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Cobertura – Festival de Brasília 2015 (Parte V)

Por Virgílio Souza

Uma das mais tradicionais mostras de cinema brasileiro, o Festival de Brasília, segue apresentando até esta terça-feira (22) curtas e longas que compõem um importante recorte da produção cinematográfica do país.

Acompanhe os posts anteriores sobre o festival: I, II, III, IV.

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A Outra Margem (2015), de Nathália Tereza

Centrado em Jean, um agroboy que dirige sem destino pela noite engolindo garrafas de cerveja, o filme se ergue na oposição entre a melancolia de dentro do carro e a euforia de fora dele. O protagonista observa a diversão de outros jovens pela janela, e a câmera enfatiza o externo ao colocar a solidão e o silêncio do rapaz em contraste com as luzes e o movimento das ruas. No volante, as baladas apaixonadas do programa de rádio — Como um Anjo, de Zezé di Camargo e Luciano, por exemplo — o levam até uma garota, um caso antigo. É aí que sua apatia se transforma em rispidez, como se ele resistisse ao diálogo que ela e o filme tentam impôr. Econômico em falas e gestos como seu personagem principal, A Outra Margem aposta na contemplação, mas soa apenas desarticulado, e nem os rodopios da cena final, que finalmente aproximam a dupla, conseguem contornar sua falta de pulso.

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História de uma Pena (2015), de Leonardo Mouramateus

A atenção do cineasta para a criação de dinâmicas de poder e afeto dentro de espaços reduzidos se manifesta de maneira bastante clara na sala de aula, mas não somente nela. Os alunos não querem aprender poesia, o professor não parece muito entusiasmado em ensinar. Longe dali, dois estudantes fogem da aula em uma aventura adolescente e irresponsável. A câmera, que os enquadra de perto, em pares ou individualmente, é capaz de estabelecer relações instantâneas — há elementos solitários, casais apaixonados, amigos inseparáveis etc. Por isso, permite que o filme se concentre nos diálogos que partem dessa convivência, os quais tratam de questões aparentemente triviais, como beijos em baladas e romances passageiros, temas já explorados anteriormente por Mouramateus. O filme observa a escola, sai dela e depois retorna, e nesse movimento explora os interesses de uma juventude não muito interessante. O olhar, aqui, não é de julgamento, mas de simpatia, mesmo no sonoro “Foda-se” dito pelo professor para encerrar o curta.

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Santoro – O Homem e sua Música (2015), de John Howard Szerman

O único grande mérito do documentário reside na relevância de seu objeto de estudo, Claudio Santoro, um dos maiores músicos eruditos da história do país. Trata-se de uma peça de homenagem e resgate de trajetória, que busca apresentar de maneira muito didática a vida e a obra do compositor e maestro. Por meio de depoimentos de especialistas, colegas e familiares, intercalados com imagens de arquivo e segmentos de concertos baseados em seus trabalhos, o longa se dedica a narrar sua biografia. Embora interessante em conteúdo, tudo acaba preso em elogios que parecem fáceis, ao menos quando dizem respeito a alguém tão fascinante. As frases feitas se repetem como se tentassem explicitar a necessidade de maior reconhecimento popular — o único que ainda falta, dada a ampla atenção crítica à versatilidade e maestria do personagem-título. Sobram citações de teor semelhante a “se ele fosse europeu, seria aclamado como os grandes”, falta cinema. Extremamente convencional e pouco entusiasmante em termos narrativos, O Homem e sua Música passa longe da vibração que, segundo o próprio filme, tornou Santoro tão grandioso.

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Cobertura – Festival de Brasília 2015 (Parte IV)

Por Virgilio Souza

Uma das mais tradicionais mostras de cinema brasileiro, o Festival de Brasília, segue apresentando até esta terça-feira (22) curtas e longas que compõem um importante recorte da produção cinematográfica do país.

Leia também as partes I, II e III da cobertura.

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Quintal (2015), de André Novais Oliveira

O expediente é simples: André Novais adiciona o fantástico ao costumeiro realismo. Não se trata de um processo de ruptura, mas de uma experiência nova que se desdobra sobre as bases já muito sólidas de seu trabalho na Filmes de Plástico. Mais uma vez, estão em cena seus pais, Maria José e Norberto, em cenários caseiros e sobre temáticas que refletem uma realidade outrora esquecida pelo cinema brasileiro. A atenção aos diálogos segue inspirada, com a lente da câmera trazendo para a tela interpretações confortáveis, que desta vez mais do que celebram a beleza da banalidade do cotidiano da periferia, a cercam de elementos singulares capazes de realçá-la. O portal interdimensional a que o homem tem acesso é encarado com uma forma diferente de estranheza (que ele trata naturalmente como “um barulho lá fora”), assim como a mulher parece não reagir, focando-se em seus assuntos particulares (marido fora de casa, ela não se importa e segue para a academia de ginástica, flertando com a possibilidade de um empreendimento pessoal). A um só tempo, é símbolo de escapismo e adequação, como revela o retorno dele à noite, rotineiramente abrindo a porta pela janela para, no plano seguinte, conquistar o impensável. A surpresa e o encantamento se estabelecem pelo ordinário.

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Afonso é uma Brazza (2015), de Naji Sidki e James Gama

Dono de estrutura curiosa, entre o making-of de um longa e o documental de cabeças falantes, o curta mapeia algumas das ideias centrais de cinema de seu objeto, o cineasta-título. Quando se debruça sobre a rodagem de Tortura Selvagem – A Grade, finalizado no início dos anos 2000, o documentário captura um método de trabalho especial, não voltado para ensaios repetitivos e muito preocupado com a ação, em si. Sidki e Gama compreendem que tudo se organiza em torno dela e apresentam os elementos atrás das câmeras (a ideia de organização espacial, a receita de sangue falso, as orientações dadas a equipe e elenco) para, em seguida, reproduzirem sequências do filme original. Por outro lado, nos momentos em que o diretor é entrevistado, emergem percepções breves, mas cheias de sentimento, sobre sua personalidade. A paixão por Claudete Joubert, o encontro com a turma da Boca do Lixo e a relação com a película são os destaques. Sobram, aqui e ali, algumas questões pouco exploradas, cujos pontos de partida são oferecidos e logo abandonados, mas a junção decisiva entre riso e emoção, própria desse vínculo indissociável entre profissional e pessoal, levam o filme adiante como Brazza faria.

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Big Jato (2015), de Cláudio Assis

Em meio às vaias ao diretor, que antecederam a exibição do filme, uma senhora ao meu lado parecia contrariada: “tem que separar a obra do artista”. Sua afirmação me parece adequada em princípio, mas equivocada quando trata de um cineasta que mergulha seu trabalho em discurso retrógrado disfarçado de poesia nua e crua, esse exibicionismo visceral e transgressor que no fim das contas é apenas conservadorismo estilizado. É verdade que o texto, baseado em livro de Xico Sá, não subscreve as posturas de seus principais personagens, cuja composição encontra méritos na performance de Matheus Nachtergaele, capaz de criar nuances em figuras um tanto rasas, mais prosa que conteúdo. Acontece, porém, que o escritor troca a habitual filoginia, assinatura de suas colunas de jornais, por um machismo puro e simples, que só faz rir de mulheres, homossexuais e prostitutas. Continua muito fácil fazer piada com o oprimido, sobretudo quando a investida é menos obtusa e gráfica e mais lúdica e infantil. Ainda, as demais ferramentas a serviço da reflexão central — do menino que quer ser poeta, mas é preso pelo pai e pelo mundo em um serviço mundano de limpar fossas — não vão muito além do pedestre. Big Jato concentra sua atenção nos pequenos rompantes poéticos de suas criaturas, mas não se mostra capaz de orientar a ação, direcionar a trama para um clímax ou simplesmente não direcioná-la, o que gera problemas graves de ritmo, principalmente nas longas cenas na boleia do caminhão que percorre estradas de terra batida. Os segmentos de maior meditação sobre os sonhos do garoto viram apenas prévias para uma reflexão que nunca ocorre plenamente. O olhar do filme sobre a poesia, de alguma maneira, é tão quadrado quanto todo o resto.

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Cobertura – Festival de Brasilia 2015 (Parte III)

Por Virgilio Souza

Uma das mais tradicionais mostras de cinema brasileiro, o Festival de Brasília, segue apresentando até esta terça-feira (22) curtas e longas que compõem um importante recorte da produção cinematográfica do país.

Leia também a primeira e a segunda parte da nossa cobertura.

 

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Cidade Nova (2015), de Diego Hoefel

A curtíssima duração, o caminhar apressado das coisas e o desfecho vazio parecem sinais da incompletude do filme, que mais lembra um teaser do que um produto concluído. A premissa é interessante, construída pelo diálogo inaugural em um longo plano, o único que parece manifestar mais ideias do que sensações. Contudo, estabelecida a questão central — o fato de a cidade natal do rapaz não existir mais, que o deixa sem lugar no mundo — há pouco o que extrair. Entre goles de cachaça, abordagens sexuais forçadas e banhos solitários, o protagonista cumpre sua jornada de desilusão e deslocamento em momentos nada autênticos, estilizados e insípidos em medidas semelhantes.

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Copyleft (2015), de Rodrigo Carneiro

O que se destaca como momento mais marcante do sábado no festival é o belo discurso a favor da diversidade proferido pelo diretor do curta antes da sessão. O problema é que sua manifestação, aplaudida de pé e digna de elogios posteriores, permanece apenas no extra-filme. Há alguns sinais positivos nos instantes iniciais de projeção, os quais transportam o protagonista da beleza da autodescoberta à frustração pela intolerância no Centro de Belo Horizonte, palco de seguidos crimes de homofobia e transfobia. O que se segue, porém, é a sensação de que Carneiro utiliza o cinema como mero receptáculo de ideias, não como meio e ferramenta que se retroalimenta delas, ou seja, como espaço capaz de engrandecer tais valores, não apenas reproduzi-los. Copyleft é profundamente discursivo, mas seu texto se perde em meio a uma narrativa errática e pouco esclarecedora, que reúne uma variedade de questões sem qualquer senso de organização estética ou ordenamento na montagem. Ainda, faz pouco sentido que o filme busque essa desordem a todo momento, mas se mantenha preso a uma trama mais convencional, que acaba sufocada pelo desarranjo geral.


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Para Minha Amada Morta (2015), de Aly Muritiba

O longa é eficiente ao construir suspense ao redor de seus dois personagens principais, Fernando e Salvador, o marido e o amante da moça morta do título. O primeiro, pela relação com o filho e a falecida esposa, marcada por hábitos nada saudáveis, mas que demonstram haver alguma sensibilidade por detrás do silêncio. O segundo, porque ele se torna o foco de atenção de todo o filme, alterando mesmo a percepção sobre o homem traído e fazendo pairar no ar a expectativa sobre como/quando um deles vai agir e qual será a medida da reação. A trama se desdobra como um misto de Villeneuve e Fincher: de um lado, com uma composição muito zelosa dos planos, que capturam vestígios e olhares à distância, e de outro, com uma câmera que se move sem deixar rastros, transbordando impessoalidade como se fosse mero registro de imagem. O filme segue pistas (os vídeos antigos, a convivência na igreja, as conversas atravessadas sobre o passado) que conduzem à ocupação de novos espaços (a casa dos fundos, o carro, a casa da frente). Ocorre, porém, que os recursos dramáticos escolhidos embrutecem a narrativa, engessam as coisas pela tentativa de imprimir tensão em cada cena. São os casos das insinuações de Fernando para a mulher e a filha de Salvador e do par de sequências em que os dois se confrontam de maneira mais direta. Muritiba constrói ameaças que se intensificam, ganham corpo na forma de objetos (a pá, o martelo, a faca), mas nunca explodem. É uma pena, pois seus melhores momentos surgem nas pequenas catarses, quando o olhar do diretor se volta para as reações horrorizadas dos personagens à morte (simbólica ou literal) da esposa: a de um deles, assistindo ao tal vídeo; a do outro, recebendo um envelope.

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Cobertura – Festival de Brasília 2015 (Parte I)

Por Virgilio Souza

Uma das mais tradicionais mostras de cinema brasileiro, o Festival de Brasília, teve início no último dia 15 apresentando curtas e longas que representam um importante recorte da produção cinematográfica do país. Acompanhe nossa cobertura, que inicia com breves comentários sobre três dos filmes da programação e seguirá nos próximos dias.

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Command Action (2015), de João Paulo Miranda Maria

É interessante como o curta sustenta seu microuniverso, uma feira no interior de São Paulo, em dois aspectos básicos: close-ups e um poderoso trabalho sonoro. Os planos fechados, somados a vozes, canções e ruídos de toda sorte, revelam detalhes tão particulares daquele contexto quanto as figuras em cena — os próprios feirantes, transeuntes, a gangue mirim etc. O garoto que centraliza a ação se insere nisso tudo, a princípio, pelo silêncio. Ele precisa fazer compras para a mãe e se distrai pelas coisas ao redor, mas fala pouco, usa duas ou três expressões e mantém a mão junto ao dinheiro contado no bolso. Por sua vez, o robô de brinquedo que o atrai e altera essa dinâmica, provocando uma mudança de rumo, chama a atenção justamente por não pertencer àquele espaço. É o objeto dos chinglings, tem som e aparência muito distintas. Os arredores importam para que a relação entre duas figuras alheias se estabeleça, e o filme reproduz essa ideia em sua estrutura: começa também absorto, coletando elementos do cenário aqui e ali, para somente aí se render à interação.

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À Parte do Inferno (2015), de Raul Arthuso

O filme coloca dispositivos tradicionais do horror a serviço de uma narrativa tipicamente brasileira, que vê o interno e o externo em lados opostos, separados por uma barreira física bastante artificial. A mancha que aparece na parede do quarto do garoto é ponto de partida para um confronto inevitável entre os moradores de rua e essa família de classe média de São Paulo. Eles, alienígenas, querem ter acesso àquele portal que flerta com Poltergeist; a dona da casa, por sua vez, busca o isolamento sem perceber que a invasão já ocorreu por meio dos sons que atrapalham seu sono e das imagens da câmera de vigilância que a hipnotizam. Os elementos de fora que são aceitos (o rapaz com quem ela transa, o vizinho que vai até sua casa pedir ajuda) vivem a mesma realidade. Um plano, em especial, remete à sequência do pesadelo de O Som ao Redor, também mergulhada nesse imaginário classista de opressão e distanciamento. À sua maneira, Arthuso vai além e encerra seu curta aproximando a câmera do monitor de segurança, símbolo infernal de toda essa alienação, até que qualquer distinção se torne impossível.

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           A Família Dionti (2015), de Alan Minas

O que resta desta fábula no imediato pós-sessão não vai muito além de um punhado de imagens que traduzem suas principais ideias. A premissa — um garotinho que aos poucos vira chuva quando se apaixona e seu irmão mais velho, que seca e chora areia após a partida da mãe — possui fundamento poético suficiente, mas o filme parece se dedicar mais a construir um sem-número de (outras) metáforas do que a aprofundar suas bases. Ao longo de 97 minutos, Minas trabalha contrastes óbvios (terra x água, sol x chuva, duradouro x passageiro) sem incorporar a poesia ao texto. Ditas em voz alta, as associações infantis não oferecem suporte à trama e acabam servindo como âncora, levando abaixo a questão central. São os casos, principalmente, das ligações feitas em sala de aula, que relacionam equações matemáticas a conflitos pessoais (“primeiro você resolve o que está dentro para depois resolver o que está fora”) e uma aula de ciências às paixões da puberdade (a metamorfose da borboleta é utilizada como paralelo ao amadurecimento do personagem principal). A proposta é muito doce e inofensiva, é verdade, mas não serve de escudo para certa fragilidade narrativa. Quando resolve investir no visual, porém, o filme se acerta, construindo símbolos definitivamente mais frutíferos, como o plano da garota tomando banho com o menino-nuvem.

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Cobertura – Indie Festival 2015 (Parte I)

Por Virgilio Souza

O Indie Festival, que passou por Belo Horizonte e segue em São Paulo até o próximo dia 30, chega ao seu 15ª ano apresentando uma seleção de filmes de diversas nacionalidades. Esta é a primeira parte de nossa cobertura, na qual comentamos filmes da Mostra Mundial. A programação completa pode ser conferida no site oficial do evento.

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Eu Sou Ingrid Bergman (Jag är Ingrid, 2015), de Stig Björkman

Faz todo sentido a tendência recente do Indie de programar filmes mais convencionais sobre figuras acessíveis em suas sessões de abertura — o escolhido do ano passado foi Nick Cave: 20.000 Dias na Terra. É uma forma de trazer o público para o festival, encher salas e oferecer um convite para outras descobertas. No caso deste documentário, incomoda que Björkman se valha de um acervo quase inesgotável de material, entre fotos, vídeos caseiros, cartas e depoimentos, para produzir um longa chapa-branca, dedicado mais a justificar questões controversas da vida da atriz do que a qualquer outra coisa. Permeando o panorama de sua carreira, há uma lógica muito clara de seguir cada polêmica com um aparar de arestas explícito, sustentado no mais inofensivo (e homenageativo) dos posicionamentos — ainda que muitos desses temas sejam datados, como as relações extra-conjugais e a forma de lidar com a imprensa, e suas defesas, tão desnecessárias quanto quadradas. Os melhores momentos derivam da relação entre a biografada e a câmera. Por que ela gostava tanto de filmar e ser filmada? Em que medida as lentes representavam sua aproximação com a família? De que forma seus registros visuais se relacionam com os relatos escritos enviados pelo correio, confirmando ou alterando a percepção sobre eles? Felizmente, essas dúvidas ocupam espaço considerável no filme e, em ampla medida, evitam que essa seja apenas mais uma obra de reverência absoluta, ainda que não necessariamente desmedida.

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Contando (Counting, 2015), de Jem Cohen

O mais interessante sobre a relação entre Jem Cohen e Chris Marker, aqui, é notar que o primeiro, o diretor, investe muito mais na subversão da narrativa clássica do que o segundo, sua principal inspiração e referência formal. Espécie de diário de viagens do cineasta, Contando é uma colagem de imagens coletadas ao redor do mundo que permite as mais variadas aproximações, das quais duas me parecem mais interessantes: uma dimensão essencialmente política e outra memorial.

O filme passeia de cidade em cidade ao longo de 15 curtos segmentos, e o vínculo entre eles de imediato não parece muito evidente. Pontualmente, Cohen direciona o discurso se valendo de breves vozes e trechos literários. Há também elementos recorrentes que sugerem um fio narrativo de natureza temática. O componente político se faz perceber em trechos focados nos protestos contra o racismo e a violência policial nos Estados Unidos, nos movimentos contra o governo na Turquia, nos reflexos de nova-iorquinos que são gravados pela Agência Nacional de Segurança enquanto usam seus celulares, no olhar cômico sobre os sósias de líderes russos em Moscou, entre outros.

A sensação é de que, por um lado, há grande liberdade no que diz respeito às associações possíveis entre tais eventos e, por outro, a força dos registros cria uma espécie de prisão, como se qualquer impressão estivesse necessariamente ligada àquelas imagens, mais até do que ao contexto já conhecido. A forma imprecisa como a mediação dessas imagens ocorre parece fazer o filme perder potência em prol da abstração, evitando trabalhar suas reflexões críticas de modo mais direto — uma dinâmica que Marker controlava mais firmemente, dando maior ênfase à aproximação entre estético e político, como em Le fond de l’air est rouge e na série de documentários que retratava questões dessa natureza no Chile, Brasil, República Tcheca e França.

A diferença constatada não é necessariamente negativa. É possível imaginar que o filme evita a frontalidade por tratar de coisas ainda muito vivas e instáveis, hoje mais ligadas a uma identificação individual do que a uma percepção coletiva já consolidada. Ao adentrar os protestos de negros estadunidenses que repetiam o “I Can’t Breathe” de Eric Garner, por exemplo, Contando parece refletir sobre os novos movimentos de direitos civis com uma abordagem que mais se adequa a esse tempo e circunstância, quando a informação parte de todo lugar e vozes antes silenciadas agora questionam ordens há muito incontestáveis. Em ampla medida, o que Cohen faz é uma compilação de fragmentos, não um filme-ensaio, e a forma de encarar tais pontos é mais tangencial e difusa que a de Marker ao discutir colonialismo em filmes como As estátuas também morrem, no início de carreira, se aproximando mais de narrativas mais fluidas, como Sem Sol, o que torna mais evidente a importância do deslocamento temporal e geográfico.

A câmera está sempre em trânsito, por aviões e trens, idas e vindas. Há um senso de não-pertença permeando boa parte dos capítulos, mas os retornos seguidos a Nova York dão a entender que ainda existe um lar, e é nos momentos em que o realizador volta à cidade que o filme passa a desconstruir mais do que contemplar. As demolições de prédios antigos, que ocupam um dos quinze segmentos, sintetizam uma ideia de melancolia que se faz presente dentro e fora daquilo que resiste em ser chamado de casa, e a observação parece ser a única forma de construir algum senso de identificação e memória.

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O Paraíso (Le Paradis, 2014), de Alain Cavalier

Em seu mais recente trabalho, um já envelhecido Alain Cavalier retorna à infância. O Paraíso é um diário/retrato que busca contar e recontar histórias e questionar coisas que causaram inquietação ao longo de toda uma vida. A esperança é de que as respostas, se é que elas existem, estejam em algum lugar do passado. Nas mãos de um realizador que já fez filmes sobre a morte dos pais (Le Filmeur) e a esposa falecida trinta anos antes (Irène), o resultado serve para estreitar ainda mais a fronteira entre ficção e documentário ou, como ele afirma, misturar a primeira e a terceira pessoas.

Cavalier, que se define como um filmador e não um diretor ou documentarista, trabalha somente com a própria câmera. O método solitário de registrar o cotidiano talvez o tenha condenado às margens do cinema francês, embora ele não pareça se importar muito — principalmente com rótulos (“A Nouvelle Vague foram dois filmes, nada além disso”) — e a atenção crítica tenha se mantido mais ou menos constante ao longo das últimas décadas. Nesse sentido, O Paraíso se põe a refletir também sobre o próprio cinema, “essas imagens loucas” que eternizam pessoas e momentos, não mais importando o passar do tempo fora da tela. De maneira curiosa, as grandes figuras se engrandecem porque reduzidas a simples indivíduos registrados em câmeras, como o resto de nós. É de se admirar uma postura que valoriza a intimidade e não idealiza atores ou personagens, partindo de alguém que trabalhou com vários dos principais nomes da indústria em seu país, como Catherine Deneuve, Alain Delon, Romy Schneider, Jean-Louis Trintignant e, recentemente, Vincent Lindon.

Também se mostra fundamental nesse processo de filmar o comum a universalização do digital, que assegurou a ele maior independência financeira e criativa. O retrato de um cotidiano deixado para trás e a busca de referências para entender a vida (e o cinema, parte dela há tanto), invariavelmente seguem em direção a aspectos absolutamente pessoais. O procedimento, então, é de reorganizar as ideias mais básicas e transmiti-las com semelhante simplicidade. Aqui, Cavalier se vale de dois elementos principais para recriar os aspectos fundadores de sua trajetória e personalidade: a utilização de objetos domésticos e a narração em off. Um robô, um pato de brinquedo e itens de cerâmica, entre outros, servem como base para que o filme narre histórias como a crucificação de Cristo — como uma criança curiosa o faria, usando o que estivesse à mão.

A voz que se ouve, por outro lado, é questionadora e muitas vezes incisiva, porém mantém certa consciência da própria ignorância. Conta sobre o primeiro contato com uma hóstia, por exemplo, mas não se limita à breve narrativa — coloca ao lado dela um lápis e, se dirigindo ao espectador, explica querer “mostrar o tamanho para aqueles que não conhecem”. Em momentos como este, quando se unem com propósito reflexivo som e imagem, documental e ficcional, íntimo e universal, primeira e terceira pessoas, O Paraíso parece inventar uma nova gramática.

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Poeta em Viagem de Negócios (Shi ren chu chai le, 2015), de Ju Anqi

É fascinante como Ju Anqi cria um road movie solitário em que a autodescoberta é mais consequência tangencial do que motivação original, em especial porque seu filme trabalha de modo muito consciente a subjetividade do protagonista, evitando cair em filosofismos. O deslocamento do rapaz pelo interior da China é matéria-prima para os dezesseis poemas que segmentam a trama. O escritor embarca em viagem de negócios não somente atrás de uma inspiração romântica e idealizada, como também em busca de experiências que, aqui, não precisam ser necessariamente emblemáticas ou significativas. A poesia por vezes deriva das vivências mais banais, segundo um entendimento de que a simplicidade também gera reflexão e beleza — “eu recebi uma joia / eu vi na joia uma luz”, nesse sentido, é um par de versos bastante impactante.

O aspecto central é que não se trata de uma narrativa de grandes eventos. Ao contrário, o que se vê é uma sequência de dias quase triviais, a despeito da distância de casa e das novas fronteiras a cruzar. Há mais atividades ordinárias do que ações propriamente ditas. O jovem poeta é registrado tomando banho, pegando carona, bebendo e contratando prostitutas, como se retornasse sempre a seus vícios e obrigações, mesmo inserido em uma jornada libertadora. A câmera o encara em espaços muito pequenos (o pequeno apartamento alugado, os bancos apertados dos ônibus, os banheiros na beira da estrada), e a janela reduzida, em 4×3, permite compreender o sentimento de confinamento do rapaz mesmo frente à vastidão daquela massa continental.

Finalmente, a nota negativa são os segmentos que sugerem alguma forma de encenação, quando a câmera é fixada e a montagem organiza espacialmente as cenas se valendo de cortes sequenciais. A dinâmica de espontaneidade parece funcionar melhor quando o olhar do cineasta mantém certo distanciamento do personagem, se aproximando somente quando o foco se volta para a poesia, seu objeto comum.

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Necktie Youth (idem, 2015), de Sibs Shongwe-La Mer

Espécie de meditação juvenil sobre a geração pós-apartheid em Johannesburgo, o filme se constrói como um mosaico de impressões um tanto desconexas sobre passado, presente e futuro. É estranho que o autor busque forçar um vínculo entre seus personagens a partir de uma tragédia pessoal — um suicídio — quando o laço geracional comum é tão forte. O que transborda dos relatos com relação à cidade e a vida em uma sociedade ainda segmentada interessa mais do que os surtos agressivos e os momentos de absoluta passividade de jovens  ricos e alcoolizados, filhos de quem enriqueceu sob/a partir da mesma segregação ou mesmo antes dela, registrados em um farsesco tom documental. Nesse sentido, é possível extrair algumas ideias básicas: aos vinte e poucos anos, eles são capazes de enxergar aspectos positivos mais facilmente no distante passado imperial do que no fim do regime recente, porque “há duas décadas é tudo uma merda”. Existe uma nuvem de alienação encobrindo tudo isso, que só se dissipa nos raros trechos em que a vaidade e o cinismo, próprios desse olhar pós-adolescente, dão lugar a expressões mais naturais, com um rastro de otimismo sobre os tempos que virão.

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Cobertura – Argentina Rebelde (Parte II)

Por Virgilio Souza

Segunda parte da cobertura dedicada à mostra Argentina Rebelde. Para ler os comentários publicados anteriormente, clique aqui.

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A Hora dos Fornos – Parte 1: Neocolonialismo e Violência (La Hora de los Hornos – Parte 1: Neocolonialismo y Violencia, 1968), de Fernando Solanas e Octavio Getino

O exemplar que melhor incorpora a ideia de rebeldia política da seleção. O ordenamento de imagens pré-existentes revela as inúmeras contradições de um sistema falido, ignoradas quando vistas isoladamente. Esse horror é denunciado não apenas por meio de títulos em caixa alta que clamam por libertação, como também através de sequências em que nem mesmo a elegância da ópera dessa América branca e rica é capaz de sufocar o poder da imagem de uma criança mestiça desnutrida. O jogo de contrastes se faz muito claramente nesse choque que não oferece acessos nem dá margem a relativizações, mas que se coloca ainda a serviço de uma ideia de perpetuação bastante agressiva — o ontem e o hoje, lembrados em recorrência, revelam a continuação de uma miséria que não mais permite negociações. Trata-se do procedimento de montagem em sua essência, como se Vertov tivesse desembarcado em Buenos Aires e se deparado com um outro vocabulário para tratar de novos e velhos problemas. A mediação de Solanas e Getino, carregada de convicção e impressão de significados, não ameniza a violência do neocolonialismo e de seus braços — a fome, o não acesso à terra, a doença, a dominação cultural e política —, e o que tem início com uma nota que trata Cuba como “o primeiro território livre da América” desemboca em um dos momentos mais fortes da história do cinema no continente: um longo plano de Che, morto.

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Invasão (Invasión, 1969), de Hugo Santiago

Diz a história que Jorge Luis Borges definiu o filme, cujo roteiro escreveu ao lado de Adolfo Bioy Casares, da seguinte maneira em uma folha de papel: “a lenda de uma cidade, imaginária ou real, sitiada por fortes inimigos e defendida por uns poucos homens, que tampouco são heróis; lutaram até o fim, sem suspeitar que sua batalha era infinita”. Não parece existir entendimento melhor do que é Invasão, em parte porque Santiago investe fortemente nessas mesmas ideias de ambiguidade e infinitude, muito embora tome partido no momento derradeiro. Os dois grupos que se opõe são compostos por homens já velhos, distantes de qualquer idealismo juvenil. Vestem-se com semelhante sobriedade, deslocados temporal e geograficamente, e lutam por causas desconhecidas em uma Aquileia fantasmagórica que é, a um só tempo, toda e nenhuma cidade. Por que atacam? De que se protegem? O que querem evitar? A sombra, fotografada com muita elegância por Ricardo Aranovich, engole partes da tela como se decidisse escondê-las, em uma lógica similar à do próprio texto. No limite, o surreal se torna muito palpável graças a menções mais claras à capital argentina, em especial quando confirma ter consciência plena de sua origem, fazendo tudo convergir para La Bombonera antes de retomar o ciclo sem fim daquela luta.

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A Patagônia Rebelde (La Patagonia Rebelde, 1974), de Héctor Oliveira

A volta ao passado argentino, partindo do contexto entre ditaduras em direção às disputas rurais do início do século 20, permite que Olivera dedique maior atenção a questões usualmente marginalizadas em prol da ação ou idealizadas e simplificadas em favor do discurso. Falo, aqui, de discussões complexas sobre regimes políticos: a obra se debruça sobre análises nas esferas social, econômica e política, aponta inconsistências entre teoria e práxis e critica as divisões da própria organização sindical, mas se mostra extremamente respeitoso quando trata de suas lutas e ambições. A obsessão perversa do coronel Zavala, determinado a eliminar as sociedades obreras por meio de procedimentos não vistos “nem na guerra europeia”, parece tão real quanto a perseguição aos realizadores do filme na época de sua produção e lançamento, marcada por visitas nada cordiais do exército, censura e exílios forçados.

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O Dependente (El Dependiente, 1969), de Leonardo Favio

Um filme sobre prisões. Fernández, o protagonista, é enclausurado a cada plano, pela proximidade da câmera que dedica longos períodos a encarar sua estranheza ou pela forma como Favio o enquadra seguidamente, usando os espaços limitados — as paredes, grades e árvores — como margens insuperáveis na tela. É também sufocante como todos os personagens são prisioneiros de determinações sociais. No pequeno povoado de poucos cenários — a loja de ferragens, a casa dos Plasini —, as convenções produzem graves desvios, que impedem uma de sair do próprio quintal, outro de viver uma vida digna. Há um olhar de espanto, materializado nos ataques da matriarca e nas aparições de seu gato, mas também de compaixão por figuras aprisionadas em uma rotina insuportável, de trabalho durante o dia e interações pessoais assustadoras à noite. É nos breves momentos de libertação, porém, que O Dependente encontra sua maior força. Ainda assim, a realidade é inescapável, e mesmo a morte é seguida por constrição social, de um povoado que se aglomera ali mesmo, na prisão onde tudo começou.

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Pude Ver Um Puma (Pude Ver Un Puma, 2011), de Eduardo Williams

Formalmente, o mais rebelde do grupo. Existe toda uma desconexão no campo da aparência, mas ela coexiste com um fiapo narrativo que liga as coisas, os personagens e suas histórias. Trata-se fundamentalmente de um curta-metragem de sensações, que aposta na fluidez e confia plenamente no poder de suas imagens, mesmo quando essas são apenas sugeridas — um garoto fora de campo fala sobre uma tatuagem que o espectador não chega a ver, um acidente ocorre sem que seja observado por completo, o próprio animal do título indica a selvageria constante e por aí vai. Williams torna cotidiano o que é estranho e faz de seu trabalho gigante em impacto pela forma como a câmera vagueia pelos espaços e pelo modo como o som engole tudo quando a tela escurece no momento derradeiro.

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Um Amor a Cada Esquina (Peter Bogdanovich, 2015)

Por Virgilio Souza

Em mais de uma ocasião ao longo de suas cinco décadas de carreira, Peter Bogdanovich relatou com entusiasmo a atitude de John Cassavetes durante uma exibição prévia de Essa Pequena é uma Parada/Whats Up, Doc?, antes mesmo que o filme se tornasse o sucesso estrondoso que o levou ao terceiro posto na relação de mais assistidos de 1972 nos Estados Unidos, atrás apenas de O Poderoso Chefão e O Destino de Poseidon. Segundo ele, o público parecia resistir à comédia, apesar de algumas risadas no início da projeção, quando o colega cineasta se levantou e, se dirigindo à plateia, gritou “O que é isso? Eu não acredito que ele [Bogdanovich] está fazendo isso!”.

Naquele momento, Cassavetes reagia a um filme que, como a carreira de seu diretor, se voltava diretamente ao cinema dos anos 30 e 40 e às mais farsescas peças on e off-Broadway. Mais de quatro décadas depois, é possível apostar que seria similar sua reação a Shes Funny That Way — um novo exercício de retorno, um movimento que pode até ser visto com certa frequência, entre pouco inspiradas comédias de elenco hollywodianas e formulaicas produções francesas que figuram em festivais como o Varilux, mas não com equiparável domínio do que está em tela.

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É verdade que a carreira de Bogdanovich possui alguns exemplares aparente e felizmente deslocados no tempo — Amor, Eterno Amor, Muito Riso e Muita Alegria e No Mundo do Cinema, entre outros —, os quais dariam ares de verdade à anedota, mas não apenas a distância temporal me leva a crer que este filme, lançado em 2015, talvez seja o símbolo mais claro dessa tendência igualmente autoral e referencial. Parece concreta a crença do realizador na risada como maior recompensa possível ao público, uma lógica que, no bom teatro de farsa, tem origem na ideia de que o riso é o único recurso possível em tempos difíceis, um escape para uma realidade antes inescapável. Não surpreende, portanto, que o cineasta abra seu mais novo longa rejeitando ser um “cínico, ofendido pela mais leve insinuação de fantasia” e afirmando acreditar que “os fatos nunca devem atrapalhar uma boa história”.

Consciente de seu destino e de todo o arco a percorrer, o filme investe em dinâmicas interessantes para levar a trama adiante. Os personagens entram livremente nas vidas uns dos outros, tanto dentro quanto fora de quadro, tendo a peça a ser ensaiada como palco para que determinadas interações se desenvolvam. Os trechos no consultório psiquiátrico ocupado por Jennifer Aniston e frequentado por parte do elenco parecem ser os mais irregulares, ao lado da subtrama de perseguição à protagonista vivida por Imogen Poots. De todo modo, é preciso elogiar a capacidade que Shes Funny That Way possui de manter teatro e cinema como elementos constantes, como espelhos que refletem os eventos fora de cena — os exemplos mais claros disto sendo o teste que dá a vaga na produção à garota, antes acompanhante profissional, e a entrevista a uma repórter, quatro anos depois, que dita todo o relato dos acontecimentos.

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Precedida por uma série de referências, que culmina nas aparições de Quentin Tarantino e do próprio Bogdanovich, a sequência final — retirada de O Pecado de Cluny Brown, de Ernst Lubitsch — reafirma o proximidade do filme com um momento passado da história do cinema, a um só tempo uma nostalgia pelas obras memoráveis e um gesto de homenagem às coisas geralmente esquecidas. O mais importante, porém, é a habilidade do autor em fazer humor e reverência não apenas pela atmosfera construída ou por menções pontuais bem escancaradas (categoria em que Tarantino parece ter se especializado, diga-se). Há um enorme repertório a serviço da narrativa, que definitivamente incorpora marcas de gente como Keaton, Hawks e Sturges e alinha pequenos momentos de comédia visual, muito próprios do slapstick, a aspectos emprestados da comédia screwball, como a histeria coletiva e a excentricidade do texto.

Nesta conjunção de fatores que isola Shes Funny That Way de seus colegas de gênero recentes se encontra até mesmo a condição de Owen Wilson como principal figura masculina, que guarda reflexos na própria origem do ator como roteirista parceiro de Wes Anderson, com ênfase em gags verbais e jogos de palavras de toda sorte, conservando, porém, um traço de ingenuidade já explorado anteriormente por outros autores, Woody Allen o mais óbvio deles. Desde o início se reconhece que o personagem não é um tipo como Marlon Brando, Cary Grant ou James Dean, mas um sujeito mais próximo da imagem de John Ritter, outro símbolo da postura descontraída das comédias de Bogdanovich.

Seu romance com a protagonista também se desenvolve de modo nostálgico, doce, talvez até um pouco antiquado, mas sempre coerente com a proposta geral do filme de se inserir em um universo um tanto fantasioso. É natural que a garota se defina como musa, e não acompanhante. Nada mais adequado em uma Nova York que não existe precisamente como cartão-postal, mas como memória de um tempo do cinema em que de fato se filmava lá, sem autorização oficial e com Hepburns e Gazzaras se aventurando pelas ruas.

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Cobertura – Argentina Rebelde (Parte I)

Por Virgílio Souza

A Caixa Cultural Rio de Janeiro apresenta, até dia 30 de agosto, a mostra Argentina Rebelde. São 17 filmes – longas, médias e curtas – que traçam um panorama do cinema argentino, com obras realizadas entre 1942 e 2013. Neste artigo, confira a primeira parte de nossas impressões sobre os filmes do festival.

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Jogue uma moeda (Tire Dié, 1960) e Os Inundados (Los Inundados, 1962), de Fernando Birri

 É ao mesmo tempo inusitado e perfeitamente compreensível que os dois filmes tenham surgido em um espaço tão curto de tempo e pelas mãos do mesmo realizador. Há elementos constantes, boa parte deles muito particulares das ideias indissociáveis de cinema e política de Birri, como o reconhecimento da função revolucionária do documental, inclusive no segundo filme, que adota traços do gênero em prol de uma narrativa que se aproxima de uma espécie de neorrealismo argentino. No primeiro, o cineasta parte de um relato estatístico da província de Santa Fé, em um apanhado de números e dados oficiais que serve mais à manutenção da desigualdade do que a qualquer outra coisa. A câmera de Jogue uma moeda inicialmente observa de cima, com o olhar de elites e colonizadores, a comunidade pobre que margeia uma linha de trem para, em seguida, descer ao chão e narrar as histórias das crianças que pedem dinheiro aos passageiros e de suas famílias, que lutam pela subsistência. Trata-se de um movimento de humanização genuíno e, para aqueles sujeitos, inédito, sobretudo quando o filme retorna às casas miseráveis após uma breve incursão nos vagões, como se revelasse a postura abominável dos privilegiados — ouve-se algo como “Eles vivem assim porque não trabalham” — e dela quisesse fugir. Parece fácil encontrar pontos em comum com um Brasil hoje ainda desigual, mais pelo retrato de quem anda de trem do que dos que seguem à margem dele. No segundo filme, a lógica se repete, e as figuras do título se deslocam do campo para a cidade e de volta ao campo buscando sobreviver, à mercê da própria sorte e esquecidas pela política. A abordagem é cômica, mas não perde a postura crítica e socialmente consciente e abre margem para questionamentos sobre quem carrega a responsabilidade por aquela situação. “A culpa é nossa, do destino?”, pergunta uma personagem. “Não, do governo”, responde outro. Em comum, as obras possuem ainda a habilidade de Birri para preencher quadros, os quais frequentemente desnudam uma realidade desoladora, apresentando lado a lado estes humanos desafortunados e os mais variados animais.

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A Casa do Anjo (La Casa del Ángel, 1957), de Leopoldo Torre Nilsson

A associação mais imediata relaciona o filme de Torre Nilsson a Orson Welles, pela forma de posicionar a câmera, a construção arrojada em torno de um imenso flashback que amarra abertura e desfecho e outras tantas coincidências e não-coincidências. Contudo, há muito mais a encontrar aqui, leituras várias que partem principalmente da condição de precursor de uma geração tão importante do cinema argentino, da qual ele próprio fez parte, na década seguinte. A variedade temática abordada e a frontalidade com que trata aspectos tão controversos da vida social e política surpreendem ainda hoje. Não fariam o sentido que fazem, porém, se fossem gratuitas, desvinculadas de uma compreensão bastante particular daquele contexto. Felizmente, o filme se ergue sobre uma noção muito bem determinada da família como repositório moral, que só no desenrolar, diálogo a diálogo, confronto a confronto, acaba desconstruída. A mãe religiosa de Ana, a jovem protagonista, ganha contrapontos em todas as frentes — o chofer que fala em aborto, as filhas que se descobrem sexualmente e questionam os ensinamentos bíblicos e mesmo o marido que, mais retrógrado que progressista, insiste em práticas pouco condizentes com essa moral cristã. É essencialmente familiar também o debate entre os congressistas, que sai do seio político, burguês e aristocrático, das questões públicas e partidárias, em direção a acusações pessoais que, no limite, atingem a honra. Em todos os casos, a descoberta de novos rumos se dá através do caminhar — as andanças da personagem central pelos bairros afastados, os vinte passos contados de seu par num duelo fatal — e se manifesta por olhares expressivos, filmados de perto. O legado do filme para latino-americanos se nota em retrospectiva de maneira mais evidente, mas são de imediato aparentes suas virtudes no que tange a questões substancialmente argentinas. É cinema com pátria, sem sombra de dúvida.

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Tempo de Vingança (Tiempo de Revancha, 1981), de Adolfo Aristarain

O cineasta traça um paralelo inteligente e bem arquitetado entre o inusitado plano de Pedro Bengoa de fingir-se de mudo para conseguir uma indenização e seu passado como militante. Disposto a arriscar a própria vida para conservar uma fraude, anos após abandonar suas atividades como sindicalista, ele encontra uma realidade semelhante à da resistência aos horrores da ditadura. Manter o silêncio e aguentar toda forma de pressão, aspectos outrora fundamentais para sua sobrevivência, tornam a ser base de sua existência. O thriller possui sequências emblemáticas, como aquela em que o rapaz segura o grito de dor ao queimar o próprio braço com um cigarro, envoltas em um esquema bastante próprio do gênero. No limite, o protagonista se torna prisioneiro quase literal da própria convicção, e momentos como sua explosão de alívio debaixo do chuveiro não passam de um enganoso senso de libertação, o que talvez justifique até mesmo o sucesso do filme ao se esquivar da censura.

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A Terra dos Patriarcas (Tierra de los Padres, 2011), de Nicolás Prividera

É curioso como o filme — uma série de leituras de textos sobre a história argentina, tendo o Cemitério da Recoleta como personagem e cenário — nasce e quase se perde na montagem. Nasce porque as ideias se concatenam de maneira um tanto clara. São séculos de acontecimentos narrados por figuras que se portam como fantasmas do passado de opressão e violência que ainda assombram, vagam por aí mesmo que seus corpos sejam trancados noite após noite. A ideia funciona melhor nos trechos em que Prividera explicita que aquilo ainda é real, como na sequência de abertura, por meio de menções às perseguições da ditadura, conflitos raciais, embates civis e enfrentamentos militares — uma espectadora sentada a algumas cadeiras de mim exclamava baixinho “Minha nossa senhora!” a cada citação, sorrindo apenas quando um grupo de idosos em tela cantava em frente ao túmulo de Perón, em homenagem ao líder. Não soa exatamente como um resgate histórico, posto que os argentinos lidam com a formação de seu país cotidianamente, a mencionada sequência sobre o peronismo sendo sintoma disto. A derrocada do filme, porém, se dá na mesma ilha de edição que o construiu. O ritmo lento, excessivamente pausado, um pouco entediante, que insere aqui e ali planos diversos da arquitetura do cemitério, não parece ser algo voltado para a reflexão entre memórias, mas um sinal de falsas polidez e formalidade. A sensação acaba contornada, ainda assim, pelo momento em que se cita Joaquín Ianuzzi: “Eu sou pela usura e tenho tempo”. Havendo disposição, os trechos sobre militarismo de El Crimen de la Guerra e as lembranças de Evita e Aramburu, por razões distintas, valem como recompensa.

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A Casa (Sharunas Bartas, 1997)

Por Felipe Leal

Na sua relação essencialmente dupla, todo filme é, assumidamente ou não, um convite, e como todo convite, o mínimo de participação é requerimento básico, como se, ao assumirmos o desenrolar daquele mundo, devêssemos, também, observá-lo, tomar a imagem como algo que faz sentido de existência. Longe, se preferir, do que nossas percepções do real alcançam, porém devendo a este um mínimo de colamento, de obediência às suas leis. Tudo é uma suposição. Mas para Sharunas Bartas, sobretudo em seu A Casa (1997), o ato de participação é diferente de e não pressupõe de forma alguma o entendimento. Primeiro porque suas imagens parecem pertencer ora ao domínio do onírico, ora impulsionadas por brechas de subjetividade, não estabelecendo, portanto, qualquer relação que implique em uma lógica narrativa aos moldes de nossas percepções mais instantâneas; segundo, o motif de Bartas é puro em material e em conteúdo – só há luz, rostos, movimentos e sentimentos.

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Abre-se o filme com a mansão, a luz e a voz de um homem que denuncia, amargurado e sereno, o distanciamento emocional que teve com a mãe (também a pátria?), em carta direcionada à mesma. Ironicamente, após um desfile de pombos burgueses banhados em luz quase sobrenatural e divina, o primeiro ato humano em cena é acordar. Acordar para onde, quando tudo o que se segue está mais próximo de uma emulsão de líquidos inconscientes? Mas não seria este o verdadeiro despertar? A questão é que as assombrações que percorrem os cômodos da casa nunca foram tão humanas, por mais ausentes que pareçam. Aliás, talvez a própria ausência constitua os fios que as colocam em movimento. Como o homem cuja jaqueta está revestida de jornais velhos e que seleciona páginas de livros a serem queimadas, é o horror da história lituana que queria ser esquecida.

Se, em entrevista, Sharunas assume que aquilo que mais busca é o simples, embora este agora requeira força moral, tempo e esforço, por que não assumir que a casa de seu filme seja antes o invólucro, a jornada em que somos lançados, a despeito de nossa vontade, para enfrentar as quimeras do simples – o tempo, a memória, a família, o desejo -, e que  os barulhos que a casa provoca à distância estão ali para lembrar que existe algo além daquilo que vemos e ouvimos (que nos permitimos ver e ouvir, na verdade), preso em quartos, atravessando corredores e empurrando caminho através das janelas de nossas subdesenvolvidas sensações e percepções.

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A trajetória de Bartas está mais próxima, ou tangencia tanto quanto, do cinema de Marguerite Duras do que aquele realizado por Tarkovsky ou Béla Tarr. É certo que a filosofia quase marasmática possa estar impregnada na imagem e que, diferente da experiência da francesa, exacerbadamente verbal, os passeios pela  casa tenham o silêncio como força motriz, mas há algo ali que remete constantemente ao peso do tempo, maçante e invencível, como testemunha a mulher que, ajoelhada e nua ao lado de uma porta, parece perseguida pela imagem da criança correndo, quem sabe o doce símbolo da sua infância feliz. O protagonista se deita em meio a jovens nuas, hespérides guardiãs de um jardim que só floresceu ao final e cujos frutos de ouro são a própria passagem desse tempo – ou pelo menos seriam, não houvesse tanto pessimismo n’A Casa. E os idosos que a povoam tem rostos marcados, olhos calejados porém vivos em excesso. Seriam mesmo assombrações? Duras escreveu: ”muito cedo na minha vida ficou tarde demais.” Sua herança, como a de Bartas, é esse espaço de vida cristalizado.

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Rua Secreta (Vivian Qu, 2013)

Por Pedro Tavares

Em entrevista a Grazia Paganelli, então programadora do Museu de Cinema de Turim publicada em Sinais de Vida: Werner Herzog e o Cinema (Indie Lisboa 70, 2008), Werner Herzog comenta sobre a principal percepção de Fata Morgana (1971): “Para recordar”. Tal afirmação partiu de uma sugestão de Grazia sobre o filme: o que os olhos vêem e o que imaginam são dois caminhos diferentes. Em casos de registro de um estado de espírito, seja ele de um local, grupo ou apenas um personagem, pouco influenciaria a cronologia ou a quantidade de arcos narrativos ou subterfúgios dados ao padrão de simbolismos quando se trata de uma experiência metafísica. Rua Secreta é um caso de estrutura que se toma consciência à medida que este espírito é revelado. Este espectro é apresentado de forma que a política é parte indivisível das coisas e que a corrupção estará na direção do olhar (a cidade como nossa extensão), mesmo que o objetivo de uma vida seja fugir desta entidade.

Desta forma é feita a transposição das ruas da China para um microorganismo – uma torta espécie de gangue –  cujo valorização do que se vê está atrelado ao diálogo direto com gêneros cinematográficos. Rua Secreta é, em síntese, feito de associações, justificado pela transformação de um roteiro linear em híbrido hermenêutico ao habitual escape da própria vida quando a colocamos em risco, diariamente, sem percebermos. Para isso, o filme de Vivian Qu, adormece esta percepção com outro diálogo ligado à essência e que transpassa a rotina com desejos de intensidades diversas. Um paradoxo ligado às mutações cabíveis muito mais ao roteiro que às emoções do dia-a-dia, e por isso, Rua Secreta é um filme que sobrevive na superfície.

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Há a simetria para que Rua Secreta seja um filme de gangsteres, um romance inflado e ainda que contido, um discurso social. Um jogo comum e batido sobre o que se vê e o que se entende, como afirmara Grazia Paganelli, quando boa parte do que é visto aqui é colocado às avessas a cada “mudança de gênero”. Inevitável é à associação ao discurso social em função de um tipo de panorama apressado mas suficiente para a noção de quem e como governa o país. Tudo passará por um “crivo”, este que sempre terá o poder e o dinheiro como balança. Um serviço a queda de mitos aos quais nossos olhos estão acostumados a ver a cada esquina. Este olhar, objetivo, afirma que pouco importa o local; trata-se de um diagnóstico geral e extremamente pessimista.

E demorará para a tênue linha de equilíbrio narrativo ser transformada em decoração. O que em algum momento foi narrativa é logo transmutado para uma espécie de montes complementares, ou, como é dito e cabível a este, uma teia, um quebra-cabeça, quando todos seus elementos são exibidos. O fim do mistério do tal espírito, por fim, leva ao que mais importante Rua Secreta guarda: o diálogo com que há na tradição do cinema chinês contemporâneo (Jia Zhang-Ke, Wong Kar-Wai e Hou Hsiao-Hsien, em especial). É o fim da zona de conforto e da mudança em função da mobilidade que interessou a Vivian Qu.

O filme, por fim, está debruçado em um tipo de controle da História, de um sintoma geral (o desespero) aplicado às convenções, dadas as proporções, aos cineastas citados. Se vive na inospitalidade de Em Busca da Vida, se deseja como 2046 e sonha como Café Lumière. Porém, não há espaço para discutir a memória em Rua Secreta. Há, no máximo, o instinto de sobrevivência, quando, enfim, o que está diante de nossos olhos, diariamente, é transformada em ameaça – nem constatação ou imaginação. O passado, está incrustado nas interferências e desconfortos de uma cidade (nunca identificada) que reverbera todas as ruas do mundo, que necessitam de uma reação – antes mesmo de enxergarmos ou respirarmos estas ruas.

 

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Enquanto Somos Jovens (Noah Baumbach, 2015)

Por Fábio Feldman

Por mais variada que seja sua obra, há um ponto que me parece unir quase todos os filmes de Noah Baumbach (com a possível exceção de Mr. Jealousy): o fato de representarem contextos na vida de personagens em que estes se encontram absolutamente perdidos, incapazes de se relacionar de modo saudável com o entorno e com seus semelhantes. Em Tempo de decisão, estréia de Baumbach atrás das câmeras, um grupo de jovens universitários recém-graduados enfrenta um estado coletivo de paralisia, tornando-os incapazes de dar o passo definitivo rumo à vida adulta. Ambos, A lula e a baleia e Margot e o casamento, apresentam famílias problemáticas, em momentos nos quais todas as regras e hierarquias geralmente atribuídas ao ambiente familiar são dolorosamente subvertidas – adultos perdem ciência de suas obrigações e se portam como crianças, crianças assumem responsabilidades adultas para as quais não estão preparadas. Os estudos de personagem que seguem, Greenberg (título incompreensivelmente traduzido no Brasil como O solteirão…) e Frances Ha, com todas as suas divergências estilísticas e de tom, se abrem, igualmente, ao exame da vida de figuras desconectadas das demandas impostas pelo jogo social, tentando encontrar um caminho para fora do limbo em que foram projetadas.

Ora, não é surpresa, portanto, que Enquanto somos jovens se enquadre, de certa forma, dentro desse universo. Mesmo que se valendo de um humor mais aberto (menos “deadpan”) e de uma estrutura um pouco mais orientada para a trama do que seus antecessores – sendo, portanto, o mais acessível dos filmes de seu autor –, ele é, indiscutivelmente, um filme de seu autor.  Josh (Ben Stiller) e Cornelia (Naomi Watts) formam o casal de protagonistas, representantes da Geração X lutando para se adaptar às exigências da contemporaneidade. Diferentemente dos amigos que constituíram famílias e parecem à vontade em seus papéis de adultos responsáveis, eles seguem, sem filhos ou notáveis realizações profissionais, à deriva. É nesse contexto que conhecem um casal de hipsters, Jamie (Adam Driver) e Darby (Amanda Seyfried). Impressionados pelo estilo despojado de vida dos dois, Josh e Cornelia se aproximam deles, sendo, conseqüentemente, contaminados por seus maneirismos e suas escolhas (vocabulares, comportamentais, de vestuário). A forma como os jovens escarnecem de qualquer senso de hierarquização, a um só tempo valorizando cinéma vérité e Rocky 3;  a tendência de permanecerem “no momento”, expressando uma identidade que pode ser definida tanto como infantil quanto como zen; o modo de que se valem, indistintamente, de todo tipo de memorabilia, transformando seu lar num museu de tudo – essas e outras características não apenas fascinam o casal de ex-yuppies, como os inspiram. Obviamente, eles não notam que, por detrás de todo o despojamento e liberdade, desponta uma dose significativa de cálculo, narcisismo e ambição.

O primeiro ato do filme nos leva a concebê-lo como uma comédia de situação na qual o mote é o descompasso entre os dois casais. O humor advém, sobretudo, da incapacidade da dupla central de se manter confortavelmente dentro do espaço para o qual resolveu migrar (destaque para a cena em que Cornelia, desastradamente, aprende a dançar hip-hop, e a em que uma crise de artrite é estimulada em Josh por um passeio de bicicleta). É aí em que sinto que o filme se encontra mais à vontade. Muitos foram os críticos que estabeleceram paralelos entre Enquanto somos jovens e Crimes e pecados, de Woody Allen, obra com que divide óbvias similitudes conteudísticas. Entretanto, quando penso nos trechos mais felizes do longa de Baumbach, é Lubistch que me vem à mente. Como o grande autor de Ser ou não ser, o diretor americano tem talento para fazer emergir o estranho do cotidiano, de forma, simultaneamente, terna e ácida. Toda a memorável seqüência em que os dois casais, acompanhados por outros jovens e um guru, experimentam ayahuasca, parece remeter ao universo das comédias malucas, nas quais os personagens, enquanto lidando com uma porção de absurdos desafios objetivos, ainda precisam lutar contra demônios internos – quase todos relacionados a sexo e à penosa tarefa de se construir uma identidade. Negando-se a seguir os passos de Wes Anderson – cujas obras são bastante comparadas às do mestre alemão do screwball –, Baumbach constrói um filme formalmente sóbrio, optando por representar o frenesi que embala as relações não através de complexas estratégias visuais, mas da análise daqueles que as protagonizam. É capaz, assim, de conduzir seqüências de enorme frescor, carregadas de ecos daquele típico “Lubitsch touch”. Boa parte do sucesso de tais momentos se deve também, é importante salientar, ao notável talento cômico de Stiller e Watts.

Outro nome que me ocorre quando reflito sobre o filme é o de Judd Apatow. A referência pode parecer estranha, haja vista o currículo de Baumbach e sua obsessão com o cinema europeu dito “de arte”. Porém, apesar da quantidade enorme de temas e idéias a que Enquanto somos jovens remete, acredito não ser absurdo defender que, em boa parte de sua duração, ele se firma como uma espécie de bromance. Ora, ainda que uma genealogia deste subgênero possa nos conduzir aos primórdios do cinema, creio que, hoje em dia, ninguém o representa tão bem quanto Apatow. E algo do que presenciamos em suas criações está no filme de Baumbach. O “romance” entre Josh e Jamie se assemelha, em certos aspectos, àquele vivenciado pelos melhores personagens apatownianos: é carregado de ternura, melancolia e potencialidades cômicas. Há uma diferença, contudo: enquanto o amor em Apatow é resultado de um forte “male bonding”, possuindo sólidas raízes na experiência compartilhada, em Enquanto somos jovens ele é, sobretudo, fruto de idealização. Curioso pensar, sob tal chave, o quanto as obras de Apatow e a de Baumbach se aproximam (detalhe: o último filme daquele também se detém sobre os desafios de um casal enfrentando a crise da meia-idade) e o quanto se distanciam. Ambos são diretores interessados em explorar as particularidades e idiossincrasias de indivíduos comuns, indecisos sobre o rumo de suas vidas, muitas vezes incapazes de aceitar o peso da idade e as demandas da sociedade. Porém, enquanto Apatow foca na superfície, extraindo dela ramificações de natureza psicológica, Baumbach segue sustentando como principal interesse o exame de interstícios, projeções, lugares vazios carregados de sentido. O bromance apatowniano parte da pele para atingir o âmago; o baumbachiano, desde o início, se constitui a partir de virtualidades.

Dito tudo isso, devo admitir que vários pontos me incomodam no filme, quase todos associados à falta de coesão que o acomete. Inicialmente um devoto do artifício, Baumbach se afastou, ao longo dos anos, da facilidade dos roteiros “espertos”, excessivamente intertextuais e repletos de momentos de auto-consciência. Optou por trilhar um caminho mais maduro, no qual as grandes questões não precedem a existência dos personagens, mas, antes, são levantadas a partir do contato que estabelecemos com eles. Não concebo Enquanto somos jovens como um retorno à época de Tempo de decisão ou Mr. Jealousy, mas tampouco sinto ser um desdobramento natural de Greenberg e Frances Ha. Acredito imperar em diversas de suas partes uma supremacia do conceito sobre a ação – embora tal conceito nunca fique muito claro. Por mais sociologicamente orientada que possa ser em alguns momentos, grande indefinição percorre a obra: seria ela uma sátira, uma comédia de situação, ou um estudo de natureza dramática permeado por momentos cômicos? A co-existência de caminhos contrastantes, várias vezes, pode redundar em uma síntese satisfatória – basta pensarmos, novamente, nas melhores dramédias de Apatow, ou mesmo em James L. Brooks.  Aqui, todavia, ela me parece compor um quadro, mais do que ambíguo, francamente confuso. Em alguns momentos, o filme se cola ao personagem de Stiller, transformando-o em seu porta-voz. Em outros, se cinde dele, a fim de apresentar um quadro mais abrangente. Sua ânsia por denunciar a juventude novaiorquina como reflexo de um mundo cínico, dominado por sonhos fetichizados e ambição desregrada (em oposição àquele regido pela geração romântica que a precedeu), se choca, constantemente, com a idéia de que a geração romântica não era tão romântica assim e que o gap geracional é uma eterna caixa de Pandora, desafiando a compreensão mútua de tribos afastadas no tempo.

Ora, penso que se todos esses movimentos contraditórios remetessem diretamente ao personagem de Josh, o filme poderia funcionar bem. Contudo, a sensação que tenho é que muito da confusão que o assola em sua jornada de auto-descoberta, assola, simultaneamente, ao próprio filme. O que resta é um conjunto meio desforme de subtextos e leituras da realidade – algumas provocadoras e interessantes, outras óbvias e clicherizadas. Talvez tenha sido justamente esta a intenção de Baumbach: oferecer à audiência um retrato aberto e inconclusivo de um micro-conjunto de relações, capazes de nos levar a questionar todo um contexto mais amplo. Defendendo teses em um ponto, apenas para descreditá-las em seguida – talvez seja essa sua estratégia. Porém, a sensação que tive ao acompanhar os sinuosos caminhos da narrativa, presenciar a gradual perda de importância das personagens femininas (Cornelia, protagonista absoluta do primeiro ato, termina como uma apagada coadjuvante no último) e a pouco convincente guinada final em direção à metalinguagem e à defesa de um cinema documental mais “verdadeiro” – elevando um aparente McGuffin a uma condição algo central –, me leva a pensar em Truffaut e ao modo como se referiu à Marnie de Hitchcock. Um “grande filme doente” (bem, talvez, não tão grande assim), Enquanto somos jovens parte de um tema (o embate entre membros de uma tribo urbana afogada em artificialismos e afetações e de outra paralisada diante de um mundo que já não lhe oferece acesso ao que, um dia, ofereceu), para chegar a uma porção de outros, não optando pela defesa de qualquer ponto de vista – ou mesmo pela rejeição proposital de um ponto de vista. O desfecho é frouxo e algo frustrante. Mas, como em todos os filmes doentes de autores talentosos, o prazer proveniente do percurso que nos força a trilhar transcende, muitas vezes, suas próprias limitações. Vítima de excessos, pode não ser o melhor filmes de Baumbach, mas é, ainda assim, um belo filme de Baumbach.

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História Escrita com Água (Yoshishige Yoshida, 1965)

Por Felipe Leal

Quase toda a implicância dos gestos políticos depende de um referencial muito delicado. Dizer que uma das erupções que o movimento das novas ondas no cinema provocou foi o desvelamento, ou antes um novo tratamento, de conteúdos tão particulares quanto do domínio geral, anteriormente impronunciáveis, pode ser superficial, mas aí, também, encontramos certos resíduos de uma verdade. É que o peso de tratar o sexo, a política e as instituições mais tradicionais da forma que os japoneses o fizeram me parece cair no infeliz paradoxo do conjunto de uma obra cuja significância foi tão monumental quanto (ainda) pouco compreendida – e sequer conhecida. Não é que ela possua maior pujança pelos atributos revolucionários que experimentou perante uma sociedade tradicional e complexa, mas é inegável a aliança entre a provocação pelo agenciamento conteudístico e o absurdo rigor estético a que toda uma geração de cineastas se entregou. Quer simpatizem com uma terminologia – Nuberu Bagu – imposta exteriormente ou não, o impacto da proximidade existiu, e seu emaranhado de conexões resultou numa das filmografias mais importantes para o cinema.

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Como cidadãos políticos, como seres imersos em uma cultura intricada ou como alvos, eles mesmos, das sexualidades sobre as quais discursam – tudo parece emprestar propriedade a cineastas como Teshighara, Oshima, Suzuki e Imamura, mas até que ponto a figura da mulher tem validade nesses cinemas, considerando que o olhar sobre elas parte de uma particularidade que, ainda que investigativa, é masculina? Escrita e filmada, a resposta de Yoshishige Yoshida foi: ”não é possível que as mulheres pensem que o sexo é um indicativo de sua força; que transar, para elas, é um veículo de expressar esse poder”. Quando se desvencilha, em 65, dos estúdios da Shochiku para conceber História Escrita com Água (Mizu de Kakatera Monogatari), Yoshida foi além do passo inicial transgressor e forneceu à figura mais simbólica e enigmática de uma cultura o espaço de se construir – utilizando-se ostensivamente, aliás, de Mariko Okada, a própria esposa.

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Quando no mesmo espaço de tempo temos um filho desafiando a mãe a confirmar-lhe um caso extraconjugal que data da época em que seu pai padecia de tuberculose, e ela, num elaborado jogo de cena, ajoelha-se contra a luz e deixa criar, atrás de si, uma fantasmática sombra, há aí toda a síntese imagética da obra. Obra esta ancorada inteiramente no gesto: antes do Bergman de Sonata de Outono, temos a mãe que presenteia o filho com o próprio cordão umbilical que os uniu; antes de Greenaway, a água como metáfora para o terreno fluído, profundo e simbólico do amor e da maternidade (no Japão, cenas de amor também são traduzidas como ”cenas molhadas”). Se para Camille Paglia a independência da mãe é a primeira e mais importante conquista para o homem, o filme de Yoshida é também a representação deste ensaio. Em fluxos sensíveis de consciência e tempo, reconstruímos a experiência de Shizuo a partir da infância. Na abundância de ângulos em que a mãe é capturada, por extensão, assim fragmentado também se dá o vínculo entre mãe e filho. Yoshida parece beber do cálice de Nicholas Ray e aferra-se ao signo como recurso.

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Imersos nas coreografias de uma gestualidade que encontra ânimo na sutileza e na sensualidade dos corpos – sempre modificados, claro, pela luz -, eros e thanatos se entrelaçam nos abraços e impossibilidades do toque. Shizuo parece não poder consumar o amor com a esposa até que algo seja sacrificado entre mãe e filho. Em um instante impenetrável e quase sagrado, semelhante ao acolhimento de Bibi Andersson por Liv Ullmann em Persona, ele propõe que os dois morram ingerindo comprimidos, ao que se deita na barriga da mãe e a imagem então assume movimentos pendulares. Como significar, então, essas oscilações? O espaço do cinema é um de referências e implementações inconscientes. Por mais escorregadia que possa se tornar a tarefa da atribuição, também seria quase criminoso não perceber os movimentos que constituem um legado fílmico, dentro de e a partir das costuras em que todo o campo cinetográfico vem tomando forma. Felizmente, haverá algo de maneirista e de inaugural na genialidade.

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Código de Sangue (Malcolm Venville, 2009)

Por Virgilio Souza

Existem dezenas de elementos para explicar o fato de 44 Inch Chest (lançado timidamente em home video como Código de Sangue) ter sido absolutamente ignorado desde seu lançamento. Ao mesmo tempo, há uma série de razões para que a obra sobreviva, sendo possível crer na sua redescoberta por uma parcela da crítica, mesmo que pequena, mais interessada no que os responsáveis pelo roteiro do elogiado Sexy Beast podem oferecer. Também escrito por Louis Mellis e David Scinto, o filme explora o mesmo universo genérico de crime e violência, mas investe em traços que o tornam um corpo estranho, distinto e fascinante. Se no longa anterior da dupla interessava mais o olhar de Jonathan Glazer, ligado a um trabalho muito cuidadoso de composição e cores, aqui parece haver uma rejeição à estilização por parte de seu diretor, Malcolm Venville, no que configura uma decisão de incorporar o caráter direto e objetivo da trama ao seu aspecto visual. Há um entendimento de que emoções e tensões estão inscritas nos movimentos do corpo, o que direciona a atenção à linguagem corporal de uma maneira bastante crua, dada pela observação constante dos personagens, buscando os pontos de harmonia e desarmonia entre postura e fala.

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Nesse sentido, o que se vê é uma espécie de ensaio, quase teatro filmado, construído através da simplicidade da locação única e de movimentos quase invisíveis de câmera, deslocados apenas na montagem, que provoca saltos de planos abertos em direção aos rostos para explicitar os momentos de maior intensidade em seus discursos. A reunião do quinteto de sujeitos ocorre também sem desvios, estabelecida em não mais que um par de cenas: Colin (Ray Winstone) é traído pela esposa e seus amigos mais próximos decidem ajudá-lo sequestrando o amante, um garçom anos mais jovem. Mais do que promover um estudo de personagem ou das circunstâncias, o filme se dedica a explorar seus arquétipos e suas reações ao evento central e à desgraça do protagonista. Meredith (Ian McShane) e Peanut (John Hurt) divergem em postura e tom, como duas faces de uma mesma moeda. São ambos verborrágicos e descritivos, mas variam entre a serenidade e a brutalidade — o fato de serem, respectivamente, homossexual e homofóbico é um dos componentes desta dicotomia. Archie (Tom Wilkinson), um coitado que vive com a mãe, é instrumental tanto para o acesso de raiva do protagonista quanto para dimensionar sua tragédia. Finalmente, Mal (Stephen Dillane) se porta como a versão aproximada do rapaz que arruinou a vida de Colin, um homem charmoso, sedutor e que, no limite, poderia vir a ser uma ameaça.

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De certo modo, o filme se distancia de seus pares, sobretudo de Guy Ritchie e cia, por investir na urgência do texto em vez de se dedicar a uma estilização espertinha e outras pirotecnias visuais. Guardadas as devidas proporções, a forma como os cinco interagem remete a uma versão britânica e mais frontalmente agressiva de Cormac McCarthy, que indica de partida a possibilidade de explosão e passa a lidar com a agonia da espera por todo o tempo que resta. A catarse, porém, não ocorre por meio de trocas de balas ou golpes, mas também através do discurso, sempre enunciado em um tom mais elevado: Winstone e Hurt emendam dois monólogos absurdos sobre o significado e os riscos de amar uma mulher (o primeiro diz que “Love can be murder”, enquanto o segundo afirma, ao seu modo, que Sansão perdeu tudo por causa de Dalila — “all because of a woman”).

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Essa crescente em direção a um ponto alto que se estabelece aquém do grau de violência que o texto parece indicar talvez seja o maior mérito de Mellis e Scinto, pois permite pequenos instantes de grandiosidade em meio a uma estrutura bastante controlada. Venville, por sua vez, é hábil ao se valer do gesto bruto e silencioso, não necessariamente exclamativo, em um filme tão dependente do diálogo. O poder do gestual observado sem distrações e firulas de câmera cria um segundo filme, que frequentemente reforça, mas por vezes subverte, o que é dito em voz alta. Deriva daí este outro nível de análise, em que não importam somente os jogos de palavras, mas também a relação entre eles e os corpos, o que torna fundamental a movimentação, a postura e os fluxos de entrada e saída dos atores de cena — uma teatralidade explícita e muito bem construída a serviço do cinema.

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Corrente do Mal (David Robert Mitchell, 2014)

Por Luis Henrique Boaventura

Ao erguer sua alegoria anacrônica da corrosão da juventude americana, terminal, numa Detroit suburbana cansada e quase fantasma, David Robert Mitchell faz retornar o medo à categoria de grande objeto linguístico do cinema fantástico americano. Não a razão para o medo, seu gatilho, mas a própria fundação do sentimento. Como se sabe, o terror elementar na mitologia americana, não importa quantas vezes reencarnado (se em Lynch, em Ferrara, Craven ou Dante; ou em uma dúzia de outros Carpenters além de Halloween), não está no distúrbio da ordem em si, mas na sua antecipação, no medo pelo medo da implosão de um modo de vida (ainda que imaginário, enquanto fantasia que carece de expurgação). Em Halloween (de todos, o par mais próximo do filme de Mitchell), Carpenter não cede à paranoia da ameaça estrangeira (planta baixa para o fetiche americano pelo terror alienígena dos anos 50, repisado mais tarde por Ridley Scott e pelo próprio Carpenter), pelo contrário, essa força age de dentro para fora: Myers mata a irmã, um crime singular no contexto da saga não apenas por ser o pecado original do pequeno Mike, mas por ser o único com justificativa plausível, momento em que Myers mata por motivação outra além da força-motriz imparável que o define. Ele pesa o ato da irmã e a condena à morte num julgamento que espelha a voracidade social por correção de comportamento. Está tombado o núcleo familiar pelos mesmos agentes que o americano, geração após a outra, falha em compreender: os jovens e o sexo.

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O sexo é o signo clássico do mau presságio no cinema de horror. Foi Mario Bava que, ao atribuir pujança erótica à hora da morte em Seis Mulheres Para o Assassino, inaugurou no sexo e no corpo feminino as preliminares para o assassinato como a manifestação estética máxima do gênero através da desconstrução do ato e do corpo (mais que frequentemente os amantes são pegos mid-coitus ou imediatamente após). Não se trata de destruir o sublime em detrimento do grotesco (já que estamos nesta página), mas senão de substituir uma beleza (essa da petite mort) pela outra, maior (o gozo total, da morte levada a cabo efetivamente). Ao usar o sexo para passar adiante sua maldição, Corrente do Mal segue a pista do giallo e do slasher, claro, embora sem consagrar nem o momento da morte e nem o do sexo, mas o espaço entre ambos, e mais: a decisão egoísta do já amaldiçoado em transmitir a praga e a decisão dos que de bom grado se voluntariam para o sacrifício de recebê-la.

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A força do horror em Corrente do Mal está apoiada sobre estes dois argumentos: o fato de que o monstro nunca para (aonde quer que se esteja no mundo ele estará caminhando — muito lentamente — na sua direção, ameaça projetada da extremidade do fora de campo); e o isolamento daquele que é “seguido” por ser o único capaz de vê-lo, o que torna a vigília dos seus amigos inútil a não ser que se escolha amaldiçoá-los também. E este me parece mais terrível que o primeiro. Não se trata apenas de estar sentenciado para sempre à agitação da fuga (toda casa, gramado, rua em que se entra em breve será deixada para trás; todos os lugares são passageiros e despojados de expectativa), mas de estar forçado à seguinte escolha: se isolar e morrer sozinho ou envolver — e condenar — as pessoas que se ama.

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Jay ama Yara, Kelly, Paul e Greg. Os cinco amigos parecem as únicas pessoas vivas nessa Detroit assombrada e decadente quando ligados pelo tempo vadio da adolescência, um onde/quando em que tudo é por demais sonífero e vagaroso e que transforma figuras paternas em estranhos surdos para os problemas que nessa idade não dispõem de tradução certa para a linguagem adulta (vide a forma tomada pelo monstro no embate final). Corrente do Mal se esvaziaria de sua verdadeira potência se Mitchell (o diretor já exercitou o tema em The Myth of the American Sleepover, sua estreia) não empreendesse todo o tempo necessário na construção das relações entre os garotos e no modo como eles percorrem juntos os espaços que o filme encontra e logo abandona quando se assume em seus meados como road movie, o que faz do pequeno trecho em que todos estão no carro a caminho da casa no lago um momento simples e belo. Não há outra família que não aquela do carro para se deixar para trás, ou tampouco um contento social lá muito significativo (são pouquíssimos os elementos capazes de indiciar mais ou menos a linha temporal, como o reader em forma de concha usado por Yara, que sequer existe na realidade), o que faz da necessidade de movimento uma ferida que já nasce dormente.

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O jovem que é cria dessa cultura do nascendo morimur, da expiação da culpa dos seus pais e dos pais destes, da data de validade expirada e da falência anunciada e irremediável — este é o personagem em todos os personagens de Corrente do Mal, condenados à mobilidade incessante e à orfandade de um território seu, à não-identidade por não haver modelo válido para se apreender no mundo externo ao seu pequeno círculo. Que o monstro eventualmente mate sua vítima é incidental diante da condição de fuga que ele impõe aos que são tocados e transformados em errantes, impossibilitados de ocupar e viver em um lugar determinado. Por isso é preciso redescobrir o lar americano para além do espaço de coisas como a grama, o passeio e as cercas brancas; é preciso encontrar casa nas pessoas. Como expresso no ato de Paul. Refundar o sonho sobre o sacrifício último por amor, já que o medo é invencível e viver para ele é apenas uma forma mais lenta e pungente de morte.

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Top Girl ou a Deformação Profissional (Tatjana Turanskyj, 2014)

Por Arthur Tuoto

Top Girl ou a Deformação Profissional é um filme muito mais sobre os entornos de uma certa política do mercado do sexo do que exatamente um trabalho que se debruça sobre o ato sexual em si. Se o filme de Tatjana Turanskyj remete, em algum sentindo, a Ninfomaníaca (2013) ou até a  Cinquenta Tons de Cinza (2015), é muito mais por uma aparente aproximação temática que no fim das contas nem é tão próxima assim. Claro que, invariavelmente, o filme acaba refletindo sobre o ato em si, sobre a performatividade do ato sexual que acaba evidenciando algumas ambiguidades implícitas em qualquer relação íntima. Mas fica bem claro, desde o início, que o que está em jogo aqui, é, acima de tudo, uma problematização social. E, nesse sentido, o filme é sempre muito direto ao elaborar suas questões.

Tatjana Turanskyj parte de uma abordagem essencialmente doméstica para situar o drama de Helena, uma mãe solteira e acompanhante na indústria do sexo. É revelador como o jogo de intimidades que a câmera articula com o espaço vai muito além do ambiente sexual em si. As cenas de Helena com sua filha, ou com sua mãe, conseguem intuir toda uma delicadeza muito fraternal, uma delicadeza que tem nesse laço matriarcal uma base afetiva muito sólida . Um dos pontos fortes do filme é como a diretora situa toda uma geração de mulheres dentro de um círculo familiar pequeno, cada uma com suas particularidades, desejos e incertezas. Sempre com um apreço pela liberdade, especialmente nas figuras de Helena e da sua mãe.

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Desse jogo de intimidades domésticas, que é sempre muito oportuno, nasce uma ambiguidade entre esse espaço que se habita e o espaço que se transa. A relação de Helena com o homem que teoricamente paga pelo apartamento que ela vive é crucial nesse sentido. As sujeiras que ficam, os rastros dos encontros sexuais. Tudo vai se contaminando nesse ambiente caseiro, esse lar que se confunde com ambiente de tralho. Mesmo o fato do filme ser composto geralmente por planos mais próximos, o que cria uma sensação genérica em relação aos ambientes, já que em alguns momentos nem sabemos exatamente aonde estamos, reitera essa política ambígua do espaço. Como se nenhum ambiente ali fosse exatamente sagrado, tudo é uma propriedade. O caminho natural das coisas é a objetificação, daí nasce a resistência.

Além dessa dinâmica da intimidade nos espaços internos, muito da relação cênica do filme de  Turanskyj nasce de uma nítida tradição com a performance. Mesmo nas cenas mais comuns e cotidianas, existe uma marcação muito clara, uma relação entre câmera e corpo que alia a funcionalidade dramática da mise-en-scène com um posicionamento corporal mais alegórico e simbólico. Seja na dinâmica um pouco teatral das colegas de Helena no escritório da agência, seja nas cenas em que a relação sexual e a dinâmica de dominação são o foco. No que diz respeito as fantasias masculinas isso é ainda mais claro, já que mesmo o mais dos inocentes gestos, nesse caso, pode esconder uma agressividade que é implícita no gênero. Ou implícita já dentro de uma tradição interpessoal entre homem e mulher.

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Toda a sequência final do filme, quando os homens armados saem em busca da mulheres nuas,  como caçadores em busca de suas presas, talvez seja uma das cenas mais diretamente sugestivas nesse sentido. Uma caçada simbólica que concilia muito bem o poder alegórico da performance com uma tensão francamente cinematográfica, quase um cena de guerra. E é justamente aqui onde o filme melhor articula essa sua vocação problematizadora de gênero. A dinâmica pode até soar um pouco óbvia, mas é encenada com tamanha impiedade que ganha uma força indiscutível.

É importante lembrar que mesmo dentro desse flerte mais alegórico, o filme não está nenhum pouco interessado em  romantizar a prostituição ou o BDSM.  Pelo contrário, as cena de dominação são quase desoladoras. A profissional do sexo é retratada como uma assalariada, que além de sofrer com todos os problemas de praxe de qualquer trabalhador, precisa tolerar uma série de questões específicas da sua profissão. A cena final, após a caçada, quando Helena veste uma roupa mística preta, não deixar de ser como um luto simbólico dessa problematização. Uma reverência que nunca é resignativa, mas de uma constante obstinação.

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