The Connection (Shirley Clarke, 1962)

Por Felipe Leal

Duas coisas precisam ser registradas antes que se fale propriamente sobre The Connection. A primeira diz respeito a uma surpresa perante o quase completo desconhecimento da obra de Shirley Clarke, quando esta se localiza precisamente dentro de um contexto de intensa produtividade e efervescência cultural – os Estados Unidos dos anos 60; a segunda, uma espécie de apelo e constatação, é que acredito que toda essa obra, um amálgama de elementos sociais e teóricos sobre a arte, merece uma série de cuidadosos estudos, por seu caráter qualitativo, desafiador e de precioso documento histórico.

O filme (também) é aberto com duas constatações, através de um letreiro: as imagens que veremos foram abandonadas pelo diretor e entregues ao seu cameraman, que as uniu com com a maior honestidade possível. O conteúdo delas é o de uma falsa espera. A espera pela conexão que dá título ao filme: alguém nomeado Cowboy deve fornecer, a um apartamento cheio de junkies, um suplemento de heroína. Fala-se em ”falso” porque o filme em si é uma mentira, um documentário mais do que conscientemente inventado e que consegue unir um jogo de suspeitas sobre o próprio cinema, a criação de um microcosmo antropológico-laboratorial, um registro sobre o cenário da contracultura norte-americana e um dos mais inventivos e radicais dispositivos de diálogo com a figura do espectador (conosco), para dizer o mínimo.

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Embebida de prévios experimentos com a dança e a coreografia, é tão assombroso quanto lógico que Clarke tenha extraído tamanha espontaneidade e uma quase selvageria da orquestração precisa dos movimentos que os junkies, entre eles desocupados e músicos de jazz, realizam dentro do apartamento, cuja semelhança com o espaço cenográfico de um teatro não é ocasional: se foi exatamente nos arredores dos anos 60 que a arte teatral conseguiu estilhaçar a quarta parede que separava a diegese do público, The Connection foi o inteligente escape que o cinema encontrou para testar a si mesmo. Quando Jim Dunn, diretor diegético, pula pra frente da câmera e tenta coordenar a animosidade que tomava conta dos junkies, pedindo a eles que ”ajam naturalmente”, há aí uma ruptura, ou melhor, uma delicada transição: o que aproxima aqueles corpos da perfomance? O que esperar quando é exigido da atuação que ela seja a mais natural e mundana possível?

O problema (ou, no caso do filme, solução?) é que, uma vez que se iniciam suas interferências, para melhor dar forma a tais ”atuações”, o estímulo, o pecado original já foi desvelado. Como admitido no próprio filme, uma mão, quando atravessada pelas lentes da câmera, ”deixa de ser uma mão e se torna um assunto de seleção cinematográfica”. Num contexto em que os delírios do cinema verité proliferavam crenças na verdade absoluta das imagens, a própria vertente observacional do cinema direto americano estando infectada, encontramos aqui escape para um outro arroubo de genialidade. A questão é: ao mesmo tempo em que Clarke se monta de um dispositivo de mobilização de crença que só encontraria equidade precisos 10 anos depois, com o Punishment Park de Peter Watkins, ela se utiliza de um diretor diegético para promover uma reflexão sobre o próprio fazer fílmico. Jim Dunn não é somente Shirley Clarke, mas todo e qualquer diretor, na medida em que o cinema nunca conseguiu e nunca conseguirá escapar da modelação do enquadramento e daquilo que nele se desenrola, não importa o quão honestamente se tente fazê-lo.

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Pior: quando Jim é questionado sobre essa honestidade do filme que está tentando realizar, por não ser ele mesmo um junkie, descemos ainda mais um nível na espiral montada por Clarke. Qual a validade do regime de autoridade que se coloca sobre o diretor, quando quase sempre há um destacamento entre ele e a realidade que tenta articular? Por mais que este pareça ser um filme anti-cinema e que questione com violência as proposições mais básicas do documentário, em última instância, nós somos o alvo principal, na medida em que o cinema não existe sozinho. Para que a experiência seja completa, necessita-se de um pedido involuntário cuja única exigência é a crença do espectador, por mais que o olho fique comumente restrito ao limites do que é visivelmente estruturado.

Mas também não é por acaso que Eiseinstein fica creditado como uma das propostas estéticas de Jim Dunn. Naquilo que possui de raro registro – lendas do jazz como Freddie Redd e Jackie McLean tocam incessantemente durante o filme -, The Connection atravessa quase 55 anos para ecoar o que a Nouvelle Vague, talvez o movimento mais apaixonado do cinema, sustentou: uma câmera e uma ideia podem não ser as garantias para fazer nascer um bom filme, mas é a maneira de montar, de orquestrar a vida que torna o mundo o material mais inesgotável e potente que conhecemos; ou seja, para bem ou para mal, o mais poderoso instrumento de que o cinema dispõe, e, por extensão, nós, é o olhar.

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