DO SUBTEXTO AO PÓS-HORROR – A CINEFILIA VERSUS O CINEMA DE GÊNERO

Por Bernardo Moraes Chacur

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Devemos deixar o cinema morrer ou já seria um avanço matar a cinefilia, tal como a conhecemos e praticamos? Caso estejamos diante de uma crise, ela se concentra na indústria cinematográfica ou se instala igualmente em nossa cultura de valorização? Nas próximas linhas, tentaremos refletir sobre essa questão a partir das relações variáveis entre essa cultura e os filmes de gênero. Mas convém evitar o discurso decadentista: discussões semelhantes circulam, no mínimo, desde a década de 50.

O cinema foi, desde o começo, um empreendimento comercial. Como tal, incorporou-se aos gêneros populares entre o fim do século XIX e começo do XX: melodrama, faroeste, terror, ficção científica. Os dois últimos tinham o apelo adicional do ilusionismo permitido pela nova tecnologia: a combinação entre realismo fotográfico a capacidade para trucagens, que atraiu diretores como Murnau, Lang e Dreyer. Como resultado, obras como Nosferatu (1922), Metropolis (1927) e Vampyr (1930) não puderam ser negligenciadas nas discussões sobre um cânone daquelas primeiras décadas. A contradição entre arte, comércio e entretenimento não era, portanto, absoluta.

A ânsia por respeitabilidade surgiu igualmente cedo. Adaptação de um best-seller, O Nascimento de uma Nação (Griffith, 1915) pretendia-se reconstituição de guerra e panorama histórico-social (elementos que ainda hoje angariam indicações ao Oscar). Protótipo do prestige picture, pôde cobrar ingressos a preços exorbitantes e ser exibido na Casa Branca. De acordo com essa mentalidade, a arte deve exceder o ‘simples entretenimento’, abordando Temas Importantes, de preferência. Para atender a essa expectativa, o “cinema de qualidade” não pode ser sutil: a obra relevante precisa se anunciar claramente como tal.

O principal produto oferecido pela Hollywood clássica, no entanto, era o entretenimento. A produção média dos estúdios equilibrava-se entre imperativos comerciais, o moralismo sintetizado no código Hayes e a paranoia ideológica que culminou no macarthismo. Apesar desse cerceamento, artistas conseguiam abordar, de forma implícita, assuntos inaceitáveis em discussões abertas. Gêneros que não eram levados a sério, como o horror, a ficção científica e os women pictures, eram espaços privilegiados para essa subversão.

No caso do terror, com sua ênfase no poder da sugestão e atmosfera de incerteza, havia um reforço mútuo entre convenções de gênero e a criação de um subtexto, com ambos os aspectos se beneficiando dos mesmos recursos expressivos. Em várias instâncias, não há chaves de interpretação inequívocas: Vampiros de Almas (Siegel, 1956) é uma parábola sobre o medo da infiltração comunista ou sobre a homogeneização da sociedade? Essa ambiguidade não constitui um defeito. Demonstra, pelo contrário, a força da arte e da linguagem, capazes de renovar seus significados ao longo do tempo, extrapolando contextos e intenções de origem (termo, aliás, de aplicabilidade discutível).

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Não devemos esquecer tampouco que o filme dirigido por Siegel é primeiramente um suspense bem urdido e uma trama sobre monstros vegetais do espaço. Se valorizarmos as obras de arte somente em função de uma suposta dimensão alegórica, cairemos na mesma armadilha que criticamos acima, quando falávamos dos prestige pictures: se interessar mais pelo tema do que pela própria obra. As tensões mais interessantes costumam estar justamente na articulação entre narrativa, estilo e como ambos são mobilizados para expressar algo sobre o mundo.

Os sentidos de um filme não precisam se limitar às intenções declaradas pelo marketing dos estúdios. A crítica francesa do pós-guerra apontou superficialismo na tradição de qualidade e densidade insuspeita no cinema de entretenimento, rompendo com a inércia que condicionava cada interpretação a uma hierarquia de prestígio. O processo se repetiu várias vezes, com um gradual deslocamento de ênfase. Antes, defendia-se George Romero destacando o comentário social contido em suas cenas de canibalismo. Com o tempo, consolida-se um lugar-comum de que a profundidade do terror é obtida apesar de seus componentes genéricos. O que nos leva ao rótulo do Pós-Horror.

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Torna-se necessário, neste ponto, evitar alguns clichês, lembrando que:

  1. O terror nem sempre é mal recebido pela crítica e reabilitado a posteriori. Vide a boa acolhida das produções de Val Lewton, como Sangue de Pantera (Torneur, 1942), A Morta-Viva (Halperin, 1943) e tantos outros exemplos em décadas subsequentes;
  2. O subtexto não é intrinsecamente superior à articulação clara de uma mensagem;
  3. A aderência ou afastamento das convenções de um gênero não definem, por si só, o mérito da obra.

As três questões são bem demonstradas em Corra! (Peele, 2017), que traz uma temática racial em primeiríssimo plano, não segue à risca uma cartilha de horror e foi incluído em diversas listas de melhores do ano (1º colocado na enquete da Sight & Sound, 4º lugar na lista da Cahiers du Cinéma) – e que nem por isso deixa de ser um filme contundente.

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O gênero em busca de transcendência também não é novidade. Já em 1955, André Bazin falava de metawesterns (sur-westerns, no original), aos quais atribuía as seguintes características:

Digamos que o “metawestern” é um western que teria vergonha de ser apenas ele próprio e procuraria justificar sua existência por um interesse suplementar: de ordem estética, sociológica, moral, psicológica, política, erótica…, em suma, por algum valor extrínseco ao gênero e que supostamente o enriqueceria”.

BAZIN, André. Evolução do Western. In O Cinema – Ensaios (Brasiliense, 1991)

Como o próprio Bazin admite no artigo, essa separação não era absoluta. Faroestes tradicionais já continham traços autoreflexivos e vários dos exemplos utilizados – como O Preço de um Homem (Mann, 53) e Johnny Guitar (Ray, 54) hoje fazem parte do cânone do western, sem necessidade de prefixos. Dessa forma, os antecedentes sugerem que os gêneros sempre foram dinâmicos e capazes de incorporar complexidade estilística e temática, seja em iterações clássicas ou revisionistas.

Uma opinião bem diferente é expressada em matéria publicada pelo Guardian em julho de 2017: ‘How post-horror movies are taking over cinema’, escrita por Steve Rose e compartilhada quase 18 mil vezes. De acordo com o texto, o pós-horror se posicionaria contra um mercado composto de “variações de temas bem-estabelecidos: possessões sobrenaturais, casas assombradas, psicopatas, zumbis”. Rose não fornece qualquer exemplo relativo a esse mercado, mas menciona em linhas anteriores dois sucessos da Blumhouse – Corra! (já citado) e Fragmentado (Shyamalan, 2017) – ao elencar a rentabilidade desse tipo de filme.

Como alternativa a esse terror comercial, o autor oferece alguns títulos da A24 Films, como Ao Cair da Noite (Shults, 2017) e A Ghost Story (Lowery, 2017). São escolhas reveladoras: o último é um drama com elementos sobrenaturais enquanto o primeiro é um acúmulo pretensamente evocativo de silêncios, má-iluminação e conflitos mal esboçados. O filme de Shults demonstra vividamente que o problema não reside na ambição de transcender um gênero, mas na crença de que essa pretensão é garantia de qualidade.

As virtudes que Rose credita ao subgênero sempre estiveram presentes no Horror, como atestam os pesadelos políticos, existenciais e cósmicos conjurados por autores como Lucio Fulci (O Estranho Segredo do Bosque dos Sonhos, 1972), Larry Cohen (Foi Deus quem Mandou, 1976) e John Carpenter (O Enigma de Outro Mundo, 1982). A retórica do Pós-Horror propõe desconsiderar o poder subversivo desse cinema, privilegiando, em seu lugar, as noções mais restritas e antiquadas de respeitabilidade.

Ainda assim, parte expressiva da crítica e da cinefilia insiste nesses velhíssimos preconceitos, depreciando as convenções do terror sem jamais questionar os seus próprios clichês. Ignorando deliberadamente o passado, são como fantasmas à espera de um plot twist: mortos, sem saber, desde o início da trama.

***

O Massacre da Serra Elétrica 2 (Hooper, 1986) acompanha o empreendimento da família Sawyer uma década mais tarde: com ganhos de escala e profissionalismo, servindo carne humana para um público ávido pelo tradicionalismo sulista e que ignora convenientemente a proveniência daquele alimento, bem como o sofrimento necessário para a sua obtenção.

O esconderijo do clã é um parque de diversões abandonado chamado Texas Battle Land, onde a montanha de ossos acumulada pelos assassinos deposita-se sobre a pilha histórica de cadáveres. A final girl salva-se arrancando uma arma das mãos cadavéricas das gerações anteriores (parafraseando Charlton Heston em discurso pró-NRA, from cold, dead hands) e repetindo o mesmo gesto de Leatherface no final do filme de 74, manifestação de um ciclo de violência sem perspectiva de término.

Execrada por uns, celebrada por outros (como a maior parte da filmografia de Hooper), é uma obra com vários potenciais de significação, alguns ainda mais pertinentes em 2017 do que na ocasião de seu lançamento. Visualmente vibrante, deliberadamente excessiva, é uma excelente demonstração da riqueza a ser encontrada no cinema de gênero ao longo de toda sua história, mesmo em suas encarnações menos prestigiadas – e sem necessidade de rótulos ou prefixos.

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Agradecimentos a Guilherme Gaspar, Juliana Fausto, Marcus Martins e Pedro Lovallo.

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(Re)encontros de família: indefinição e redefinição da narrativa familiar em Zemeckis, Romero e Resnais.

Por Bernardo Moraes Chacur

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Quatro ideias prontas:

  1. Filmes americanos possuem alta carga ideológica.
  2. Filmes americanos são ingênuos, logo simples.
  3. Um certo cinema europeu rompe com os padrões hollywoodianos.
  4. Romper com o padrão hollywoodiano implica em ausência de padrão, aleatoriedade.

São generalizações bem difundidas, apesar de contraditórias entre si (1 e 2) ou superficiais (3 e 4). Inconsistências pouco aparentes a princípio, mas demonstráveis a partir da análise de três encontros de família, que exemplificam diferentes relações entre o cinema e a narrativa.

I.

Narrar não é observação passiva da ‘realidade’ ou dos ‘fatos’, é uma atividade de reconfiguração. Estabelecer relações entre causas e consequências, definir o que merece recordação, atribuir responsabilidade a indivíduos ou deslocá-la para forças que os transcendem (sejam sociais, naturais, sobrenaturais etc.). É erigir um mundo, mantê-lo de pé ou desestabilizá-lo. A narrativa não se restringe à ficção. Também está presente na historiografia, na psicanálise, no jornalismo diário e no cinema, de forma indissociável.

Nem sempre foi assim. Termos como filmes de mostração ou de atrações costumam ser utilizados para definir as primeiras décadas de produção cinematográfica. De certa maneira, a narração sempre esteve ali: decodificar a saída dos empregados da fábrica Lumière exigia uma compreensão mínima das ações (são funcionários partindo após a jornada de trabalho) e do contexto (trata-se de um local onde se executa jornada remunerada em uma cidade moderna do ocidente etc.) representados naquela película de 1895. Mesmo os loops projetados nos cinetoscópios Edison (como o execrável Electrocuting an Elephant, de 1903) poderiam apresentar início, meio e fim discerníveis, o germe narrativo.

Mas nada disso se compara à sofisticação narrativa conquistada após o advento da montagem e o desenvolvimento de Hollywood como indústria e linguagem, já no final da década de 1910. A transição entre exibir e narrar foi central para a aceitação da nova mídia. A mostração de lutas de boxe ou esquetes de vaudeville era considerada entretenimento vulgar, enquanto a boa ficção seria capaz de educar moralmente as massas (vide as discussões sobre a utilidade da literatura e da arte, no mesmo período). E de que moral estamos falando?

Lembremos algumas convenções desse cinema: contar uma estória, com lógica causal bem definida, focada em indivíduos com motivações compreensíveis e resolução clara dos conflitos apresentados. Qual representação de mundo é inseparável dessa maneira de organizar a informação? De modo geral, é a crença na liberdade do ser humano e na efetividade da ação: o protagonista é o agente de seu próprio destino, capaz de intervir nos rumos de sua vida e, se necessário, nos rumos de sua sociedade. Essa concatenação nem sempre é otimista: nos noirs, como em algumas tragédias clássicas, a vontade dos personagens pode ser insuficiente ou até mesmo engendrar sua derrocada. Ainda assim, na superação ou na queda, prevalece a iniciativa do self-made man e a trama raramente abandona a província do explicável. São convenções fortes, que mantém-se efetivas mesmo em histórias de viagem no tempo e realidades alternativas.

O que nos traz ao primeiro dos nossos três encontros familiares, a trilogia De Volta para o Futuro (Robert Zemeckis, 1985/89/90), em que o personagem principal reescreve a própria biografia, a de seus pais e filhos. Cada desenlace é diretamente associável a uma origem específica (a covardia paterna que se arrasta desde os tempos de colegial; o fracasso do Marty de meia-idade, cuja origem está no acidente automobilístico etc.) e, logo, admite intervenção. O efeito de cada ação é aferível, seja no retorno a 1985 ou através dos objetos que se modificam às vistas do herói (o retrato de família, os jornais, a carta de demissão). O mesmo vale para toda a cidade de Hill Valley, que se converte em distopia quando McFly comporta-se irresponsavelmente (à semelhança da Bedford Falls alternativa em A Felicidade Não se Compra, privada de seu pilar-da-comunidade). Trata-se enfim, do mito hollywoodiano em estado de arte.

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Falando em mitos, é comum apontar o componente edipiano no filme de Zemeckis. Também valeria compará-lo à Odisséia: no princípio das duas histórias, o solar da família encontra-se em desordem (assolado ora por Biff, ora pelos pretendentes de Penélope). Ambos os protagonistas reentram incógnitos em seus lares: Odisseu transfigurado, Marty irreconhecível em 1955. O ‘disfarce’ lhes concede tanto a liberdade de ação quanto a observação indiscreta de seus familiares (como as esposas, mães e descendentes se comportam durante a ausência do filho/marido?). Após um ciclo de peripécias, a ordem é instituída pela ação dos heróis, com alguma ajuda externa (Atena, o Dr. Brown). São (dentre outras leituras possíveis) duas jornadas de salvaguarda da linhagem paterna, belíssimas articulações de ideários regressivos – mas de forma alguma “simples” ou “ingênuos”. Em nível mais geral, testemunham a crença no poder do indivíduo e suas escolhas, ainda um corolário dos manuais de roteiro. Situação diversa da que veremos a seguir.

II.

Nos tempos da Hollywood clássica, o Terror era o gênero mais afeito ao pessimismo e à incerteza. Durante a década de 70, em conformidade com o malaise prevalente, essas duas tendências se disseminaram por boa parte do cinema americano. Nem sempre uma tendência favorecia a outra, afinal o pessimismo pode redundar em explicações bastante restritas, eliminando dessa forma a incerteza. Ocasionalmente, a dinâmica entre essas duas forças era estimulada pela influência do cinema europeu. São questões ilustradas por Martin (George Romero, 1978), nosso segundo encontro de família.

Quando a trama se inicia, o personagem título está a caminho da casa de parentes, onde causará divergências: Para seu velho guardião, o recém-chegado encarna uma maldição sobrenatural que os persegue desde a Lituânia, o vampirismo. Martin, por sua vez, atribui a suposta monstruosidade a causas genéticas, enquanto a prima mais nova crê que o hóspede é apenas um jovem confuso, capaz de transcender as neuroses familiares. O filme não solucionará inequivocamente a questão, embora indique uma resposta mais plausível.

Em qualquer hipótese, Martin é um assassino. As perseguições, que visualiza de acordo com o clichê vampírico, redundam em estupro e assassinato, perpetrados desajeitadamente. Se De Volta para o Futuro é homérico, entramos agora em terreno quixótico: um homem tentando encaixar o mundo no gênero literário/cinematográfico. Coincidência importante: o papel idealizado das donzelas em perigo, tanto nos romances de cavalaria quanto na fantasia vampiresca.

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A estrutura do filme é episódica, assim como em Cervantes. Há frouxo encadeamento entre acontecimentos e os ‘heróis’ realizam muito pouco. Para Quixote, a Dulcinéia jamais se materializa. Martin, por outro lado, se envolve com uma dona-de-casa e o sexo real começa a suprimir os impulsos de sanguessuga. Ao contrário do fidalgo manchego, vislumbra uma vida além do delírio, até ser punido pelo crime que não cometeu. É a inversão dos valores do roteiro clássico: o indivíduo não domina seu destino e não se descobre satisfatoriamente no decurso da trama. Inversões, no entanto, se relacionam ao modelo: o pessimismo à New Hollywood ainda sustenta alguma causalidade (Martin é destruído pela incompreensão do tio e pelo peso moral das transgressões cometidas) e a sua ambiguidade é, no mais das vezes, solucionável (ele quase certamente não é um vampiro).

Nesse filme, Romero utiliza técnicas narrativas popularizadas pelo cinema europeu das duas décadas precedentes, que buscava outras maneiras de representar a realidade, o tempo e a ação (enxergo pontos de contato com Melville, Godard e Antonioni). A meticulosidade com que os ataques de Martin são encenados torna-os o verdadeiro centro do filme, ao invés de elos em uma cadeia de eventos. Seu ‘realismo’ torna indisfarçável a violência e feiura usualmente destinadas a elipses. O confronto com a idealização é temático e, ao mesmo tempo, exprimido cinematograficamente.

III.

Em Muriel, ou o Tempo de um Retorno (Alain Resnais, 1963), nosso terceiro encontro, a linearidade é sistematicamente desconstruída. Desta vez, não estamos diante de uma família tradicional: Alphonse é acolhido por um antigo amor, a viúva Hélène, com quem poderia ter se casado. A viúva mora com um rapaz, Bernard, à primeira vista seu filho, na verdade enteado. Alphonse chega acompanhado da jovem Françoise, que apresenta como sobrinha e de quem é, na realidade, amante. Cada relação de parentesco está irremediavelmente truncada.

Alphonse e Hélène se conheceram e separaram durante a ocupação nazista naquela mesma cidade. Placas e buracos de bala rememoram o conflito, que, no entanto, permanece obscuro para os antigos participantes, incapazes de lembrar o número e a identidade dos mortos (ou diferenciá-los dos vivos, convenientemente esquecidos). Bernard é assombrado pelas memórias da Guerra da Argélia, jamais esclarecidas, reativadas a partir de fragmentos: diários, fotografias, filmes de 8mm. O apartamento da viúva é também um antiquário: móveis aparecem e desaparecem cena a cena, sedimentos instáveis de passado.

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Walter Benjamin observou que os combatentes da 1ª Guerra, “voltavam mudos do campo de batalha; não mais ricos, e sim mais pobres em experiência comunicável”. Parte das funções da narrativa – explicar, tornar os eventos suportáveis – havia sido “desmoralizada” pela sua inadequação ante os traumas vividos. O mesmo pode ser dito a respeito dos discursos oficiais sobre a República de Vichy e a colonização francesa na África. Os personagens de Muriel vivem sob o peso dessa desagregação e submetê-los à narração tradicional seria outra violência, a justificação do injustificável.

A representação adequada desse ceticismo não é obtida aleatoriamente. Exige, pelo contrário, o questionamento de cada premissa da lógica linear e, consequentemente, da gramática do cinema. As regras de boa edição recomendam motivações diegéticas e invisibilidade nos cortes, ditames assiduamente desrespeitados por Resnais. Não se trata de exibicionismo formal, há consistência notável entre escolhas e temática: imagens de presente e passado justapõe-se, como em nossa memória e à nossa revelia. Pontos chaves da trama ultrapassam a ambiguidade para permanecer indecidíveis. Em Martin, não obstante a incerteza, Romero ainda fornecia suporte para inferências. Em Muriel, Resnais suprime deliberadamente os elementos que elucidariam os mistérios centrais.

Aludimos ao cânone ocidental na discussão dos filmes anteriores. Para Resnais, nesse período, o precedente literário mais direto seria o nouveau roman, igualmente dedicado a questionar os limites e a ética da Forma (vale lembrar que o diretor adaptou ou colaborou com dois de seus luminares: Marguerite Duras e Alain Robbe-Grillet). Tais experimentos – no cinema ou na literatura – são frequentemente mal interpretados. Costumam ser acusados de incompreensibilidade, esteticismo, desvio da ficção ‘natural’. Há um indisfarçável autoritarismo nessa argumentação: desacreditar as narrações alternativas é sustentar que apenas a versão predominante seria admissível, o único modo de organizar a informação e o mundo, apesar da ampla evidência histórica sugerindo o contrário. Abandonar a estrutura tradicional não implica em ausência de estrutura: recusar as identidades e ordenações pré-estabelecidas pode ser um ato de resistência.

***

De acordo com o estereótipo, partimos do cinema simples de nosso primeiro exemplo e avançamos gradualmente até sua contraparte mais sofisticada, embora tenhamos retroagido algumas décadas durante o percurso (dos anos 80 aos 60). Sinal de declínio cultural? Ou poderíamos inverter a tendência a partir da escolha de três outros filmes? Considerando o nível de articulação, observável em cada caso, entre ideias e expressão cinematográfica, seria adequado descrevê-los em termos de maior ou menor complexidade? Ou seria mais produtivo refletir sobre as possibilidades abertas (ou desconsideradas) em qualquer narração?

Em tais discussões, precisamos nos ater à forma/conteúdo do texto? Ou deveríamos reconhecer igualmente o papel desempenhado pela leitura na produção de sentido? Exemplificando: os paralelos apontados aqui entre filmes e literatura emanaram naturalmente de uma recorrência de arquétipos ou são resultado de uma linha argumentativa? Concluo este texto com outra ideia pronta: convém não esquecer que a crítica, os ensaios e teorias também fazem parte da narrativa.

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Agradecimentos a Arthur Tuoto, Guilherme Gaspar e Marcus Martins

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Vulgarismo e prestígio – Alguns precedentes e considerações

Por Bernardo Moraes Chacur

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Discussões sobre o vulgar auterism costumam orbitar em torno do segundo elemento da expressão – isto é, sobre a pertinência da comparação entre esse conceito mal definido e o cânone estabelecido em torno da Política dos Autores nos anos 50. Talvez seja mais produtivo refletir sobre o primeiro componente da fórmula: a noção de vulgaridade em arte.

Respeitaremos o clichê e começaremos pela Poética de Aristóteles, que já abordava as relações de superioridade entre diferentes gêneros da mimesis. Segundo leituras mais apressadas desse texto, as formas mais elevadas de arte tratariam de temas e personagens elevados – Deuses, Heróis, Reis. Já a comédia representaria o seu extremo oposto: os piores tipos de comportamento, as classes mais baixas, apelo aos basic instincts do seu público. Variações desse discurso nortearam a hierarquização estética durante alguns séculos, embora algumas dessas máximas não possam ser diretamente atribuídas ao texto original sem alguma controvérsia.

No trecho a seguir (condensado a partir de duas passagens), o filósofo resume os preconceitos de seu tempo nos seguintes termos:

Com efeito, se a menos vulgar é a melhor, e se (…) [a epopeia] a que se dirige aos melhores espectadores (…) feita para um público de bom gosto (…) a tragédia se destina ao vulgo; e se a tragédia tem algo de banal, manifestamente é de qualidade inferior”[1]

Em seguida, Aristóteles defende a primazia da tragédia sobre a epopeia, contrariando esse consenso. Logo, seria o filósofo o grande precursor do vulgarismo? Ressalvando-se a malandragem confessa da seleção acima, é possível arriscar duas conexões entre este debate e outros bem mais recentes: 1) um determinado gênero, de alta aceitação popular, é julgado inferior a priori; 2) A refutação dessa suposta inferioridade, propondo modificar a valoração anterior.

Nessas disputas pela posição de diferentes gêneros em uma mesma hierarquia, raramente (ou nunca) a própria noção de hierarquia era atacada. Diferentes concepções foram utilizadas para definir o que constitui um tema elevado em outros períodos históricos: a partir da Renascença, a pintura ocidental prestigiou ora os tópicos religiosos, ora os histórico-mitológicos até chegarmos, às temáticas sociais alguns séculos mais tarde. Durante todo este intervalo, havia demanda pela chamada pintura de gênero e outras modalidades de menor status: cenas domésticas, naturezas-mortas, paisagens etc., com alguns gêneros ganhando ou perdendo ascendência ao longo do tempo. Ainda assim, podemos apontar uma constante cambiável: certos gêneros são considerados frívolos, enquanto outros, dignos de contemplação séria.

As questões envolvidas nunca eram meramente estéticas, gerando impactos socioeconômicos concretos sobre a produção artística: cargos oficiais para artistas, ensino em academias, o acúmulo ou desvalorização de capital cultural para um público consumidor que procurava se afirmar ou diferenciar socialmente. Mas entre tendências conservadoras ou contestadoras, os produtos culturais consumidos pelas classes mais baixas invariavelmente ocupavam a base da pirâmide do prestígio.

O interesse por histórias e formas de expressão populares só foi despontar na Europa quando as mesmas passaram a ser consideradas em vias de desaparecimento, sob as ondas de urbanização dos séculos XVIII e XIX (e o Nacionalismo, com sua ênfase na ‘descoberta’ de culturas próprias, foi de igual importância para essa valorização)[2]. Para nossa pauta, dois precedentes são relevantes nesse movimento folclorista a) os detritos de uma era passaram a ser o tesouro de outra; b) a cultura popular urbana era vista como uma forma decaída da anterior e as cidades como o espaço onde o patrimônio ancestral iria se perder.

Esta última ideia ainda era bem aceita em princípios de século XX, como atestam as reações causadas pelas novas mídias (fotografia, rádio, cinema). Os Guardiões do Bom Gosto puderam, até então, oscilar entre desinteresse e desprezo pelo juízo estético das massas. Agora, eram afrontados pela própria escala massificada dessa cultura. E o cinema, em suas primeiríssimas encarnações, concentrava todos os vícios atribuídos à vulgaridade urbana. Até os primeiros anos da década de 1910, certos locais dedicados à exibição de filmes – os nickelodeons, dentre outros – chegavam a ser considerados física e moralmente insalubres[3].

Transcorrido pouco tempo, consolida-se uma indústria de cinema, ofertando um produto assimilável pela Boa Sociedade. Nesse contexto de necessidade mercadológica e legitimação, o cinema cortejou os padrões pequeno-burgueses de respeitabilidade e distinção cultural, condensando em torno de si alguns milênios de indicadores de prestígio e hierarquias de gêneros (vários dos quais já ultrapassados àquela altura em seus campos de origem).

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Por vezes, apelavam-se às mesmas virtudes já repisadas desde a Antiguidade ou Renascença: os Eventos Históricos, a vida dos Grandes Personagens, a Relevância Social (todas presentes em o Nascimento de uma Nação de Griffith). Outro procedimento recorrente era a adaptação de textos consagrados da Literatura e Teatro, reivindicando de forma quase parasítica as glórias concedidas às outras Artes. Não por acaso, termos oriundos de uma noção ingênua de dramaturgia ainda são usados para enaltecer este “cinema de qualidade’, como a ‘Boa Estória’, ‘os Diálogos Inteligentes’ etc. Cem anos depois, alguns desses valores ainda persistem como critérios de excelência para parte do público e crítica.

A linha de montagem hollywoodiana seguiu produzindo a sua cota anual de Filmes Sérios, mas em número sempre inferior à oferta de títulos de genealogia menos ilustre: roteiros baseados em contos publicados em periódicos, no teatro melodramático e na literatura barata. Essa produção média não foi uniformemente desprezada pelos próximos 30 anos: atingindo milhões de pessoas, o cinema consolidou o seu nicho, justificando o surgimento de uma crítica especializada. Ainda assim, a sua ordenação no totem de prestígio manteve-se, na melhor das hipóteses, intermediária. Até o final da década de 50 e o advento do “autorismo”[4].

Na ocasião, dois fenômenos complementavam-se: 1) a expansão de um cinema internacional, com sua alteridade em relação à Hollywood e seus sobrenomes convertidos em marcas registradas (Kurosawa, Bergman, Fellini etc.); 2) a defesa entusiasmada, por parte de uma nova geração de críticos, de nomes que atuavam há décadas no cinema americano. Tais discussões acabaram gerando um cânone alternativo (e que se tornaria “oficial”) de Grandes Cineastas, composto por realizadores europeus, asiáticos e – em pé de igualdade ou precedência – diretores baseados nos EUA e cuja obra consistia em suspenses, comédias, faroestes etc.

Esse movimento não deve ser interpretado como uma heroica caminhada até a luz. Antes, trata-se de mais uma etapa na trajetória da valoração cultural: defender que a 7ª ARTE possuía Autores (vulgares ou não), também era um recurso de conquista de prestígio, reivindicar o mesmo status das suas seis precedentes e inseri-la em uma narrativa equivalente, com seus Grandes Homens, Gênios e Autores (de Homero a Shakespeare, de Michelangelo a John Ford). Além disso, escrever um livro sobre Hitchcock não é apenas uma defesa do valor do diretor inglês, mas também a defesa do valor de escrever sobre o diretor inglês, ou seja, um exercício de autojustificação para um público de entusiastas e para os próprios críticos e estudiosos.

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II.

Uma variação da seguinte anedota é veiculada periodicamente na imprensa e redes sociais: um balde, esfregão ou qualquer objeto prosaico é esquecido em um museu e o público confunde-o com uma obra em exposição (nas entrelinhas: a suposta falta de legitimidade da arte moderna/contemporânea). As suas origens podem ser traçadas até o momento em que Duchamp expôs um urinol e batizou-o A Fonte. A obra pode ser interpretada de diversas maneiras, uma delas bastante aplicável ao nosso tema: a importância da posição, do quadro de referência para as construções de Sentido. Mais do que uma provocação, a Fonte de Duchamp (e as anedotas sobre baldes esquecidos) sugere algo essencial sobre o funcionamento do sistema.

Alguns exemplos, mencionados ou apenas sugeridos nos parágrafos precedentes: os contos populares do início da Idade Moderna eram apenas a camada inferior da cultura no seu próprio tempo e alguns séculos depois, Folclore. Vertigo foi recebido como um mistério mediano e mal resolvido em 1958 e o maior filme de todos os tempos em 2012[5]. Deslocando o nosso foco da recepção para a produção dos textos: a Poética pôde ter elementos de polêmica quando escrita, mas converteu-se em manual de excelência literária poucos séculos depois. A Política dos Autores, de controvérsia inicial passou a influenciar concretamente a importância dos diretores na Indústria, em pouquíssimos anos.

Especialmente nos dois primeiros exemplos, temos um mesmo texto recebido de formas completamente diferentes em um novo contexto, demonstrando a importância da moldura, da inserção do objeto no Museu, para a construção do sentido a cada leitura. A maneira como os objetos, culturais ou não, são confrontados é de tal forma orientada pela sua função, status e discursos adjacentes que é impossível pensa-los de forma separada de seu quadro de referência, isolar a Obra-em-si. O que não quer dizer que a Obra não exista, que todo o sentido seja arbitrário, uma mera ilusão de ótica convencionada por cada grupo observador.

Quando os folcloristas passaram a debruçar-se sobre a literatura vernácula, identificaram inúmeros pontos de interesse relativos à sua estrutura, a sua capacidade de produzir variações e as suas raízes históricas. Quando a crítica começa a exaltar Hitchcock, depara-se com um domínio estilístico e densidade temática observáveis na construção de cada plano. Em ambas as situações, a recepção não se produziu aleatoriamente, mas a partir de elementos identificáveis nas próprias obras. Paul Ricœur certa vez resumiu que a Leitura (que deve ser entendida de forma ampla) consiste no encontro entre um mundo do texto e um mundo do leitor[6]. Nenhum dos dois elementos deve ser negligenciado em uma discussão sobre o sentido.

Ambas as situações atestam a crescente importância do formalismo no pensamento ocidental sobre a estética. Percebe-se o deslocamento de uma análise e valorização centrados na temática evidente, nos referentes da obra no ‘mundo real’ (valores ‘externos’) para a consideração dos elementos constitutivos do texto e seu aparato de produção (valores ‘internos’)[7]. Evidentemente, tais transições não são totais nem homogêneas, menos ainda o ponto final da História em uma linha de evolução constante. A análise formalista não é a única possível em 2016, tampouco constitui a resposta ‘certa’ ou definitiva.

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III.

No Islã, os xiitas creem que a Revelação se encerrou com o Profeta, enquanto para os sunitas, ela continuou até os seus sucessores diretos. O autorismo também possui seus xiitas e sunitas. Os xiitas acreditam que a inspiração divina se limitava à canonização de Hitchcock, Hawks, Ford etc. e que nunca mais se encontraria algo de valor sob a cobertura do cinema de gênero. Sunitas diversos estenderam o precedente para outros cineastas e décadas em uma fronteira periodicamente deslocada, mas jamais abolida. Dessa forma assistimos a gradual incorporação das comédias de Tashlin até os zumbis de Romero ao quadro de respeitabilidade. Ainda assim, cada nova tentativa de expansão desse limite costuma encontrar resistências.

O ramo xiita costuma protestar que as práticas dos autores originais eram indissociáveis do modo de produção da Hollywood Clássica. Já os sunitas podem objetar que um Isaac Florentine não estaria no mesmo nível de um Paul Verhoeven (um dos mais recentes reabilitados). No entanto, tais protestos só são aplicáveis à indagação menos interessante (existem Autores, em termos comparáveis aos grandes cineastas do passado, em espetáculos de CGI 3D ou em fitas de pancada Direto-para-Streaming?), em prejuízo de questões mais férteis: pode-se encontrar valor estético no Vulgar? É possível confrontar e produzir ideias a partir deste ‘gênero’?

Cortejarei protestos sugerindo um instante de comparação entre dois filmesAdeus à Linguagem 3D dispensa lógica narrativa e personagens, a exemplo das últimas décadas da filmografia de Godard. Para processar com sucesso os seus temas nos termos propostos pelo diretor franco-suíço é necessário, além de certa familiaridade com alusões filosóficas e literárias, atentar para o sentido produzido pelos seus procedimentos formais, pelos elementos constituintes das imagens que se sucedem e como eles ilustram e complicam as ideias sugeridas pelo próprio título da obra e pelas frases que irrompem ora escritas, ora proferidas pelos atores em cena.

Para os dispostos, a experiência permite uma exploração sobre o estado da Linguagem (cinematográfica ou não), sua adequação para confrontar questões políticas, pessoais e seu potencial para o autoritarismo e violência. Outra abordagem possível seria admirar a beleza das imagens e da mise-en-scène, sem fazer questão de decodificar cada passagem. Por outro lado, a experiência mais frustrante seria buscar no filme uma estória coerente ou personagens que permitam uma identificação com o público (mal-entendidos frequentes).

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Resident Evil: Retribuição (também 3D) não parece preocupado com uma lógica narrativa impecável ou desenvolvimento de personagens. Há um enredo, que trata da manipulação violenta de espaços físicos e temporais simulados e da sobrevivência nesta fronteira permeável entre real/virtual. Aproveitando-se do fato de que praticamente todas as imagens foram produzidas digitalmente, Paul W.S. Anderson libera a sua “câmera” e a faz transitar em velocidade vertiginosa entre visões microscópicas e telescópicas da ação, acelerações e desacelerações do tempo, transições entre mapas de videogame e cenários “reais”.

Para os dispostos, o efeito cumulativo desses procedimentos formais ilustra e complica um subtexto não muito distante do próprio texto. Outra abordagem possível seria simplesmente se divertir com a beleza das imagens, com o absurdo das situações e a inventividade da mise-en-scène. Por outro lado, a experiência mais frustrante seria procurar no filme uma estória, personagens e atuações que atendam aos padrões de dramaturgia-cinematográfica-de-qualidade vigentes em 2016.

A comparação proposta pode soar descabida, uma vez que Godard é considerado um intelectual, enquanto Anderson dirigiu quatro adaptações de videogames. No entanto, penso que os exemplos superficialmente elencados nestas páginas ilustram o caráter historicamente variável de cada leitura. Cientes disso, ao invés de perpetuar as interpretações já autorizadas, podemos explorar as possibilidades de um confronto aberto com cada obra. Ao perseguir esse objetivo, não nos desvencilharemos completamente de nossas preconcepções, mas torna-se possível pensá-las e testar os seus limites. Armadilhas nos aguardam a cada passo. Um erro comum seria acreditar que, uma vez que o vulgar de um período pode se tornar valorizado no próximo, todo produto marginal estaria destinado a uma revalorização futura, em um mero processo de reversões cíclicas.

Para finalizar, vale lembrar que tais movimentos não possuem mão única. Quantos filmes não seriam levados à sério graças ao seu verniz de importância, antes de qualquer análise? E ao longo do tempo, mesmo os cânones podem perder a sua centralidade. David Bordwell ao estudar pormenorizadamente a linguagem clássica de Hollywood, não pôde deixar de notar o quanto os arthouses que lhe faziam contraponto também compartilhavam entre si semelhanças estéticas, estratégias narrativas, e convenções: o original, portanto, tinha (e continua a ter) um forte componente genérico, que certamente não o torna pior, mas coloca em cheque a sua hipotética superioridade. E se as filmografias de Jerry Lewis e Ingmar Bergman podem se ver igualadas em diferentes climas, outras obras, outrora incensadas, podem sofrer pior destino, como atesta a legião de títulos premiados a quem restou o proverbial Olvido da História – deslocamento que, por sua vez, também não será necessariamente irreversível.

 

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Agradecimentos a Arthur Tuoto, Bruno Amato, Marcus Martins e a toda comunidade CV. Agradecimento especial para Guilherme Gaspar, que tornou este texto legível.

[1] Seguem as passagens originais: “XXVI. 2.: Com efeito, se a menos vulgar é a melhor, e se é sempre esta [a epopeia] a que se dirige aos melhores espectadores, a que se propõe imitar tudo seria, por conseguinte a mais vulgar. (…) 5. Esta [a epopeia], segundo se diz, é feita para um público de bom gosto, que não precisa de toda aquela gesticulação, ao passo que a tragédia se destina ao vulgo; e se a tragédia tem algo de banal, manifestamente é de qualidade inferior.” A poética clássica /Aristóteles, Horácio, Longino.  Introdução Roberto de Oliveira Brandão; tradução Jaime Bruna. 7.  ed.  São Paulo:  Cultrix, 1997.

[2] Os fenômenos mencionados não esgotam os fatores envolvidos nessa transição. Sugiro BURKE, Peter. Cultura popular na idade moderna: Europa 1500-1800 / trad. Denise Bottmann. São Paulo, Companhia das Letras, 2010. para um panorama abrangente da mesma. Também penso haver grande interesse em pensar a questão sob o prisma das mudanças epistemológicas – vide As palavras e as coisas (FOUCAULT, Michel. Les mots et les choses. Paris: Gallimard, 1966.).

[3] Para este e os próximos parágrafos: COSTA, Flávia Cesarino. O Primeiro Cinema: Espetáculo, narração, domesticação. São Paulo. Scritta, 1995 e Bordwell, David; Staiger, Janet; Thompson, Kristin. The Classical Hollywood Cinema. Film Style & Mode of Production to 1960. Nova Iorque: Columbia University Press: 1985.

[4] O autorismo da década de 50 não representa a primeiríssima vez em que se atribuiu aos diretores aspirações e méritos estéticos. Não nos interessa aqui o ineditismo da abordagem, mas o papel desempenhado pela mesma na mudança de status experimentada pelo cinema a partir daquele período. Tampouco deve-se acreditar em uma equivalência automática entre autorismo e análise “esclarecida”, uma vez que diversas refutações e corretivos já foram propostos aos seus axiomas (que vão desde os mais ingênuas –  propor outra classe profissional, como os roteiristas, como principais autores de um filme – aos mais pertinentes – como apontar as tendências autoristas em ancorar suas leituras nas discutíveis “intenções do autor” ou ignorar contextos históricos em prol de um discurso excepcionalista).

[5] De acordo com a enquete realizada a cada dez anos pela Sight and Sound.

[6] RICŒUR, Paul. Temps et Récit . Volume 3, Le temps raconté. Paris: Seuil, 1991. (Coll. Points – Essais).

[7] Tentei aludir aqui aos conceitos de episteme e formações discursivas, conforme descritos por Foucault em As Palavras e as Coisas, já citada anteriormente. Restringindo muito a abrangência dessas ideias, arrisco resumir que o discurso (em nosso caso, a hierarquização) é inseparável de suas condições de possibilidade (as premissas que definem o que constitui a excelência). Vide nota 2 acima.

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