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O ENCONTRO DO CINEMA COM SEU ONIRISMO

PANDORA, OU A CHAVE DOS SONHOS

Texto traduzido da sexta edição (out-nov) dos Cahiers du Cinéma, 1951.

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Nós não podemos conter o sorriso, ainda que a voluptuosa mulher à esquerda de James Mason diga bem acima, no ecrã, tudo aquilo que já pensamos aqui embaixo: a saber, que tudo isso é de fato um pouco intenso: este piloto que precipita seu carro em direção ao mediterrâneo para provar seu amor a uma mulher, como outros o fariam comprando um buquê de rosas. Um pouco intensa, também, esta mulher que, súbito, de um minuto a outro, se lança ao mar, e logo depois, ainda completamente despida, à descoberta de um navio fantasma e sem tripulação, onde, sozinho, um jovem soturno dedica seu tempo a pintar quadros à maneira de Chirico[1]. E terá você alguma vez visto noites semelhantes, em que a escuridão passeia por todas as cores do arco-íris, com raios luminosos da lua que se arranjam, todos eles, somente para iluminar a figura radiosa de Ava Gardner?

Nós sorrimos e, depois, de assalto, experienciamos um belisco no coração: ele é tomado de vergonha repentina, e desejamos que a pessoa ao lado silencie. Que se cale de uma vez por todas: por que, se nem todos os pilotos sacrificariam seus carros em nome do amor, por que Ava Gardner resistirá ainda um pouco mais ao canto das sereias masculinas? Por que, agora, este matador que carrega a morte no rosto não penetrará na arena deserta, entregue à noite, para oferecer o sacrifício de um touro a uma espectadora única?

Se fizéssemos uma crítica séria de Pandora, seria conveniente lamentar que seu diretor Albert Lewin acreditou ser necessário se vestir da responsabilidade de garantia sobre a veracidade das lendas, na ocorrência de identificar categoricamente na figura do jovem pintor da embarcação fantasma um capitão de navio que havia sido condenado, há não menos que três séculos, a não morrer por ter assassinado sua mulher – e que vagaria eternamente pelos oceanos caso não encontrasse, diante de qualquer ancoramento, uma outra mulher que aceitasse morrer por ele. Albert Lewin nos faz assistir em comprimento, largura e cores o processo do capitão, crente, sem a menor dúvida, de que, uma vez que as coisas são inscritas na película, não há como duvidar de que sejam verdadeiras. Como se, caso contrário, as lendas não tomassem toda sua força de persuasão no equívoco e no possível. E como preferimos que se deixe entender que o pintor pode muito bem ser o famoso holandês voador, não há nada que nos impeça de pensar, além disso, que ele também pode ser – por que não? – um misantropo ocioso.

Mas Pandora não é um filme que se empresta ao desejo de uma crítica austera. Ele vale menos e mais que isto. Ele faz sorrir, e ao mesmo tempo sonhar com um cinema que fosse desembaraçado de seus gângsteres e policiais, mães-solteiras e irmãs caçulas de famílias pobres, com um cinema cujos heróis fossem gloriosos como a morte e as heroínas lindas como a noite.

Cinema involuntário, como dizemos da “poesia involuntária[2]”. As agruras de Pandora são tão comoventes quanto suas qualidades, e em seu próprio excesso, suas falhas de gosto a ligam à grande tradição barroca. É tão frívola quanto à capa de uma revista, mas quando viramos a página de súbito somos imersos em pensamentos sobre as noites de Julien Cracq, todas fartas em perambulações e encontros secretos, no meio de dunas prateadas pela luz da lua. Sim, por que não existiriam elas, estas noites violetas e minerais, violentas e petrificadas, que sempre findam à beira-mar, sobre a areia ensopada pela luz da alvorada recém-iluminada, embaladas pelos últimos ruídos do jazz, debaixo de uma antiga estátua mutilada, ao som dos gritos felizes de uma jovem embriagada cujo vestido de baile se vira repentinamente, porque ela acaba de desejar bom dia ao mar que passa sobre suas mãos?

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Jean-Pierre Vivet

[1] Giorgio di Chirico, pintor italiano precursor do surrealismo.

[2] Terminologia usada pelo poeta francês Paul Éluard para teorizar uma poesia que surgisse do “acaso”, ao contrário de uma escrita que seguisse os desejos voluntários de seu autor.

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O encontro pelo erotismo: desejo e pulsão de morte no cinema contemporâneo

Por Camila Vieira

“Digamos, sem esperar mais, que a violência e a morte que ela significa possuem um duplo sentido: por um lado, o horror não afastado, ligado ao apego que a vida inspira; por outro, um elemento solene, ao mesmo tempo, aterrador, fascina-os e provoca, uma perturbação soberana”. (Georges Bataille, O Erotismo)

“A ambiguidade e a bipartição caracterizam, de um modo mais típico, o problema do erotismo quando, mais do que qualquer outro, ele parece resistir às definições, flutuando entre o físico e o espiritual”. (Lou Andreas-Salomé, O Erotismo)

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Em uma sequência de The Addiction (1995), de Abel Ferrara, a estudante de filosofia Kathleen Conklin toma consciência de sua própria transformação, dias após o ataque inesperado de uma mulher desconhecida que sugou seu sangue. Neste súbito de lucidez às sombras do vampirismo, a protagonista esclarece que, não importa o que aconteça, é a violência da sua vontade contra a dos outros. O encontro aqui implica uma violação de fundo, que está na base do jogo erótico. Trata-se do desejo incontrolável e perturbador de aniquilação do outro. Se, de acordo com o pensamento de Bataille, o erotismo é uma aprovação da vida até na morte, como compreender no filme de Ferrara, o encontro dos corpos a partir da intensidade da violência que chega ao limite da morte? Mais ainda: junto com The Addiction, a questão segue uma linha de entrecruzamentos com outros dois filmes contemporâneos – em especial, Trouble Every Day (2001), de Claire Denis; e Dans Ma Peau (2002), de Marina de Van –, que, apesar das singularidades perceptíveis de seus desdobramentos, também cotejam encontros em que o desejo escapa ao controle e a relação com o outro envolve a pulsão de morte.

Nos três longas-metragens, os personagens estão envoltos em situações iniciais e temporárias de aparente equilíbrio e ordem com os códigos sociais. Eles se inserem na dinâmica do trabalho (a rotina de estudos na faculdade por Kathleen, em The Addiction; a dedicação aos prazos no mundo dos negócios por Esther, em Dans Ma Peau) ou se submetem a interdições (o cativeiro de Coré não está distante do aprisionamento instaurado pelo casamento de Shane, em Trouble Every Day). Esta normalidade será perturbada por um ponto de ruptura, catalisado pelo contágio com algo externo – o ataque noturno da mulher na calçada em The Addiction, o acidente com os ferros no canteiro de obras em Dans Ma Peau, a experiência científica com humanos em Trouble Every Day. Tais imprevistos violentos no cotidiano irão provocar mudanças no curso dos acontecimentos e liberar forças inesperadas no âmbito do desejo.

A vertigem e a euforia reposicionam o erotismo dos corpos para algo de sinistro, que irá desencadear perturbações e incômodos dentro da normalidade cotidiana. Na noite em que é atacada, Kathleen se sente mal, é acometida por náuseas e suores frios, enquanto seu pescoço jorra sangue. Depois de ter a perna dilacerada, Esther vê fragmentos desfocados dos lugares em que passa (os planos pontos de vista de Dans Ma Peau provocam a sensação de que tudo está girando ao redor dela). Shane é perturbado por imagens oníricas (ou seriam lembranças?) do corpo da sua esposa banhado de sangue. Tais indícios alucinatórios são prévias de transformações no modo como os personagens irão interagir com o mundo. Kathleen começa a abordar os drogados marginalizados nas ruas, para quem ela não dava atenção. Coré seduz caminhoneiros na beira da estrada para atacá-los em terrenos abandonados, enquanto Shane persegue os passos da camareira de um hotel. Esther passa a ter uma percepção mais intensa do seu próprio corpo e se fascina pela superfície de sua pele como uma estranha alteridade radical.

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Por mais que busquem suprimir o abismo profundo que existe entre eles e o mundo, os personagens dos três filmes são seres descontínuos que vislumbram no contato com o outro a possibilidade de atingir uma continuidade desde já perdida. Na tentativa de dar um salto no abismo, eles se deixam conduzir pelo descontrole de seus desejos que os levam a sensações tortuosas. Kathleen vislumbra que existe um terrível precipício entre as pessoas, mas a alegoria do vício no filme de Ferrara está para além do salto. “Há uma diferença entre saltar e ser empurrado. Chega uma hora em que se deve satisfazer as necessidades e você é pego pelo fato de não poder acabar com aquela situação”, diz Kathleen. É preciso manter Coré presa em casa com grades e portas de ferro para que ninguém esteja sob o risco de sua força erótica, mas ainda assim a interdição será transposta por dois garotos que conseguem invadir o território proibido. Esther escuta constantes e duras repreensões do marido, que jamais são suficientes para impedi-la de continuar cortando sua pele.

Na constante procura por um objeto fora do desejo, há um desequilíbrio que põe o sujeito em lugar de incessante questionamento, posto que ele se perde diante do próprio desejo. O movimento do erotismo excede os limites, a ponto de permitir uma esquiva do entendimento e colocar o outro à frente da violência. Pela necessidade física do contato com o outro em sua materialidade – que não acontece geralmente pela chave do prazer sexual –, algo extravasa nesta relação, pondo a vida em risco. Em The Addiction, o descontrole do desejo explica inclusive os massacres que se repetem na História e acumulam cadáveres (imagens dos corpos dizimados nas guerras pontuam o filme). Não há como controlar o que os humanos fazem, porque eles são escravos de suas próprias forças. Se, em alguma medida, Abel Ferrara aponta sua alegoria do vampirismo para um comentário verborrágico sobre o mal da humanidade por meio do vício e do pecado, Claire Denis subverte a conotação moral em Trouble Every Day e, por meio do silêncio e da proximidade dos corpos, acompanha com leve torpor a força canibal de Coré e Shane.

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Diferente dos filmes de Ferrara e Denis, Dans Ma Peau desloca o problema da relação entre o eu e o outro para a implicação do erotismo no limite de uma desordem violenta com o próprio corpo. Esther não é capaz de sentir o dilaceramento de sua pele. A superfície epidérmica é o estranho que desencadeia a curiosidade de Esther, dentro de um jogo erótico que irá dissolver formas constituídas – a centralidade de si como uma mulher de negócios bem sucedida e que precisa cumprir um papel social regular esperado por todos ao seu redor. É emblemática a sequência do filme de Marina de Van em que, em meio a um jantar com executivos, Esther enxerga seu braço deslocado do resto do corpo, funcionando como um membro mecânico que ganha vida própria. O estranhamento com o corpo desperta em Esther a vontade de perscrutar sua pele com objetos de ferro pontiagudos, a ponto de atingir o ápice quando performa (a diretora é também a atriz do filme) o ato de se retalhar, diante de um espelho e registrar em fotografias. Mas aqui o auge da excitação erótica não condena a vida a desaparecer, ao contrário do banquete final de The Addiction que leva ao massacre dos convidados (parecido com a intensidade do clímax de Ms. 45, filme anterior de Ferrara) ou o encontro de Shane com Coré que implica na morte inevitável dela, em Trouble Every Day.

Seja na realização da morte ou na aproximação dela, a vida é colocada em questão nos três filmes, a partir do excesso que se engendra no encontro pelo erotismo. É uma experiência que se dá no real pelo que há de inesperado nele e, desde já, ela é plena de violência, na medida em que assume um potencial de transbordamento dos limites possíveis. Trata-se de uma perturbação ainda sem nome. “Você não é nada”, insiste o mestre vampiro de The Addiction em uma conversa no galpão sombrio com Kathleen. Existe um mistério que cerca o experimento científico pelo qual Coré e Shane foram cobaias, em Trouble Every Day. Não há explicações que consigam dar conta da vontade de Esther em retalhar sua pele, em Dans Ma Peau. A passagem da normalidade ao desejo erótico pressupõe uma desconstrução das causas e uma abertura aos movimentos violentos que desestabilizam.

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Cinema(s): Dennis Hopper e James Benning em Easy Rider

Por Pedro Tavares

“Você não precisa procurar por novas imagens, imagens jamais vistas, você deve utilizar as já existentes de uma forma que elas se tornem novas.” (Harun Farocki)

Retomar, remontar ou resignificar materiais existentes independente de concessão estão na filmografia de nomes como Esther Schub, Dziga Vertov, Alain Resnais, Orson Welles, Rogério Sganzerla, Andrea Tonacci, Chris Marker e Jonas Mekas que com suas devidas motivações remeteram e provocaram entre ética e a estética.  James Benning fez de seu Easy Rider (2012) a revelação de um sonho perdido sobre seu tradicional arquétipo de observação sem que suas imagens sejam necessariamente novas, ainda que nenhum plano do filme original de 1969 seja projetado. É necessário, portanto, traçar a rota do encontro entre Hopper e Benning através deste imaginário de cinema e política.

Easy Rider (James Benning, 2012)
Easy Rider (James Benning, 2012)

À procura pela América

Pelas estradas americanas, na representação de uma parcela significativa da identidade do país – as highways -, Easy Rider (Dennis Hopper, 1969) procura a América perdida, o mito e o norte existencial em tempos de Guerra do Vietnã. De maneira geral, Easy Rider rompe com a era de filmes cômicos hollywoodianos e oferece à contracultura seu apogeu cinematográfico fixado pelo pessimismo, pela música, locações e diálogos como o filme definitivo de uma geração.

E nele está um filme basicamente de elipses e insinuações, intencionado a criar um espaço que permite o diálogo com uma época e um estado de espírito em forma de aventura lisérgica em monocórdio, longe da estrutura do cinema clássico americano. O road movie que aspira os westerns – à época tão próximos no tempo de exploração de territórios – parte de uma asfixia generalizada – social, existencial e político como espelho de um mal estar que muitos estavam a lutar. E como pilar de tudo isso está o sonho de recomeço. Coube a Benning, anos mais tarde, identificar caminhos complementares à época da filmagem de Hopper. Em comum, ambos estão em estado de suspensão e cabe as palavras do antropólogo Marc Augé sobre este estado: “(…) O estado de suspensão designa uma forma de esquecimento na medida em que ‘ambiciona recuperar o presente cortando-o provisoriamente do passado e do futuro e, mais exatamente, esquecendo o futuro quando este se identifica com o regresso do passado'”.

Noites ao léu em Easy Rider (Dennis Hopper, 1969)
Noites ao léu em Easy Rider (Dennis Hopper, 1969)

O encontro

Como parte da geração marcada por Hopper, James Benning é um cineasta/videomaker que transita entre cinema e museus com propriedade. Seus filmes seguem características únicas de caráter observacional. E o encontro sobrenatural de Benning com Hopper pelas estradas dos EUA se dá pelo mesma convenção: um filme sensorial, de sugestões e que recria Easy Rider a partir dos tradicionais longos e estáticos planos, aqui em paralelo em alguns momentos com diálogos do filme original como forma de guia narrativo, sem que o filme original seja remontado por Benning e sim uma releitura ao seu estilo característico de contemplar, criar atmosferas e narrar histórias.

Benning, que outrora tinha refeito Faces de John Cassavetes com os mesmos espectros, em entrevista ao Lola Journal afirma que seu respeito pelo filme de Hopper diminuiu conforme o tempo. Hoje, o diretor considera o filme “Cristão, capitalista e que afirma o manifesto de Malcolm-X que o uso de drogas é anti-revolucionário”. Sua reencarnação é feita pelas paisagens de Hopper, hoje muitas deterioradas ou completamente modificadas pelo tempo ou pelo homem. E Easy Rider, ambos, se resumem à  busca de um espaço, de um local não definido.

A outra América

Restaurar ou constatar o passado? A questão que permeia a versão de James Benning o isenta de uma resposta concreta quando seu trabalho de aproximação e posse é explícita ao exibir, por exemplo, o cemitério da cena mais lisérgica da versão original em estado deplorável, ao trocar Born to be Wild do Steppenwolf por uma canção pop ou exibir a placa de “Não há vagas”, num simples gesto interpretativo, de criar novas camadas e significados, como a construção de um novo córrego para as cenas escoarem após o corte. A visão de Benning, neste ponto, é dicotômica entre passado e futuro.

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O lamento de Benning.

A América filmada por Benning passou por outras guerras, ataques terroristas, novos tipos de drogas sintéticas e fenômenos pop, mas há de se considerar o lampejo de Hopper simbolizado na última sequência do filme original. O encontro se dará a partir desta cena – o encontro de um pensamento, ainda que rápido, de fuga, um lapso pessimista sobre o país dos sonhos. Está feito o diálogo ostensivo entre Hopper e Benning: alusões sobre um sonho – o início e o fim. A morte nos campos da liberdade, do vento no rosto e felicidade plena é escarrado em cada plano da observação de James Benning. “Não há vagas” é o canto nada subjetivo da cultura pop, um lamento à transgressão que outrora cantava selvageria, lisergia e revolução. Em troca estão os sussurros em forma de diálogos originais em volume mais baixo em pompa decrescente, como se o silêncio fosse o ponto final da geração e o ponto inicial de Benning, que entrega suas intenções ao dispositivo, permitindo que os longos planos falem por si. Uma infeliz coreografia social (e artística).

Foi-se o tempo: rebeldia trocada pelo silêncio
Foi-se o tempo: rebeldia trocada pelo silêncio

O modelo de Dennis Hopper que supõe o processo de integração e desenvolvimento por trás da carcaça de um filme de motoqueiros segue a retórica da heroicização de uma geração. Nele, homens (quase anônimos que seguem mais tipos que a ilusão da construção de personagem) ressoam às questões sociais daquele tempo como forma de análise urgente transpassadas em ações e falas duvidosas. O modelo de Benning, longe de uma comparação, apesar da releitura, é de um protoluto, silencioso, de análise partilhada com o espectador; o diagnóstico suspende a economia vista durante todo filme – ainda que não se chegue a respostas como em boa parte de discussões sobre o cinema, é possível dizer que o trabalho de Benning é um complemento com a permissão que o tempo cedeu, com a clara constatação que a América não foi e nunca será àquela almejada e que o homem que derruba motos também derrubará a economia e o ambiente em que vive.

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Eu Não Sou Seu Negro: encontros e confrontos pelo cinema

Por Kênia Freitas

No documentário “Eu Não Sou Seu Negro” (I Am Not Your Negro, 2016) o diretor Raoul Peck aponta como motivação inicial para o projeto um livro jamais terminado pelo escritor negro norte-americano James Baldwin. No livro inacabado “Remember This House”, Baldwin pretendia contar as histórias de Medgar Evers, Malcolm X e Martin Luther King Jr – todos os três expoentes negros das lutas pelos Direitos Civis americanos, todos os três amigos de Baldwin e todos os três assassinados. Se o livro é a justificativa inicial, o filme de Peck reserva a sua construção a montagem de outras narrativas, narrativas que se sobrepõem em camadas de imagens diversas. A operação do filme torna-se a de fazer essas imagens (do cinema, da televisão, das fotografias e do imaginário) deslizarem umas sobre as outras – encontrando-se e, quase sempre, entrando em confronto.

Em um primeiro movimento diante dessas múltiplas camadas de imagens e gestos de encontros promovidos pelo diretor, podemos destacar o encontro da figura de James Baldwin (falecido em 1987) com o espectador atual do filme de Peck. Esse encontro se dá tanto pelas reminiscências de imagens (nos textos do escritor usados para construção do roteiro e pela utilização recorrente ao longo do filme do material de arquivos de entrevistas de Baldwin), quanto pela atualização dessa presença do escritor e a sua  aproximação com o presente histórico (com a narração de Samuel L. Jackson que assume o discurso em primeira pessoa dos textos de Baldwin na voz over do filme; o contraponto constante das imagens do presente, sobretudo a partir de registros do movimento Black Lives Matter inseridos no filme; e na escolha de finalizar o filme com “The Black de Berry”, interpretada por Kendrick Lamar, de trilha sonora).

Operação de presentificação que se declara já desde a abertura do documentário quando em uma entrevista no Dick Cavett Show em 1968, Baldwin aponta a pergunta de “o  que vai acontecer com esse país? ” como a indagação necessária de ser feita pela sociedade dos EUA naquele momento diante do debate racial. A resposta na narrativa do filme de Peck é colar a pergunta fotografias de protestos do Black Lives Matter e da agressiva repressão policial ao movimento. Nesse gesto de montagem fica declarada a intenção do diretor de, por e com Baldwin, pensar o presente da discussão racial nos EUA.

Nesse sentido, Peck serve-se de forma inventiva das prerrogativas do documentário de montagem, de fazer encontrar imagens de origens e sentidos diversos, colocá-las lado a lado, muitas vezes em confronto. Dessas imagens permanecem os resíduos de suas origens, ao que se soma novos significados tanto pelas palavras de Baldwin, quanto pelo ordenamento de Peck. No processo, reconhecemos os gestos do documentário moderno (cinema verdade, cinema vivido, cinema direto) de promover o encontro no cinema (dentro dos filmes, por suas narrativas e pelas relações entre personagens e cineastas). Assim, é o encontro Peck e Baldwin (e das imagens aos quais estes recorrem) que move a construção e tensões do discurso do filme.

Além dessa relação, também percebemos um mergulho da narrativa no que Serge Daney chamou em “A rampa (Bis)” de um terceiro regime da imagem cinematográfica (depois do clássico e do moderno). Um regime das imagens que deslizam umas sobre as outras, em que atrás de uma imagem só é possível ao espectador descobrir a existência de outras imagens. É nesse jogo em que Peck aposta ao fazer encontrar as suas múltiplas imagens de arquivo em torno de Baldwin. Atrás de cada entrevista de Baldwin, de cada imagem histórica do movimento negro dos anos 1960, há sempre outra imagem. O encontro possível com estas imagens que deslizam depende de um espectador que também não cesse de se deslocar entre elas.

Essa montagem torna possível que o filme promova incessantemente também o deslocamento entre temporalidades diversas: da atualidade do Black Lives Matter, a infância e juventude de Baldwin, a sua atuação como intelectual negro e testemunha no movimento dos Direitos Civis nos EUA. É possível assim no mesmo bloco e construindo uma única linha de raciocínio que o filme passe de uma entrevista de Baldwin falando sobre Malcom X para as imagens em Ferguson, Missouri, em 2014, retornando em seguida a Baldwin. Um movimento semelhante ocorre quando Baldwin fala sobre a sua experiência de crescer um menino negro nos EUA e lidar com morte constantes de meninos e meninas negras da sua geração, e Peck lança imagens dos jovens negros assassinados recentemente pela polícia: Tamir Rice, Darius Simmons, Trayvon Martin, Aiyana Stanley-Jones, Christopher McCray, Cameron Tillman, Amir Brooks.

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Esse gesto de encontro e deslizamento por imagens múltiplas não se dá apenas pela navegação livre das temporalidades distintas. Se o que a montagem constitui nessas aproximações de imagens do movimento dos direitos civis e do Black Lives Matter é o fato de que a exclusão e o racismo contra os negros perpetuam-se quase inalterados pelas décadas que se seguem, a montagem de Peck e as palavras de Baldwin apontam também para outro fator: o de que debater esse racismo não é um problema dos negros americanos, mas de toda a sociedade. E toda a sociedade nesse caso refere-se sobretudo a maioria branca. E nesse ponto, o documentário parte para a materialização desse racismo não apenas pelas imagens dos corpos negros, mas também pelos discursos e imagens dos corpos brancos racistas. Iniciando assim um segundo movimento em que podemos perceber as operações de construção da narrativa do filme pela montagem e encontro de imagens múltiplas.

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Se as fotografias e os registros fotográficos de pessoas brancas manifestando o seu preconceito racial são um dos alicerces para a materialização do racismo, outro pilar da narrativa é a relação que Baldwin e Peck estabelecem com o cinema clássico dos EUA e a sua formação de imaginário nacional. Os filmes integram a relação de Baldwin com os EUA e com o racismo desde a sua infância. Falando sobre a sua própria constituição como espectador de cinema, o escritor aponta a sua incapacidade de se identificar ou reconhecer com os personagens negros desse cinema dos grandes estúdios. Personagens negros caricatos, que não se assemelhavam as mulheres e homens negros que o cercavam e personagens que não podiam assumir o lugar do herói. Os negros estavam, em geral, fora de lugar no cinema. E para Baldwin essa ausência e deslocamento de negras e negros nos filmes, era também uma forma de supressão de realidade para negras e negros fora das telas.

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Peck aposta em seu filme cada vez mais no confronto entre essas imagens da experiência branca americana e as da experiência negra. Uma das sínteses do processo é a entrevista de Baldwin no Dick Cavett Show. Se há uma tensão declarada entre o escritor negro e outro convidado do programa, um professor de filosofia branco de Yale, é na postura desconcertada do próprio Dick Cavett durante todos os trechos da entrevista utilizadas pelo filme, que percebemos quão irreconciliáveis são as experiências. A presença de Baldwin é assertiva e intensa, Cavett permanece envergonhado, desconfortável.

Se nessa escolha de entrevista o confronto das experiências é ainda sutil, o final do filme é marcado pela montagem de planos e contra planos em embate declarados entre as imagens das experiências brancas e negras. Assim, imediatamente após as imagens da juventude branca dos anos 1950 cantando e dançando em “Um Pijama para Dois” (G. Abbott, S. Donen, 1957), Peck joga os espectadores para cenas de um policial branco atirando em manifestantes negros nos dias atuais.

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A operação de confronto na montagem prossegue nessa última parte do filme, que coloca em sequência: as imagens amadoras do espancamento de Rodney King pela polícia de Los Angeles, em 1991, e as cenas românticas do casal branco dançando em “Amor na Tarde” (B. Wilder, 1957). E também a junção do close no rosto sonhador de Doris Day em “Volta meu amor”, (D. Mann, 1961) seguido da fotografia de uma mulher negra enforcada.

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Baldwin sumariza os dois níveis de experiência ao invocar a inocência grotesca da própria Doris Day e de Gary Cooper em seus filmes em oposição ao tom e ao rosto de Ray Charles em suas performances musicais. Imagens que Peck coloca lado a lado em seu filme, e que, no entanto, ainda não permanecem estranhas umas às outras.

Mas é essa tentativa de encontro, ou ao menos esse confronto, que Peck não cessará de produzir na montagem do seu documentário. Encontro das reivindicações do passado e do presente dos negros norte-americanos. Encontro dos dois níveis de experiência da sociedade dos EUA, a branca e a negra. Encontro no documentário pelas imagens do cinema, da televisão, dos registros históricos. Encontro de imagens que se contrapõem e deslizam umas sobre as outras. E nesse sentido, o que a montagem de Peck parece querer nos dizer é que atrás de cada imagem do cinema clássico branco dos EUA estão as imagens do massacre aos nativos americanos e a repressão e os assassinatos da população negra.

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A CRENÇA NA MATÉRIA

Por Yuri Deliberalli

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A religiosidade como um ponto de encontro da matéria, da presença física e da espiritualidade é um conceito que abarca estas três perspectivas em três longas-metragens que, dentre as diversas questões que abordam, procuram investigar os limites e abrangência da crença do ser humano em algo sobre-humano, intangível e não pertencente à ordem de seus atos. É essa vontade (e a credibilidade) da crença e do próprio ato de crer que levará os personagens a três formas distintas de encontro que, ao fim e ao cabo, validarão a noção de que a religião tem o condão de ensejar a harmonia e a ruptura das relações.

O modus operandi de Pasolini em O Evangelho Segundo São Mateus (1962) é todo alicerçado na premissa de um Jesus Cristo neorrealista, cujos atos milagrosos se aproximam da materialidade para alcançar a espiritualidade de seus ouvintes. Em suas pregações iniciais, Pasolini isola Cristo no plano frontal num sinal de que a palavra de Deus, desenvolvida enquanto um discurso radical de esquerda, não chega ao público com a força do fascínio e do encanto que deveria. Isto somente ocorre no momento em que os milagres materiais começam a ser operados por Cristo, porque apenas a consecução do bem material faz sentido para um povo acostumado à miséria.

A ideia de Pasolini é clara: Cristo somente conseguiria fazer a palavra de Deus chegar ao povo se usasse de meios identificáveis de assimilação do contexto espiritual, como, no caso, a transformação material dos bens. A atração do público não era exatamente o conteúdo, mas a demonstração empírica da palavra divina, como se Cristo fosse, na realidade, um mago. Religião enquanto matéria que traduz um significado espiritual e, portanto, vertente de manifestação política apta a causar a perseguição dos poderosos, razão pela qual o povo (e a câmera) se distanciam de Cristo em seus derradeiros momentos.

No mesmo filme, Pasolini articula a ideia de que a religião pode ser um elemento de sedução das massas, ao mesmo tempo em que pode causar a ruptura de todo um estado atual das coisas. É algo que Carl Theodor Dreyer também aponta em A Palavra (1955), ainda que em um grau diferenciado de abordagem. Aqui, a palavra de Deus é tida como um instrumento aristocrático, pertencente apenas à autoridade cristã e não aos membros comuns da comunidade como Johannes, que a prega aos quatro cantos da fazenda Borgen e é imediatamente taxado de insano. Caberá então a Johannes comprovar que não é palavra divina em si o meio de encontro da espiritualidade, mas sim a crença em tais escritos, alimentada pela fé mais pura (a fé de uma criança), que tem a capacidade de operar os verdadeiros milagres.

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Não deixa de ser uma ideia de compreensão particular de manifestação da fé, alheia apenas à autoridade religiosa e presente em cada um dos indivíduos que, à sua maneira própria, manifestam a sua visão particular dos mandamentos religiosos. Johannes não é um padre mas é tão (ou mais) crente do que aqueles que possuem o encargo religioso e é a sua persistência na fé que acaba por trazer a união da família em torno de um objetivo comum.

Em uma família desintegrada pela dor da perda de um membro querido, a palavra é utilizada por Dreyer como um instrumento de reaproximação, seja entre tais membros da família, seja entre desafetos, como o alfaiate. Aliás, é no núcleo narrativo do alfaiate que Dreyer demonstrará que a interpretação pessoal dos escritos religiosos pode ser causa de conflitos pessoais e até mesmo sociais (a proibição do casamento), num sinal profético de que as guerras futuras seriam fundamentadas nesse fator.

E é desse sentimento beligerante proporcionado pela interpretação diversa da palavra divina que Martin Scorsese transita em Silêncio (2016), porque duas religiões não habitam o mesmo espaço ao mesmo tempo. Ou seja, a palavra de Deus é um meio de propulsão da violência contra os padres e japoneses que se aproximam de um olhar diverso sobre a religião dominante (o xintoísmo), razão pela qual a opção de Scorsese em tratar a questão religiosa como uma questão física, de penitência do corpo para preservação ou alteração da espiritualidade, se coaduna com a visão de que a crença é um ato de fé extremo, passível de sobreviver às mais duras investidas contra a materialidade do ser humano.

Curiosamente, o aspecto material é o componente-chave da discussão proposta por Scorsese, afinal, cuspir na imagem do Cristo crucificado e pisar no fumie significa trair a sua religiosidade ou é apenas um mero sinal público, naquelas circunstâncias, de sobrevivência, uma vez que o ataque à iconografia não implica dizer que houve renúncia espiritual à concepção religiosa? Ou, melhor dizendo, a ação pública traduz a verdadeira compreensão da sua própria religiosidade?

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Como será comprovado no ato final, ainda que de um modo um tanto expositivo, é de que o sacrifício pessoal do padre Rodrigues não se confunde com o sacrifício espiritual, porque, embora preso fisicamente a um local, sua fé permaneceu intacta ao longo dos anos de cárcere. Sua religião o confinou ao abandono de tudo e de todos, mas também o fez encontrar o verdadeiro significado de sua aspiração espiritual.

Mais do que tratar do tema em si, os três filmes compartilham dessa busca pela verdadeira faceta da fé dentro de suas respectivas particularidades, sempre envolvendo a dicotomia entre o material e o imaterial como um subtexto narrativo. Em Scorsese isto é mais frontal, ao passo que em Pasolini e Dreyer é uma questão que permeia os respectivos filmes como algo mais conceitual do que concreto. Independentemente do método de abordagem, os três filmes estabelecem a desagregação causada pela religiosidade como um fator de incompreensão (a crucificação em Pasolini, Johannes como um louco em Dreyer e a tortura física em Scorsese) e a sua compreensão como um elemento de unificação (operacionalização do milagre em Pasolini e Dreyer e a autodescoberta da fé interior em Scorsese), reforçando o fato de que a crença na palavra divina, dada a sua condição de intangibilidade, está sujeita aos extremos dessa relação, mas sempre em busca de um ponto de conciliação.

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Introdução ao Cinema Vulgar

Por Pedro Tavares

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Miami Vice (Michael Mann, 2006)

No livro A Short History of Cahiers du Cinéma, a crítica, autora e roteirista Emilie Bickerton lembra da rejeição a cineastas que utilizavam gêneros como base para justificar suas histórias. A equipe de críticos e cineastas da revista, na época formada por nomes como Jean-Luc Godard, François Truffaut, Jacques Rivette e Eric Rohmer justificava o trabalho de diretores como Howard Hawks, John Ford, Nicholas Ray e Alfred Hitchcock pelo manifesto da “Política dos Autores”. Rohmer, por exemplo, elevava Hitchcock a mestre moderno no início dos anos 50 através do texto Of Three Films and a Certain school e defendia o valor de obras de acordo com o tempo em que era analisado. Já Godard e Rivette teorizavam sobre obras de Nicholas Ray e Howard Hawks, respectivamente. Até o fim dos anos 60 esse discurso foi mantido, quando Godard, integrante da escola de Vertov, colocou a palavra ante à imagem e declarando no fim de Weekend (1967) “o fim do cinema” e da autoria.

  1. “Eu era um cineasta burguês, depois um cineasta progressista, e depois não mais um cineasta, mas um trabalhador de cinema (…) e quando falamos de Hollywood, entendemos Hollywood como todo mundo: seja o Newsreel, ou os cubanos, ou os iogoslavos, ou o Festival de Cannes, ou o de Nova Iorque, ou a Cinemateca Francesa ou a Cahiers du Cinéma. Hollywood quer dizer tudo relacionado com o cinema. Assim, cada vez que a gente diz Hollywood está dizendo o imperialismo deste produto ideológico que é o cinema” (Focus on Godard, CARROL, 1970)

O embrião da “Política dos autores” colocou os jovens críticos da Cahiers contra o conservadorismo da velha guarda e questionou a função da crítica. A “Política dos autores” funciona à distinção de cineasta e autor pela grife. O crítico e teórico André Bazin em 1957 esclareceu as dicotomias desta ideia e suas fragilidades através deste texto na edição de número 70 da Cahiers, comparando a recepção da crítica a um filme ruim de “autor” a um borrão de tinta feito por um pintor famoso. Essa ideia também foi invocada por Alexandre Astuc sobre camera-stylo na década de 40.

Já nos anos 00, o cinema ganhou uma nova maneira de produzir e distribuir filmes. A tecnologia facilitou a feitura e permitiu que filmes fossem vistos de variadas formas e assim refletindo o pensamento da função da crítica. Nos tempos de torrents e serviços de streaming, a variação desta “política de autores” foi criada via internet, onde o cinema sobrevive com mais força, longe das salas de exibição pública e das remanescentes locadoras de vídeo. Os novos autores, que segundo Bazin eram amados pela excelência e vitalidade e não pela abordagem, hoje são chamado de “vulgares” pelo diálogo com o irreal e carregam a mesma empolgação por parte da cinefilia – hoje sufocada por infinitos arquivos de torrent e mais agregador no sentido de definição sobre o que é ou não um “autor vulgar”.

Sinais dos tempos

Segundo artigos de revistas online de cinema, o ponto de partida para o termo “Vulgar Auteurism” foi a matéria de Andrew Tracy para a Cinema Scope sobre o cinema de Michael Mann à época do lançamento de Inimigos Públicos (2009). Porém Tracy já ensaiava sobre o termo na crítica de Déja Vu (2007) de Tony Scott. Adiante muitos artigos foram produzidos discutindo os valores estéticos e filosóficos de diretores que trabalham em “modo popular”, esta que seria a suposta base para o termpo Vulgar Auteurism. São diretores com preocupações distintas em relação à imagem, principalmente por seu espaço e função, mas em comum, todos têm momentos estéticos fascinantes em suas filmografias. A partir disso o que se viu nas redes sociais foi um desfile de stills que inerentes à qualidade dos filmes, os definiam. Um caso clássico desta ação é a comparação matemática de frames de Mortal Kombat (1995) de Paul W.S Anderson com Falstaff – O Toque da Meia Noite (1965) de Orson Welles divulgado no Tumblr “Vulgar Auteurism”. Desta relação com a imagem se questiona forma e influências destes “autores vulgares” que esbarram nas artes plásticas, jogos de videogame, HQs e claro, grandes diretores de cinema.

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Mortal Kombat e Falstaff em comparação em uma página do Tumblr.

O caso do diretor Paul W.S Anderson é um bom exemplo: cultuado por boa parte dos cinéfilos que se debruçam sob a crítica em redes sociais como o Letterboxd e MUBI, seus últimos filmes como Pompeia e Resident Evil: Retribuição foram ovacionados como baluartes do “gênero”. Este último com linguagem frenética, preocupada com a proximidade ao jogo de videogame. Pela produção criativa sobre o real, há espaço para observação que o Vulgar Auterism faz contraponto à autoria de um cinema feito nas ruas, em principal à Nouvelle Vague, Neorrealismo Italiano, o No Wave americano e ao Cinema Novo – já que falamos de movimentos cinematográficos; do uso da fantasia ante o real e de certa poesia não dogmática entre enredos que prestigiam os corpos. Pois já que falamos em Cinema Novo, digamos que o Vulgar Auteurism em muitos casos exige uma relação hiperconstrutivista sobre o corpo-espaço, da mesma maneira que Joaquim Pedro de Andrade faz em Os Inconfidentes (1972) e Glauber Rocha em Terra em Transe (1967) no qual o grande mestre desta função dos autores vulgares é Johnnie To.

São desses corpos que vemos um trabalho de coreografia coeso em cenas de ação – vale citar a cena da boate de De Volta ao Jogo (Chad Stahelski, 2014), o balé de Soldado Universal 4 (John Hyams), as famosas sequências de tiroteio presentes em boa parte dos filmes de Johnnie To e as perseguições dos últimos filmes de Tony Scott. Essas cenas servem de suspiro à trama em boa parte dos casos e não servem como um show de alegorias. É importante lembrar que por não possuir bordas, o termo Vulgar Auteurism sempre carregará exceções. E se pensarmos que, aos meandros de definição, poucos movimentos cinematográficos foram batizados por quem fazia os filmes e sim por críticos e pesquisadores os definindo por margens e similaridades – data, abordagens, discurso… O Vulgar Auterism é sim, uma ótima ferramenta de marketing para cinefilia ainda que a questão para onde os olhos miram realmente cabe a cada quadro, inclusive deste Tumblr citado anteriormente.

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De Volta ao Jogo (Chad Stahelski)

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Soldado Universal 4 (John Hyams)

O Vulgar Auteurism permite o retrospecto. Nomes como Paul Verhoeven, Walter Hill e John Woo, para citar alguns, reprovados pelo crivo do público e aclamados pela crítica nos anos 80 e 90, repetiram, em devidas proporções, o caso de Hawks, Ford, Ray e Hitchcock para os críticos da Cahiers du Cinèma. Hoje Verhoeven, Hill e Woo aparecem em dezenas de listas que os definem como autores vulgares. Há a identificação direta do termo com autores que trabalham com gêneros populares como o cinema de ação, terror e suspense como Tony Scott, Jaume Collet-Serra, Johnnie To, Neveldine/Taylor, M. Night Shyamalan e Kathryn Bigelow, porém, por exemplo vemos os irmãos Farrelly e Abel Ferrara no mesmo balaio. Os nomes de John Carpenter, Clint Eastwood, Samuel Fuller e Michael Cimino também figuram em diversas listas que definem o que é o Vulgar Auterism.

A imagem e seus custos

Por ser abrangente em relação a tempo e características, o termo se utiliza de  alicerces que permitem discorrer sobre o contínuo expediente de reflexão em obras classificadas como escapismo. São diversos tipos, meios e leituras de cinema convergidos em um por quem o consome e que prazerosamente reverte seus meandros de produção – dos altos cifrões ao objetivo dos estúdios – em função de uma interpretação baseada na arte e sua pluralidade formal em respeito ao diálogo. Mas se estamos em um momento que a internet cria um caminho independente de distribuição, o Vulgar Auteurism hospeda mais uma contradição.

O “modo popular” hoje encontra plataformas de streaming  para saciar o espectador, já que as salas de cinema hospedam em boa parte comédias e filmes de heróis e enfrenta o interesse público pelas séries de grandes estúdios. Portanto, não é tão popular assim. Com raras exceções, boa parte dos autores aqui citados produzem com auxílio de produtoras de pequeno e médio porte ou partem para produções independentes com ajuda dos fãs – a exemplo de Rob Zombie e seu último filme, “31”. Ainda que se afirme que o Vulgar Auteurism se resume a filmes de ação com suporte de distribuição e divulgação, seu histórico o define como um termo que viveu nas locadoras e hoje está no video on demand. Ainda sobre “31”, o filme foi produzido graças a ajuda dos fãs via Kickstarter, foi exibido em festivais e sem respiros parou nas plataformas digitais – e consequentemente nos sites de torrent. Resumindo: não houve tempo para o filme construir carreira.

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31 (Rob Zombie)

Herói ou vilão?

A respeito da discussão que o Vulgar Auterism devolve à crítica sobre a função da imagem e da própria crítica em tempos de dispositivos que dominam o olhar e que o interesse pela leitura é vertiginosa, é preferível ver com bons olhos o termo. A sensação é de ciclo, se voltarmos à “Política dos Autores”. Ainda que se questione constantemente o peso da grife sobre a palavra e que hoje tudo pode ser resolvido com buscas via YouTube, estamos portanto a falar sobre a vilania dos novos tempos. Ainda que suportada por alegorias com diversas funções e códigos, trata-se sempre do ode à narrativa e dramaturgia. Se há a possibilidade de uma provocação avant garde ao desinteresse e passividade do consumidor, cabe a questão se os autores vulgares são um bom caminho para o interesse do grande público. Principalmente por considerar a imagem ante ao verbo na arte contemporânea, o irreal e acessibilidade.

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Vulgarismo e prestígio – Alguns precedentes e considerações

Por Bernardo Moraes Chacur

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Discussões sobre o vulgar auterism costumam orbitar em torno do segundo elemento da expressão – isto é, sobre a pertinência da comparação entre esse conceito mal definido e o cânone estabelecido em torno da Política dos Autores nos anos 50. Talvez seja mais produtivo refletir sobre o primeiro componente da fórmula: a noção de vulgaridade em arte.

Respeitaremos o clichê e começaremos pela Poética de Aristóteles, que já abordava as relações de superioridade entre diferentes gêneros da mimesis. Segundo leituras mais apressadas desse texto, as formas mais elevadas de arte tratariam de temas e personagens elevados – Deuses, Heróis, Reis. Já a comédia representaria o seu extremo oposto: os piores tipos de comportamento, as classes mais baixas, apelo aos basic instincts do seu público. Variações desse discurso nortearam a hierarquização estética durante alguns séculos, embora algumas dessas máximas não possam ser diretamente atribuídas ao texto original sem alguma controvérsia.

No trecho a seguir (condensado a partir de duas passagens), o filósofo resume os preconceitos de seu tempo nos seguintes termos:

Com efeito, se a menos vulgar é a melhor, e se (…) [a epopeia] a que se dirige aos melhores espectadores (…) feita para um público de bom gosto (…) a tragédia se destina ao vulgo; e se a tragédia tem algo de banal, manifestamente é de qualidade inferior”[1]

Em seguida, Aristóteles defende a primazia da tragédia sobre a epopeia, contrariando esse consenso. Logo, seria o filósofo o grande precursor do vulgarismo? Ressalvando-se a malandragem confessa da seleção acima, é possível arriscar duas conexões entre este debate e outros bem mais recentes: 1) um determinado gênero, de alta aceitação popular, é julgado inferior a priori; 2) A refutação dessa suposta inferioridade, propondo modificar a valoração anterior.

Nessas disputas pela posição de diferentes gêneros em uma mesma hierarquia, raramente (ou nunca) a própria noção de hierarquia era atacada. Diferentes concepções foram utilizadas para definir o que constitui um tema elevado em outros períodos históricos: a partir da Renascença, a pintura ocidental prestigiou ora os tópicos religiosos, ora os histórico-mitológicos até chegarmos, às temáticas sociais alguns séculos mais tarde. Durante todo este intervalo, havia demanda pela chamada pintura de gênero e outras modalidades de menor status: cenas domésticas, naturezas-mortas, paisagens etc., com alguns gêneros ganhando ou perdendo ascendência ao longo do tempo. Ainda assim, podemos apontar uma constante cambiável: certos gêneros são considerados frívolos, enquanto outros, dignos de contemplação séria.

As questões envolvidas nunca eram meramente estéticas, gerando impactos socioeconômicos concretos sobre a produção artística: cargos oficiais para artistas, ensino em academias, o acúmulo ou desvalorização de capital cultural para um público consumidor que procurava se afirmar ou diferenciar socialmente. Mas entre tendências conservadoras ou contestadoras, os produtos culturais consumidos pelas classes mais baixas invariavelmente ocupavam a base da pirâmide do prestígio.

O interesse por histórias e formas de expressão populares só foi despontar na Europa quando as mesmas passaram a ser consideradas em vias de desaparecimento, sob as ondas de urbanização dos séculos XVIII e XIX (e o Nacionalismo, com sua ênfase na ‘descoberta’ de culturas próprias, foi de igual importância para essa valorização)[2]. Para nossa pauta, dois precedentes são relevantes nesse movimento folclorista a) os detritos de uma era passaram a ser o tesouro de outra; b) a cultura popular urbana era vista como uma forma decaída da anterior e as cidades como o espaço onde o patrimônio ancestral iria se perder.

Esta última ideia ainda era bem aceita em princípios de século XX, como atestam as reações causadas pelas novas mídias (fotografia, rádio, cinema). Os Guardiões do Bom Gosto puderam, até então, oscilar entre desinteresse e desprezo pelo juízo estético das massas. Agora, eram afrontados pela própria escala massificada dessa cultura. E o cinema, em suas primeiríssimas encarnações, concentrava todos os vícios atribuídos à vulgaridade urbana. Até os primeiros anos da década de 1910, certos locais dedicados à exibição de filmes – os nickelodeons, dentre outros – chegavam a ser considerados física e moralmente insalubres[3].

Transcorrido pouco tempo, consolida-se uma indústria de cinema, ofertando um produto assimilável pela Boa Sociedade. Nesse contexto de necessidade mercadológica e legitimação, o cinema cortejou os padrões pequeno-burgueses de respeitabilidade e distinção cultural, condensando em torno de si alguns milênios de indicadores de prestígio e hierarquias de gêneros (vários dos quais já ultrapassados àquela altura em seus campos de origem).

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Por vezes, apelavam-se às mesmas virtudes já repisadas desde a Antiguidade ou Renascença: os Eventos Históricos, a vida dos Grandes Personagens, a Relevância Social (todas presentes em o Nascimento de uma Nação de Griffith). Outro procedimento recorrente era a adaptação de textos consagrados da Literatura e Teatro, reivindicando de forma quase parasítica as glórias concedidas às outras Artes. Não por acaso, termos oriundos de uma noção ingênua de dramaturgia ainda são usados para enaltecer este “cinema de qualidade’, como a ‘Boa Estória’, ‘os Diálogos Inteligentes’ etc. Cem anos depois, alguns desses valores ainda persistem como critérios de excelência para parte do público e crítica.

A linha de montagem hollywoodiana seguiu produzindo a sua cota anual de Filmes Sérios, mas em número sempre inferior à oferta de títulos de genealogia menos ilustre: roteiros baseados em contos publicados em periódicos, no teatro melodramático e na literatura barata. Essa produção média não foi uniformemente desprezada pelos próximos 30 anos: atingindo milhões de pessoas, o cinema consolidou o seu nicho, justificando o surgimento de uma crítica especializada. Ainda assim, a sua ordenação no totem de prestígio manteve-se, na melhor das hipóteses, intermediária. Até o final da década de 50 e o advento do “autorismo”[4].

Na ocasião, dois fenômenos complementavam-se: 1) a expansão de um cinema internacional, com sua alteridade em relação à Hollywood e seus sobrenomes convertidos em marcas registradas (Kurosawa, Bergman, Fellini etc.); 2) a defesa entusiasmada, por parte de uma nova geração de críticos, de nomes que atuavam há décadas no cinema americano. Tais discussões acabaram gerando um cânone alternativo (e que se tornaria “oficial”) de Grandes Cineastas, composto por realizadores europeus, asiáticos e – em pé de igualdade ou precedência – diretores baseados nos EUA e cuja obra consistia em suspenses, comédias, faroestes etc.

Esse movimento não deve ser interpretado como uma heroica caminhada até a luz. Antes, trata-se de mais uma etapa na trajetória da valoração cultural: defender que a 7ª ARTE possuía Autores (vulgares ou não), também era um recurso de conquista de prestígio, reivindicar o mesmo status das suas seis precedentes e inseri-la em uma narrativa equivalente, com seus Grandes Homens, Gênios e Autores (de Homero a Shakespeare, de Michelangelo a John Ford). Além disso, escrever um livro sobre Hitchcock não é apenas uma defesa do valor do diretor inglês, mas também a defesa do valor de escrever sobre o diretor inglês, ou seja, um exercício de autojustificação para um público de entusiastas e para os próprios críticos e estudiosos.

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II.

Uma variação da seguinte anedota é veiculada periodicamente na imprensa e redes sociais: um balde, esfregão ou qualquer objeto prosaico é esquecido em um museu e o público confunde-o com uma obra em exposição (nas entrelinhas: a suposta falta de legitimidade da arte moderna/contemporânea). As suas origens podem ser traçadas até o momento em que Duchamp expôs um urinol e batizou-o A Fonte. A obra pode ser interpretada de diversas maneiras, uma delas bastante aplicável ao nosso tema: a importância da posição, do quadro de referência para as construções de Sentido. Mais do que uma provocação, a Fonte de Duchamp (e as anedotas sobre baldes esquecidos) sugere algo essencial sobre o funcionamento do sistema.

Alguns exemplos, mencionados ou apenas sugeridos nos parágrafos precedentes: os contos populares do início da Idade Moderna eram apenas a camada inferior da cultura no seu próprio tempo e alguns séculos depois, Folclore. Vertigo foi recebido como um mistério mediano e mal resolvido em 1958 e o maior filme de todos os tempos em 2012[5]. Deslocando o nosso foco da recepção para a produção dos textos: a Poética pôde ter elementos de polêmica quando escrita, mas converteu-se em manual de excelência literária poucos séculos depois. A Política dos Autores, de controvérsia inicial passou a influenciar concretamente a importância dos diretores na Indústria, em pouquíssimos anos.

Especialmente nos dois primeiros exemplos, temos um mesmo texto recebido de formas completamente diferentes em um novo contexto, demonstrando a importância da moldura, da inserção do objeto no Museu, para a construção do sentido a cada leitura. A maneira como os objetos, culturais ou não, são confrontados é de tal forma orientada pela sua função, status e discursos adjacentes que é impossível pensa-los de forma separada de seu quadro de referência, isolar a Obra-em-si. O que não quer dizer que a Obra não exista, que todo o sentido seja arbitrário, uma mera ilusão de ótica convencionada por cada grupo observador.

Quando os folcloristas passaram a debruçar-se sobre a literatura vernácula, identificaram inúmeros pontos de interesse relativos à sua estrutura, a sua capacidade de produzir variações e as suas raízes históricas. Quando a crítica começa a exaltar Hitchcock, depara-se com um domínio estilístico e densidade temática observáveis na construção de cada plano. Em ambas as situações, a recepção não se produziu aleatoriamente, mas a partir de elementos identificáveis nas próprias obras. Paul Ricœur certa vez resumiu que a Leitura (que deve ser entendida de forma ampla) consiste no encontro entre um mundo do texto e um mundo do leitor[6]. Nenhum dos dois elementos deve ser negligenciado em uma discussão sobre o sentido.

Ambas as situações atestam a crescente importância do formalismo no pensamento ocidental sobre a estética. Percebe-se o deslocamento de uma análise e valorização centrados na temática evidente, nos referentes da obra no ‘mundo real’ (valores ‘externos’) para a consideração dos elementos constitutivos do texto e seu aparato de produção (valores ‘internos’)[7]. Evidentemente, tais transições não são totais nem homogêneas, menos ainda o ponto final da História em uma linha de evolução constante. A análise formalista não é a única possível em 2016, tampouco constitui a resposta ‘certa’ ou definitiva.

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III.

No Islã, os xiitas creem que a Revelação se encerrou com o Profeta, enquanto para os sunitas, ela continuou até os seus sucessores diretos. O autorismo também possui seus xiitas e sunitas. Os xiitas acreditam que a inspiração divina se limitava à canonização de Hitchcock, Hawks, Ford etc. e que nunca mais se encontraria algo de valor sob a cobertura do cinema de gênero. Sunitas diversos estenderam o precedente para outros cineastas e décadas em uma fronteira periodicamente deslocada, mas jamais abolida. Dessa forma assistimos a gradual incorporação das comédias de Tashlin até os zumbis de Romero ao quadro de respeitabilidade. Ainda assim, cada nova tentativa de expansão desse limite costuma encontrar resistências.

O ramo xiita costuma protestar que as práticas dos autores originais eram indissociáveis do modo de produção da Hollywood Clássica. Já os sunitas podem objetar que um Isaac Florentine não estaria no mesmo nível de um Paul Verhoeven (um dos mais recentes reabilitados). No entanto, tais protestos só são aplicáveis à indagação menos interessante (existem Autores, em termos comparáveis aos grandes cineastas do passado, em espetáculos de CGI 3D ou em fitas de pancada Direto-para-Streaming?), em prejuízo de questões mais férteis: pode-se encontrar valor estético no Vulgar? É possível confrontar e produzir ideias a partir deste ‘gênero’?

Cortejarei protestos sugerindo um instante de comparação entre dois filmesAdeus à Linguagem 3D dispensa lógica narrativa e personagens, a exemplo das últimas décadas da filmografia de Godard. Para processar com sucesso os seus temas nos termos propostos pelo diretor franco-suíço é necessário, além de certa familiaridade com alusões filosóficas e literárias, atentar para o sentido produzido pelos seus procedimentos formais, pelos elementos constituintes das imagens que se sucedem e como eles ilustram e complicam as ideias sugeridas pelo próprio título da obra e pelas frases que irrompem ora escritas, ora proferidas pelos atores em cena.

Para os dispostos, a experiência permite uma exploração sobre o estado da Linguagem (cinematográfica ou não), sua adequação para confrontar questões políticas, pessoais e seu potencial para o autoritarismo e violência. Outra abordagem possível seria admirar a beleza das imagens e da mise-en-scène, sem fazer questão de decodificar cada passagem. Por outro lado, a experiência mais frustrante seria buscar no filme uma estória coerente ou personagens que permitam uma identificação com o público (mal-entendidos frequentes).

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Resident Evil: Retribuição (também 3D) não parece preocupado com uma lógica narrativa impecável ou desenvolvimento de personagens. Há um enredo, que trata da manipulação violenta de espaços físicos e temporais simulados e da sobrevivência nesta fronteira permeável entre real/virtual. Aproveitando-se do fato de que praticamente todas as imagens foram produzidas digitalmente, Paul W.S. Anderson libera a sua “câmera” e a faz transitar em velocidade vertiginosa entre visões microscópicas e telescópicas da ação, acelerações e desacelerações do tempo, transições entre mapas de videogame e cenários “reais”.

Para os dispostos, o efeito cumulativo desses procedimentos formais ilustra e complica um subtexto não muito distante do próprio texto. Outra abordagem possível seria simplesmente se divertir com a beleza das imagens, com o absurdo das situações e a inventividade da mise-en-scène. Por outro lado, a experiência mais frustrante seria procurar no filme uma estória, personagens e atuações que atendam aos padrões de dramaturgia-cinematográfica-de-qualidade vigentes em 2016.

A comparação proposta pode soar descabida, uma vez que Godard é considerado um intelectual, enquanto Anderson dirigiu quatro adaptações de videogames. No entanto, penso que os exemplos superficialmente elencados nestas páginas ilustram o caráter historicamente variável de cada leitura. Cientes disso, ao invés de perpetuar as interpretações já autorizadas, podemos explorar as possibilidades de um confronto aberto com cada obra. Ao perseguir esse objetivo, não nos desvencilharemos completamente de nossas preconcepções, mas torna-se possível pensá-las e testar os seus limites. Armadilhas nos aguardam a cada passo. Um erro comum seria acreditar que, uma vez que o vulgar de um período pode se tornar valorizado no próximo, todo produto marginal estaria destinado a uma revalorização futura, em um mero processo de reversões cíclicas.

Para finalizar, vale lembrar que tais movimentos não possuem mão única. Quantos filmes não seriam levados à sério graças ao seu verniz de importância, antes de qualquer análise? E ao longo do tempo, mesmo os cânones podem perder a sua centralidade. David Bordwell ao estudar pormenorizadamente a linguagem clássica de Hollywood, não pôde deixar de notar o quanto os arthouses que lhe faziam contraponto também compartilhavam entre si semelhanças estéticas, estratégias narrativas, e convenções: o original, portanto, tinha (e continua a ter) um forte componente genérico, que certamente não o torna pior, mas coloca em cheque a sua hipotética superioridade. E se as filmografias de Jerry Lewis e Ingmar Bergman podem se ver igualadas em diferentes climas, outras obras, outrora incensadas, podem sofrer pior destino, como atesta a legião de títulos premiados a quem restou o proverbial Olvido da História – deslocamento que, por sua vez, também não será necessariamente irreversível.

 

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Agradecimentos a Arthur Tuoto, Bruno Amato, Marcus Martins e a toda comunidade CV. Agradecimento especial para Guilherme Gaspar, que tornou este texto legível.

[1] Seguem as passagens originais: “XXVI. 2.: Com efeito, se a menos vulgar é a melhor, e se é sempre esta [a epopeia] a que se dirige aos melhores espectadores, a que se propõe imitar tudo seria, por conseguinte a mais vulgar. (…) 5. Esta [a epopeia], segundo se diz, é feita para um público de bom gosto, que não precisa de toda aquela gesticulação, ao passo que a tragédia se destina ao vulgo; e se a tragédia tem algo de banal, manifestamente é de qualidade inferior.” A poética clássica /Aristóteles, Horácio, Longino.  Introdução Roberto de Oliveira Brandão; tradução Jaime Bruna. 7.  ed.  São Paulo:  Cultrix, 1997.

[2] Os fenômenos mencionados não esgotam os fatores envolvidos nessa transição. Sugiro BURKE, Peter. Cultura popular na idade moderna: Europa 1500-1800 / trad. Denise Bottmann. São Paulo, Companhia das Letras, 2010. para um panorama abrangente da mesma. Também penso haver grande interesse em pensar a questão sob o prisma das mudanças epistemológicas – vide As palavras e as coisas (FOUCAULT, Michel. Les mots et les choses. Paris: Gallimard, 1966.).

[3] Para este e os próximos parágrafos: COSTA, Flávia Cesarino. O Primeiro Cinema: Espetáculo, narração, domesticação. São Paulo. Scritta, 1995 e Bordwell, David; Staiger, Janet; Thompson, Kristin. The Classical Hollywood Cinema. Film Style & Mode of Production to 1960. Nova Iorque: Columbia University Press: 1985.

[4] O autorismo da década de 50 não representa a primeiríssima vez em que se atribuiu aos diretores aspirações e méritos estéticos. Não nos interessa aqui o ineditismo da abordagem, mas o papel desempenhado pela mesma na mudança de status experimentada pelo cinema a partir daquele período. Tampouco deve-se acreditar em uma equivalência automática entre autorismo e análise “esclarecida”, uma vez que diversas refutações e corretivos já foram propostos aos seus axiomas (que vão desde os mais ingênuas –  propor outra classe profissional, como os roteiristas, como principais autores de um filme – aos mais pertinentes – como apontar as tendências autoristas em ancorar suas leituras nas discutíveis “intenções do autor” ou ignorar contextos históricos em prol de um discurso excepcionalista).

[5] De acordo com a enquete realizada a cada dez anos pela Sight and Sound.

[6] RICŒUR, Paul. Temps et Récit . Volume 3, Le temps raconté. Paris: Seuil, 1991. (Coll. Points – Essais).

[7] Tentei aludir aqui aos conceitos de episteme e formações discursivas, conforme descritos por Foucault em As Palavras e as Coisas, já citada anteriormente. Restringindo muito a abrangência dessas ideias, arrisco resumir que o discurso (em nosso caso, a hierarquização) é inseparável de suas condições de possibilidade (as premissas que definem o que constitui a excelência). Vide nota 2 acima.

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Paranoia & Solidariedade: O Cinema de Jaume Collet-Serra

Por Bruno Amato Reame

O que significa hoje em dia no cinema americano ser um cineasta de gênero, mas de projetos originais, sem filiações às infames franquias? Significa abrir seu próprio espaço de forma difícil e gradual, sendo ignorado pelos olhos desatentos de quem nada enxerga de expressão pessoal vindo da indústria. É o caso de Jaume Collet-Serra.

Nascido na Catalunha, mudou-se para os EUA (segundo suas palavras, com um inglês apenas básico) aos 18, para formar-se em cinema. Aparentemente essa experiência de deslocamento o marcou: um elemento recorrente em vários de seus filmes é o contato entre americanos e estrangeiros. Um contato marcado inicialmente por medo, rejeição ou alheamento dos primeiros aos segundos. Daí os crimes bárbaros da psicopata mirim (e russa) de A Órfã (2009), por exemplo, poderem ser entendidos inicialmente como uma reação a uma cultura homogênea que a rejeita por ser diferente, ao menos até uma revelação complicar – ou simplificar, dependendo do ponto de vista – essa visão.

Formado na Columbia College, seu trabalho como diretor de clipes e comerciais de TV chamou a atenção do produtor Joel Silver, que o contrataria para dirigir o remake de A Casa de Cera (2005). Parte de uma nova leva de teen slashers, o longa se destacou pela composição visual mais requintada que a média no gênero. O clímax, em que a literal casa de cera do título derrete aos poucos, soterrando consigo de forma concreta e metafórica todas as mentiras criadas por seus arquitetos, é memorável nesse sentido. O filme também se esforça em estabelecer subtextos inesperados, como o paralelo entre os crimes dos assassinos que matam gente jovem e bonita preservando seus corpos como estátuas de cera e o próprio gênero slasher, que faz o mesmo com seus jovens astros. Não surpreende que A Casa de Cera teve seus defensores entusiasmados. Não foi meu caso na época e nem mesmo hoje em dia. O filme perde muito de seu potencial com os adolescentes desinteressantes – na verdade, nem mesmo os vilões causam alguma impressão, pecado mortal no gênero. É possível que o próprio Jaume concorde comigo: é significativo que os seus longas posteriores contem com protagonistas de uma faixa etária significativamente maior, ao menos até o recente Águas Rasas (2016).

O importante é que a partir dali iniciava-se uma carreira. Seus filmes passam a ter um material dramático com mais oportunidades para o elenco trabalhar e brilhar. Tal interesse não se limita aos personagens principais: pensemos no encontro entre Frank Langella e Bruno Ganz em Desconhecido (2011). Há um cuidado ali para fazer valer cada instante daquela interação, e até adicionar uma camada inesperada ao que seria apenas mais um malvado genérico.

Depois de A Casa de Cera, um olhar desatento sobre o restante de sua filmografia pode sugerir inicialmente uma obra por demais heterogênea e impessoal, quando na verdade é de uma coerência exímia. Esta análise equivocada é compreensível pois, afinal, o que pode haver em comum entre adolescentes presos numa cidade falsa, uma mãe às voltas com uma filha adotiva homicida, um botânico cuja identidade é roubada numa Berlim sem memória (como é memoravelmente descrita no filme por um coadjuvante), um segurança aéreo tentando identificar um assassino anônimo entre centenas de passageiros durante um voo, pai e filho correndo a noite toda da Polícia e da Máfia numa Nova York labiríntica, e uma surfista presa num recife tentando escapar das mandíbulas de um tubarão?

São premissas que soam como blefes picaretas, sem dúvida. No entanto há algo de interessante na maneira com que esses filmes nos remetem a uma lógica de jogo – aliás, se algo aproxima Jaume de demais cineastas dito vulgares é a afinidade com os videogames. É aprazível ver a engenhosidade de seus personagens resolvendo seus problemas e, por analogia, ver este diretor resolver seus filmes. Porém, acredito que vê-lo como um diretor de premissas absurdas seja um ponto de partida possível, mas limitado. Jaume tem interesse real naquelas situações, em como expressá-las cinematograficamente (seu uso de cor é sempre notável), e os efeitos dramáticos delas naquelas pessoas (não tenho dúvidas de que ele deve concordar com a máxima de Tag Gallagher de que em cinema personagem é mais importante do que narrativa).

A identidade, ou melhor, sua reconstrução após a fratura, é a grande questão de sua filmografia. Seus personagens estão presos em situações-limite improváveis, ratoeiras físicas, mas também mentais: trauma, remorso, luto, alcoolismo etc. Para escapar destes ardis, seus heróis têm que decidir quem são, ou melhor, quem querem ser. Só quando resolverem seus dilemas internos conseguirão sair do buraco em que estavam para abrirem seu próprio espaço.

Num mundo de ameaças reais, mas ocultas, a solidariedade (no sentido de reciprocidade) é o único valor autêntico. Essa solidariedade, entretanto, tem seu preço: pessoas inocentes morrem com frequência no cinema de Collet-Serra, em geral por tentarem ajudar o herói do filme e/ou por estarem perto demais dele. O cineasta sempre lamenta estas mortes, elas nunca são diversão ligeira no cinema dele: câmera sempre se demora no corpo e no rosto de cada vítima inocente uns segundos a mais do que estamos acostumados no mainstream.

Já era possível ver sinais destes temas, de forma simplória, em seu primeiro longa: os protagonistas de A Casa de Cera são irmãos gêmeos, mas de relação tensa, disfuncional. Só depois de verem seus amigos serem mortos pelos psicopatas (gêmeos também) é que se unem para detê-los. Já em A Órfã, o cineasta faria um trabalho mais elaborado nesse sentido. Aqui uma mãe (Vera Farmiga) alcoólatra, e em luto, assiste impotente a vilã se ocultar atrás da máscara da inocência infantil. Nenhuma autoridade – familiar, institucional – pode ajuda-la, pois ninguém a escuta, exceto por um médico estrangeiro via ligação internacional num momento crítico da trama. No fim a menina assassina em série menos destrói uma família e mais estilhaça as rachaduras pré-existentes dela (estilhaços de espelhos, claraboias e lagos congelados são parte fundamental do clímax, por sinal). Se A Órfã é o mais sombrio de seus filmes (mas também um dos mais engraçados) é porque a fratura exposta parece grande demais para uma recuperação completa.

Por outro lado, a solidariedade ficaria ainda mais evidente nos dois filmes seguintes, os Liam Neeson thrillers Desconhecido e Sem Escalas (2014). No primeiro, após um grave acidente automobilístico, o herói acorda do coma em Berlim para descobrir que sua vida foi roubada por um impostor com perfeição assustadora. Quem irá acreditar em sua história maluca? Bem, apenas imigrantes ilegais e outros desajustados, a maioria dos quais infelizmente não viverá até os créditos finais. Uma dessas imigrantes (Diane Kruger) aconselha o personagem principal que ele não pode mudar o que ocorreu, mas pode agir aqui e agora, palavras que soam como o credo de Jaume no restante de sua filmografia. Já em Sem Escalas, o segurança de voo de Neeson é outro herói alcoólatra e em luto desse diretor. E para este policial resolver o mistério será preciso que ele arranje os aliados certos entre os passageiros (e vítimas potenciais) do avião, além de abusar de sua autoridade legal em ecos de pós 11 de setembro.

Por outro lado, o Liam Neeson thriller seguinte parece marcar uma ruptura com o que veio antes. Não há muito espaço para solidariedade em Noite Sem Fim (2015), nem para inocentes. Ao contrário, aqui Neeson (assassino profissional, alcoólatra e pai relapso) mata muitos amigos e colegas do submundo – mas tais mortes também são lamentadas assim mesmo. É o filme que mais ressalta o catolicismo deste diretor catalão. Comparações com Lang e Hitchcock se revelam apropriadas não porque Jaume trabalha no gênero thriller, mas por esta moral católica: seus heróis também são atormentados pelo pecado original (e os inocentes que os ajudam poderiam ser os primeiros católicos perseguidos pelos romanos). Noite Sem Fim termina sugerindo que nem sempre há espaço ou tempo para reconstruir fraturas. É o contraponto pessimista ao restante de sua carreira.

De certa forma, o contraponto prossegue em seu trabalho mais recente, Águas Rasas. Trata-se do mais básico e eficiente de seus filmes: uma surfista (Blake Lively), uma praia, um tubarão, uma pedra e uma gaivota, elementos empregados pelo cineasta com cuidado e paciência. A heroína da vez também está de luto e suas férias no México fazem parte do processo. Grande parte do suspense do filme parte de que uma vez com a perna machucada e isolada pelo tubarão num recife, não há nada que ela possa fazer – aparentemente – exceto pedir ajuda (mas ela não fala espanhol…). Diferente de Desconhecido e Sem Escalas, por exemplo, não há espaço para aliados possíveis – cada vez que ela pede ajuda uma nova fatalidade ocorre. Será preciso que ela aceite, em vários sentidos, que a morte é o risco da vida, para superar suas barreiras.

Em suma, apesar do humor de seus argumentos inusitados, Jaume leva seus personagens muito a sério, sem permitir, contudo, que seus filmes inflem em autoimportância. Há sempre um equilíbrio fino entre um humilde pragmatismo com expressividade visual. Não estamos falando de Christopher Nolan, portanto, mas também não estamos falando de outros tantos diretores em Hollywood, bons ou ruins, vulgares ou não, cuja autoria pode muitas vezes ser facilmente detectada por um trabalho mais evidente de exacerbação das formas (Shyamalan, Paul W. S. Anderson etc.) ou filiação acintosa a um modelo de melodrama clássico (os últimos James Gray). Ou seja, embora o catalão seja um indiscutível autor, o mais surpreendente talvez seja perceber que ele é um autor em sua ideia mais anacrônica (e discutível) possível, aquela do talento dentro do sistema que discretamente estabelece sua personalidade (seu lugar na indústria enquanto autor é anacrônico, não exatamente os filmes em si). Jaume Collet-Serra abriu seu próprio espaço; cabe a nós enxergar seu rastro.

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Destruir, Reconstruir – Resident Evil: Retribution (2012)

Por Arthur Tuoto

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Shopping (1994) de Paul W.S Anderson

O espaço da cena, no cinema de Paul W.S. Anderson, é um espaço de controle. Desde filmes como “Shopping” (1994) e “Event Horizon” (1997) é possível reconhecer o estúdio como uma espécie de zona mística de regras próprias. A Londres distópica submissa a uma ordem urbana de propriedade e consumismo no primeiro, a nave espacial stalkeriana de uma vocação diretamente gore no segundo. Alegorias científicas e aproximações pós-apocalípticas à parte, essa veneração pela hiperconstrução de um espaço, acaba, invariavelmente, estabelecendo uma dinâmica formal bastante dominadora. Mas o controle, aqui, está longe de engessar ou inflexibilizar as possibilidades narrativas da obra. Pelo contrário, os filmes de Paul W.S. Anderson são como playgrounds engenhosos onde todo tipo de imaginário fantasioso – de uma adaptação steampunk de “Os Três Mosqueteiros” ao barroquismo abstrato da queda de Pompeia – parece possível. O gosto pelo simulacro não significa um desejo pela fiscalização de certos modos, pelo controle como uma dimensão daquilo que é essencialmente estável, mas sim por uma possibilidade de invenção, por um laboratório arquetipal independente. Cada filme é um ecossistema próprio, munido de simbologias e mandamentos plásticos autônomos. Uma realidade à parte que, assim como uma fauna e flora particular, demanda os seus próprios modos de sobrevivência. “Resident Evil: Retribution” não representa apenas o ápice desse modelo processual; é o filme que, devidamente, melhor escancara o seu método.

E se estamos diante de um filme de método, estamos diante de um filme conceitual. O quinto trabalho de uma franquia de pleno sucesso comercial lança mão tanto de um apelo industrial evidente em seu arsenal de violência explosiva, como de elementos claramente subversivos em sua estrutura autoreferencial. Ao mesmo tempo que assistimos a um filme que tem no fluxo de uma ação hiper-real constante o seu mote prático, essa mesma hiperconstrução, esse mesmo espaço do estúdio passivo de intervenções gráficas desmedidas, vai se desfazendo e se renovando, vai passando por temáticas e abordagens distintas a medida que o filme vai evoluindo.

Ora, não estaríamos, finalmente, diante de um adaptação de video game que de fato intui o seu objeto? Mais do que se focar na dinâmica cinematográfica natural da jornada de um jogo, “Resident Evil: Retribution” é um filme sobre o gameplay em si. A centralização em uma personagem motivo vai além de uma demanda dramática, o filme existe para conceber novos obstáculos, novas fases, novas realidades a partir um elemento temático chave: a sobrevivência. Afinal, quantas vidas possui nossa personagem?

Já no começo do filme o diretor propõe uma imagem de ressurreição. Após sair derrotada do combate final do filme anterior  – “Resident Evil: Afterlife” (2010) -, Alice afunda de braços abertos no oceano para, logo depois, acordar em uma cama, com uma família, com um cabelo diferente. Aonde estamos? Em uma realidade doméstica alternativa onde não apenas personagens do passado voltam em relações familiares distintas, mas a exata mesma ameaça continua: zumbis. Essa mudança de perspectiva funciona como uma espécie de falso reset onde somos transportados para um universo que remete a “Fim dos Tempos”, de Shyamalan: o filme como uma alegoria luminosa dos próprios elementos. Nessa falsa história familiar que abre o filme, a ameaça dos zumbis contrasta com um ambiente artificial, asséptico, cosmético. Tudo é muito iluminado, é frontal. Estamos em um filme de terror às avessas?  Não, apenas  em um simulacro. Dessa vez, dentro da própria obra. Ou seja, já de início fica muito claro que o controle não será apenas a forma do filme, mas também o seu objeto.

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Personagem derrotada: A ressurreição simbólica como um mote do gameplay

Neste filme de simulacros sobre simulacros, o espaço do estúdio, tão caro ao diretor em todos os seus filmes, acaba ganhando uma dinâmica muito mais plural. A hiperconstrução, agora, não precisa mais passar pela dramatização assombrosa de “Event Horizon” (1997), pela reconstituição história de “Pompeia” (2014), ela pode, simplesmente, se dar ao prazer de invocar os elementos que deseja. Não é preciso uma justificativa ou uma demanda narrativa, tudo é permitido. O filme ganha uma maleabilidade icônica que, consequentemente, gera uma atemporalidade implícita em toda a sua caracterização. De cenários futuristas a perseguições old school, de zumbis orientais a motoqueiros russos sem cabeça. Um laboratório de práticas que tem prazer em percorrer por uma vasta diversidade de dinâmicas do cinema de ação. Mais do que isso, que faz dessa diversidade, dessa relação elementar livre de amarras dramáticas, tanto o seu instrumento de comentário icônico como de pragmatismo recreativo.

Dentro desse esquema de representações, os componentes básicos da dramaturgia podem até ganhar uma qualidade essencialmente ambígua, tanto em relação ao espaço físico (cada cenário é uma simulação assumida), como ao drama em si (o vínculo dramático mais forte do filme é entre Alice e uma criança que não é sua filha, mas apenas um clone de uma das simulações), mas ao mesmo tempo que o diretor estabelece essa relação dúbia com o seu meio, a todo momento ele venera uma qualidade muito palpável da cena. A simulação inventa uma realidade, mas suas consequências são materialmente efetivas. Frente a isso, Anderson concebe uma dinâmica de destruição e renovação bastante particular.

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“It’s just like a camera. Point and shoot.” É o que Alice diz ao ensinar uma personagem a usar uma arma. “É como uma câmera”: o extermínio é compreendido como um exercício elementar de cinema. Existe uma relação muito clara entre essa hiper-realidade ambígua do espaço do estúdio e a validação da violência como um artifício de aniquilamento, mas, também, de renovação. A violência não é uma via de catarse. Não estamos em um filme de Quentin Tarantino. O sangue, no cinema de Paul W. S. Anderson, não é um elemento de purificação, é muito mais um meio, um artifício que compactua com suas alegorias humanistas. “Os Três Mosqueteiros” mal derruba uma gota.  A violência é efetiva, mas ela está ali, principalmente, como uma manifestação renovadora.

É justamente nesse dinâmica renovadora que repousa a matéria anti-cínica do filme, o seu mote essencialmente shyamaliano, por assim dizer. O mundo, mesmo chegando a um fim, ainda merece uma chance. Os personagens estão, a todo momento, disposto a morrer um pelo outro. Alice arrisca a própria vida para salvar uma criança que não passa de um clone, de uma invenção de um computador. É como se, não tendo aonde se agarrar, todos criassem elos com o que ou com quem está mais próximo. Em um planeta em plena destruição, em um filme onde tudo é simulação, parece que a única coisa que de fato interessa é o fator humano. Mesmo que, novamente, esse fator também não passe de uma miragem, de uma ilusão aparente que retome um desejo materno. Nada mais natural do que, em um projeto cinematográfico sobre a sobrevivência, o elemento catalisador da ação seja a esperança, a possibilidade de reconstrução como um mote dramático agregador.

Nesse sentido existe mesmo uma ingenuidade possibilitadora dentro das relações dramáticas da obra. Uma frontalidade que, conciliada ao seu tom de filme de ação experimental, de método pelo método, promove o filme de Anderson a esse exemplo mor do vulgar auteurism. E, de fato, se por um lado o filme possui uma relação muito concreta com a sua iconografia, uma recusa por metáforas e uma relação alegórica direta com o seu universo – um zumbi é um zumbi, uma ameaça à vida, nada mais e nada menos – por outro concebe-se a inevitável conceitualização dessa jornada. Ou seja, existe uma relação vulgar, comum, um mote recreativo assumidamente comercial, como também toda uma dinâmica processual que se debruça sobre elementos de identidade e representação.

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Mesmo a relação do filme com a caracterização do seu espaço urbano subverte elementos de uma certa representação cinematográfica em voga, em especial no seu mote destrutivo de filme catástrofe. A obra assume essa impessoalidade da metrópole como um objeto estrutural. O estúdio cinematográfico funciona como um estúdio ficcional mas também, sempre, artificial. Uma cidade surge e é destruída em poucos minutos. Não existe a dramatização do espaço. Não existem figurantes morrendo. Não existe dano colateral, já que cada vida é preciosa. Até mesmo a caracterização da ex-União Soviética como o único cenário real dentro da ficção parte de uma dinâmica artificial. Alice e seus comparsas destroem todas as simulações do filme para embarcar em uma luta final na superfície, perante a realidade, perante o que restou de submarinos e instalações soviéticas em um cenário que, ainda assim, soa tão elaborado como os cenários simulados no subsolo. Os artefatos, o símbolo do foice e do martelo, a neve. Tudo remete a uma distopia distante, a uma fábula política perdida no tempo.

Muito oportunamente essa realidade que ainda soa como simulação, essa neve com cara de estúdio, parece mais do que apropriada como cenário desse embate final. Longe da grandiosidade das fases já percorridos, das explosões cromáticas e dos longos corredores de profundidade de campo infinita, só resta uma relação muito elementar com o corpo e com a luta, com uma dinâmica que assegura a ação não só dentro da sua prática de gênero, de filme de ação, mas como a potência elementar do cinema, como o gesto isolado dentro desse cenário branco, sintético. Um cenário que, outra vez, reitera a ideia do estúdio como um lugar ilhado, de atenção a dinâmicas muito essenciais da imagem e do movimento, do corpo que briga, que cai e se levanta, que insiste em continuar lutando.   A ação, no cinema de Paul W. S. Anderson, parece ser tão elementar quanto é possível. Mesmo com toda a sua orquestração de flerte maneirista, seus slow-motions e seu ballet de corpos e gestos, toda intenção é assertiva, é direta, é executada com um destino certo. O aniquilamento não é a esmo, ele tem um propósito, ele derruba para reerguer, ele destrói para reconstruir. Lutar, afinal, é um ato de resistência.

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Mistérios ao Vento: Fim dos Tempos (M.Night Shyamalan, 2008)

Por Álvaro André Zeini Cruz

 

Mais que qualquer outro elemento filmável, o vento é aquilo que injeta na imagem de cinema o movimento, não o movimento deste ou daquele corpo, mas o movimento do mundo, o deslocamento incessante de todas as suas partes (OLIVEIRA JR. 2015, p. 174)[1].

 

Cinema é imagem em movimento. A organização desses movimentos na unidade mínima do filme – o plano –, cabe à mise en scène, vocábulo controverso que sofre de um paradoxo: às vezes é ampliado à fórceps, contendo tudo o que concerne à estética do filme; outras, é reduzido à simples ordenação dos corpos em um espaço e tempo. Entretanto, a imagem fílmica trabalha com corpos decalcados, impalpáveis, fenômenos luminosos que atravessam a tela bidimensional. A mise en scène é, assim, a arte de canalizar e coreografar os corpos antevendo os fenômenos que eles virão se tornar na tela. Mas fenômenos nem sempre são completamente compreendidos, diz um aluno desinteressado quando questionado pelo professor de ciências, Elliot (Mark Wahlberg). Surpreso pela colocação vir de onde menos se espera (imprevisível, tal qual o assunto), o professor concorda e acrescenta que a ciência muito teoriza, mas falha em não reconhecer que há forças além de qualquer entendimento. A percepção de que o mistério é uma existência incontornável rege o projeto cinematográfico de M. Night Shyamalan; em Fim dos Tempos (The Happening, 2008), essa força oculta é representada pelo mais primordial e enigmático dos movimentos, aquele que não envolve músculo ou engrenagem, visível apenas por conta da ação sobre outros corpos. O vento é o fenômeno que descortina todos os outros neste filme maldito de Shyamalan.

É ele quem sopra e silva como um prenúncio do horror no cabelo da loura no Central Park, pouco antes de ela narrar os estranhos acontecimentos no extracampo. Quando o corte revelador acontece, o cotidiano já está alterado. A acompanhante da moça, então, perfura a própria jugular. O suicídio – erupção suprema do inexplicável –, surge como uma potência enunciadora, que revela a existência de mistérios profundos e talvez indecifráveis – aqueles que assolam a alma. E é justamente Alma (Zooey Deschanel), esposa de Elliot, o segundo enigma a ocupar a tela: ela que, sabe-se mais tarde, detesta expor seus sentimentos, aparece pela primeira vez enquadrada num close que eleva o olhar de simples ato de visionamento ao status de um enigma natural. Nem mesmo a conhecida descrição machadiana seria capaz de circunscrever o poço de segredos que é esse olhar da atriz no plano; incógnito sobretudo ao marido, que se apega a um anel das emoções na falsa expectativa de tentar desvendá-la. O vento, presença incorpórea, encontra em Alma seu par corporificado, tão misterioso e imprevisível quanto. Assim sendo, é em torno dela que o filme se constrói.

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Alma é a protagonista de uma imagem shyamalaniana recorrente: o plano detalhe das mãos que se dão; no caso, a dela e a de Jess, filha de um amigo de Elliot. Antes vem a advertência paterna – “não pegue na mão da minha filha a não ser que seja de verdade”. A formação desse enlace tátil (presente num desconcertante slow motion em A Vila, e sublinhado por Tyler em A Visita) é o início de uma construção que realinhará o matrimônio em crise, pois logo em seguida, a introspectiva Jess se desvencilha de Alma para encarar um contracampo ainda desconhecido. A aproximação da câmera potencializa o olhar da garota antes de revelar o ponto de vista – Elliot, o homem da ciência, ciente dos mistérios do mundo, mas incapaz de superar os do próprio casamento, isolado em sua mais completa impotência e insignificância. A menina, então, invade o quadro; entrada que atrai o olhar de Alma, fazendo com que os enigmas que preenchem esse olhos recaiam pela primeira vez sobre os mistérios do outro – o marido. As mãos de Elliot e Jess se tocam, não num detalhe como outrora, mas no geral, único enquadramento capaz de conter a força do abraço e do choro que dali emergem. A visão da dor reconecta Alma ao mundo e faz com que ela se abra a Elliot, antes restrito às tentativas de adivinhação desesperadas por meio de um objeto inusitado, o anel ordinário. Resta a ele reencontrá-la.

Essa jornada de reencontro é percebida e verbalizada pela velha bizarra que lhes oferece abrigo. “Quem está em busca de quem?”, ela questiona antes de discursar sobre a permanência da troca de olhares entre o casal. Elliot, então, assume: é ele quem busca Alma, quem quer compreendê-la e encontrá-la por completo. Inicia-se um momento peculiar dentro do filme, como se Shyamalan abrisse um parênteses em seu horror subversivo, às claras, para ir ao tradicional do gênero, a casa (e a velha) mal assombrada. É quando o casal se separa para que, privados do corpo um do outro, se encontrem enquanto espíritos, energias, presenças metafísicas. Conversam pelo encanamento que liga os cômodos que os separam. Relembram o anel, presente trocado quando se conheceram, mas não a cor que nele representaria o amor. Cor, outro fenômeno incorpóreo, cujas leituras e mistérios também são, geralmente, racionalizados e reduzidos. Contudo, a percepção do olhar sobre o anel ou o farfalhar das folhas das árvores já não importam. Diante da possibilidade da morte por um mundo que se desfaz, eles buscam um ao outro em meio a esse apocalipse que, emprestando as palavras de Oliveira Jr., é absolutamente cinematográfico, pois o fim é também o agora dos “deslocamentos incessantes de todas as partes”. As mãos novamente se encontram num plano detalhe. Eis o virtuosismo de autores como Shyamalan no gênero em que operam: orquestrar o horror para que dele se vislumbre uma verdade plena e bela entre as molduras pensadas.

Mas se no horror o mal desponta das lacunas do plano – normalmente áreas escuras ou mal iluminadas –, aqui, tudo é as claras, sob a luz solar de um dia ordinário, que assim permaneceria não fossem os suicídios macabros. Se o vento dissemina a morte, aquilo que nele está contido é ainda mais misterioso. A suposição do terrorismo – apresentada como cotidiana numa América pós 11/9 – se enfraquece quando as cidadelas tornam-se alvos. Não se trata de um ataque aos símbolos, mas a algo de mais profundo e escondido daquela sociedade. As árvores passam ao papel de suspeitas, mas a mise en scène dramatiza sobre uma hipótese, sem jamais torná-la verdade. Afinal, copas de árvores ao vento podem até se tornarem amedrontadoras na construção fílmica, mas não provas científicas e cabais. A resposta também não vem do arbusto artificial com quem Elliot dialoga, muito embora seja essa uma cena reveladora. Elliot, Alma e os companheiros buscam resguardo numa casa, mas a percepção de que tudo ali é de plástico não é imediata. Uma pergunta é lançada: a cegueira provem da paranoia ou é ainda anterior? Seria ela causa ou consequência do episódio? Fato é que o apocalipse segundo Shyamalan é de uma falência orgânica: parte de um organismo vivo (ou assim especula-se) para dar fim a outro. O colapso planetário não é, assim, como em um filme de Michael Bay ou Roland Emmerich, em que os arranha-céus desmoronam em CGI; as estruturas inorgânicas saem todas ilesas.

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Nesse sentido, a casa-modelo poderia ser o abrigo perfeito, não fosse este um filme sobre organismos, que precisam ser alimentados, hidratados, inchados de ar. Mas em Fim dos Tempos, o aparecimento da casa se justifica apenas para revelar essa incapacidade de distinguir as coisas do mundo, o real do irreal, o que, de certa forma, pode-se especular como uma causa, uma profanação primordial. Quando o mundo se revela em todo o seu som (o uivo do vento) e fúria (o agitar das folhas), telhados e paredes – camadas artificiais protetoras dos corpos – tornam-se inócuos (e o simples rasgo na lona de um jipe explode na tela como uma ameaça). Enquanto a maioria dos filmes-catástrofes espetaculariza a destruição do espaço, a ordem aqui é priorizar o corpo e sua degradação, que Shyamalan estiliza sem perder a frontalidade.

A morte pode até ser suspensa, seja pelo extraquadro (o travelling baixo que mostra o caminhar e vela o puxar do gatilho) ou pelo dilatar de um plano ou movimento de câmera (a panorâmica que primeiro revela as escadas para depois mostrar os corpos dependurados), mas jamais deixa de ser um registro. Quando não visíveis, os efeitos sobre os corpos são audíveis, como na cena em que os vultos se jogam sobre a câmera em contra-plongée (cujo impacto é hiperdramatizado pelo som, sempre importante para Shyamalan). O velamento e a dissimulação estão a mercê do impacto dramático, mas via de regra, a ação sobre os corpos é colocada sem reservas, como nas cenas que envolvem um leão, um trator, ou no suicídio de Julian (John Leguizano), sublinhado por um zoom.

À beleza dos corpos que voltam a ver, a sentir, a tocarem uns aos outros, Shyamalan opõe o horror dos que se mutilam por si sós. Entre essa dicotomia circula o mistério, o invisível, o incompreensível, e diante disso, qualquer traço de racionalidade (como estatísticas e porcentagens) se revela ineficaz. Assim, a ajuda pode vir de onde antes sequer se cogitaria a possibilidade (o casal abilolado da estufa), bem como ser instável, camaleônica (a velha). Em um filme de deambulação em que a jornada clássica ou mesmo os marcadores de gênero pouco cabem, a trama nunca elucida se conta uma história de paranoia contemporânea ou de uma loucura ainda mais ancestral. Embora à luz do dia, a única coisa às claras de fato é o dissipar da razão em prol de tudo o que é sentido, para o bem ou para o mal. É, no fundo, um filme sobre uma hecatombe que reestabelece uma primazia do sensorial após uma era de casas-modelos e os organismos que as habitam, incomunicáveis. Talvez por conta disso tudo justamente, um filme à luz do dia.

Horror apocalíptico, filme de paranoia pós 11/9, pá de cal na carreira de um cineasta outrora promissor: muitas foram as chaves para a análise de Fim dos Tempos. Compreensível, dada a complexidade de uma obra cujos enigmas e mistérios parecem pulular a cada revisão. Os olhos dessa presença irrefutável que é Zooey Deschanel acabam sendo não apenas objetos da intriga como a própria síntese da obra. São grandes redemoinhos na tela, turbilhões que nos lançam ao vento e, através dele, ao inexato, ao impalpável, ao inesperado. Aos mistérios, que Shyamalan filma como poucos.

[1] Oliveira Jr., Luiz Carlos Gonçalves de. Vertigo, a teoria artística de Alfred Hitchcock e seus desdobramentos no cinema moderno / Luiz Carlos Gonçalves de Oliveira Júnior — São Paulo, 2015. 412 p. : il.

 

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Love Crimes (Lizzie Borden, 1992)

Por Kênia Freitas

Lizzie Borden took an axe
And gave her father forty whacks,
When she saw what she had done,
She gave her mother forty-one

Reza a lenda que aos sete anos a então batizada Linda Elizabeth Borden ouviu os versos acima sobre o famoso duplo homicídio cometido por Lizzie Borden em 1892, que matou a machadada o pai e a madrasta. Linda, em um ato de rebelião infantil, passou a adotar o mesmo nome que a homicida: Lizzie Borden – nome com o qual a diretora assinou todos os seus filmes. Histórias bonitinhas da infância à parte, há de fato algo de seco, cortante e direto que perpassa a parte da curta obra da cineasta.

Em Born in Flames (1983), a narrativa situa-se em futuro distópico pós-revolução socialista, atravessado no desenrolar da trama pela contra-revolução feminista (com as mulheres queer e negras no comando). A sinopse é de ficção-científica, mas a forma de filmar é a de um falso documentário. O filme é composto assim de supostas reportagens e programas de televisão, dos discursos das protagonistas em suas estações de rádio, das filmagens das reuniões ativistas e uma série de colagens de outras imagens. Apesar da variedade dos fragmentos, é fácil observar que há uma frontalidade de discurso e de imagens: as locutoras falam diretamente para os seus ouvintes (que tornam-se pela montagem o próprio espectador), enquanto olham para a câmera (para o espectador). As simulações de programas de TV reproduzem a mesma lógica, na qual os corpos e discursos estão postos frontalmente chamando a interlocução direta de quem assiste. Há assim algo de direto que perpassa a construção da narrativa do filme. Não a câmera oculta convencional do cinema de ficção, mas a construção de uma série de imagens que falam diretamente a quem assiste (simulando formas de narrar tanto da TV, quanto do documentário).

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Em Working Girls (1986), o segundo filme de Lizzie Borden, a diretora segue filmando os corpos femininos de forma próxima – dessa vez mostrando um dia de trabalho de prostitutas de classe média alta em um apartamento em Manhattan. Diferente de Born in Flames, o filme não carrega nas colagens e na diversidade das formas de registro, Borden aposta em uma narrativa ficcional mais convencional – com uma câmera que raramente desgruda de sua protagonista, a fotógrafa, lésbica, casada e garota de programa, Molly. Se o registro narrativo pouco difere de um cinema de apartamento e de baixo orçamento típico, a secura e a frontalidade do cinema da cineasta mostram-se sobretudo na forma em que essa filma as cenas de sexo. Sexo, como mostrado no filme, é trabalho, e como tal obedece um protocolo de gestos e rituais: a troca de lençóis, a combinação de preços e práticas, a entrega das toalhas, o recebimento do dinheiro, a entrega do preservativo, o contato entre os corpos e o orgasmo masculino. Os clientes e os seus sub plots mudam, a forma mecânica de repetir todo o ritual a cada encontro, não. A maneira de filmar o sexo no filme é assim deserotizada o máximo possível. Para isso, Borden não foge dos corpos nus e dos atos sexuais, mas os filma de forma direta, bem de perto como gestos de trabalho, como mecânicas de repetição.

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Esses dois filmes feitos de forma independente por Borden atingiram consideráveis repercussões e premiações da crítica. E até hoje ambos, sobretudo Born in flames, figuram em festivais e mostras de cinema feminista/autoral/independente. Menos conhecido e prestigiado, foi o seu próximo longa-metragem, Love Crimes (1992), o último (até o momento) feito por Borden e o primeiro e único da diretora feito em grande estúdio (no caso, a Miramax).

Como ideia o projeto desse filme poderia ser considerado uma das manifestações do que posteriormente veio a ser chamado vulgar auteurism – pelo menos, se formos pensar o termo pela conjugação autoria do(a) cineasta em um cinema de gênero/grande estúdio (como outros textos desse dossiê debatem, as acepções para o termo são múltiplas e em construção). Voltando ao Love Crimes, a proposta era que a diretora assumisse a direção de um trhiller psicológico e erótico. O interesse do estúdio era o de fazer um filme que não fugisse das características do gênero, tão em voga no início dos anos 1990. Temos assim uma história típica do trhiller erótico: crimes com motivação sexual, uma investigação policial em que o(a) detetive e o(a) criminoso(o) se envolvem, e um tanto de cenas de nudez e softporn – nada mais vulgar (ainda mais na época). Caberia a Borden encaixar o seu cinema (seco, cortante e direto) dentro dessas margens. Não deixa de ser curiosa a ideia de convidar uma diretora feminista para filmar um gênero no qual as mulheres são (quase sempre) mais objetos do que personagens. E ainda mais, uma cineasta cujo último filme encenava o sexo como um movimento de corpos deserotizados para filmar um gênero em que a erotização do sexo e a objetificação do corpo feminino (sobretudo o corpo feminino branco) são premissas básicas.

Não é de espantar então que a execução do projeto tenha sido conflituosa. E se não nos interessa aqui entrar nas disputas entre Borden e o estúdio, o fato é que Love Crimes tornou-se um filme partido: entre o cinema de gênero e o autoral – sem muita conciliação possível dentro da obra. Fragmentação que pode ser vista até nas duas versões em que o filme existe atualmente: a primeira lançada nos cinemas com corte final do estúdio e a segunda lançada posteriormente em VHS com re-inserção de cenas caras a Borden.

Love Crimes (seguiremos falando aqui da versão em VHS), começa por embaralhar os papéis mais clássicos dos filmes noir/trhiller: com a mulher como a investigadora (a promotora Dana Greenway) e o homem como o criminoso investigado (o falso fotógrafo e golpista David Hanover). Essa não chega a ser uma inversão inovadora nas narrativas do tipo nos anos 1990. O que torna essa dinâmica invertida mais interessante são as ambiguidades nas relações entre olhar/ser observado e dominar/ser dominado que o filme tenta manter. A começar pela protagonista com uma postura e visual masculinizados – a promotora mulher que consegue assim se impor em um ambiente de trabalho machista (como quase todas as interações da personagem com os colegas de trabalho ressaltam). Então, mais do que reforçar a crítica feminista de cinema, que desde o seminal  “Prazer visual e cinema narrativo” de Laura Mulvey denúncia a construção narrativa clássica a partir da identificação do homem (espectador-personagem-diretor) no comando do olhar, cabendo a mulher ser o objeto olhado, Borden cria dobras de olhares. Dana Greenway não encaixa-se nas definições de heroína convencional e nem de feminilidade padrões. Dentro do seu próprio ambiente, a promotora é um desvio – um corpo estranho. E é esse corpo em desvio que terá a primazia do olhar como investigadora, o olhar da protagonista que conduz a trama. Não o feminino como pólo oposto ao masculino, mas o feminino, na figura da promotora, como algo fora da polarização convencional.

Sobretudo no primeiro terço do filme, o espaço de trabalho feminino volta a ser um ambiente de interesse para Borden. Dessa vez, não trata-se de um bordel em um apartamento de luxo em Manhattan (como em Working Gilrs), mas sim de um departamento de justiça do governo. De qualquer forma, nessa primeira parte, interessa a diretora filmar a dinâmica dos personagens no trabalho – focando na tensão declarada entre a protagonista e os colegas de trabalho homens (que a menosprezam). E também destacando a relação entre Dana Greenway e a sua colega de trabalho e melhor amiga, a policial negra Maria Johnson – a detetive é o contraponto de feminilidade ao estilo da promotora.

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Outro desestabilizador das dinâmicas de poder (olhar/ser observado e dominar/ser dominado) é o fato de Hanover atrair e seduzir suas vítimas a partir do pretexto de fotografá-las. Isso faz com que o personagem masculino (mesmo caçado pela investigadora) não deixe de impor a sua forma de olhar sobre as suas vítimas. A promotora, por sua vez, tenta vigiar e antecipar as ações do criminoso, que observa através dos seus atos e das suas fotografias. A ambiguidade das relações entre homem e mulher seguem na tipificação dos crimes cometidos por Hanover. Sim: ele engana as mulheres que encontra na rua fingindo ser um fotógrafo famoso. Sob esse pretexto o criminoso é convidado para a casa da vítima, onde começa uma sessão de fotos inocente. Até que a câmera fotográfica transforma-se uma arma de intimidação de Hanover sobre sua modelo. Sobretudo por meio do disparador do flash: cada foto é acompanhado pelo barulho do clique que marca um passo a frente do fotografo em direção à mulher. Os cliques, o barulho e os passos tornam-se cada vez mais rápidos, até chegarem a um ritmo frenético em que o agressor encurrala a presa contra o seu corpo.

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Após o breve e intenso momento de pavor, capturado pela câmera, o fotógrafo consola a mulher atacada e essa mulher consente em uma relação sexual com ele (após o trauma). Ao descobrirem que não se tratava do verdadeiro fotógrafo famoso, as vítimas procuram a polícia – mas acabam retirando as queixas convencidas de que o encontro não foi um abuso. A investigação só persiste e avança pois passa a ser uma obsessão pessoal de Greenway, que decide se fazer de isca para prender Hanover.

E então, no encontro entre Greenway e Hanover, o filme chega a sua ambivalência mais bizarra, quando os dois personagens passam dias trancados em uma cabana isolada. A princípio a promotora é prisioneira (pega por Hanover enquanto o seguia), com o passar do tempo ela torna-se também vítima fotografada e amante. Certo que a atração entre detetive e criminoso(a) são plots típicos do gênero. Mas a relação entre a promotora e o fotógrafo não se dá nos termos comuns de uma paixão e de um desejo avassaladores, e sim de uma perversão inevitável. Existe toda uma subtrama, mostrada por meio de flashbacks da infância de Greenway, que narram um trauma antigo da promotora. De forma que, na cabana, a vítima e o agressor formem um elo dos desajustados – reforçando a ideia da promotora como uma protagonista do desvio dos pólos padrões de gênero.

Em algum momento, Greenway finalmente consegue recobrar o controle sobre si e a situação – retomando o procedimento policial protocolar, levando Hanover sob custódia. De qualquer forma, restam como provas encontradas pela detetive Maria Johnson as polaroides tiradas pelo fotógrafo – que retratam um momento de tranquilidade da promotora na banheira.

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Mais uma vez a fotografia é tratada no filme como evidência da verdade e como um forma de imposição de olhar (que implica um poder). Por causa da imagem, mesmo capturado, Hanover ainda tem poder sobre Greenway. É por essa foto que a promotora se conecta a todas as vítimas anteriores do criminoso. E, no fim, resta a policial e a promotora esconderem a prova fotográfica, como uma forma de reequilibrar as relações de poder ou, de ao menos, colocarem a justiça acima da verdade.

Assim, são constantes no filme as operações que mantém ambiguidade e complexidade no desenrolar da temática e da trama, como a constante disputa entre protagonista e antagonista pela primazia do olhar/dominar e não ser olhado/dominado; uma protagonista mulher que foge da polarização convencional masculino/feminino; e crimes sexuais que forçam a discussão entre o consentimento e manipulação, por exemplo.  Nessas operações é possível vislumbrar um pouco do feminismo de Borden. No entanto, na sua forma de ser filmado, Love Crimes quase nada emula do estilo seco, cortante e direto da cineasta. Sim, os corpos femininos continuam a ser o maior interesse da sua câmera. Mas há agora um distanciamento, uma composição de planos que segue mais a lógica da narrativa ficcional convencional do que da presença corporal intensificada dos seus primeiros filmes. Em sua defesa, pode-se argumentar que dessa vez o machado estava na mão do estúdio.

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A trajetória de Roberto Pires no Cinema Brasileiro

Por Gustavo Menezes

Uma caminhonete encosta num barzinho de beira-de-estrada. Desce um homem de chapéu e paletó, que caminha calmamente sob uma chuva torrencial, e para à porta do recinto. Examina o ambiente, retira o chapéu, caminha até uma mesa ocupada por um homem, lhe acende o cigarro e pede para sentar. O que chegou puxa conversa, diz que quer comprar uma arma e sabe que o homem tem pra vender. Depois de certa resistência, o da mesa lhe cede o próprio revólver para um test-drive. O sujeito mira numa garrafa na janela, erra de propósito, e se justifica dizendo que “as raias dessa bicha ‘tão tortas”. Aponta a arma para o vendedor ver de perto. Então, em primeiro plano e sem cortes, vê-se o disparo e o buraco da bala se abrindo no meio da testa do homem[1].

O parágrafo acima é uma descrição resumida dos primeiros minutos de Tocaia no Asfalto, a obra-prima de Roberto Pires. A cena é construída com precisão cirúrgica, dando tempo para que se perceba a calma do assassino ainda quando cochila dentro do veículo, no seu caminhar sob a chuva e na abordagem da vítima; e que, à medida em que surgem indícios de suas razões de estar ali, o suspense cresça devagar. Termina com um choque – o tal tiro, sem cortes -, seguido dos créditos de abertura, apresentados em planos estáticos da cena.

 

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Como explica Orlando Senna, que foi assistente de direção, o efeito do tiro só foi possível graças a uma gambiarra complexa com barbantes e uma testa postiça. Essa inventividade foi, sem dúvida, a principal característica do diretor durante toda a sua carreira, que, juntamente com seu fascínio pelos aspectos técnicos do cinema, o levava a realizar efeitos especiais e truques de câmera complicados usando poucos recursos; a construir gruas de madeira, cenários e objetos de cena com material reciclado, e até mesmo a fabricar lentes de câmera. Aliás, pode-se dizer que foi uma lente que o motivou a dirigir seu primeiro longa.

Em 1957, com 22 anos e já tendo realizado alguns curtas de forma amadorística, Roberto Pires viu O Manto Sagrado. Impressionado com o formato CinemaScope, inaugurado naquele filme, o jovem construiu a própria lente anamórfica na ótica do pai em Salvador, e escreveu um roteiro de longa-metragem a ser feito no formato. As filmagens começaram no mesmo ano, mas o filme só foi lançado dois anos depois. Redenção foi o primeiro longa-metragem baiano e o primeiro filme brasileiro no formato anamórfico.

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Redenção tem a trama de um thriller clássico: um serial killer fugido, um assassinato misterioso, uma maleta com conteúdo não revelado, suspense; tudo ressaltado pela fotografia carregada de chiaroscuro – responsável por uma impressionante sequência onírica (frame acima) – e pela condução minuciosa da trama. Também são notáveis as experimentações com a câmera e a montagem, numa clara tentativa de emulação da linguagem hollywoodiana, especialmente nas passagens de tempo.

Apesar do roteiro assumidamente frágil, o longa impressionou o público e os entusiastas de cinema. O cuidado técnico e a inventividade de Pires, somados ao rigor da fotografia de Hélio Silva (do clássico Rio, 40 Graus) mostraram que era possível fazer cinema na Bahia e desencadearam o chamado Ciclo Baiano. Dois anos depois, Pires dirigia seu segundo longa, A Grande Feira.

Integrante da primeira fase do Cinema Novo, este filme tem, antes de tudo, uma preocupação em retratar com realismo o quadro social da Bahia. Não por acaso, seu produtor executivo é Glauber Rocha. No entanto, como Redenção já deixara evidente, Roberto Pires é um devoto das convenções do cinema de gênero e a favor da arte para o entretenimento. É, a princípio, oposto à proposta cinemanovista: “Uma característica essencial do Cinema Novo é que o autor se coloca contra os espectadores; as ideias do autor e as ideias dos espectadores são em geral diametralmente opostas; (…) o encontro autor-espectadores é um conflito: essa é a forma de diálogo proposta pelo cineasta.”[2]

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Não à toa, Glauber diria, em Revisão Crítica do Cinema Brasileiro, que Pires “ressente-se de profundidade ideológica” e “ainda é fascinado pela câmera. Vive o mito do quadro e do corte(…)”[3] De fato, ainda que se critique a simplificação da trama no filme em questão, é claro o cuidado de Pires com a construção visual da narrativa. Tome-se como exemplo a cena em que Rony converte a navalha que lhe ameaça em instrumento de humilhação de Maria. Ou então o clímax, quando Chico Diabo vai – sozinho, em espaço vazio – colocar a banana de dinamite nos tanques e Rony e Maria correm para impedi-lo – ambos imersos em planos de conjunto do cotidiano da Feira -; e a montagem paralela faz acentuar o suspense.

Depois de Tocaia no Asfalto, Roberto Pires se muda para o Rio de Janeiro e realiza dois filmes policiais: Crime no Sacopã, hoje perdido, e Máscara da Traição.

Sem dúvidas, este é seu filme com mais potencial comercial. É fácil notar pelo elenco, estrelado pelos galãs de TV Tarcísio Meira, Glória Menezes e Cláudio Marzo, como também pela abertura, feita em animação carregada de desenhos estilo “pop” e música à 007, e a própria história – clichê do thriller policial – sobre um assalto à tesouraria do Maracanã. Por outro lado, é neste filme que Pires consegue expressar mais diretamente sua visão artística.

César, o protagonista, é um contador profissional e artista plástico amador. Em uma das primeiras cenas, ele e Cristina se encontram numa galeria que está expondo pinturas de arte moderna. Vendo os quadros, César diz: “a minha visão estética é diferente disso daí”, “[faço] gravuras pra não enlouquecer. E é uma boa razão.” E, apontando uma das obras, completa: “Agora olha pra isso. Que razão um cara tem pra pintar um troço desse?”

mascara

É Pires se colocando diante do cinema moderno. Como cineasta dedicado à linguagem clássica e ao cinema “de ilusão”, ele questiona a busca de seus colegas por novas formas de expressão. O posicionamento fica mais claro na sequência dos preparativos para o assalto. César decide se passar por seu chefe, construindo artesanalmente uma máscara com a ajuda de um manual de maquiagem intitulado Star makeup. São mais dois traços de identificação entre o diretor e o personagem: o trabalho artístico feito de modo artesanal e a inspiração na forma de fazer estrangeira.

Máscara, convém notar, foi produzido pela Mapa Filmes; produtora originalmente ligada ao Cinema Novo que, por necessidade econômica, no fim dos anos 60 investiu em filmes coloridos de mais apelo popular.

No ano seguinte lançou Em Busca do Su$exo, fita que também anda perdida. Seus dois longas seguintes, considerados filmes menores, tiveram em comum a preocupação com o meio-ambiente. O primeiro deles, a ficção científica Abrigo Nuclear, é tão incomum que, até hoje, muitos o tomam como o primeiro exemplar do gênero no cinema nacional.

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Ainda que não seja verdadeira[4], a afirmação comprova o caráter inusitado do projeto. Dispondo de poucos recursos, era loucura realizar um filme que exigisse cenários, figurinos e efeitos mirabolantes. Mas Roberto Pires resolveu o dilema com material reciclado: garrafas, tampilhas, peças de televisores e lixo industrial de todo tipo. Nada mais oportuno, já que o filme se passa justamente num futuro pós-apocalíptico em que o uso desenfreado da energia nuclear tornou a superfície do planeta completamente inabitável, e os humanos relegados a um abrigo subterrâneo.

Vale mencionar que o protagonista do filme é vivido pelo próprio Pires, pela primeira vez em sua obra. Pode-se notar uma identificação entre o idealismo do personagem e do criador. Colocando-se na contramão do pensamento vigente – seja da sociedade totalitária do abrigo subterrâneo, seja da classe cinematográfica consagrada -, os dois se mantêm fieis a seus princípios.

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Seu último longa foi Césio 137 – O Pesadelo de Goiânia, baseado no acidente ocorrido em 1987. O maior trunfo do filme é que, como o fim da história é de conhecimento público, acompanhar o desenrolar da trama torna-se angustiante – e Pires se utiliza disso. Ele também sabe, e coloca no filme, que o caso é uma prova das eternas mazelas brasileiras – especificamente a ignorância, a miséria e o descaso do poder público.

Revista a obra de Roberto Pires, além do encanto por seu esmero como cineasta, fica o espanto pelo contraste entre seu empenho para realizar filmes de apelo popular e o ostracismo generalizado com relação a seu nome e seu trabalho. E o pior é saber que ele não é um caso isolado, mas apenas mais um de tantos cineastas brasileiros ignorados. Sem dúvida, Pires é um cineasta que merecia ser mais conhecido, divulgado e apreciado.

[1] Sergio Leone seria louvado, dois anos depois, por fazer o mesmo em Por um Punhado de Dólares, violando a regra hollywoodiana de jamais mostrar um tiro e sua vítima no mesmo plano. Era obrigatório o corte no momento do disparo.

[2]  BERNARDET, 2009, p. 223

[3] ROCHA, 2003, p. 158

[4] Mesmo rara no Brasil, a sci-fi já havia sido explorada em nosso cinema pelo menos desde os anos 50. Há exemplares na chanchada, como Os Cosmonautas, de Victor Lima, no cinema marginal, como Jardim das Espumas, de Luiz Rosemberg Filho, e mesmo na filmografia de cinemanovistas, como Brasil Ano 2000, de Walter Lima Jr. e Quem é Beta?, de Nelson Pereira dos Santos.

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Um salto para o homem: Mission to Mars e a jornada científica do herói

Por Felipe Leal

É comum ao meio crítico e cinefílico apontar a Odisséia no Espaço (2001: A Space Odyssey, 1968) de Kubrick como a gênese estético-operacional da ficção científica para o cinema, relegando à obra seminal de Meliès um lugar de reserva, um conjunto localizável no pré-linguagem, lugar onde as funções narrativas mais convencionais ainda não estavam cristalizadas e o artifício teatral podia pulular livre. De certa forma, então, narrativa das origens do homem e ao mesmo tempo originária, ou ao menos realizadora primeira, dos códigos visuais do gênero, 2001 é a matéria ”original” dos riscos e sobre-escrituras que gerariam o palimpsesto dentro do qual se inscreve Missão: Marte (Mission to Mars, 2000) . Mas é preciso deixar De Palma para depois. Aprofundemo-nos na ficção científica para chegar na sua apropriação. O que ela nos diz? Seu primeiro termo parece significar, a princípio, duas coisas: uma dupla consciência do caráter ficcional da obra (já sabemos estar diante de uma mentira, mas parece ser preciso reforçá-la em nomenclatura, como que para sobrecarregar, impregnar o trabalho de artifícios), e um abraço da ciência enquanto matéria-prima a servir de propulsão e engendrar a trama sob os efeitos (especiais, sim, mas também consequências) de algum cientificismo – e sabemos que este é quase sempre a tecnologia – que a faça respirar, ganhar vida.

Mas este primeiro significado parece concentrar ainda uma outra inferência: a reiteração pelo nome e o suposto artificialismo extra que propomos aqui têm a imagem perfeita numa breve cena de Kubrick: de sua cabine pessoal, o astronauta-chefe liga para a filha na Terra. Não há nenhum arroubo estilístico para o plano, composto numa distância mediana entre o televisor e o pai sentado; mas da janela vemos a lua em proporções anormais, vizinha à nave como se aquela fosse uma visita rotineira e disposta através do vidro do quadro de maneira nunca vista antes em imagens de qualquer tipo. 32 anos antes de De Palma e 48 antes de nosso presente, o que o plano dá a ver é que a aceitação daquela lua gigantesca devia ser plena no instante em que surge. A possibilidade de que se podia conceber uma nave de decoração ”moderna” daquela forma, própria para a virada do segundo milênio, e de que numa breve cena uma superlua, magnífica em sua presença, se entregasse ao prazer visual do fascínio megalômano da ficção – esta possibilidade só é possível em si mesma se pensada de mãos dadas com a naturalidade que a origina e a segue. E de fato, dentre todos os gêneros que o cinema consolidou para si, aquele que mais demanda organicidade, que o que se vê faça parte de um sonho que agora eu compartilho como pulsão liberta, é a ficção científica.

Ora, se há uma aproximação na verdade bastante concebível entre o monolito negro de 2001 e o próprio cinema, é porque de certa forma ambos funcionam como expansores – o primeiro responde ao toque do macaco ao entregar-lhe a percepção do osso, possível primeiro gesto de consciência que anuncia a alvorada do homem; o segundo é fruto deste, e de uma forma indireta, ”também do monolito”, e serve-lhe na medida em que possibilita o impossível. Cria um mundo com certa aderência ao real, mas que não corresponde às suas vontades ao mesmo tempo. Retira-nos algo para entregar uma outra coisa exta-ordinária. Por que se diz, então, que Missão: Marte é uma obra de mau gosto mastigada do filme de Kubrick? E mesmo que nunca o tivessem dito, por que associar, aqui, os dois filmes? O mais velho parece dizer coisas sobre a origem do homem e até onde ele pôde chegar, mas só para que o acidente daquilo que ele criou o faça retornar a sua própria gênese; o mais novo invariavelmente chega, também, até as origens da humanidade, da vida na Terra, mas toma, ou como há de se defender aqui, aparenta tomar o caminho grosseiro dos clichês do gênero, é acusado de abuso, vulgaridade. A ideia não é defender De Palma e apontá-lo como injustiçado, buscando ferramentas para defender um conjunto de na verdades. Tampouco revisitar a obra e surrupiar dela aquilo que ainda não tinha sido visto, para que o novo olhar se renove e dê valor ao seu conjunto. A súplica é para que se enxergue Missão: Marte pelo que De Palma, como autor, é.

E não se pode discutir a obra sem seu início, espécie de prólogo e praticamente única cena concebida para a Terra. A leveza dos planos situacionais e de apresentação, os movimentos serpenteantes de De Palma, câmera sempre arma gerenciadora de afetos, em que cada dobradura traz um pequeno núcleo distinto daqueles que sabemos serem os astronautas da missão – todo aspecto introdutório, a princípio, guarda mais do que um simples começo. O pai que acalenta o filho diante da separação, o piloto que convive com o espectro da esposa morta, o casal enamorado e excitado com as aventuras da grande viagem; todos são exatamente o que parecem, mas são também o dispositivo dos excessos de sentimentalismo que irá explodir a partir de todo acidente da trama. E como parece ser regra da ficção científica que a tecnologia falhe, que o desconhecido, num primeiro contato, seja hostil, a catástrofe estará sempre à espreita. A questão é que, a bem da verdade, se há algo vulgar em Missão: Marte, esse elemento vexatório não é tanto a obviedade das flexões da trama, mas o tratamento afetado que se empresta às resultantes de tais eventos. Eleva-se o drama da mulher que está prestes a perder o marido, ambos flutuando entre a nave e marte num plano absurdo, diante de um entrave de separação e morte que dura demais, vai e volta, arrisca mais um salvamento, faz com que gritem e chorem; mais além, o extraterrestre que vem lhes dizer sobre a origem da Terra chora uma lágrima ”desnecessária”, antropomorfiza-se em um rosto triste; o reencontro com o astronauta perdido em Marte tem seu grau de emocionalismo distorcido pelas pressas em explicar tudo e dar conta das baixas dos tripulantes da primeira missão.

Mas é preciso alcançar a moldura, as formas, aquilo que dá espaço e movimento a toda a narrativa que na verdade poderia ser dividida em três. Há, primeiro, uma espécie de apelo tipicamente americano ao avanço do colonizador, ao encontro de possível vida no planeta vermelho e que vai se travestindo com o sentimentalismo nobre do ”encontro de uma conexão com outras formas de vida”, não por acaso estabelecido num vídeo caseiro e alegre e dito pela esposa morta. E há também a clara operação de resgate, que vai se desdobrando através das catástrofes e culminando, enfim, numa terceira ramificação da narrativa, que é o encontro com a ameaça do novo mundo. O que sustentaria essa tríade senão um autor, este que alarga o deslumbre do Cinema provocando as suas formas? Como negar a aproximação entre o balé de sinfonias de Kubrick e o abuso magnânimo da gravidade que De Palma emula? Aliás, é bem aí que pode residir uma das marcas de sua autoria: seu cinema é a eclosão de um espetáculo, a junção de forças narrativo-estéticas para criar acontecimentos, durações e blocos de excitação de que o olho sensível (câmera-espectador) partilha como voyeur presente.

E que prazer visual, aquele causado pela fresta intimista dos enamorados que trocam carícias flutuando na gravidade espacial, num vai-vém dançante de corpos, só para depois tentarem salvar um ao outro em meio à imensidão do universo que a câmera enquadra, recorta para constituir uma ideia da amplitude incalculável do infinito, literalmente dois organismos minúsculos no espaço sideral, defronte o vermelho destrutivo de Marte, este que é destino, vilão e ponto de gênese daqueles mesmos corpos. De Palma dá sua narrativa das origens do homem na medida em que só o cinema poderia mediá-la. O salão de puro branco em que os sobreviventes entram, seguido do escuro absoluto que vem a materializar o extraterrestre-mãe, encantado pelo pano de fundo dos planetas, como numa instalação que infiltrou o filme para torná-lo quase tátil: é a denúncia velada do cinema como puro maquinário, sortilégio farsante de uma arte que é fruto do homem e serve para ludibriá-lo. O limite daqueles astronautas foi Marte, e de Marte retornam para a imagem do embrião de si mesmos, como o bebê que encerra a Odisseia no Espaço. Início toca fim. Espectador é levado às beiras da excitação e da emotividade pela própria recriação do olhar total que é o cinema – o paradoxo do organismo científico que ele ainda não conseguiu superar. Criamos a tecnologia para ir até onde o corpo, organismo perfeito mas restrito, não chega, e ela nos devolve o sonho que é toda a possibilidade do impossível.

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Cobertura – Festival do Rio 2016

Por Pedro Tavares

Breves comentários sobre filmes que integraram a extensa programação desta edição do Festival do Rio, encerrada no último dia 16.

1

Ator Martinez (Actor Martinez, Nathan Silver e Mike Ott, 2016)

Curioso projeto que reúne dois dos mais promissores nomes do cinema independente americano contemporâneo: Nathan Silver e Mike Ott. Ator Martinez lentamente borra a noção do verdadeiro processo de filmagem e o que, afinal, é falso ou verdadeiro e se sustenta via mise en scene. Ator Martinez é vigoroso por almejar o ponto irregular dentro de relações humanas que se diluem em um espaço, que é de diferentes maneiras, o ponto em comum do cinema dos dois diretores.

Boris Sem Beatrice (Boris San Béatrice, Denis Coté, 2016)

Uma comédia sobre a consciência burguesa ou a completa falta da mesma. Coté é mais conciso num jogo de chiaroscuro – só existem cenas em ambientes extremamente claros ou escuros – a caminho do inevitável. Um filme de corpos encostados das mais diversas maneiras.

Capitão Fantástico (Captain Fantastic, Matt Ross, 2016)

O primo distante de Pequena Miss Sunshine. É o sucesso indie do ano, a aventura da família diferentona e tão caricata ao mesmo tempo, a do bem contra o mal, ou melhor, o capitalismo. Capitão Fantástico sobrevive graças às alegorias, sempre elas sustentadas por uma justificativa: é possível viver de outras formas. E como se espera, há conflitos sobre o que é “viver de maneira correta”. Um exemplar do que há de pior no cinema americano atualmente.

4

Certas Mulheres (Certain Women, Kelly Reichardt, 2016)

Para examinar a sociedade americana e em especial a contraditória posição das mulheres – aqui, sempre no comando, mas apagadas pela rotina, Reichardt emula a sensibilidade de Clint Eastwood. É cinema americano narrativo com vigor para retratar os limites de relações interpessoais, vida profissional, amor e tédio. Assim como Night Moves, Reichardt se distância do diagnóstico e se apega aos gestos  como forma de manifesto.

5

De Palma (Idem, Noah Baumbach, 2016)

Brian De Palma frente à câmera, livre para comentar sua filmografia cronologicamente e sem opinião de terceiros. O monólogo tem alguns bons momentos, especificamente os detalhes sórdidos de filmagem e repercussão dos filmes, que não tiram o ar superficial de extra de DVD.

Dog Eat Dog (Idem, Paul Schrader, 2016)

A degradação moral da América. Schrader faz um inventário completamente despudorado e hilário sobre o que já foi filmado sobre o assunto. Dog Eat Dog encontra-se na crítica direta ao sensacionalismo que o cinema americano cria como manobra para vender ingressos, sem apegar ao que há de mais importante – o lado soturno de seus personagens. E por isso Schrader gerou repulsa de críticos e público, porém o que se vê é um registro inflexível de um país.

Eis os Delírios do Mundo Conectado (Lo and Behold: Reveries of the Connected World, 2016) de Werner Herzog

Documentário protocolar de Herzog analisando de maneira científica, social e pessoal os prós e contras do mundo de hoje, dominado pela internet. Porém, a cada chance, Herzog quebra toda teoria de cientistas e analistas. Dos hatemails aos avanços tecnológicos e monges que se esquecem de rezar para tweetar, o filme tem a estampa de Herzog graças ao seu tradicional pessimismo que cerca boa parte de sua filmografia.

8

O Filho de Joseph (Le Fils de Joseph, Eugène Green, 2016)

O cinema de Eugène Green encontra uma comédia screwball e como resultado tem um filme peculiar. Das comparações à vida de Cristo e críticas às formalidades da burguesia artística chegam ao imaginário bíblico revestido da fantasia e arquitetura, dois pilares da filmografia de Eugène Green são louvados. O que é totalmente possível já que O Filho de Joseph é de certa forma, sobre Green e seu cinema.

Os Garotos nas Árvores (Boys in the Trees, Nicholas Verso, 2016)

O imaginário adolescente sobre o terror. Um filme muito particular de Nicholas Verso, permeado pela nostalgia – ilustrada por canções de bandas dos anos 90 – e de cuidado estético primoroso. Ainda que tudo seja resolvido na primeira hora e que o filme anda para o caminho de uma saudosa declaração, há uma força em cada plano do filme para justificar este sentimento.

Gimme Danger (Idem, Jim Jarmusch, 2016)

Os Stooges influenciaram gerações e Iggy Pop é referência para todo tipo de arte, porém o que resta no filme são algumas colagens de imagem-som-narrativa interessantes entre os depoimentos dominados por Iggy Pop. O lado animalesco da banda fica adormecido por ser protocolar, com poucas exposições. Em Gimmer Danger a palavra substitui o instinto.

Jovens, Loucos e Mais Rebeldes! (Everybody Wants Some!, 2016) de Richard Linklater

Não à toa Gabe Klinger dirigiu um documentário sobre o encontro de James Benning com Richard Linklater. Pois assim como Benning, Linklater também é um mestre no estudo da passagem do tempo. Emulando Dazed and Confused, o filme na verdade é sobre como um time de baseball usa o seu tempo livre antes do início das aulas, assim, dando início à minuciosa análise da masculinidade e como os pilares de um conjunto de regras são o norte da juventude e vida acadêmica.

Ma ma (Idem, Julio Medem, 2015)

Medem longe dos tempos de Terra (1996) e Vacas (1992) e seguindo o protocolo da via crucis no melodrama. Medem usa a personagem Magda (Penelope Cruz) como coluna de uma história de redenção, vida e morte que permeia inclinações artísticas, principalmente em relação às imagens, entregando a narrativa à superficialidade. O interesse maior em Ma ma é o da resposta e vislumbre e não o da problematização. É possível dizer que Ma Ma é cinema fantástico.

O Ornitólogo (Idem, João Pedro Rodrigues, 2016)

O evangelho segundo João Pedro Rodrigues é exatamente o que se espera dele; percorre terreno do indevido, da solidão, das representações visuais e de um discurso a favor da tradição, porém contra a religiosidade. Onírico e igualmente assustador, o caminho no deserto é o lugar para ver uma vida inteira – das tentações à crucificação, de Judas a Tomé. O Ornitólogo pode ser uma análise científica do que não se vê.

Personal Shopper (Idem, Olivier Assayas, 2016)

O filme americano definitivo de Assayas. E não surpreende que ele pareça com um filme de M.Night Shyamalan. Um jogo de espectros, inclinado à cafonice, um completo controle de direção – uma sequência de 20 minutos dividida em ação e uma longa conversa por celular, por exemplo – que justifica sua trama com um interesse muito maior no lado espiritual sem amarras com a subjeção.

15

A Região Selvagem (La Région Salvaje, Amat Escalante, 2016)

Filme que faria sessão dupla com Boris Sem Beatrice, pois também aborda a consciência, dessa vez pelo lado visceral. Escalante continua sua abordagem social, talvez mais perto de Bastardos do que Heli onde o realismo fantástico é chave moral para costurar questões minuciosas do “mundo cão” de Escalante.

Tramps (Idem, Adam Leon, 2016)

Adam Leon faz mais um filme de aventura pelas ruas de Nova Iorque após seu tributo involuntário a Spike Lee em “Gimme the Loot”. A premissa é a mesma, englobar o ambiente e tensão justificados por um fio narrativo. Em Tramps trata-se da busca por uma maleta que desenvolve como um romance bem humorado com as amarras deo suspense justificados por uma gangue do Brooklyn.

17

Três (San Ren Xing, 2016) de Johnnie To

A cada filme Johnie To desafia os limites de direção cinematográfica e roteiro. Três é um filme tensionado por uma simples justificativa, sem que precise de grandes sequências de ação para afirmar que se trata de um filme sobre crises sob o escopo do gênero. Três remete a Office, do próprio To, um filme de limites dado principalmente pelas paredes de um estúdio. Três parece o limite final de um espaço cênico e de ações contidas num jogo de distanciamento e proximidade dos personagens e do gênero em si.

18

Wiener Dog (Idem, 2016) de Todd Solondz

Chamado de spin off de Bem-Vindo à Casa de Bonecas (1995), Wiener Dog na verdade poderia ser a continuação de qualquer filme de Todd Solondz, pois sua lupa apontada para o subúrbio americano é a mesma. Em 1995 o estudo da sociedade americana, aquela da grama verde no quintal e de belas fachadas, era impressionante e hilário. Em 2016, ele é frouxo, enfraquecido e saturado ao seguir a sequência de abandonos do cachorro salsicha que batiza o filme. Para quem não é familiarizado com a obra de Solondz, pode valer o ingresso.

Yoga Hosers  (Idem, Kevin Smith, 2016)

Yoga Hosers é mais um da leva midnight movies de Kevin Smith que começou com Red State (2011) e Tusk (2014). Este remete a John Waters em modo comédia adolescente em terreno fantástico. Com brechas para o informativo pop que permeia a filmografia de Kevin Smith, o filme, no fim das contas, é uma gigantesca piada sobre a posição americana em relação aos canadenses.

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Thom Andersen – Cinefilia Idealista

Por Arthur Tuoto

Se hoje o filme ensaio é uma das modalidades cinematográficos mais em voga, seja por uma certa seara subjetiva do documentário contemporâneo ou pela popularização online de análises audiovisuais com trabalhos como os de Tony Zhou ou os produzidos pelo portal Fandor, o gênero definitivamente encontra um dos seus ápices discursivos mais interessantes na obra de Thom Andersen.

Diferente de uma subjetivação que remete a abordagens mais poéticas como as de Chris Marker, que tem em toda uma livre associação de ideias a performatividade lírica da sua narrativa ensaísta, ou mais cerebrais como as de Jean-Luc Godard, talvez o supra-sumo do gênero, os ensaios audiovisuais de Andersen encontram um caminho onde o que está em jogo é muito mais um trabalho analítico, uma radiografia crítica absolutamente bem fundada, do que exatamente uma concepção mais deambulante.

Se formos pensar em alguma aproximação mais direta, o trabalho de Andersen se alia muito bem ao de Mark Rappaport, cineasta experimental que na década de 90 realizou dois dos maiores marcos do filme ensaio (Rock Hudson’s Home Movies, de 1992, e From the Journals of Jean Seberg, de 1995) E que, assim como Andersen, parte de uma espécie de cinefilia problematizadora para ir refletindo sobre toda uma dinâmica de opressão implícita não só no mecanismo da indústria cinematográfica, mas na própria construção de sua base icônica.

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Los Angeles Plays Itself (2003)

É claro que mesmo dentro dessa dinâmica de análise um pouco mais rigorosa, existe um teor autoral bastante claro no trabalho de Andersen. E talvez seja justamente esse o ponto de equilíbrio mais curioso da carreira do norte-americano. Ao mesmo tempo que o diretor possui um tino crítico invejável, uma vocação reflexiva que vai muito além de uma simples análise formalista ou de uma mera contextualização histórica bem informada, Andersen é dono de um estilo muito próprio. Mesmo dentro desse formato do ensaio crítico, o ensaio que, em alguns momentos, pode até beirar o academicismo, Andersen consegue partir de reflexões absolutamente pessoais e conciliar todo um apreço reflexivo muito delicado em suas análises.

Já na introdução de Los Angeles Plays Itself (2003), talvez sua obra mais complexa, a narração denota um feitio que nunca irá se limitar a um simples diagnóstico pré-concebido, mas que, pelo contrário, vai se debruçar sobre uma arqueologia fílmica muito pessoal, uma cinefilia em sua definição mais genuína. No decorrer do filme, durante as análises das obras que tem como Los Angeles o seu assunto ou o seu pano de fundo, e consequentemente a sua deploração iconográfica impessoal, esse cinefilia idealista de Andersen, ainda que muito rigorosa em seu tino obsessivo, se deixa levar por reflexões pessoais e juízos individuais que enriquecem a experiência da análise através de um horizonte muito íntimo.

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Red Hollywood (1996)

Talvez a principal qualidade de Los Angeles Plays Itself é ser um filme que, mesmo se focando nas reflexões de Andersen sobre a abordagem hollywoodiana na cidade em que o próprio vive, acaba se revelando um filme inevitavelmente universal. Seja por um certo escancaro ideológico que reflete toda uma política urbana opressiva comum a qualquer cidade contemporânea (E que tem em Chinatown [1974] e Who Framed Roger Rabbit [1988] excelentes paradigmas que só se perpetuam). Seja pela própria noção de marginalização que o filme denuncia ao tratar de cineastas como Haile Gerima, Charles Burnett e Billy Woodberry. Artistas que tem na abordagem social uma autenticidade única que contrasta com a impessoalidade de um cinema industrial. Ou seja, o filme se dá nesse trajeto que parte de observações específicas ao evidenciar elementos de opressão e resistência, explícitos ou implícitos naquelas obras, mas que conduz a um pensamento universal de cinema e, invariavelmente, de história.

Essa ideia de uma cinefilia idealista, uma cinefilia que ao mesmo tempo que parte de um carinho pessoal pelo cinema consegue também enxergar uma problematização implícita, que intui os filmes não pelo que eles dogmaticamente representam, mas por tudo o que eles ainda podem ser, é igualmente evidente em filmes como Red Hollywood (1996) e The Thoughts That Once We Had (2015).

Ao analisar os filmes realizados por artistas e profissionais que teriam alguma ligação ou simpatia pelo partido comunista, “Red Hollywood” constrói não só uma espécie de resgate necessário de várias obras essenciais, mas concebe toda uma dinâmica de análise muito delicada ao apontar todo tipo de sutileza oculta naqueles filmes. Uma sutileza que, uma vez em prol de um discurso político subentendido, carrega também uma acuidade cinematográfica muito própria.

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The Thoughts That Once We Had (2015)

The Thoughts That Once We Had, por enquanto o longa-metragem mais recente de Andersen, pode até partir de uma premissa um pouco acadêmica, apontando em certos filmes algumas correlações diretas com conceitos deleuzianos, mas, com o passar dos minutos, o longa vai se revelando um trabalho bastante livre e, principalmente, guiado não só pelas concepções do filósofo francês, mas, novamente, por um fascínio cinematográfico positivamente ingênuo.

É um filme que não deixa de assumir uma espécie de natureza irregular, uma natureza que em um primeiro momento até parte dessa análise ultra teórica em virtude da aproximação deleuziana, mas que, em algum sentido, acaba seguindo um caminho quase que oposto, um caminho guiado pelo juízo pessoal como a elucidação de um encantamento muito legítimo. Como nos outros filmes de Andersen, existe essa ambiguidade entre a análise histórica e a correlação pessoal como uma revelação reflexiva, essa aproximação temática que acaba enveredando para uma abordagem passional e, inevitavelmente, idealista.

Afirmar que os filmes de Thom Andersen são críticas audiovisuais, aulas de história ou reflexões cinéfilas nunca será o suficiente para definir o tamanho de sua contribuição como articulador de toda uma cultura fílmica. Se por um lado seus filmes partem de um didatismo em sua interpelação reflexiva, por outro são obras que carregam uma índole visionária bastante evidente. Uma vocação sonhadora que busca não só compreender os filmes, mas que almeja, também, assimilar o mundo.

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