Enquanto Somos Jovens (Noah Baumbach, 2015)

Por Fábio Feldman

Por mais variada que seja sua obra, há um ponto que me parece unir quase todos os filmes de Noah Baumbach (com a possível exceção de Mr. Jealousy): o fato de representarem contextos na vida de personagens em que estes se encontram absolutamente perdidos, incapazes de se relacionar de modo saudável com o entorno e com seus semelhantes. Em Tempo de decisão, estréia de Baumbach atrás das câmeras, um grupo de jovens universitários recém-graduados enfrenta um estado coletivo de paralisia, tornando-os incapazes de dar o passo definitivo rumo à vida adulta. Ambos, A lula e a baleia e Margot e o casamento, apresentam famílias problemáticas, em momentos nos quais todas as regras e hierarquias geralmente atribuídas ao ambiente familiar são dolorosamente subvertidas – adultos perdem ciência de suas obrigações e se portam como crianças, crianças assumem responsabilidades adultas para as quais não estão preparadas. Os estudos de personagem que seguem, Greenberg (título incompreensivelmente traduzido no Brasil como O solteirão…) e Frances Ha, com todas as suas divergências estilísticas e de tom, se abrem, igualmente, ao exame da vida de figuras desconectadas das demandas impostas pelo jogo social, tentando encontrar um caminho para fora do limbo em que foram projetadas.

Ora, não é surpresa, portanto, que Enquanto somos jovens se enquadre, de certa forma, dentro desse universo. Mesmo que se valendo de um humor mais aberto (menos “deadpan”) e de uma estrutura um pouco mais orientada para a trama do que seus antecessores – sendo, portanto, o mais acessível dos filmes de seu autor –, ele é, indiscutivelmente, um filme de seu autor.  Josh (Ben Stiller) e Cornelia (Naomi Watts) formam o casal de protagonistas, representantes da Geração X lutando para se adaptar às exigências da contemporaneidade. Diferentemente dos amigos que constituíram famílias e parecem à vontade em seus papéis de adultos responsáveis, eles seguem, sem filhos ou notáveis realizações profissionais, à deriva. É nesse contexto que conhecem um casal de hipsters, Jamie (Adam Driver) e Darby (Amanda Seyfried). Impressionados pelo estilo despojado de vida dos dois, Josh e Cornelia se aproximam deles, sendo, conseqüentemente, contaminados por seus maneirismos e suas escolhas (vocabulares, comportamentais, de vestuário). A forma como os jovens escarnecem de qualquer senso de hierarquização, a um só tempo valorizando cinéma vérité e Rocky 3;  a tendência de permanecerem “no momento”, expressando uma identidade que pode ser definida tanto como infantil quanto como zen; o modo de que se valem, indistintamente, de todo tipo de memorabilia, transformando seu lar num museu de tudo – essas e outras características não apenas fascinam o casal de ex-yuppies, como os inspiram. Obviamente, eles não notam que, por detrás de todo o despojamento e liberdade, desponta uma dose significativa de cálculo, narcisismo e ambição.

O primeiro ato do filme nos leva a concebê-lo como uma comédia de situação na qual o mote é o descompasso entre os dois casais. O humor advém, sobretudo, da incapacidade da dupla central de se manter confortavelmente dentro do espaço para o qual resolveu migrar (destaque para a cena em que Cornelia, desastradamente, aprende a dançar hip-hop, e a em que uma crise de artrite é estimulada em Josh por um passeio de bicicleta). É aí em que sinto que o filme se encontra mais à vontade. Muitos foram os críticos que estabeleceram paralelos entre Enquanto somos jovens e Crimes e pecados, de Woody Allen, obra com que divide óbvias similitudes conteudísticas. Entretanto, quando penso nos trechos mais felizes do longa de Baumbach, é Lubistch que me vem à mente. Como o grande autor de Ser ou não ser, o diretor americano tem talento para fazer emergir o estranho do cotidiano, de forma, simultaneamente, terna e ácida. Toda a memorável seqüência em que os dois casais, acompanhados por outros jovens e um guru, experimentam ayahuasca, parece remeter ao universo das comédias malucas, nas quais os personagens, enquanto lidando com uma porção de absurdos desafios objetivos, ainda precisam lutar contra demônios internos – quase todos relacionados a sexo e à penosa tarefa de se construir uma identidade. Negando-se a seguir os passos de Wes Anderson – cujas obras são bastante comparadas às do mestre alemão do screwball –, Baumbach constrói um filme formalmente sóbrio, optando por representar o frenesi que embala as relações não através de complexas estratégias visuais, mas da análise daqueles que as protagonizam. É capaz, assim, de conduzir seqüências de enorme frescor, carregadas de ecos daquele típico “Lubitsch touch”. Boa parte do sucesso de tais momentos se deve também, é importante salientar, ao notável talento cômico de Stiller e Watts.

Outro nome que me ocorre quando reflito sobre o filme é o de Judd Apatow. A referência pode parecer estranha, haja vista o currículo de Baumbach e sua obsessão com o cinema europeu dito “de arte”. Porém, apesar da quantidade enorme de temas e idéias a que Enquanto somos jovens remete, acredito não ser absurdo defender que, em boa parte de sua duração, ele se firma como uma espécie de bromance. Ora, ainda que uma genealogia deste subgênero possa nos conduzir aos primórdios do cinema, creio que, hoje em dia, ninguém o representa tão bem quanto Apatow. E algo do que presenciamos em suas criações está no filme de Baumbach. O “romance” entre Josh e Jamie se assemelha, em certos aspectos, àquele vivenciado pelos melhores personagens apatownianos: é carregado de ternura, melancolia e potencialidades cômicas. Há uma diferença, contudo: enquanto o amor em Apatow é resultado de um forte “male bonding”, possuindo sólidas raízes na experiência compartilhada, em Enquanto somos jovens ele é, sobretudo, fruto de idealização. Curioso pensar, sob tal chave, o quanto as obras de Apatow e a de Baumbach se aproximam (detalhe: o último filme daquele também se detém sobre os desafios de um casal enfrentando a crise da meia-idade) e o quanto se distanciam. Ambos são diretores interessados em explorar as particularidades e idiossincrasias de indivíduos comuns, indecisos sobre o rumo de suas vidas, muitas vezes incapazes de aceitar o peso da idade e as demandas da sociedade. Porém, enquanto Apatow foca na superfície, extraindo dela ramificações de natureza psicológica, Baumbach segue sustentando como principal interesse o exame de interstícios, projeções, lugares vazios carregados de sentido. O bromance apatowniano parte da pele para atingir o âmago; o baumbachiano, desde o início, se constitui a partir de virtualidades.

Dito tudo isso, devo admitir que vários pontos me incomodam no filme, quase todos associados à falta de coesão que o acomete. Inicialmente um devoto do artifício, Baumbach se afastou, ao longo dos anos, da facilidade dos roteiros “espertos”, excessivamente intertextuais e repletos de momentos de auto-consciência. Optou por trilhar um caminho mais maduro, no qual as grandes questões não precedem a existência dos personagens, mas, antes, são levantadas a partir do contato que estabelecemos com eles. Não concebo Enquanto somos jovens como um retorno à época de Tempo de decisão ou Mr. Jealousy, mas tampouco sinto ser um desdobramento natural de Greenberg e Frances Ha. Acredito imperar em diversas de suas partes uma supremacia do conceito sobre a ação – embora tal conceito nunca fique muito claro. Por mais sociologicamente orientada que possa ser em alguns momentos, grande indefinição percorre a obra: seria ela uma sátira, uma comédia de situação, ou um estudo de natureza dramática permeado por momentos cômicos? A co-existência de caminhos contrastantes, várias vezes, pode redundar em uma síntese satisfatória – basta pensarmos, novamente, nas melhores dramédias de Apatow, ou mesmo em James L. Brooks.  Aqui, todavia, ela me parece compor um quadro, mais do que ambíguo, francamente confuso. Em alguns momentos, o filme se cola ao personagem de Stiller, transformando-o em seu porta-voz. Em outros, se cinde dele, a fim de apresentar um quadro mais abrangente. Sua ânsia por denunciar a juventude novaiorquina como reflexo de um mundo cínico, dominado por sonhos fetichizados e ambição desregrada (em oposição àquele regido pela geração romântica que a precedeu), se choca, constantemente, com a idéia de que a geração romântica não era tão romântica assim e que o gap geracional é uma eterna caixa de Pandora, desafiando a compreensão mútua de tribos afastadas no tempo.

Ora, penso que se todos esses movimentos contraditórios remetessem diretamente ao personagem de Josh, o filme poderia funcionar bem. Contudo, a sensação que tenho é que muito da confusão que o assola em sua jornada de auto-descoberta, assola, simultaneamente, ao próprio filme. O que resta é um conjunto meio desforme de subtextos e leituras da realidade – algumas provocadoras e interessantes, outras óbvias e clicherizadas. Talvez tenha sido justamente esta a intenção de Baumbach: oferecer à audiência um retrato aberto e inconclusivo de um micro-conjunto de relações, capazes de nos levar a questionar todo um contexto mais amplo. Defendendo teses em um ponto, apenas para descreditá-las em seguida – talvez seja essa sua estratégia. Porém, a sensação que tive ao acompanhar os sinuosos caminhos da narrativa, presenciar a gradual perda de importância das personagens femininas (Cornelia, protagonista absoluta do primeiro ato, termina como uma apagada coadjuvante no último) e a pouco convincente guinada final em direção à metalinguagem e à defesa de um cinema documental mais “verdadeiro” – elevando um aparente McGuffin a uma condição algo central –, me leva a pensar em Truffaut e ao modo como se referiu à Marnie de Hitchcock. Um “grande filme doente” (bem, talvez, não tão grande assim), Enquanto somos jovens parte de um tema (o embate entre membros de uma tribo urbana afogada em artificialismos e afetações e de outra paralisada diante de um mundo que já não lhe oferece acesso ao que, um dia, ofereceu), para chegar a uma porção de outros, não optando pela defesa de qualquer ponto de vista – ou mesmo pela rejeição proposital de um ponto de vista. O desfecho é frouxo e algo frustrante. Mas, como em todos os filmes doentes de autores talentosos, o prazer proveniente do percurso que nos força a trilhar transcende, muitas vezes, suas próprias limitações. Vítima de excessos, pode não ser o melhor filmes de Baumbach, mas é, ainda assim, um belo filme de Baumbach.

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