, e remonta a tradição das aventuras em ambiente exótico e desconhecido que terminam em banho de sangue, com um incontável número de cenas geniais e aquela que talvez seja a mais famosa das mortes filmadas por Fulci: a estaca de madeira perfurando um olho que almeja espiar atrás da porta. Se a explosão do gore no cinema de horror era essa onda de conflitar a fragilidade humana e gerar prazer visual através da morte e da dilaceração da carne, Fulci filma aqui uma das cenas mais emblemáticas do ciclo de cinema fantástico italiano. Isso em um filme realizado no Caribe e fotografado como western, e que, entre outras delícias, ainda traz o histórico embate entre um zumbi e um tubarão durante um mergulho com topless. (Daniel)

thebarber

O Barbeiro (The Barber, EUA, 2014), de Basel Owies

Um filme sobre farsas que poderia muito bem estar nas mãos de David Fincher ou Joon-Ho Bong. O Barbeiro vai além da teia onde a atuação é o regime vivido por todos os personagens do filme – suas representações dualísticas são sempre nítidas para dentro e fora do mote principal – e assombra a noção que a influência é a maior vilã de grandes tragédias nos Estados Unidos, ainda que este norte, claro, também seja uma grande mentira. O Barbeiro é genérico em seu feitio e mais parece uma sátira às recentes tentativas de reviver o cinema noir – o que vem acontecendo com frequência maior nos últimos anos – e larga a questão sobre sua reais intenções como qualquer personagem do filme fez em algum momento. (Pedro)

sombras

Sombras (Schatten: Eine nächtliche Halluzination, Alemanha, 1923), de Arthur Robison

Outra sessão especial do festival, a exibição desse obscuro filme expressionista foi musicada pelo Quarteto Sensorial, de Porto Alegre, com trilha especialmente composta pelos músicos para o evento (trilha que, em alguns blocos, não deixou de remeter aos clássicos de Frizzi, pela evocação de um ritmo próprio à banda-sonora através das inclinações progressivas, um ritmo que não necessariamente acompanha o da montagem ou da ação). E se as sombras, esse elemento da encenação historicamente ligado ao movimento expressionista, estão plenamente em evidência no projeto desde seu título, é porque, além de um característico elemento estético (e até metafórico, considerando o desejo reprimido e a trama de infidelidade e vingança), possuem no filme um caráter representativo bastante simbólico, desde o ato de deslocar as sombras, que pontua a transição entre atos e toda movimentação de uma fantasia particular dentro da narrativa, até a encenação de ações fundamentais, como o beijo e o assassinato representados em tela pela projeção da sombra, e não pelo enquadramento dos corpos. (Daniel)

theframe

The Frame (idem, EUA, 2014), de Jamin Winans

Mais um filme que seria facilmente abraçado por qualquer grande estúdio americano. The Frame se equilibra por uma hora e meia na tênue linha que o separa do ridículo com a história de interação entre dois seriados de TV de segunda linha. Com o mínimo de bom senso para o equilíbrio entre fantasia e drama, o filme tem espaços para a sugestão de debates sobre a dependência que este tipo de entretenimento produz e como eles se reproduzem com poucas diferenças pela audiência. Enfraquecido pela pretensão de ser um filme maior que pode ser – afinal, assim como os seriados imaginados, The Frame também é um filme menor por diversos motivos, principalmente pela afirmação que a direção (em vias literais) é mais importante que o próprio espetáculo, sem dar o valor cinematográfico que estas imagens poderiam reproduzir. É claro que interação dos personagens leva ao romance e a ideia de salvação e regeneração que somente narrativas podem fazer se concretiza. Este é o pulo do precipício quando The Frame, enfim, resolve ser um filme sobre produções audiovisuais de maneira mais literal entre incontáveis fade in/fade out. A sugestão feita em uma hora e meia já era suficiente. (Pedro)

latephases

Late Phases (idem, EUA, 2014), de Adrián Garcia Bogliano

Enquanto Starry Eyes provoca uma legítima repulsão, esse Late Phases é aquele filme que passa em branco, de modo que pouca coisa se sustenta depois da sessão. Na trama, um combatente de guerra aposentado e cego muda para um condomínio de subúrbio e é ameaçado por lobisomens. Poderia existir certa potência advinda da condição física do personagem, da impossibilidade de contato visual com esse elemento fantástico aterrorizante, mas a execução é tão morna que termina sendo basicamente um homem atirando no escuro enquanto assistimos a movimentação dos monstros. Ganha pontos por preservar um olhar sobre a tradição fabulística do lobisomem (alterações da lua, produção de balas de prata, tudo legitimamente presente) e ignorar qualquer solução espertalhona, mas o protagonista antipático e a falta de uma atmosfera mais envolvente deixam tudo pouco interessante. (Daniel)

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Ninja Torakage (idem, Japão, 2015), de Yoshihiro Nishimura

Ninja Torakage confirma que Yoshihiro Nishimura se sai muito melhor em curtas ou filmes de episódios por saber construir introduções e saídas urgentes. Torakage parte de um fiapo narrativo muito utilizado – um mapa partido ao meio, a busca pela outra metade e um acerto de contas – com um mundo de personagens e referências com a imposição de Nishimura em costurá-los e dar algum sentido em sua reação passional. O importante para o diretor é dar ao que é construído um sentido e seguir com seu mundo de fetiches que já passou por mutantes, zumbis, monstros, etc. A crença de que o que é pobre – estilo e narrativa – pode justificar o humor que outrotora era o carro-chefe de seus filmes como Tokyo Gore Police e Helldriver chega ao limite tão rápido que o filme se resume ao desajeito de justificar o que é gratuito. (Pedro)

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The Connection (Shirley Clarke, 1962)

Por Felipe Leal

Duas coisas precisam ser registradas antes que se fale propriamente sobre The Connection. A primeira diz respeito a uma surpresa perante o quase completo desconhecimento da obra de Shirley Clarke, quando esta se localiza precisamente dentro de um contexto de intensa produtividade e efervescência cultural – os Estados Unidos dos anos 60; a segunda, uma espécie de apelo e constatação, é que acredito que toda essa obra, um amálgama de elementos sociais e teóricos sobre a arte, merece uma série de cuidadosos estudos, por seu caráter qualitativo, desafiador e de precioso documento histórico.

O filme (também) é aberto com duas constatações, através de um letreiro: as imagens que veremos foram abandonadas pelo diretor e entregues ao seu cameraman, que as uniu com com a maior honestidade possível. O conteúdo delas é o de uma falsa espera. A espera pela conexão que dá título ao filme: alguém nomeado Cowboy deve fornecer, a um apartamento cheio de junkies, um suplemento de heroína. Fala-se em ”falso” porque o filme em si é uma mentira, um documentário mais do que conscientemente inventado e que consegue unir um jogo de suspeitas sobre o próprio cinema, a criação de um microcosmo antropológico-laboratorial, um registro sobre o cenário da contracultura norte-americana e um dos mais inventivos e radicais dispositivos de diálogo com a figura do espectador (conosco), para dizer o mínimo.

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Embebida de prévios experimentos com a dança e a coreografia, é tão assombroso quanto lógico que Clarke tenha extraído tamanha espontaneidade e uma quase selvageria da orquestração precisa dos movimentos que os junkies, entre eles desocupados e músicos de jazz, realizam dentro do apartamento, cuja semelhança com o espaço cenográfico de um teatro não é ocasional: se foi exatamente nos arredores dos anos 60 que a arte teatral conseguiu estilhaçar a quarta parede que separava a diegese do público, The Connection foi o inteligente escape que o cinema encontrou para testar a si mesmo. Quando Jim Dunn, diretor diegético, pula pra frente da câmera e tenta coordenar a animosidade que tomava conta dos junkies, pedindo a eles que ”ajam naturalmente”, há aí uma ruptura, ou melhor, uma delicada transição: o que aproxima aqueles corpos da perfomance? O que esperar quando é exigido da atuação que ela seja a mais natural e mundana possível?

O problema (ou, no caso do filme, solução?) é que, uma vez que se iniciam suas interferências, para melhor dar forma a tais ”atuações”, o estímulo, o pecado original já foi desvelado. Como admitido no próprio filme, uma mão, quando atravessada pelas lentes da câmera, ”deixa de ser uma mão e se torna um assunto de seleção cinematográfica”. Num contexto em que os delírios do cinema verité proliferavam crenças na verdade absoluta das imagens, a própria vertente observacional do cinema direto americano estando infectada, encontramos aqui escape para um outro arroubo de genialidade. A questão é: ao mesmo tempo em que Clarke se monta de um dispositivo de mobilização de crença que só encontraria equidade precisos 10 anos depois, com o Punishment Park de Peter Watkins, ela se utiliza de um diretor diegético para promover uma reflexão sobre o próprio fazer fílmico. Jim Dunn não é somente Shirley Clarke, mas todo e qualquer diretor, na medida em que o cinema nunca conseguiu e nunca conseguirá escapar da modelação do enquadramento e daquilo que nele se desenrola, não importa o quão honestamente se tente fazê-lo.

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Pior: quando Jim é questionado sobre essa honestidade do filme que está tentando realizar, por não ser ele mesmo um junkie, descemos ainda mais um nível na espiral montada por Clarke. Qual a validade do regime de autoridade que se coloca sobre o diretor, quando quase sempre há um destacamento entre ele e a realidade que tenta articular? Por mais que este pareça ser um filme anti-cinema e que questione com violência as proposições mais básicas do documentário, em última instância, nós somos o alvo principal, na medida em que o cinema não existe sozinho. Para que a experiência seja completa, necessita-se de um pedido involuntário cuja única exigência é a crença do espectador, por mais que o olho fique comumente restrito ao limites do que é visivelmente estruturado.

Mas também não é por acaso que Eiseinstein fica creditado como uma das propostas estéticas de Jim Dunn. Naquilo que possui de raro registro – lendas do jazz como Freddie Redd e Jackie McLean tocam incessantemente durante o filme -, The Connection atravessa quase 55 anos para ecoar o que a Nouvelle Vague, talvez o movimento mais apaixonado do cinema, sustentou: uma câmera e uma ideia podem não ser as garantias para fazer nascer um bom filme, mas é a maneira de montar, de orquestrar a vida que torna o mundo o material mais inesgotável e potente que conhecemos; ou seja, para bem ou para mal, o mais poderoso instrumento de que o cinema dispõe, e, por extensão, nós, é o olhar.

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Cobertura XI Fantaspoa – Parte I

Por Daniel Dalpizzolo e Pedro Tavares

Toda cobertura de festival é fundamentalmente um recorte do recorte, refletindo, além de opções da curadoria, também as escolhas dos críticos para percorrer os caminhos propostos por ela. Ainda assim, num festival com a amplitude deste XI Fantaspoa – Festival de Cinema Fantástico de Porto Alegre, e considerando nossas condições, achamos importante alertar que esta cobertura propõe-se ao risco tanto quanto a própria programação do evento se propõe.

Diante de uma seleção tão ampla e naturalmente irregular, em que são apresentadas até dia 31 de maio, e em duas salas de cinema simultaneamente, mais de 100 obras de cinema fantástico (70 longas e 45 curtas-metragem), a maior parte delas ainda inédita no circuito de festivais do Brasil, o que nos será possível é compartilhar com o leitor breves impressões sobre algumas produções que estiveram ao nosso alcance, sem o mesmo rigor possível em festivais de programação mais concisa ou com críticos enviados exclusivamente para cobri-los.

É importante destacar que, juntamente com a proposta de apresentar um amplo recorte da produção recente dos principais gêneros do cinema fantástico (horror, suspense, ficção, ação, etc), há também um fundamental espaço para revisões de obras essenciais destes gêneros. É o que torna possível, por exemplo, a exibição de Terror nas Trevas, obra-prima antológica de Lucio Fulci (com a presença do compositor Fabio Frizzi, responsável pela incrível trilha-sonora), ou a dobradinha Re-Animator e Do Além, adaptações de Stuart Gordon a clássicos literários de H. P. Lovecraft (sessões comentadas pelo roteirista Dennis Paoli), certamente filmes dos mais essenciais na programação.

Além de clássicos do gênero, o público do Fantaspoa ainda descobre novas realizações acompanhando a competitiva internacional, com produções de praticamente todos os cantos do mundo; a competitiva nacional, na qual são exibidos seis longas-metragem produzidos no Brasil (uma novidade desta edição que merece ser destacada); e as sessões de curtas nacionais e internacionais. Comentamos então, neste e em um próximo artigo, algumas das produções que integram a programação deste ano.

Leia a segunda parte da cobertura aqui

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Terror nas Trevas (…E tu vivrai nel terrore! L’aldilà, Itália, 1981), de Lucio Fulci  

Hoje em dia uma obra-prima mais do que consolidada, e com justiça, entre os fãs de cinema fantástico, na qual Fulci desenvolve uma espécie de antologia do horror sobrenatural absolutamente apaixonada pela imaginação e pela liberdade de criação possibilitadas pelo gênero. Como outros grandes horrores italianos do período, parte de um plot muito simples e até genérico – portal para o inferno liberta horrores no mundo. Ponto. – e amplifica toda sua potência através da atmosfera assombrosa e da envolvente criação visual, emendando sequências oníricas nas quais o diretor explora os mais diversos elementos fantásticos (casas assombradas, maldições, possessão, delírios, zumbis, animais assassinos, e infinitas mortes em um gore sempre muito frontal no seu desejo por registrar dilacerações da carne). Mais do que a materialização de um pesadelo ad infinitum (no qual aos sobreviventes, ao fim, só resta aceitar a condição de eternos cárceres das trevas), é uma elegia à arte fantástica assinada por um cineasta que possui muitos trabalhos igualmente incríveis e pouco vistos (Uma Lagartixa na Pele de Mulher, Gato Negro, Cat in the Brain) que merecem mais atenção. (Daniel)

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The Midnight Swim (idem, EUA, 2015), de Sarah Adina Smith

Ainda que o núcleo de The Midnight Swim seja afirmado em um drama independente muito próximo aos moldes de um filme qualquer de Joe Swanberg, sua força está no mesmo princípio dos filmes de M.Night Shyamalan – a condição humana a partir da relação com o que está ao redor, aqui representado por um lago amaldiçoado em uma ideia muito próxima a de Fim dos Tempos. Toda trama está à serviço do luto e o terror está justamente na ciência de que o lago não sumirá. Sarah Adina Smith justifica seu filme como um found footage gravado por uma das irmãs, que se reunem após a morte da mãe e são atormentadas pelas lembranças e eventos sobrenaturais. (Pedro)

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Goodnight Mommy (idem, Austria, 2014), de Severin Fiaza

A forma com que Severin Fiaza desenvolve o filme, indo de um coeso drama sobre os valores familiares para um brutal filme de terror e tortura faz de Goodnight Mommy um ótimo exercício de tensão e atmosfera. Fiaza parece ter muito cuidado com os limites que o lado espiritual da história poderia levar ao filme e encontra nele o ponto perfeito para um desfecho fortíssimo. (Pedro)

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O Canal (The Canal, Irlanda/Reino Unido, 2014), de Ivan Kavanagh

“Quem quer ver um fantasma? Todas as pessoas que aparecem neste filme já morreram há tempos. Então, é como assistir fantasmas de verdade”. Há um escopo interessante, apesar de nada exatamente inventivo, na aproximação entre tempos distintos através da imagem fotográfica, aqui a partir de um crime registrado em película que é desencavado para assombrar e possivelmente reescrever o futuro do protagonista. Pena que Kavenagh creia menos que o necessário no potencial desta ideia e abandone-a em detrimento aos caminhos mais fáceis dos horrores ditos psicológicos, onde apontar o dedo a um culpado e estabelecer razões para justificar sua loucura acaba sendo sempre a saída mais confortável – diminuindo, consequentemente, o impacto de todo o restante. Houvesse mais de Pulse (Kurosawa) e menos das piores tendências que costumam extrair de O Iluminado (King e Kubrick) e teríamos um filme bem mais interessante, apesar de algumas sequências isoladas (conversa no Skype, projeção na parede) e seu desejo de abraçar diferentes correntes do horror serem fortes o suficiente para valer a sessão. (Daniel)

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 A Distância (La Distancia, Espanha, 2014), de Sergio Caballero

Com a mesma estranheza de seu filme anterior, Finisterrae, Sergio Caballero mescla o humor vindo do espanto e a percepção da metáfora da formação de uma ideia e o funcionamento do cérebro. A forma pessimista para um mundo sem divindades, apoiado no ego e cálculos matemáticos como argumento máximo para a autodestruição da raça humana. (Pedro)

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Re-Animator (idem, EUA, 1985), de Stuart Gordon

O que Gordon fez com Lovecraft beira ao insulto. E é aí que reside o prazer de rever Re-Animator, uma comédia de horror que adapta a já satírica história original, escrita nos anos 1920, transformando sua releitura de Frankenstein em uma grande zoeira sem deixar, ao mesmo tempo, de homenagear escritor e tema central da obra – a brincadeira com a obsessão pelos avanços da ciência e pelo pós-morte. Gordon estabelece todo um cenário para uma estilosa produção 50’s da Hammer para mais tarde subvertê-lo com um festival de bizarrices recheado do melhor gore. A ideia do cientista genioso que descobre uma fórmula para enganar a morte transportada ao embrião de uma universidade de medicina, numa disputa típica de poder e egos acadêmicos, com um clímax delicioso que entre outras coisas envolve a cabeça de um professor decapitado praticando sexo oral na filha do reitor enquanto este, transformado em zumbi, tenta assassinar seu melhor aluno e futuro genro. Segue uma das mais divertidas dessas produções norte-americanas da década de 1980 em que abria-se grande espaço para as equipes de efeitos e maquiagem brilharem. (Daniel)

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Wyrmwood (idem, Australia, 2015), de Kiah Roache-Turner

Mad Max meets Dawn of the Dead” – assim o release apresenta Wyrmwood. É justamente do lado fetichista dos dois filmes citados que Kiah Roache-Turner se utiliza para fazer um filme de mascarados versus zumbis sem se preocupar com justificativas. O que vale em Wyrmwood é o espírito sugerido, de anarquia e a subversão da posição de cada grupo na história – surpreendente respiro ante tanta gratuidade. É possível resumir o filme com cenas de perseguição, tiroteios e humor – campo saturado e que exige originalidade para ter relevância. Algo que Wyrmwood não faz. (Pedro)

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 Deserto Azul (Idem, Brasil, 2014), de Eder Santos

Na primeira camada de Deserto Azul se vê um número gigantesco de possibilidades de desenvolvimento narrativo quanto a um futuro próximo e seu iminente desespero. Não demora para o filme se revelar como uma aposta de segmentar (e sustentar) o discurso através do aspecto visual – provavelmente o que há de melhor aqui. Fica a sensação de que se o filme não se levasse a sério, utilizando até mesmo o tradicional viés pessimista, Deserto Azul seria um bom filme político. (Pedro)

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Spring (idem, EUA, 2014), de Justin Benson e Aaron Moorhead

Provavelmente vou levar puxão de orelha de alguns amigos ao descrever um filme como Linklater meets Jonze/Gondry & mumblecore sem que isso soe exatamente pejorativo, mas debaixo desse caldeirão de referências do cinema indie norte-americano existem alguns aspectos até agradáveis nesse continho sobre um jovem fodido na vida que viaja à Itália e se apaixona por uma criatura mitológica violenta personificada como uma bela ragazza. Há um espaço significativo dedicado à fruição desses encontros, em diálogos simples registrados em cenários históricos quase míticos (beira-mar, ruelas, ruínas, cavernas em alto mar) que formam a geografia dessa Europa milenar (mais Befores impossível, ou seja, nada de novo), e uma intersecção entre eles, a História registrada pela Arte e essa criatura na qual todos esses elementos convergem, tudo filmado com um visual bem habitual do cinema digital. A presença de Jonze e Gondry nas referências obviamente atenta aos momentos em que o realismo fantástico incomoda o suficiente para o filme descambar, mas ainda é bem menos irritante que qualquer pós-Eternal Sunshine do Gondry. (Daniel)

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Lobocop (WolfCop, Canadá, 2014), de Lowell Dean

É raro um filme com esta proposta ser consistente e ter noção de suas bordas. Lobocop tem ritmo, boas doses de humor e faz alusões às histórias clássicas do lobisomem, à falência social abordada por Robocop e a policial de Dirty Harry, mas o que chama atenção é como Lowell Dean sabe medir as forças do filme, sem que ele pareça uma homenagem em formato exploitation. (Pedro)

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O Que Fazemos nas Sombras (What we do in the shadows, Nova Zelândia /EUA, 2014), de Jemaine Clement e Taika Waititi

Um filme que deve agradar bem mais outras pessoas – principalmente o público de programas humorísticos de TV, de onde origina um dos criadores, Jemaine Clement – que a mim. Basicamente um filme de uma mesma piada recontada exaustivamente – esvaziar o peso mitológico da entidade Vampiros registrando estes seres em uma sequência de afazeres domésticos e situações banais para nosso convívio social e criando um atrito entre suas necessidades fisiológicas e os padrões do comportamento humano – em que as situações geradas a partir dela não me soaram realmente engraçadas. Ao contrário de outras obras cômicas – a mais notável e óbvia sendo, sei lá, Seinfeld – em que a inexistência de uma trama central e a despretensão e aproximação absoluta com o cotidiano eram base para invenções cômicas bastante ricas e imaginativas aqui tudo se restringe a uma interação em mockumentary bem desgastada. Pra ser sincero eu gosto da sequência em que os vampiros procuram virgens na internet e algumas coisas do encontro com lobisomens ao final, especialmente os zooms da câmera granulando e distorcendo a imagem. Pouca coisa, portanto. (Daniel)

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Redentor (idem, Chile, 2014), de Ernesto Diaz Espinoza

Há no filme de Ernesto Diaz Espinoza a preocupação estética na construção de planos abertos e na coreografia das sequências de ação, remetente aos códigos dos filmes de arte marciais chineses. Tão importante quanto, a aura trash é mantida na desmistificação do herói western. A eterna busca por paz do homem cristão passa por provas onde só um acerto de contas possibilitaria tal utopia na base da pancadaria, tiroteios e suspense. (Pedro)

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Noite Sem Fim (Jaume Collet-Serra, 2015)

Por Pedro Tavares

A linha reta é o caminho mais longo para ir de um homem a outro, a proximidade é uma ilusão; o face a face, um perigo; o amor, uma tirania. (Dodeskaden, Akira Kurosawa, 1970).

Para o bem ou para o mal, Noite Sem Fim é um filme enganoso. Pois, se a premissa, muito próxima a de Sem Escalas (2014), filme anterior de Jaume Collet-Serra – homem de moral execrada em busca de redenção em microcosmo repleto de anti-heróis -, indicara um modelo narrativo próximo ao absurdo, Noite Sem Fim se agarra apenas à freneticidade durante sua primeira hora como forma de encurtar uma linha de encontro. Neste espaço, Collet-Serra sonega suas intenções enquanto justifica o enredo composto por aparições – uma teia de personagens é tecida entre tantos cortes e propicia uma reunião relâmpago que possibilita ao diretor em uma só sequência afirmar a posição deslocada destes homens na sociedade; alguns por opção, outros, não. Alguns vivos por necessidade, outros, entregues ao tempo.

É um tipo de cinema indefectivelmente feito de corpos e como eles dominam o espaço urbano com suas necessidades, da mobilidade ao vício, mas que provém espaços para o desenho de um estado de espírito tal qual o de Abel Ferrara em O Rei de Nova York (1990) sobre Nova Iorque fragilizada pelo crime e em constante alerta, antes das medidas tomadas por Rudolph Giuliani a partir de 1994. Estes espaços em Noite Sem Fim medem o estado de tensão e terror após os atendados de 2001 sem que ele tome o papel de protagonista. As ruas refletem a busca incessante da imprensa por culpados e a (hoje) iminente justiça, observadas com distância suficiente para encarnar o antagonismo. Porém, a lacuna principal e que rege o filme é a da figura paterna deixada por Jimmy (Liam Neeson), onde seu contraponto, Shawn, vivido por Ed Harris, encarna um tipo de representação mutante muito comum na filmografia de Jaume Collet-Serra, em especial como ela serve de pilar para todos os seus filmes, sempre cambaleantes na corda da ética. Harris remete a mesma brutalidade e cinismo de William Walker, talvez o grande papel de sua carreira, em Walker (Alex Cox, 1987).

A história de ascensão moral de Jimmy acompanha o arquétipo de busca e fuga pelas ruas de Nova Iorque com licenças e referencias que levam a câmera de Serra do Madison Square Garden ao Brooklyn e desemboca em um conjunto habitacional muito similar ao inferno futurístico de Dredd (Pete Travis, 2012), onde se encerra a primeira metade do filme e que mais transparece a influência dos games na narrativa. A ideia até este momento é que Nova Iorque é um calabouço cercado pelas luzes de uma tempestade. Entre a penumbra e sombras, o que se vê além de rostos em planos fechados, são rastros de bala e luzes de neon. E o giro da trama vem, como em Sem Escalas, pela ética, que ganha outra face como sonegação de sentidos ao filme: a correria agora é outra.

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Cai por terra a noção de que pulsa um Estado ao redor de Jimmy e suas obrigações profissionais e morais exercendo a função de contracampo permanente; o quebra-cabeças ganha frouxamente suas peças fundamentais, cheias de sentimentalismo e o raciocínio constante de um filme de sugestões se vai na afirmação de vida do protagonista, este que sempre foi dado como morto – financeiramente, moralmente, profissionalmente. O tom fabuloso motriz que justifica qualquer resvalo ao absurdo segue a mão contrária de uma pista que encontra sua bifurcação.

Há espaço para tentativas sem fôlego de bons momentos, como a sequência de tiroteio entre vagões (há um mundo de referências nesta cena, dos westerns aos tiroteios entre contêineres de filmes contemporâneos), mas Noite Sem Fim corre desenfreadamente para colocar os pingos nos “is” seguindo a cartilha da redenção de um homem cercado de erros. Moral e justiça estão, novamente, à frente de qualquer simbologia sobre renúncia e recomeço. A sedução que Collet-Serra construíra em forma de atmosfera sufocante se diluí na lembrança (ou a falta de) e que volta a enganar ao construir dois epílogos, suportados por um tipo de relação artificial, tão artificial quanto o local que Noite Sem Fim habitou, tão superficial quanto o convívio de toda teia construída para obter o que interessa a cada um deles, o que de certa forma resume o nosso tempo: além do ego, só existem sombras.

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O Desejo da Minha Alma (Masakazu Sugita, 2014)

Por Arthur Tuoto

O Desejo da Minha Alma é um filme bastante consciente dos seus limites. Mesmo se focando em uma história pesada – após um terremoto no Japão (que nos remete diretamente aos eventos de março de 2011), dois irmãos perdem os pais e ficam orfãos – o filme se concentra em uma abordagem que lança mão de relativamente poucos elementos, constrói sua narrativa a partir de um jogo muito minucioso e detalhista em uma dinâmica espacial de ausências e presenças implícitas. Muito disso reside na relação dos seus atores, em especial os protagonistas, a irmã de 12 anos e o irmão de 5, com a descoberta de novos ambientes ao seu redor, já que depois da tragédia e da perda dos pais, os dois se veem obrigados a morar com parentes próximos, em uma outra casa e ao que tudo indica, uma outra cidade.

Toda a dinâmica da direção de Masakazu Sugita funciona como um jogo de forças entre uma mise-en-scène rigorosa – que não deixa de remeter a uma tradição centenária no cinema japonês, com seus enquadramentos fixos e sua geometria de cena austera – e um drama que, ainda que narre essa história das mais melancólicas, tem alguns momentos de uma ternura muito espontânea. A inocência de Shota, o irmão mais novo, que ainda não tem exatamente uma noção concreta da morte dos pais, gera algumas das cenas mais doces nesse sentido, principalmente quando ele é colocado nesses novos arredores domésticos que precisam ser desbravados, nessas novas relações de afeto com os tios que aos poucos vão substituindo os pais e com todo a área física afetiva dessa nova casa. Justamente o oposto de Haruna, a irmã mais velha, que convive entre um misto de serenidade e resignação. E se em um primeiro momento podemos até cogitar que a irmã aceitou bem a morte dos pais, com o seu semblante constantemente pacífico (ela chega, inclusive, a soltar um sorriso ingênuo no enterro dos mesmos), aos poucos ela vai revelando uma raiva implícita, como se finalmente começasse a lidar com a morte, a externar essa incompreensão com a devida fisicalidade. Mesmo na cena em que Haruna ensaia um sorriso no espelho do banheiro, como que para tentar acobertar um semblante mais negativo, fica mais do que claro todo esse movimento corporal da personagem, essa anatomia infantil que funciona dentro de uma ambiguidade muito reveladora.

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No ápice dramático do filme, e possivelmente em uma das melhores atuações infantis do cinema recente, Haruna desaba a chorar quando tenta contar para o irmão que os pais estão mortos, ou pelo menos tenta fazê-lo compreender isso de alguma forma. Um pouco como se, até ali, nem ela tivesse digerido exatamente essa ideia, o conceito dessa morte, como se essa sensação ainda estivesse em suspensão, aguardando apenas ser dita em voz alta para se fazer concreta, tanto para ela mesma, como para o espectador, que até ali estava intuindo tudo apenas por imagens e comentários contidos entre os familiares no começo do filme, nunca exatamente de uma forma explícita e direta.

Todo esse caminho muito gradual que o filme segue, que em algum sentido é o caminho da aceitação da morte, é muito bem mediado por uma série de elipses que intuem toda a minuciosidade daquele tempo, toda as especificidades daquelas ações e daqueles gestos. Ao mesmo tempo que alguns cortes são muito bruscos e fazem questão de jogar os personagens já dentro do plano e inseridos nessa simetria desoladora, a fruição dessa montagem funciona muito bem como um elemento de sublimação da morte, de um espectro que ronda essas crianças e faz com que a ausência elementar dos pais crie sempre uma relação de iminência com o tempo, uma espera que só reitera esse vazio maternal. Quando Shota pensa que os pais podem chegar de balsa, e ele e a irmã vão aguardar um barco que nunca chega, isso fica mais do que evidente.

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O filme de estreia de Masakazu Sugita pode até não ter exatamente grandes pretensões, mas trabalha muito bem dentro de uma meticulosidade doméstica que a trama exige, em especial nesse universo infantil do trauma, nesse descortinar de um novo mundo após uma perda essencial. E apesar de ter um ou outro deslize (a trilha sonora, ainda que oportuna com seu piano pontual, às vezes abusa um pouco de uma lógica dramática pretensamente potencializadora) é o tipo de filme que eu sinto falta de assistir. Curto, conciso, equilibrado em seu proposta minimalista e que, ao se utilizar de princípios básicos do cinema, se aplica em alguns métodos não apenas funcionais, mas evidencia uma essência primária da cena, uma força dramática que parte de uma genuína singeleza formal para cumprir muito bem seus desígnios narrativos.

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Entrevista com André Novais

Por Fábio Feldman

Numa quinta nublada de abril, voltei aos arredores da Filmes de Plástico, a fim de me encontrar com o André Novais. Tímido, o diretor dos belos Fantasmas, Pouco mais de um mês e Ela volta na quinta (a ser lançado nacionalmente no próximo semestre), admite, de cara, que entrevistas não são muito sua praia. O que, em certa medida, amplia ainda mais o meu interesse pelo que tem a dizer. Prestes a retornar a Cannes, onde exibirá seu novo curta, Quintal, André conversou comigo sobre suas expectativas, seus interesses e suas opiniões acerca do cinema nacional, da cena belorizontina, de sua própria obra e de uma série de outros tópicos.

De que forma você avalia o cinema brasileiro contemporâneo, tanto em relação aos realizadores, quanto à distribuição e ao retorno que o trabalho tem dado? Nós nos encontramos hoje em um bom momento para o cinema brasileiro?

Pra mim, o cinema brasileiro vive um bom momento. A produção cresceu bastante por vários motivos e existem filmes bem interessantes se destacando. Tenho curiosidade por grande parte do que é produzido no país, principalmente os filmes que chegam aos festivais. Claro que existem problemas de falta de verba, dificuldade na distribuição e muitas e muitas coisas, mas digo em termos do que vejo, e há muito que me agrada.

E como você se sente sendo, nesse contexto, uma das grandes promessas do cinema contemporâneo? As pessoas esperam muito de você, isso é algo que te angustia, que te motiva?

Bom, não sei se é bem assim, mas é legal quando algumas pessoas incentivam. É algo que anima, que me leva a querer fazer mais filmes.

Diminuindo um pouco o escopo, você acredita que exista, hoje, uma cena em BH? Já ouvi relatos contraditórios, daqueles que percebem coesão e articulações fortes dentro do espaço de produção cinematográfica belorizontino, e dos que insistem que, mesmo havendo uma quantidade ampla de realizadores e produtoras, não há muito diálogo entre eles.

Tem muita gente fazendo filmes aqui. Muitos grupos diferentes, muitas produtoras. Em algumas eu vejo uma certa afinidade, em outras não. No caso da Filmes de Plástico eu vejo muita afinidade com a El Reno Fitas, Entrefilmes e também com a Leben 108, por exemplo. Às vezes, não tanto pelas temáticas dos filmes, mas por ser meio que a mesma galera mesmo, de alguns terem vindo dos mesmos lugares, mesmas escolas, e por trabalharmos nos filmes uns dos outros. Mas não acho que seja tudo da mesma turma e acho que existem coisas bastante diferentes sendo feitas.

Set de Ela volta na quinta (2014). André Novais ao lado da atriz Maria José Novais Oliveira e do diretor de fotografia, Gabriel Martins.
Set de Ela volta na quinta (2014). André Novais ao lado da atriz Maria José Novais Oliveira e do diretor de fotografia, Gabriel Martins.

Falando em influências, eu gostaria de saber um pouco sobre as suas, tanto no que diz respeito ao cinema internacional quanto ao nacional. Quais são os autores que você toma como referências?

Eu gosto muito de cinema brasileiro em geral, tenho muito interesse em pesquisar sobre cinema brasileiro. Pesquisar, assim, do meu jeito, né? Cinema Marginal me interessa bastante. Cinema Novo também. E o cinema contemporâneo brasileiro, que é o que mais me influencia – e acaba que me influenciam muito as pessoas que fazem filme com a gente, dentro da Filmes de Plástico. Tenho muita influência do Gabriel, do Maurílio… Lá fora, há várias coisas que eu gosto também. Nos meus últimos filmes, acho que a influência mais clara é, sei lá, o Kiarostami, o Cassavetes, tem o Charles Burnett também – principalmente com o “Matador de ovelhas”. E é isso, muitas coisas. Gosto de filme americano também, principalmente década de 40. Tenho muita influência de Billy Wilder.

É mesmo?

É. Tipo, não é influência direta, mas é algo que eu gosto bastante. Billy Wilder, Howard Hawks.

Entendi. Bem, queria focar mais no seu cinema especificamente e perguntar sobre o seu processo. Muito já foi dito sobre algumas características correntes dos seus filmes, como o diálogo que estabelecem com uma certa estética documental, o fato da raiz deles ser episódios da sua própria vida, e de sua família e amigos interpretarem todos os personagens. Isso tudo dá à audiência uma impressão de espontaneidade, uma ilusão muito forte de realismo.  Como se dá a elaboração dos seus roteiros? Num filme como o Ela volta na quinta, tudo o que vemos na tela foi planejado de antemão, tudo é roteirizado de modo criterioso, ou há espaço para improvisação? Como se dá isso?

Bom, em relação ao jeito que as pessoas vêem, eu já costumo ver o contrário. Não vejo esse lado documental. Meus filmes são ficcionais o tempo todo. Pode haver alguns elementos reais, mas eles não são sobre a minha vida. E os quatro, Fantasmas, Pouco mais de um mês, Ela volta na quinta e, agora, o Quintal, todos eles têm roteiros mesmo, a grande maioria dos diálogos está lá, assim como praticamente todas as cenas. Mas há espaço pra improvisação também. No Ela volta na quinta, por exemplo, tem muito essa coisa de haver um diálogo no roteiro, só que, na verdade, não há o diálogo todo. Tá só o começo do diálogo e o resto é desenvolvido em cena. Ou então existe o começo e o fim do diálogo, só que o meio vai ser desenvolvido na cena mesmo.

Ela volta na quinta (2014)
Ela volta na quinta (2014)

E em relação aos atores? Uma das coisas que eu considero mais impressionantes nos seus filmes é o fato de você trabalhar com atores não-profissionais e extrair deles essas interpretações incríveis! Como você consegue isso? Você dá liberdade pra eles fazerem o que quiserem? Há uma bateria exaustiva de ensaios?

Geralmente, é bem simples. Eu tomo o cuidado, bem antes, de ler o roteiro com eles, mas não deixar o roteiro, pra que não decorem as falas. Realmente, há poucos ensaios. Algumas cenas tinham, no máximo, três.

Você não deixava o roteiro com eles?

Não. Pra tentar que o texto não seja decorado. E acho que ajudou bastante a questão de montar uma equipe ideal, que ficasse amiga da minha família, e não fosse muito numerosa. Não queria que tivesse muita gente no set, pra deixar os atores à vontade. Minha busca é deixar os diálogos o mais espontâneos, captando o real mesmo, o jeito que as pessoas conversam, sabe? Os assuntos também. Porque às vezes as pessoas conversam sobre banalidades mesmo, isso é normal. Agora, não quer dizer que eu vá escrever diálogos sempre desse jeito. Mas nesses filmes foi assim.

Bem, indo dos atores aos personagens. Acho espantoso o fato de personagens como os seus serem tão raros no cinema brasileiro. Parece-me existir uma quase absoluta ausência de representação do dia-a-dia de famílias negras de classe média. Até que ponto isso é uma preocupação sua? Esse elemento político é uma motivação pra você?

Há uma motivação política, sim. Da coisa simples de representar o negro com respeito. O negro é quase sempre apresentado em meio à violência, tráfico de drogas, essas coisas. E, em relação não só ao negro, mas às pessoas da periferia como um todo, falta representação. Na periferia, existe violência, mas há famílias pra quem isso não é o assunto principal do dia. No caso do Ela volta na quinta eu foco essas questões dos relacionamentos amorosos dentro da periferia. Porque dá a impressão que isso não existe, mas existe.

Você acha, nesse sentido, que há um diálogo entre o que você faz e o que o Adirley Queirós faz, por exemplo?

Acho que tem tudo a ver. Eu gosto demais dos filmes dele, estão entre os que mais me influenciam hoje em dia. A gente se conheceu em 2006. Eu lembro que ele estava num festival com o Rap, o canto da Ceilândia, que foi o primeiro curta dele, e eu estava lá com o primeiro curta que eu fiz também. E naquela época foi muito importante, pra mim, perceber que alguém estava falando sobre um assunto com que eu me identifico tanto.

Quintal (2015)
Quintal (2015)

Nesse ano, você volta a Cannes, com o curta Quintal. Certamente, muita gente vai encará-lo como uma ruptura com o tipo de cinema que você fez até o momento – opinião que eu, particularmente, não subscrevo. O que você tem a dizer sobre isso? Como você enxerga o filme no interior mais amplo da sua filmografia? Trata-se mesmo de um corpo estranho?

Eu acho que há pontos de contato com o que eu fiz antes, é um desdobramento natural, talvez. Não é bem um corpo estranho, mas, ao mesmo tempo, é um filme diferente.

Eu acredito que a sua obra, sobretudo em Fantasmas e Pouco mais de um mês, funciona muito como uma síntese de opostos. Ao mesmo tempo em que ela expressa tendências realistas mais óbvias, um desejo de representação da vida cotidiana, ela me parece também flertar, sempre, com algo que transcende esse cotidiano. Sinto nela uma atmosfera meio mágica, o que vemos parece sempre disposto a nos enganar – penso, por exemplo, no desfecho do Fantasmas, quando descobrimos que a ação inteira não passa de uma gravação, barrando as emoções do protagonista, ou na câmera escura de Pouco mais de um mês, com suas imagens invertidas, que tanto podem servir como metáfora para a intimidade do casal, quanto para algo mais obscuro e hermético… Enfim, eu sinto em suas realizações um pendor para o absurdo, um desejo, ainda que tímido, de ir além da mera realidade tangível. Talvez eu esteja superinterpretando, por gostar tanto desses temas e saber que você é fã de Murilo Rubião! Mas vendo o Quintal ontem, fiquei com vontade de dividir essas minhas impressões e saber o que você pensa delas. Essa divisão faz parte do seu pensamento? Há interesse seu em investir nesse lado mais, digamos, absurdista?

Realmente, há esse lance de uma mudança estranha dentro de cada filme. Mas, eu não sei. Essa coisa dos filmes, quando eles vêm, estão sempre todos juntos de uma idéia. No caso do Fantasmas e do Pouco mais de um mês, a idéia nasceu junto daquilo mesmo. Em estado meio bruto. Depois que eu fui pensar e organizar aquilo, dar mais corpo. O lance do Quintal, por exemplo. Ele nasce da idéia, mas o roteiro já foi todo pensado pra ser diferente. Essa questão do Realismo Fantástico é algo que me atrai muito. Mas eu não sei se eu faria de novo.

Então, o Quintal pode ser uma experiência isolada?   

É, pode ser. Não sei.

Certo. Bem, momento meio clichê, mas vamos lá: sucesso crítico, Cannes e demais festivais. Qual é a importância disso para você como realizador hoje?

Sei lá, acho que o mais importante é dar mais gás, não só pra mim, mas pra todo mundo da Filmes de Plástico, pra que continuemos fazendo, porque ainda temos muita coisa pra fazer. Alguns projetos foram aprovados e eu fico feliz pra caramba. Ainda mais com nossos filmes passando em festivais e sabendo que estão sendo vistos por mais pessoas, que algumas sessões ficam cheias, isso é muito bom.

E o que você espera da recepção em Cannes dessa vez, chegando lá com um filme tão diferente daquele que levou há dois anos? Quais são as suas expectativas?

Esse ano, eu não faço a mínima idéia! Em 2013 eu também não fazia, mas enfim. hehe Eu estou feliz principalmente porque minha mãe e meu pai vão, uma boa parte da equipe vai, acho que será uma coisa muito divertida. Mas não tenho a menor idéia do que vai acontecer. Sei que vou tentar assistir muitos filmes!

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Notas sobre “Realidades do cinema brasileiro”

Por Virgilio Souza

Um trio de profissionais do audiovisual dividiu o palco da Universidad del Cine, em Buenos Aires, no dia 20 de abril para discutir a realidade do cinema brasileiro sob diferentes pontos de vista. A reunião ocorreu no âmbito do Talents Buenos Aires, programa realizado através da parceria entre a universidade, a Berlinale e o BAFICI, maior festival de cinema independente da Argentina. O assessor internacional da Ancine, Eduardo Valente, a produtora Vânia Catani e o realizador e programador Gustavo Beck falaram a um grupo de quase 72 jovens cineastas, atores e críticos da América Latina, selecionado para o evento dentre centenas de inscritos. Naturalmente, a discussão envolveu questões um tanto óbvias para aqueles envolvidos no mercado nacional, mas se mostrou também capaz de oferecer ideias interessantes sobre a inserção do cinema brasileiro além de nossas fronteiras.

Assumindo uma postura mais prática e oficial, Valente deu início ao debate apontando a coprodução como “caminho natural para que o Brasil se faça internacional”, seguindo sua exposição com uma série de dados indicativos do avanço nessa área – do significativo aumento no número de produções realizadas em parceria com países vizinhos à crescente porcentagem de participação de filmes brasileiros em termos de bilheteria, passando pela apresentação de nova convocatória da Ancine voltada para a cooperação regional, a ser lançada no início de maio.

O principal intento da agência nesse segmento, segundo ele, seria estimular os produtores brasileiros a explorar as possibilidades da América Latina, indo além e até mesmo facilitando a participação em festivais e em laboratórios de projetos, habitualmente vistos como um meio rápido e direto de acesso a outros territórios e circuitos, sobretudo por realizadores mais jovens como os ali presentes. O exemplo mais recente e talvez mais extremo citado foi o recém selecionado para a Semana da Crítica de Cannes, La Patota, longa dirigido por Santiago Mitre e realizado como coprodução majoritária argentina através de parceria entre a agência brasileira e o Instituto Nacional de Cine y Artes AudioVisuales (INCAA).

A coprodução foi tratada a um só tempo como oportunidade e desafio para o Brasil, país que, apesar dos esforços recentes, ainda se encontra até certa medida ilhado no continente por distintas razões, dentre os quais Valente apontou idioma, cultura, extensão geográfica e a existência de um público muito grande para conquistar: segundo ele, “Fazer com que as pessoas vejam filmes brasileiros é uma luta em si mesma”.

Vinculada ao longa de Mitre por meio da Bananeira Filmes, uma das vencedoras do mencionado edital da Ancine para o fundo de coprodução com a Argentina, Vânia Catani fez coro ao raciocínio, afirmou que o cinema brasileiro luta para ser respeitado até mesmo dentro do Brasil e reconheceu avanços importantes, louvando o esforço da agência. Segundo ela, porém, a ideia de integração regional não é somente um tema econômico ou de fomento por meio de editais: é preciso um bloco forte cultural e politicamente para mudar situações que não dependem somente de institutos de cinema, tais como a enorme e talvez exagerada burocracia que impõe restrições a parcerias em território estrangeiro (“Mandar dinheiro para um filme [fora do país] é como mandar dinheiro para uma fábrica de sapatos”, disse, se referindo a questões legislativas, tributárias e cambiais que impõem dificuldades à própria lógica de fomento).

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Ainda no que diz respeito à superação de tais fronteiras, a produtora afirmou que, em festivais fora do continente, “Os europeus nos tratam como um bloco, mas há pouco tempo nós [profissionais latino-americanos] sequer nos conhecíamos”. De acordo com ela, beira o absurdo ir à Europa e não conhecer os realizadores argentinos que ali estão, por exemplo, o que reforça a importância da convivência e do contato durante processos de coprodução. Nesse sentido, citou a experiência de trabalhar ao lado de Lucrecia Martel na adaptação para o cinema de Zama, livro do também argentino Antonio Di Benedetto: “Trabalhamos como se fosse um filme nosso porque [sentimos que] era um filme nosso”. Brincando com o próprio discurso, realizado entre o espanhol e o português, Catani ainda argumentou a respeito da necessidade de se falar o mesmo idioma: “É bom que falemos inglês com quem não fala nossa língua, mas [aqui, entre latino-americanos] é político que se fale até mesmo o portunhol”.

No terceiro segmento da mesa, Gustavo Beck se apresentou sob a premissa de que “fazer cinema exige uma postura” sobre qual cinema se quer fazer, com quem se quer trabalhar e para quem se quer mostrar. Seguindo esta linha, traçou alguns dos problemas enfrentados por realizadores brasileiros no momento de se projetar fora do país: a falta de calma para amadurecer determinados projetos, a ideia de que certas plataformas procuram apenas o que é mais facilmente vendível internacionalmente e a percepção de que muitos cineastas parecem não ver cinema antes de fazer cinema – algo que, pensando em uma inserção regional e em consonância com o argumento de Catani a respeito da partilha de experiências e olhares na América Latina, parece ainda mais relevante*.

Também cineasta, Beck argumentou sobre a importância do timing e do posicionamento de certas produções no circuito de festivais: segundo ele, o cineasta deve buscar “perceber qual o momento certo para entregar um filme ao mundo” e em quais centros procurar produzir e exibir seus trabalhos. O raciocínio parte da ideia não apenas de que há perfis diferentes em termos de seleção e programação, mas também que alguns laboratórios de desenvolvimento modificam trabalhos para aumentar suas possibilidades de vendas: “existem advisors que fazem os filmes que querem exibir”, disse.

Entre questões de ordem prática e intervenções mais elementares, a discussão revelou a percepção de que há potencial e iniciativa no projeto de inserção internacional – especificamente latino-americana – do cinema brasileiro, ainda que por vezes incerto e tateante, e que os desafios impostos pela condição de insulamento não devem ser superados na busca vazia por universalidade, mas por denominadores comuns com os países vizinhos que permitam conciliar inserção e manutenção dessa identidade.

* Aqui, a discussão remete a alguns dos pontos trabalhados por Nicole Brenez com relação a world cinema no início do texto “El cine político hoy: las nuevas exigencias”, disponível em espanhol na revista La Fuga.

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Jauja (Lisandro Alonso, 2014)

Por Arthur Tuoto

Se a filmografia de Lisandro Alonso vem, aos poucos, quase que minuciosamente, abolindo um esvaziamento dramático e conciliando certos elementos claramente narrativos, ainda que muito pontuais, podemos dizer que o seu cinema está lidando diretamente com uma tradição cinematográfica bastante elementar, primária, em algum sentido até clássica. O homem que um dia, em uma entrevista, já ironizou a existência de John Ford, tem nesse seu Jauja uma fundação alegórica sobre colonialismo que parte de uma franca tradição do western e, consequentemente, da própria historicidade da linguagem cinematográfica. Não que isso seja exatamente novo, não é de hoje que muita gente tenta reimaginar ou traduzir gêneros fundadores do cinema em novas abordagens, modernizar o antigo ou repaginar o primordial, caindo muitas vezes num movimento quase que de domesticação de um modelo. Mas longe disso, é incrível como Alsonso consegue conservar uma certa unidade primária do gênero, consegue partir dele para criar uma dimensão absolutamente ressignificadora, cheia de indícios contemporâneos ao mesmo tempo que reverencia um passado muito possibilitador.

O extracampo inalcançável e a imensidão que falta.
O extracampo inalcançável e a imensidão que falta.

Desde Los Muertos (2004), seu segundo filme, Alonso já começava a complexar seu cinema para além do dispositivo inaugural de La libertad (2001): a ontologia soberana que, em alguns momentos de uma quebra formalista, transcendia em seu próprio universo. Nesse sentido, é como se cada filme começasse onde o último terminou. Se em La libertad tínhamos apenas a relação do indivíduo com o espaço em uma recusa por qualquer linha dramática ou identidade formativa (ainda que isso se fazia presente em cena por um simples telefonema de Misael), em Los Muertos já existe o princípio de algumas relações e toda uma sugestão de passado (sendo o plano final uma das chaves mais emblemática desse pensamento), já em Liverpool (2008), o filme chega a abandonar o seu personagem, e consequentemente o próprio método de centralização que o cinema de Alonso seguia até ali, para assumir uma investida narrativa inédita até então. Finalmente, em Jauja, além dessa mesma bifurcação de Liverpool, desse abandono do sujeito centralizado e da abertura para um epílogo final que subverte o artifício da trajetória solitária, o filme se assume como uma espécie de relicário cinematográfico, disposto a dialogar com bases iconográficas que vão do clássico (a premissa fordiana que remete diretamente a The Searchers), passam pelo moderno (a mediação naturalista, a dimensão onírica proto-espiritual tarkovskiana) e chegam no contemporâneo (o epílogo abstrato e de um simbolismo quase lynchiano).

Talvez Jauja seja o atestado mais direto dessa trajetória gradual justamente pelo seu tom assumidamente alegórico. Mesmo que exista aqui a mesma mediação naturalista dos outros filmes, toda a lógica formal de Jauja tem uma inclinação muito mais controladora. E se de alguma forma os personagens nos outros filmes de Alonso eram reduzidos a essa mediação, ou reduzidos a esse dispositivo de abordagem (ainda que seja um dispositivo de natureza já muito aberta), o personagem de Viggo Mortensen, aqui, é literalmente condenado a esse mundo fantasioso, a um pesadelo com regras e dimensões temporais próprias. “O Deserto devora todos”, é uma frase repetida mais de uma vez no filme, quase a pura evidência de que não adianta resistir aos golpes e armadilha desse universo, o personagem está fadado a essa eterna jornada. O que também não deixa de remeter a lógica da zona, de Stalker (1979), um lugar que trai o personagem com seus próprios desejos, já que é justamente da obstinação de Gunnar pela filha, dessa busca obsessiva e desse desejo muito natural, que brotam os elementos irreais do filme.

O personagem condenado a uma dimensão fantástica.
O personagem condenado a uma dimensão fantástica.

Desse mundo fantasioso, dessa realidade cinematográfica imaginativa, nasce uma chave quase esquemática, que vai desde a trama do filme, em moldes de pesadelo labiríntico de itinerário ad infinitum, a sua própria relação formal com aquele ambiente. Existe em Jauja uma clara vocação pictórica muito impressionista, quimérica, que assume todo aquele ambiente como um espaço místico de visual sempre idílico. Além, é claro, de toda uma estilização assumida na dinâmica dos enquadramentos e na lógica da janela 4:3 em forma de diapositivo, que se assemelha a um slideshow. Janela essa que, em algum sentido, subverte a própria abordagem clássica do western. Um gênero conhecido por suas paisagens e seus horizontes (basta lembrar do cinemascope de tirar o fôlego de Anthony Mann, seus panoramas por toda uma vastidão desértica a se perder de vista) é aqui reduzido a um enquadramento limitado, a uma dinâmica de extracampo onde muita coisa não passa de mera sugestão, uma imensidão sempre inalcansável ou recortada, reduzida a uma dimensão onírica onde nunca se vê muito além.

Toda essa estetização e esse jogo deliberadamente esquemático não deixam de consolidar uma espécie de artificialidade muito possibilitadora. Mesmo a Patagônia aqui é tão brilhosa, tão aparente nessa distância focal sempre muito ampla, que é quase como se estivéssemos dentro de um estúdio onde tudo é controlado: a luz, a cor, a disposição de cada arbusto. E até o fato da paisagem, ao longo do filme, ir aos poucos se modificando tão explicitamente já evidencia essa vocação cênica quase laboratorial. Sendo, possivelmente, aquele diálogo final do personagem de Viggo Mortensen com a mulher idosa da caverna (que em alguma dimensão temporal é também sua filha), o ápice dessa vocação artificial-fantasiosa, com sua luz ultra pontual, seu fundo preto infinito, sua direção de arte em uma disposição quase teatral.

A disposição pictórica que assume a alegoria do quadro.
A disposição pictórica que assume a alegoria do quadro.

No epílogo, quando somos jogados para o que parece ser um tempo presente, ainda assim é um tempo anacrônico, uma espécie de mansão castelo perdida em alguma época atual, cheia de elementos que ressignificam tudo o que assistimos até ali, ressignificam, inclusive, todo o gênero de imagens a que fomos apresentados e sua própria confiabilidade enquanto narrativa. O que gera mil teorias de que o filme seria um sonho da garota, ou um sonho do cachorro (sendo o próprio Viggo Mortensen o cachorro nesse pesadelo em busca da dona). Mas é claro que nenhuma dessas teorias é exatamente vital para o filme, tamanha a unidade dramática e formal do trabalho de Alonso.  Um jogo de iconografias mil e espelhamentos geracionais que, definitivamente, se vale por si só.

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The Uprising (Peter Snowdon, 2013)

Por Kênia Freitas

“It is no use to sneer and cry, ‘why these revolutions?’
No use for the sailor to scorn the cyclone and cry,
‘why should it approach my ship?’

The gale has originated in times past, in remote regions.
Cold mist and hot air have been struggling long before
the great rupture of equilibrium – the gale – was born.

So it is with social gales also.
Centuries of injustice, ages of oppression and misery,
ages of disdain of the subject and poor, have prepared the storm.”

Pyotr Kropotkin, 1886

The Uprising é um filme feito completamente a partir de imagens das Revoluções Árabes postadas no Youtube. Através da pesquisa desse imenso material, o diretor Peter Snowdon combina as muitas tomadas subjetivas de manifestantes da Tunísia, do Egito, de Bahrain, da Líbia, da Síria e do Iêmen e constrói uma narrativa própria de uma revolução pan-árabe. Não há dessa forma o objetivo de contextualizar ou recontar cronologicamente as revoluções de cada um desses países, mas sim de, a partir da edição desse material, imaginar uma revolução que só existirá na tela. Como explicita o crédito inicial do filme: “A revolução que esse filme imagina é baseada em uma série de revoluções reais”. Assim, o filme se divide em sete blocos, cada um representando um dia a menos em uma contagem regressiva até o presente. O final do filme marca assim um “hoje” da insurreição que não veremos.

O prólogo do filme começa com imagens de uma rua deserta, com poucas casas ao redor. No céu vemos nuvens carregadas e alguns relâmpagos no horizonte. Ouvimos a respiração da pessoa que faz a gravação, essa se torna mais pesada dando a impressão de que o cinegrafista corre. Em seguida ouvimos a sua voz tentando fazer contato com alguém. O som está abafado e é difícil identificar o que está sendo dito. Por cima da sua voz, começamos a ouvir sons que falam sobre as manifestações. Na imagem, o enquadramento mostra um tornado se aproximando no céu.

Entramos assim no primeiro bloco, “Sete dias atrás”, com cenas que marcam o início da insurreição. Temos, então, vídeos variados com discursivos inflamados de manifestantes, convocações para protestos, marchas cheias e entusiasmadas. São imagens do primeiro momento de ressonância da multidão: quando ela descobre a alegria de estar junta tomando as ruas e desabafa as suas reivindicações e indignações acumuladas. Após a explosão, o segundo bloco vai ser caracterizado pelas imagens de confrontos entre a multidão e as forças do governo: a polícia e o exército. São imagens internsas pela força dos corpos sendo atingidos, pelo sangue derramado e as vidas perdidas. Mas ressoam também pela insistência da multidão no combate, mesmo em momentos em que ela está lutando desarmada contra tiros de verdade.

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No bloco seguinte, “5 dias atrás”, o filme começa com imagens de calma, como se fosse o dia seguinte de uma batalha violenta. Temos a entrevista de um homem e a sua filha, dentro de casa, contando os eventos dos dias anteriores. Também, imagens de outro homem dirigindo o seu carro e mostrando o local, agora vazio, onde um companheiro foi atingido pela polícia. E os meninos que brincam, nas ruas tranquilas, com um lança foguete usado em confronto. Mas, ao final do dia, os conflitos e os tiros recomeçam: a multidão volta para lutar a sua batalha.

O dia seguinte, a quatro dias do fim, já começa com imagens da multidão em protesto. As pessoas estão nas ruas, conversando, cantando, marchando e permanecem, até que finalmente podem explodir e comemorar a derrubada do governo. Após essa primeira vitória, vemos cenas da multidão invadindo a casa do antigo presidente (uma mansão suntuosa com piscina, academia, mesquita). Mas esse é também o dia de se ocupar da cidade conquistada: varrê-la, limpá-la, pintar as grades desgastadas. Dona da cidade, a multidão liberta os presos políticos. Outro grupo invade a sede da Secretaria de Segurança agora abandonada e procura documentos contra os manifestantes. Enquanto isso, um ex-prisioneiro político reencena a tortura sofrida pela polícia. E, em uma rua vazia a noite, um homem grita de felicidade. Os vizinhos gritam para comemorar com ele. Mas um policial aparece e contém o momento de alegria com novas ameaças.

Após a euforia, dois dias atrás, a multidão volta às ruas para protestar. A manifestação está sendo rigorosamente vigiada por helicópteros e muitos policiais. Voltam a ocorrer repressões violentas do exército à multidão nas ruas. E essa precisa, mais uma vez, cuidar dos seus feridos e enterrar os seus mortos. E é com imagens do velório de um manifestante que o dia anterior ao final começa. Nesse bloco, a multidão é convocada por uma manifestante a voltar às ruas no dia seguinte. A narração emocionante em voz over traduz o momento do filme e da sua revolução por vir. Enquanto ouvimos essa narração, o filme mostra imagens de manifestantes se preparando para protestar, eles estão com os rostos cobertos correndo com paus e pedras na mão. A narração se encerra e a multidão continua a sua luta tomando as ruas. Chegamos assim finalmente, no “Hoje”. Voltamos a ver brevemente o tornado do inicio do filme, enquanto ouvimos as vozes ressonantes da multidão nas ruas. Por fim, temos antes dos créditos finais um poema de Pyotr Kropotkin, que usamos como epígrafe dessa sessão.

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A montagem do filme é como um grande fluxo de imagens-acontecimentos, um transe de imagens emergênciais de origens e ressonâncias diversas. Essas imagens são todas feitas em meio aos protestos ou seus desdobramentos diretos, sendo dessa forma muitas vezes tremidas e com uma resolução ruim. Assim, em muitos momentos, essas são mais uma presença corporal de quem filma do que imagens figurativas ou explicativas.

Um dos problemas dessa montagem é a de que: como singularidades isoladas os seus vídeos são um material potente; mas, ao compô-los em uma narrativa única, essa ressonância não nos afeta da mesma forma no corpo fílmico resultante. The Uprising constrói a sua narrativa a partir de diversas imagens de manifestantes anônimos. Esses vídeos, em geral, feitos de forma amadora com a câmera na mão carregam a presença dos manifestantes que os produzem – tanto pelo ponto de vista subjetivo e a narração em primeira pessoa, quanto pelas marcas corporais dos realizadores que perpassam nas imagens: a respiração pesada e o tremor das imagens, em momentos de deslocamento, ou mesmo as sombras dos corpos refletidas para dentro do plano. Mas, se em cada vídeo individualmente esse produtor amador das imagens funciona como um ponto de identificação, o mesmo não acontece com o resultado final do filme. Ao colocar de forma sucessiva todas essas perspectivas, as narrações com vozes variadas, os tons e afecções diversos, o filme dilui esse produtor de imagens em uma multiplicidade de olhares – assim como o ponto de apoio narrativo do espectador. Não há uma identificação convencional possível com um sujeito ou personagem.

Mais do que pela história que costura as imagens de arquivo, a força do filme reside no valor de documento do seu material. Portanto, podemos dizer que The Uprising é um filme de montagem carregado de resíduo do seu material de arquivo. Partindo das imagens emergênciais das revoluções, o filme vai usar um efeito de quase ficcionalização, criando a sua própria revolução por vir. Essa revolução do filme não segue os limites territoriais dos países de origem das imagens, a cronologia dos eventos de suas insurgências e os contextos políticos de cada local. Assim, uma convocação de protesto na Tunísia pode ser seguida pela multidão nas ruas no Egito ou a repressão violenta no Iêmen pode ser contada no dia seguinte pela experiência semelhante de um manifestante na Síria.

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Por causa dessa desterritorialização das imagens o filme afasta-se de um sentido meramente documental dos acontecimentos. O resíduo, mais do que um efeito colateral indesejável da montagem, é um elemento fundamental para a potência do filme. Mais do que um filme sobre as Revoluções Árabes, The Uprising é um filme sobre as imagens emergenciais dessas insurgências que circularam na internet e foram ressonantes tanto para os envolvidos diretamente nos acontecimentos, quanto para quem os vivia como espectador. A partir do filme, essas imagens-acontecimentos passaram a possuir mais um canal de circulação e atualizam suas potências de afetarem os espectadores.

Da mesma forma, ao fixar o seu ponto final como um presente (o hoje) da revolução que não veremos nas imagens, ou seja, um presente que permanece irrealizável, a revolução imaginária do filme torna-se uma espécie de acontecimento puro. Essa pan-revolução arábe das imagens é um eterno devir fílmico. Trata-se, assim de um filme que não se situa no passado histórico, mas na projeção de um futuro da revolução a partir de suas próprias imagens.

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Hill of Freedom (Hong Sang-Soo, 2014)

Por Felipe Leal

Duas palavras parecem ”encantar” o cinema de Sang-Soo Hong, no sentido mais amplo de tornar vivo, emprestar magia: olhar e prazer. A primeira, como condição mais básica da arte cinematográfica; a segunda, como força motriz que movimenta e encadeia todos os seus personagens e narrativas. Duas palavras que, no entanto, são escorregadias, na medida em que podem simplificar algo que já toma para si uma aparência de informalidade, de pouco polimento. Sou de opinião contrária: poucos se vestiram com trajes tão enganosos, pois tal cinema não poderia ser mais calculado ou referencial.

Com Hill of Freedom (2014), Hong prova estar mais próximo de nomes como Shohei Imamura – ”Pergunto-me se outros cineastas são tão interessados nas pessoas como eu” – e Eric Rohmer do que apresenta traços tarantinescos. Os zooms incisivos que o caracterizam pedem nada mais que olhemos mais de perto; mais de perto para o que cimenta nossas relações, assim como para aquilo que as norteia. Com planos de reencontrar Kwon, coreana com quem teve um caso, Mori (um japonês) acaba passando por e causando pequenas provações morais nas pessoas que habitam a pousada onde se hospeda e o café que frequenta – cujo nome dá título ao filme.

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A partir das cartas que deixou a Kwon, que, com o passar das tentativas, não tinha mais esperanças de encontrar, revivemos – nós e ele – seus pequenos encontros, aparentemente seguindo uma ordem narrativa que pertence a dois. Mas não é por acaso que Hong parece questionar a quem pertencem aquelas histórias. Parte do que vemos teve vida a partir das cartas, decerto, mas quem pode conferir confiabilidade ao resto? Ou seja, tudo o que aqui é proposto parece pertencer a uma retomada. Voltamos, então, à pergunta basilar: é possível, ou mesmo necessário, conferir confiabilidade ao cinema em si? Que porção de mentira ou ocultamento há nas narrativas que contamos?

Mas o movimento de retorno ao início, buscando eixos de ação, também vibra no interior dos personagens. ”Você tem um cheiro tão gostoso”, diz Mori, ao que sua amante responde ”Você é tão, tão bonito”, e isto parece definidir sua aproximação. Não são simplesmente homens e mulheres adorando aspectos superficiais um do outro: aqui, Hong parece mais dotar seus personagens de um arquético infantilizado – gesto arriscado e consciente, num país onde pensar o coletivo e refrear os impulsos está acima de tudo. Pois se é raro que encontremos crianças em seus filmes, apresenta-se aqui um segundo ardil. Elas estão lá, mas intrinsecamente, sempre guiadas pelas satisfações do corpo.

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Três vezes é perguntado ao protagonista se a sua viagem à Coréia tem fins de negócios ou prazer, três vezes ele não sabe respondê-la. Retomamos, então, o prazer. Ao passo em que o álcool está sempre presente, incitando afetos sexuais e discordâncias emocionais, é somente em Hill of Freedom que é possível trazer à luz o núcleo que faz pulsar o cinema de Hong. Aquilo que gostamos, que nos faz buscar prazer no outro e no mundo é a bússola desses encontros, assim como da nossa relação com o cinema. Prazer visual, do olhar, se afinal juntamos as duas palavras-chave. Não seria esse o fim do cinema? Como nos filmes de Sang-Soo, talvez não caiba a nós responder.

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Noites Brancas no Píer (Paul Vecchiali, 2014)

Por Fernando Mendonça

“Meus olhos têm um brilho totalmente diverso.
Receio que eles façam buracos no céu.”
Nietzsche

Já não é tão fácil encontrar a solidão. Há quem pense ser a sociedade do séc. XXI prioritariamente solitária, preenchida por indivíduos que se perdem alheios ao movimento do próximo, que restringem seus atos aos desejos mais imediatos, como virtualidades e distopias ocupadas em contorcer o espaço, abandonando suas identidades a uma condição de real obtusa, simulada. Mas é questionável a verdadeira qualidade deste estar só, num mundo que já não ‘progride’ sem a perpétua distração dos sentidos, sem multiplicar os anseios de um Eu que se perceba presente e seja alguém numa multidão de máscaras. Já não conseguimos tão fácil a fuga destas distrações, a apreciação de se satisfazer com ausências, com faltas que também importam para que existamos completos. Roubam-nos de nós mesmos. Distraem-nos do que vai na alma.

Até que um filme como Noites Brancas no Píer surge, revolvendo o espírito de um tempo, escavando a procura de uma dimensão que supere a aparência das formas, que restitua o prazer e a saúde do bom isolamento. Obra que não tem medo de se erguer sozinha num cenário que pouco tem a oferecer além do desamparo, pois bem sabe que nesta coragem encontrará seus pares e igualmente ecoará outros possíveis perdidos, outros estranhos não encaixados. Solidão é coisa que melhor se vive a dois, que na força de uma conversa sincera esvazia os resíduos de uma civilização.

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É impossível não considerar a companhia que Paul Vecchiali vem prestar aquele que talvez seja o cineasta mais solitário da atualidade. Ao Jean-Marie Straub de Diálogo de Sombras (2013), as novas Noites contrapõem a mais bela troca de confidências que dois artistas travaram nos últimos anos, claramente, através da expressão que conosco também partilham. Eis aí dois filmes que se correspondem com a intimidade de amigos, que juntos provocam uma plenitude pouco encontrada, acentuando a maneira como se isolam do cinema restante. Pois são eles que restam. Na extrema contramão, são eles que nos prestam o favor de recordar a essência.

Respondem-se como num jogo: Straub filma o dia para nos dar as sombras, Vecchiali filma a noite para nos dar a luz. Se desde L’Étrangleur (1970), a condição noturna não importava tão visceralmente para o seu universo, em Noites Brancas no Píer vemos a inauguração de uma nova ordem temporal para Vecchiali. O que não surpreende nada, já que tratamos aqui de um artista que parece recomeçar suas pesquisas do zero a cada nova experiência, desafiando a capacidade rasteira de observação a que nos acostumamos, especialmente diante de carreira longas, profícuas. Outro exemplo: não é porque Noites Brancas alicerça boa parte de seus efeitos no uso da palavra, que poderemos evocar as inesquecíveis verborragias de Femmes Femmes (1974) ou Le Café des Jules (1989). Naqueles casos, digladiavam-se personagens que para falar, existiam; hoje, nos deparamos com seres que para existir, falam.

noites brancas no píer

No domínio da palavra, justamente, é que se aliançam Vecchiali e Straub. O espanto é o mesmo nos dois filmes: diálogos que aproximam as vozes pela certeza da separação, verbos que constroem pontes sobre abismos intransponíveis, ou seja, verbos falhos, falidos em seu intento nobre (daí ter a palavra um tratamento diverso de outros realizadores importantes que também a estão operando com ênfase – Bressane, Linklater, Green –, aqui, a palavra cresce pela sua impotência, pelo que não pode consumar e a torna, com toda intensidade, um elemento humano, finito). Num e noutro, casais que só podem ser uma carne por aquilo que dizem, que confessam, seja pela lembrança ou pela invenção (toda memória é criada).

Ao luto que recobre o filme de 2013, Vecchiali responde com vozes que também não podem ser mais do que fantasmas. Píer que é teatro, mas também cemitério, eis o cenário perfeito de uma fronteira: entre o céu, a terra e as águas, eclodem as forças de toda tragédia. Aos cortes que Straub assina como mecanismos de singularidade, pois são eles que definem os limites de um corpo-plano, Vecchiali contrasta o forjar da iluminação, a farsa que somente o ângulo exato de um holofote pode narrar. Assim que, na conversa de seu casal, são as luzes que convidam as palavras para o baile, clareando ou obscurecendo a sonoridade, definindo o alcance de cada sentimento. E se Godard já foi um dos que fizeram questão de confirmar Vecchiali como herdeiro direto de Minnelli, agora não há dúvidas de que toda boa música também é uma questão de luz.

noites brancas no píer

Não adianta falar muito sobre esta cena rompante de Noites Brancas, o momento mais Fred Astaire que o cinema deste século poderia gerar. A pausa que os atores fazem nas vozes para que o diálogo prossiga dentro da inquietante coreografia-surpresa é o que nos permite sentir mais totalmente a melancolia que até ali tínhamos por sugestão de texto. Por incrível que pareça, esta é a sequência que melhor representa a origem literária de Dostoievski, um dos escritores que da maneira mais refinada nos ensinou a desconfiar do verbo, a entender que as vozes também se manifestam no pormenor das entrelinhas, que elas também nos revelam por aquilo que escolhem calar.

Se pela palavra o casal de Noites Brancas, livro e filme, pode se irmanar e almejar a esperança de um amor concreto, também é por aquilo que não cabe no discurso que vemos se construir a tristeza de uma abstração. Dançamos quando já não temos outro meio de sentir o outro na pele, quando não temos mais confiança nos minutos seguintes e entendemos que tudo consiste em manter a presença, em perdurar o que já nasce como um fim. Balé mais solitário que se poderia traçar, Vecchiali encerra com esta cena a sua leitura de um desencontro humano, como num rito fúnebre, pois toda música e toda palavra (e por que não a imagem) só pode terminar em silêncio.

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Últimas Conversas (Eduardo Coutinho, 2015)

Por Pedro Tavares

Últimas Conversas abre com Eduardo Coutinho sentado à frente da a câmera, lugar de seus entrevistados, afirmando seu fracasso sobre o filme que será exibido. Diz que não sabe o que fazer com o material filmado e que não sabe lidar com a juventude. Em seguida, fala sobre a espinha dorsal de sua filmografia a partir da segunda parte da década de 90 – a mutação de personalidade de seus entrevistados diante da câmera. “Os jovens são piores”, segundo Coutinho, que segue com o desejo de entrevistar crianças, pois elas sim serão puras na hora de responder. Segundo o diretor, por falta de transparência, ele sempre entregou filmes diferentes do prometido aos financiadores.

Obviamente se trata de uma contradição clássica para quem conhece a filmografia do diretor. “Conte-me a tua história, pode mentir, sem problemas” e “Farei perguntas imbecis”. São duas das frases de Coutinho para uma personagem de Últimas Conversas, filme que nasce fadado à aura de despedida e de certo lamento, mas que é entregue com alegria surpreendente, numa das mais singelas contradições do diretor. As Canções, seu filme anterior, entregue à cantoria entre os “causos”, era amarrado pela melancolia e arrependimento. Últimas Conversas, talvez pela chance de renovo de vida destes jovens, mesmo com tantos casos tristes contados, é interpretado, interagido e devolvido por Coutinho com otimismo indecifrável.

ultimas conversas eduardo coutinho capa

Em rápido panorama, percebe-se que hoje a figura da mãe é o maior alicerce dos jovens e que os pais, quando presentes, são distantes. Há nos personagens o desejo de resposta à infância difícil, seja com o crescimento profissional, de mudança completa de vida ou de retribuição a quem os ajudou. Coutinho, como sempre, faz o papel de ouvidor, nunca de julgador. Afirma a uma personagem sobre o seu gosto musical: “Celular é uma coisa…né? Ih, apagou! Toma…”, antes mesmo de ver a lista de músicas sugerida por sua entrevistada. Valoriza, desta forma, as afirmações de sua entrevistada, por mais que não se interesse em nada por elas. É a forma que Coutinho sempre seguiu para interagir e continuar invisível.

Entre uma entrevista e outra, a clássica cadeira vazia serve de coadjuvante para a fumaça dos intermináveis maços de cigarro do diretor, que parece menos preocupado com o que está para acontecer. Quando o personagem entra na sala, tudo muda, ainda que desta vez a voz de Coutinho seja ouvida com frequência. Responde ao jovem que se incomoda com os silêncios tão característicos do diretor: “O silêncio é extraordinário. Se tua TV para de falar, você estranha e começa a pensar”. É a peça fundamental para o personagem que tanto divaga sobre vida e morte diante da câmera. Morte que transpassa pelo filme em diversas óticas, chegando à afirmação que resume a posição de Eduardo Coutinho sobre seus personagens (de Cabra Marcado Para Morrer a As Canções) através de Luiza, uma menina de 6 anos que realiza a vontade afirmada no início do filme.

ultimas conversas eduardo coutinho

O filme, montado por Jordana Berg e terminado com a supervisão de João Moreira Salles, respeita as convenções de Coutinho, mas o desenha de maneira que o diretor seja o protagonista de sua própria investigação. Sempre interessado em microcosmos como parabólica do macro, Últimas Conversas é um encontro que transparece o interesse de Coutinho em se (re)descobrir na mais ligeira de suas conversas, quando pergunta como Luiza nasceu, por exemplo: “Eu era uma bolinha e cresci”, responde a menina. O que se vê é a entrega de alguém sempre disposto a ouvir, agora em total interação com o que se diz. Se apaga, portanto, a invisibilidade. A dinâmica é subvertida. Não há espaço nem mesmo para o silêncio, para o pensamento ou atuação, o que se vê é a tão almejada pureza, por mais que Coutinho tente manchá-la com seu tradicional pessimismo uma vez ou outra: “Eu não sei o que dizer”, responde Luiza à chuva de perguntas que uma menina nunca entenderá. É um passo à frente do realizador que sempre respeitou as fronteiras e sempre esteve preocupado com a ética, até mesmo depois das filmagens. O lado espirituoso de Coutinho chega ao ápice de sua investigação, invadindo a tela vez ou outra.

E se há uma ideia de ciclo forçada pelas circunstâncias da morte de Coutinho, Luiza serve de contraponto e encaixe ao que começou em Cabra Marcado Para Morrer; Últimas Conversas também foi um projeto abortado e transformado em outro filme. O papo de Coutinho com a menina em nada compete com os assuntos religiosos de Santo Forte, os existenciais de Edifício Master e Jogo de Cena, os artísticos de Moscou ou os sociais de Babilônia 2000 e Boca de Lixo. Todos estes assuntos estão diluídos em cada personagem de Últimas Conversas. Neles, Coutinho é diretor. Com Luiza, Coutinho é apenas Coutinho.

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Fruit Chan – Filmografia comentada

Por Arthur Tuoto

É mais do que evidente que a história do cinema de Hong Kong se confunde diretamente com a sua história política. Claro que poderíamos afirmar isso sobre qualquer país ou território, mas talvez por se tratar de um lugar onde a tensão política está, até os dias de hoje, diretamente ligada a uma constante crise de identidade – a ausência de uma cultura essencialmente nativa, visto a sua clara dependência cultural do império britânico antes do Handover e a sua turbulenta relação com o estado chinês após o Handover – Hong Kong invariavelmente se transforma nesse catalisador cheio de possibilidades onde uma cultura tradicional chinesa se mescla com uma influência ocidental cosmopolita.

Se por um lado o cinema de Hong Kong é marcado explicitamente por uma vocação de mercado, com direito ao seu próprio star system (diretamente ligado ao Cantopop) e toda uma gama de fórmulas e artifícios comerciais que vem se estabelecendo desde os anos 70 (com seu devido desgaste e crises ao longo dos anos, afetado inclusive por crises na economia asiática e uma atitude mais ofensiva de Hollywood no mercado distribuidor nos anos 90) é também mais do que evidente que a história do seu cinema, em algum sentindo, se dá justamente nessa busca política por uma natureza própria, um elemento autêntico que particularize toda a dimensão daquele território. Nesse sentido, podemos dizer que toda a lógica do cinema de Fruit Chan, que parte essencialmente de uma reorganização urbana e social da própria cidade de Hong Kong para conceber seus filmes, é uma das trajetórias mais singulares. Óbvio que não é simples comentar a carreira inteira de um cineasta em um simples artigo, por isso a ideia principal aqui é percorrer um panorama cronológico geral e direto sobre os filmes de Chan, mais como uma abordagem de apresentação àqueles que não conhecem seus filmes do que exatamente um movimento mais aprofundado.

Ainda que seu primeiro filme como diretor tenha sido a comédia sobrenatural Finale in Blood (1993), uma obra de tom francamente comercial mas que já dava indícios de uma inventividade plástica característica do cineasta, Fruit Chan aparece de fato no mapa cinematográfico de Hong Kong, e do mundo, com uma trilogia de filmes que ilustra, justamente, o momento recente político mais decisivo daquele território: o handover. Após mais de um século de domínio britânico, a região de Hong Kong foi, em 1997, devolvida para a China, atuando desde então como uma região administrativa do estado Chinês. É evidente que toda essa operação trouxe dos mais variados reflexos sociais e culturais para o território, e é basicamente dessa diversidade de relações e hesitações sobre o futuro, desse impacto sobre as pessoas e o espaço, que a trilogia de Chan vai tratar.

made in hong kong
Made in Hong Kong (1997)

Made in Hong Kong (1997), o primeiro filme da trilogia do handover, ou trilogia de 1997, como também é conhecida, e oficialmente o primeiro filme independente produzido na Hong Kong pós-handover, não poderia ser mais direto. Protagonizado por não-atores, produzido com restos de película, inclusive restos de película já vencida, e dentro de um vigoroso esquema independente, o filme acompanha a vida de três jovens nesse cenário de plena incerteza: um coming of age com todo o tom político-apocalíptico que a circunstAância sugeriria. Além de toda rebeldia, angústia e anarquia de praxe em qualquer coming of age, os personagens aqui vivem o exato momento dessa crise de identidade pessoal que se confunde com uma crise de identidade nacional. E dessa resistência por uma nova identidade, dessa descoberta de si e do seu lugar no mundo, nasce uma experiência de juventude niilista e alienada, condenada a procurar por si mesma em um ambiente que sofre todo tipo de influência global, mas carece de uma autonomia elementar. Chan situa todo um estado de limbo que, querendo ou não, até hoje reflete nas incertezas daqueles que hoje são jovem em Honk Kong (a recente revolução dos guarda-chuvas, além de outros protestos constantes contra o governo central de Pequim, estão ai para provar isso.) É um filme que não deixa de lembrar muito o Dangerous Encounters of the First Kind (1980), do Tsui Hark, toda essa experiência de niilismo que nasce da resistência por uma busca de si mesmo é reencenada na figura sempre energética e muito dinâmica de personagens jovens. Mas se Tsui Hark sofreu com a censura em todo o seu subtexto que invocava revoltas anticolonialistas, Chan, além de ser igualmente mórbido em sua abordagem realista, consegue ser até mais direto em seus alvos, se dá ao prazer, inclusive, de fechar o filme ironizando um discurso de Mao sobre a juventude.

The Longest Summer (1998)
The Longest Summer (1998)

Já flertando com uma ideia mais direta de gênero, em The Longest Summer (1998), o segundo filme da trilogia do handover, Fruit Chan concilia uma trama policial com o próprio evento do handover em si. A noite do evento tem um papel fundamental na trama, além de basicamente reger as principais motivações de seus personagens, já que, muito mais do que as incertezas juvenis de Made in Hong, o que fica muito claro aqui é uma rejeição por todos os lados, tanto o britânico, como o chinês, por parte de cidadãos que tem a vida claramente afetada com a transição governamental. Nesse processo de fusão entre plot policial e contexto histórico, a espacialidade da própria cidade é sempre um elemento vital, seja em toda a sua geografia física onde o filme acontece (o homem sabe tirar absolutamente tudo e mais um pouco de uma cena externa), seja nesse acontecimento histórico em que ela é protagonista, em especial a noite da cerimônia do handover em si, que é retratada com um apuro visual e um senso de montagem em paralelo sem igual.

Little Cheung (2000)
Little Cheung (2000)

Bem mais singelo que os dois primeiros filmes da trilogia, mas ainda assim igualmente desolador, Little Cheung (2000) fecha essa série de filmes com uma narrativa essencialmente doméstica e assumidamente mais melodramática. A partir das relação de Cheung, um garoto de 9 anos, com uma família imigrante da China continental, vizinha a sua em um bairro de classe baixa em Hong Kong, o filme contextualiza muito das tensões imigratórias após a unificação com a China (essa mesma família iria voltar como protagonista, nesses mesmos papéis, em Durian Durian (2000)), além de uma certa estruturação trabalhista (existe um empregada doméstica filipina que também tem papel vital na vida de Cheung) daqueles que vão buscar uma renda melhor em Hong Kong. Apesar de se focar em um contexto mais popular (o cantor e ator Tang Wing-Cheung é quase um personagem vital na história) do que em um contexto objetivamente político, o filme deixa bem claro suas ligações mais do que implícitas.

Durian Durian (2000)
Durian Durian (2000)

Após a trilogia do handover, Chan parte oficialmente para uma segunda fase em sua carreira, marcada especialmente por um apreço pela fantasia que até hoje perdura em seus filmes e teve inicio nessa que ficou conhecida como a sua trilogia da prostituição. Durian Durian (2000), um filme que ainda preserva o realismo de seus outros trabalhos, pode até remeter diretamente aos filmes da trilogia do handover em toda a sua noção de intimidade com o espaço urbano e o seu movimento em evidenciar esse território que constantemente se reorganiza, mas além disso, temos aqui o primeiro filme em que Chan volta o seu olhar para China continental. O filme segue uma jovem chinesa que passa algumas temporadas em Hong Kong trabalhando como prostituta para depois voltar para a sua província na China continental com o dinheiro, onde tem uma família a sua espera e cultiva o desejo de montar um negócio próprio. Com certeza o fato mais marcante do filme é como Chan filma Hong Kong e a China continental de formas absolutamente diferentes. A primeira parte da narrativa, que se passa em Hong Kong, tem uma frontalidade e uma noção de minuciosidade com o espaço que, como já lembrado, remete explicitamente a seus filmes anteriores, ainda que aqui recusando um plot mais direto ou qualquer meandro exatamente dramático, se focando bem mais nessas ações coloquiais que definem aquele espaço. A segunda parte, que se passa na China continental, tem uma câmera sempre distante e gélida, além de elipses altamente desoladoras (quanto mais o tempo passa, mais o espaço vai engolindo a personagem), o que lembra muito o Plataforma (2000), do Jia Zhang Ke, tanto em alguns elementos diretos (o círculo de amigos na cidade pequena que de alguma forma exorciza suas ambições artísticas em um grupo de dança e teatro), como nessa mediação naturalista que preza por um contraste entre a impessoalidade da paisagem e os personagens que tentam se descobrir, achar algum caminho dentro desse cenário de impossibilidades.

Hollywood Hong Kong (2001)
Hollywood Hong Kong (2001)

O segundo filme da trilogia da prostituição, Hollywood Hong Kong (2001), é onde Chan começa a destilar muito mais diretamente todo o seu apreço pela fantasia, ainda que, como sempre, preservando um interesse político implícito. O filme mantém uma contextualização social que remete aos anteriores mas agora dentro de uma abordagem quase lúdica e fetichista. Chan parte das relações de um espaço de extrema desigualdade, uma favela na frente de um flat de luxo chamado Hollywood, e vai situando alguns acontecimentos que vão desde uma prostituta e um mafioso dando golpes em alguns habitantes da favela a uma família de açougueiros com uma relação proto-sensorial com os porcos que assam. Não existe o mesmo peso dos filmes diretamente mais políticos de Chan, mas essa relação entre fantasia e realidade social não deixa de ser muito bem mediada. Relação essa, aliás, que dominaria praticamente toda a sua obra a partir de então.

Public Toilet (2002)
Public Toilet (2002)

Bem mais emotivo do que a sua temática sugere, Public Toilet (2002), a obra que fecha trilogia da prostituição, parte de uma curiosa lógica coletiva dos banheiros públicos chineses para narrar a história de dois amigos em busca de uma espécie de milagre medicinal, cada um com seus motivos, e faz todo um tour bem particular pela Ásia (Coreia do Sul, India, China e Hong Kong) nesse caminho. O que fica mais evidente aqui, é como o diretor rearranja a sua abordagem formal a partir do uso do digital, prática bastante comum no início da década passado, quando vários cineastas deram início as suas primeiras experiências com o vídeo. Chan articula muito bem o digital com os elementos fantásticos do filme, se aproveita da maleabilidade do dispositivo e lança mão de alguns dos movimentos de câmera absolutamente excêntricos e inventivos, sempre com uma dinâmica muito bem aliada aos elementos surreais da trama.

Dumplings-2 (2004)
Dumplings (2004)

Após essas duas trilogias que lidam frontalmente com um passado e um presente histórico de Hong Kong, o diretor parte para obras que por um lado até lidam com todo um antecedente político implícito, mas compartilham de uma autonomia maior, dialogam, talvez, mais diretamente com uma cinematografia mundial de gênero, em especial o terror e o suspense. Dumplings (2004), espécie de terror psicológico com uma vocação deliciosamente gore, até situa todo um meandro social e uma relação de classes que é vital na sua narrativa, mas toda a dinâmica do gênero aqui é mais marcante do que qualquer outra coisa. Curioso é que mesmo nessa lógica de flerte gore – a trama envolve pessoas que comem fetos para rejuvenescer – é talvez o filme mais “charmoso” de Chan, ou um dos mais estilizados dentro de uma dinâmica de enquadramento e cor bastante elegante, muito devido a fotografia de Christopher Doyle. É um pouco como se Doyle trouxesse uma precisão na abordagem formal normalmente mais extravagante de Chan, com certeza é um dos filmes mais econômicos do diretor, tanto dramaturgicamente, como na relação mais contida (ainda que de rompantes sempre inventivos) na relação da câmera com o espaço.

Don't Look Up (2009)
Don’t Look Up (2009)

Ainda nesse clima mais elementar do gênero de horror, em 2009 Chan foi contratado para refilmar nos Estados Unidos o filme de terror japonês Joyû-rei (1996), do Hideo Nakata (mesmo diretor de Ringu (1998), filme que deu origem a The Ring (2002), das mais bem sucedidas adaptações de j-horror para Hollywood). E não deixa de ser meio extraordinário constatar como Don’t Look Up (2009), a refilmagem de Chan de Joyû-rei, pega os caminhos mais errados possíveis ao adaptar o seu original. É como se o diretor se entregasse, ou de alguma forma até fosse forçado, a toda uma abordagem americanizada b, com direito a atuações absolutamente histriônicas, produção barata mais do que evidente e efeitos especiais ruins, todo um combo que atinge uma superfície de obviedades legitimamente curiosa. Nem que seja por uma curiosidade cinéfila mórbida, o filme tem lá a sua capacidade de prender o espectador ali basicamente para saber até onde eles vão com aquilo. E, bom, eles vão longe.

The Midnight After (2014)
The Midnight After (2014)

Se em praticamente todos os filmes de Chan, seja os mais explicitamente políticos ou os filiados a uma ideia de gênero, existe essa subversão da cidade como uma tentativa de compreendê-la (da reorganização cultural e urbana da trilogia do handover aos submundos da trilogia da prostituição), essa revirar de espaços e classes para ir articulando toda uma noção histórica contemporânea muito única de Hong Kong, com certeza o seu recente Midnight After (2014) é um dos casos mais apocalípticos até aqui. Como de costume nessa sua fase atual, o diretor concilia vários elementos fantásticos e de terror com um questionamento moral e uma atmosfera de alienação, atmosfera essa que aqui ganha novos ares pós acontecimentos recentes no continente asiático como o acidente em Fukushima ou, ainda, acontecimentos que marcaram a década passado e mais especificamente Hongk Kong, como o SARS (a síndrome respiratória que alarmou a região em 2003). Tudo isso dentro de uma trama que, à moda de Lost, envolve passageiros em um micro-ônibus que se descobrem dentro de uma realidade apocalíptica, sempre preservando uma relação direta com a cidade, além de todo um pacote de elementos surreais que envolve números musicais, efeitos especiais b e um humor claramente bizarro. O mais incrível é como o filme consegue refletir sobre tantas questões sociais universalmente implícitas, de uma relação entre individualidade e coletividade nesses grandes centros populacionais asiáticos a toda uma selvageria humana que se revela fora de um ambiente institucionalizado por leis – existe uma cena onde um estuprador é julgado e castigado que definitivamente é dos momentos mais fortes do cinema de Chan – sempre mantendo esse tom surreal e, por que não, até meio genérico, ainda que altamente inventivo, dentre as suas mil referências cinematográficas e fantásticas que vão surgindo ao longo dos minutos.

Podemos dizer que Hong Kong, em algum sentido, é uma espécie de sobrevivente cultural de si mesma. Uma região que hoje sofre com um constante antagonismo na própria noção de liberdade de seus cidadãos e se viu parte de toda uma revolução cultural claramente comercial ao longo da sua história como paraíso capitalista, é capaz de nos presentear com uma cinema tão variado quanto absolutamente inventivo. Se no ocidente apenas nomes como Wong kar-wai, John Woo ou Johnnie To são mais comumente citados, temos, além de Fruit Chan, toda uma gama de cineastas do calibre de Ann Hui, Patrick Tam, Yim Ho e Tsui Hark, que desde os meados dos anos 70 e 80 vem construindo uma obra de caráter autoral que ao mesmo tempo que é ligada diretamente a um contexto cultural chinês e honconguês, são capazes de todo o tipo de façanha cinematográfica, desafiando, inclusive, tanto uma lógica de gênero como uma vocação de mercado e, o mais importante, estão sempre prontas para serem descobertas.

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