NÃO DEIXE O CLÁSSICO MORRER

Por Yuri Deliberalli

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Se a morte do cinema é anunciada desde que os tempos são tempos, a morte do classicismo não escapa do mesmo fim. Desde que a “era de ouro” de Hollywood entrou em crise frente as novas demandas (o surgimento da televisão e o cinema mais próximo da realidade) e os precursores da narrativa tradicional, como John Ford, Howard Hawks e Alfred Hitchcock, por exemplo, adentraram o final de suas carreiras com filmes considerados “menores”, o clássico, assim compreendido como o cinema feito nas décadas anteriores, tornava-se um espectro lançado sobre a nova década (os anos 70).

Mas um espectro não deixa de ter lá sua consistência, de forma que, na essência, o clássico continuava a permear as narrativas que surgiam durante esse movimento de um cinema mais autoral, notadamente em filmes como O Poderoso Chefão (1972) e O Portal do Paraíso (1980), para citar dois exemplos que caracterizam o período inicial e final da Nova Hollywood. Enquanto alicerce das novas modalidades de narrativa, o clássico servia não só como fonte de inspiração desses novos cineastas, mas também como instrumento de resistência e até mesmo de certo rancor por parte daqueles que remanesceram das décadas anteriores, sendo Fedora (Billy Wilder, 1978) um exemplo marcante dessa perspectiva.

Por mais que o pioneirismo experimental de Jean Luc-Godard continuasse dando as cartas do jogo, o classicismo permanecia como a principal escola de estrutura narrativa do cinema, especialmente naquele feito em âmbito mais comercial. E as razões para isso são claras: o clássico afasta o estranhamento formal em prol de uma maior clareza e objetividade da forma com que a narrativa será conduzida. Dá-se preferência à história e ao desenvolvimento dos personagens, ao encadeamento sequencial dos planos e, consequentemente, à facilidade de assimilação ao que se filma. Extrai-se disto o elemento atemporal do clássico, que o faz resistir e persistir ao avanço tecnológico do cinema.

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Com o advento do digital, a defesa do clássico foi transposta também ao campo estético e capitaneada por cineastas de referência como Quentin Tarantino, Paul Thomas Anderson e James Gray. A defesa do clássico se torna, assim, a defesa da película (o 35 mm e o 70 mm, principalmente), dos métodos tradicionais de filmagem e da preservação do distanciamento causado pela experiência cinematográfica no público. E essa defesa se desenvolve de uma maneira até mesmo radical por parte desses cineastas, a ponto de recusarem filmar caso os elementos representativos do cinema clássico sejam extintos ou impraticáveis financeiramente. Tarantino, que anuncia sua iminente aposentadoria há alguns anos, deixa muito claro que o fim da película significa o fim do cinema.

Que morte é essa que ocorre com o fim de uma tecnologia, em se tratando de uma manifestação artística exposta por meios tecnológicos? A defesa da película não deixa lá de ter seu viés saudosista, ao mesmo tempo em que é legítima sob o argumento de que mantém o distanciamento do filme com o espectador, isto é, preserva o caráter de ficção da imagem e resguarda ao público a famigerada “magia do cinema”. Afinal, as 24 fotos projetadas por segundo e a granulação da imagem criam a ilusão de que há captura de um movimento e remontam a uma noção pura e ingênua de cinema, enquanto que o digital, no seu imediatismo, reduz esse caráter utópico e idealista.

Trata-se de uma relação iconográfica que esses diretores possuem com o modelo narrativo clássico e que se justifica a partir de uma intenção de realçar o caráter representacional do cinema em detrimento de uma aproximação deste com a realidade. O clássico fornece um alicerce sustentável – uma premissa narrativa objetiva e clara – para que esses realizadores possam reconfigurar modelos pré-estabelecidos como um exercício referencial ou como uma reafirmação de sua infinita relevância perante os novos tempos e novas tecnologias.

De certa forma, esses cineastas tentam assegurar seus respectivos nomes no panteão do cinema pela via reversa, isto é, por meio da celebração do tradicionalismo e do quão adaptável e indiferente ele pode ser frente ao novo e ao transgressor. E isso se deve à maneira com que iniciaram sua relação com o cinema, quase sempre por meio de uma vivência idealizada (a locadora de Tarantino) ou mesmo acadêmica (a universidade em Gray), o que acaba por evidenciar o método e o olhar de cada um deles frente ao trabalho que executam.

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Enquanto Quentin Tarantino promove constantes releituras de gêneros clássicos consagrados (o blaxploitation em Jackie Brown (1997) e o western revisionista em Django Livre (2012), por exemplo) e executa seus filmes a partir de um jogo de referências, inspirações e emulações que, articulados entre si, criam uma dinâmica formal e narrativa muito própria – um estilo cinematográfico reconhecível -, de forma a contextualizar o clássico dentro do moderno, James Gray se torna cognoscível a partir da preservação da uma forma clássica natural e original, que serve como persistência e combate a qualquer remodelagem pós-moderna da estrutura fílmica, de modo que a modernidade surge do embasamento e maturidade com que concebe o arcabouço narrativo de seus filmes.

Seu último filme, intitulado Z: A Cidade Perdida (2016), é bastante exemplificativo disso. Em primeiro lugar, estabelece uma premissa absolutamente clara e objetiva – Percy Fawcett é um explorador que vai à Amazônia realizar o mapeamento da fronteira entre Bolívia e Brasil e acaba obstinado pela ideia de uma cidade perdida em meio à selva – que não se reserva apenas à conta uma história de um modo sequencial, em que o protagonista possui um objetivo e vai ao respectivo encalce durante toda projeção. Gray, na realidade, se vale dessa premissa contornada por conceitos clássicos para subverte-la a um contexto em que questões de classe são discutidas – Fawcett tinha dificuldades de ascender socialmente por causa do seu sobrenome maculado, de forma que, em sua viagem, descobre que a verdadeira civilidade está nos índios, e não na pomposidade do alto escalão britânico – sem que tal discussão seja um ponto frontal do filme.

Trata-se da utilização do clássico enquanto uma estrutura narrativa permissora de discussões e complexidades, que permite a Gray tratar sobre colonialismo, classe e etnia, bem como questionar o que significa ser uma pessoa civilizada, sob o manto do filme aventureiro, do explorador que vai à selva em busca de desafios. Na visão de Gray, a narrativa clássica abre as portas para o desenvolvimento do subtexto, desde que a história seja bem arquitetada e contada com emoção e elegância, algo que a narrativa pós-moderna encontraria maiores dificuldades de atingir. Segundo ele, desconstruir as bases clássicas pode acabar por encerrar qualquer discussão que poderia ter sido iniciada pelo filme pós-moderno.

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Filmado in loco e em 35 mm, Z: A Cidade Perdida tem o condão de justificar a película pelo seu forte aspecto anacrônico, na intenção de que o espectador tenha uma maior facilidade de ambientação e imersão numa história claramente distante e ficcionalizada. Por outro lado, a utilização da película não deixa de levar essa defesa do purismo cinematográfico para circunstâncias um tanto radicais, como o fato de Gray ser obrigado a levar uma tecnologia logisticamente obsoleta para os confins da selva amazônica e, por isso, ter que treinar uma pessoa específica apenas para dar conta da retirada, armazenamento e posterior transporte da película para o aeroporto, de onde a filmagem do dia seria levada para a Europa, diariamente.

Neste processo, rolos de película danificados durante as filmagens e maiores custos de produção, ou seja, constrói-se uma tática de guerrilha em meio a diversos obstáculos físicos para que se possa salvaguardar uma concepção pessoal do que é fazer cinema.

Ao fim e ao cabo, é a reafirmação do clássico em sua literalidade e não como uma forma que permite conciliar eficiência dramática com as novas tecnologias, ou seja, é a resistência da tradição sobre subversão formal e narrativa, numa ideia de cinema artesanal e datado, mas que dialoga com as questões sociais imutáveis ao longo dos anos. Pode ser um exercício idealizado de se fazer cinema, mas não se pode negar a sua eficácia.

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A CRENÇA NA MATÉRIA

Por Yuri Deliberalli

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A religiosidade como um ponto de encontro da matéria, da presença física e da espiritualidade é um conceito que abarca estas três perspectivas em três longas-metragens que, dentre as diversas questões que abordam, procuram investigar os limites e abrangência da crença do ser humano em algo sobre-humano, intangível e não pertencente à ordem de seus atos. É essa vontade (e a credibilidade) da crença e do próprio ato de crer que levará os personagens a três formas distintas de encontro que, ao fim e ao cabo, validarão a noção de que a religião tem o condão de ensejar a harmonia e a ruptura das relações.

O modus operandi de Pasolini em O Evangelho Segundo São Mateus (1962) é todo alicerçado na premissa de um Jesus Cristo neorrealista, cujos atos milagrosos se aproximam da materialidade para alcançar a espiritualidade de seus ouvintes. Em suas pregações iniciais, Pasolini isola Cristo no plano frontal num sinal de que a palavra de Deus, desenvolvida enquanto um discurso radical de esquerda, não chega ao público com a força do fascínio e do encanto que deveria. Isto somente ocorre no momento em que os milagres materiais começam a ser operados por Cristo, porque apenas a consecução do bem material faz sentido para um povo acostumado à miséria.

A ideia de Pasolini é clara: Cristo somente conseguiria fazer a palavra de Deus chegar ao povo se usasse de meios identificáveis de assimilação do contexto espiritual, como, no caso, a transformação material dos bens. A atração do público não era exatamente o conteúdo, mas a demonstração empírica da palavra divina, como se Cristo fosse, na realidade, um mago. Religião enquanto matéria que traduz um significado espiritual e, portanto, vertente de manifestação política apta a causar a perseguição dos poderosos, razão pela qual o povo (e a câmera) se distanciam de Cristo em seus derradeiros momentos.

No mesmo filme, Pasolini articula a ideia de que a religião pode ser um elemento de sedução das massas, ao mesmo tempo em que pode causar a ruptura de todo um estado atual das coisas. É algo que Carl Theodor Dreyer também aponta em A Palavra (1955), ainda que em um grau diferenciado de abordagem. Aqui, a palavra de Deus é tida como um instrumento aristocrático, pertencente apenas à autoridade cristã e não aos membros comuns da comunidade como Johannes, que a prega aos quatro cantos da fazenda Borgen e é imediatamente taxado de insano. Caberá então a Johannes comprovar que não é palavra divina em si o meio de encontro da espiritualidade, mas sim a crença em tais escritos, alimentada pela fé mais pura (a fé de uma criança), que tem a capacidade de operar os verdadeiros milagres.

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Não deixa de ser uma ideia de compreensão particular de manifestação da fé, alheia apenas à autoridade religiosa e presente em cada um dos indivíduos que, à sua maneira própria, manifestam a sua visão particular dos mandamentos religiosos. Johannes não é um padre mas é tão (ou mais) crente do que aqueles que possuem o encargo religioso e é a sua persistência na fé que acaba por trazer a união da família em torno de um objetivo comum.

Em uma família desintegrada pela dor da perda de um membro querido, a palavra é utilizada por Dreyer como um instrumento de reaproximação, seja entre tais membros da família, seja entre desafetos, como o alfaiate. Aliás, é no núcleo narrativo do alfaiate que Dreyer demonstrará que a interpretação pessoal dos escritos religiosos pode ser causa de conflitos pessoais e até mesmo sociais (a proibição do casamento), num sinal profético de que as guerras futuras seriam fundamentadas nesse fator.

E é desse sentimento beligerante proporcionado pela interpretação diversa da palavra divina que Martin Scorsese transita em Silêncio (2016), porque duas religiões não habitam o mesmo espaço ao mesmo tempo. Ou seja, a palavra de Deus é um meio de propulsão da violência contra os padres e japoneses que se aproximam de um olhar diverso sobre a religião dominante (o xintoísmo), razão pela qual a opção de Scorsese em tratar a questão religiosa como uma questão física, de penitência do corpo para preservação ou alteração da espiritualidade, se coaduna com a visão de que a crença é um ato de fé extremo, passível de sobreviver às mais duras investidas contra a materialidade do ser humano.

Curiosamente, o aspecto material é o componente-chave da discussão proposta por Scorsese, afinal, cuspir na imagem do Cristo crucificado e pisar no fumie significa trair a sua religiosidade ou é apenas um mero sinal público, naquelas circunstâncias, de sobrevivência, uma vez que o ataque à iconografia não implica dizer que houve renúncia espiritual à concepção religiosa? Ou, melhor dizendo, a ação pública traduz a verdadeira compreensão da sua própria religiosidade?

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Como será comprovado no ato final, ainda que de um modo um tanto expositivo, é de que o sacrifício pessoal do padre Rodrigues não se confunde com o sacrifício espiritual, porque, embora preso fisicamente a um local, sua fé permaneceu intacta ao longo dos anos de cárcere. Sua religião o confinou ao abandono de tudo e de todos, mas também o fez encontrar o verdadeiro significado de sua aspiração espiritual.

Mais do que tratar do tema em si, os três filmes compartilham dessa busca pela verdadeira faceta da fé dentro de suas respectivas particularidades, sempre envolvendo a dicotomia entre o material e o imaterial como um subtexto narrativo. Em Scorsese isto é mais frontal, ao passo que em Pasolini e Dreyer é uma questão que permeia os respectivos filmes como algo mais conceitual do que concreto. Independentemente do método de abordagem, os três filmes estabelecem a desagregação causada pela religiosidade como um fator de incompreensão (a crucificação em Pasolini, Johannes como um louco em Dreyer e a tortura física em Scorsese) e a sua compreensão como um elemento de unificação (operacionalização do milagre em Pasolini e Dreyer e a autodescoberta da fé interior em Scorsese), reforçando o fato de que a crença na palavra divina, dada a sua condição de intangibilidade, está sujeita aos extremos dessa relação, mas sempre em busca de um ponto de conciliação.

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