Mistérios ao Vento: Fim dos Tempos (M.Night Shyamalan, 2008)

Por Álvaro André Zeini Cruz

 

Mais que qualquer outro elemento filmável, o vento é aquilo que injeta na imagem de cinema o movimento, não o movimento deste ou daquele corpo, mas o movimento do mundo, o deslocamento incessante de todas as suas partes (OLIVEIRA JR. 2015, p. 174)[1].

 

Cinema é imagem em movimento. A organização desses movimentos na unidade mínima do filme – o plano –, cabe à mise en scène, vocábulo controverso que sofre de um paradoxo: às vezes é ampliado à fórceps, contendo tudo o que concerne à estética do filme; outras, é reduzido à simples ordenação dos corpos em um espaço e tempo. Entretanto, a imagem fílmica trabalha com corpos decalcados, impalpáveis, fenômenos luminosos que atravessam a tela bidimensional. A mise en scène é, assim, a arte de canalizar e coreografar os corpos antevendo os fenômenos que eles virão se tornar na tela. Mas fenômenos nem sempre são completamente compreendidos, diz um aluno desinteressado quando questionado pelo professor de ciências, Elliot (Mark Wahlberg). Surpreso pela colocação vir de onde menos se espera (imprevisível, tal qual o assunto), o professor concorda e acrescenta que a ciência muito teoriza, mas falha em não reconhecer que há forças além de qualquer entendimento. A percepção de que o mistério é uma existência incontornável rege o projeto cinematográfico de M. Night Shyamalan; em Fim dos Tempos (The Happening, 2008), essa força oculta é representada pelo mais primordial e enigmático dos movimentos, aquele que não envolve músculo ou engrenagem, visível apenas por conta da ação sobre outros corpos. O vento é o fenômeno que descortina todos os outros neste filme maldito de Shyamalan.

É ele quem sopra e silva como um prenúncio do horror no cabelo da loura no Central Park, pouco antes de ela narrar os estranhos acontecimentos no extracampo. Quando o corte revelador acontece, o cotidiano já está alterado. A acompanhante da moça, então, perfura a própria jugular. O suicídio – erupção suprema do inexplicável –, surge como uma potência enunciadora, que revela a existência de mistérios profundos e talvez indecifráveis – aqueles que assolam a alma. E é justamente Alma (Zooey Deschanel), esposa de Elliot, o segundo enigma a ocupar a tela: ela que, sabe-se mais tarde, detesta expor seus sentimentos, aparece pela primeira vez enquadrada num close que eleva o olhar de simples ato de visionamento ao status de um enigma natural. Nem mesmo a conhecida descrição machadiana seria capaz de circunscrever o poço de segredos que é esse olhar da atriz no plano; incógnito sobretudo ao marido, que se apega a um anel das emoções na falsa expectativa de tentar desvendá-la. O vento, presença incorpórea, encontra em Alma seu par corporificado, tão misterioso e imprevisível quanto. Assim sendo, é em torno dela que o filme se constrói.

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Alma é a protagonista de uma imagem shyamalaniana recorrente: o plano detalhe das mãos que se dão; no caso, a dela e a de Jess, filha de um amigo de Elliot. Antes vem a advertência paterna – “não pegue na mão da minha filha a não ser que seja de verdade”. A formação desse enlace tátil (presente num desconcertante slow motion em A Vila, e sublinhado por Tyler em A Visita) é o início de uma construção que realinhará o matrimônio em crise, pois logo em seguida, a introspectiva Jess se desvencilha de Alma para encarar um contracampo ainda desconhecido. A aproximação da câmera potencializa o olhar da garota antes de revelar o ponto de vista – Elliot, o homem da ciência, ciente dos mistérios do mundo, mas incapaz de superar os do próprio casamento, isolado em sua mais completa impotência e insignificância. A menina, então, invade o quadro; entrada que atrai o olhar de Alma, fazendo com que os enigmas que preenchem esse olhos recaiam pela primeira vez sobre os mistérios do outro – o marido. As mãos de Elliot e Jess se tocam, não num detalhe como outrora, mas no geral, único enquadramento capaz de conter a força do abraço e do choro que dali emergem. A visão da dor reconecta Alma ao mundo e faz com que ela se abra a Elliot, antes restrito às tentativas de adivinhação desesperadas por meio de um objeto inusitado, o anel ordinário. Resta a ele reencontrá-la.

Essa jornada de reencontro é percebida e verbalizada pela velha bizarra que lhes oferece abrigo. “Quem está em busca de quem?”, ela questiona antes de discursar sobre a permanência da troca de olhares entre o casal. Elliot, então, assume: é ele quem busca Alma, quem quer compreendê-la e encontrá-la por completo. Inicia-se um momento peculiar dentro do filme, como se Shyamalan abrisse um parênteses em seu horror subversivo, às claras, para ir ao tradicional do gênero, a casa (e a velha) mal assombrada. É quando o casal se separa para que, privados do corpo um do outro, se encontrem enquanto espíritos, energias, presenças metafísicas. Conversam pelo encanamento que liga os cômodos que os separam. Relembram o anel, presente trocado quando se conheceram, mas não a cor que nele representaria o amor. Cor, outro fenômeno incorpóreo, cujas leituras e mistérios também são, geralmente, racionalizados e reduzidos. Contudo, a percepção do olhar sobre o anel ou o farfalhar das folhas das árvores já não importam. Diante da possibilidade da morte por um mundo que se desfaz, eles buscam um ao outro em meio a esse apocalipse que, emprestando as palavras de Oliveira Jr., é absolutamente cinematográfico, pois o fim é também o agora dos “deslocamentos incessantes de todas as partes”. As mãos novamente se encontram num plano detalhe. Eis o virtuosismo de autores como Shyamalan no gênero em que operam: orquestrar o horror para que dele se vislumbre uma verdade plena e bela entre as molduras pensadas.

Mas se no horror o mal desponta das lacunas do plano – normalmente áreas escuras ou mal iluminadas –, aqui, tudo é as claras, sob a luz solar de um dia ordinário, que assim permaneceria não fossem os suicídios macabros. Se o vento dissemina a morte, aquilo que nele está contido é ainda mais misterioso. A suposição do terrorismo – apresentada como cotidiana numa América pós 11/9 – se enfraquece quando as cidadelas tornam-se alvos. Não se trata de um ataque aos símbolos, mas a algo de mais profundo e escondido daquela sociedade. As árvores passam ao papel de suspeitas, mas a mise en scène dramatiza sobre uma hipótese, sem jamais torná-la verdade. Afinal, copas de árvores ao vento podem até se tornarem amedrontadoras na construção fílmica, mas não provas científicas e cabais. A resposta também não vem do arbusto artificial com quem Elliot dialoga, muito embora seja essa uma cena reveladora. Elliot, Alma e os companheiros buscam resguardo numa casa, mas a percepção de que tudo ali é de plástico não é imediata. Uma pergunta é lançada: a cegueira provem da paranoia ou é ainda anterior? Seria ela causa ou consequência do episódio? Fato é que o apocalipse segundo Shyamalan é de uma falência orgânica: parte de um organismo vivo (ou assim especula-se) para dar fim a outro. O colapso planetário não é, assim, como em um filme de Michael Bay ou Roland Emmerich, em que os arranha-céus desmoronam em CGI; as estruturas inorgânicas saem todas ilesas.

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Nesse sentido, a casa-modelo poderia ser o abrigo perfeito, não fosse este um filme sobre organismos, que precisam ser alimentados, hidratados, inchados de ar. Mas em Fim dos Tempos, o aparecimento da casa se justifica apenas para revelar essa incapacidade de distinguir as coisas do mundo, o real do irreal, o que, de certa forma, pode-se especular como uma causa, uma profanação primordial. Quando o mundo se revela em todo o seu som (o uivo do vento) e fúria (o agitar das folhas), telhados e paredes – camadas artificiais protetoras dos corpos – tornam-se inócuos (e o simples rasgo na lona de um jipe explode na tela como uma ameaça). Enquanto a maioria dos filmes-catástrofes espetaculariza a destruição do espaço, a ordem aqui é priorizar o corpo e sua degradação, que Shyamalan estiliza sem perder a frontalidade.

A morte pode até ser suspensa, seja pelo extraquadro (o travelling baixo que mostra o caminhar e vela o puxar do gatilho) ou pelo dilatar de um plano ou movimento de câmera (a panorâmica que primeiro revela as escadas para depois mostrar os corpos dependurados), mas jamais deixa de ser um registro. Quando não visíveis, os efeitos sobre os corpos são audíveis, como na cena em que os vultos se jogam sobre a câmera em contra-plongée (cujo impacto é hiperdramatizado pelo som, sempre importante para Shyamalan). O velamento e a dissimulação estão a mercê do impacto dramático, mas via de regra, a ação sobre os corpos é colocada sem reservas, como nas cenas que envolvem um leão, um trator, ou no suicídio de Julian (John Leguizano), sublinhado por um zoom.

À beleza dos corpos que voltam a ver, a sentir, a tocarem uns aos outros, Shyamalan opõe o horror dos que se mutilam por si sós. Entre essa dicotomia circula o mistério, o invisível, o incompreensível, e diante disso, qualquer traço de racionalidade (como estatísticas e porcentagens) se revela ineficaz. Assim, a ajuda pode vir de onde antes sequer se cogitaria a possibilidade (o casal abilolado da estufa), bem como ser instável, camaleônica (a velha). Em um filme de deambulação em que a jornada clássica ou mesmo os marcadores de gênero pouco cabem, a trama nunca elucida se conta uma história de paranoia contemporânea ou de uma loucura ainda mais ancestral. Embora à luz do dia, a única coisa às claras de fato é o dissipar da razão em prol de tudo o que é sentido, para o bem ou para o mal. É, no fundo, um filme sobre uma hecatombe que reestabelece uma primazia do sensorial após uma era de casas-modelos e os organismos que as habitam, incomunicáveis. Talvez por conta disso tudo justamente, um filme à luz do dia.

Horror apocalíptico, filme de paranoia pós 11/9, pá de cal na carreira de um cineasta outrora promissor: muitas foram as chaves para a análise de Fim dos Tempos. Compreensível, dada a complexidade de uma obra cujos enigmas e mistérios parecem pulular a cada revisão. Os olhos dessa presença irrefutável que é Zooey Deschanel acabam sendo não apenas objetos da intriga como a própria síntese da obra. São grandes redemoinhos na tela, turbilhões que nos lançam ao vento e, através dele, ao inexato, ao impalpável, ao inesperado. Aos mistérios, que Shyamalan filma como poucos.

[1] Oliveira Jr., Luiz Carlos Gonçalves de. Vertigo, a teoria artística de Alfred Hitchcock e seus desdobramentos no cinema moderno / Luiz Carlos Gonçalves de Oliveira Júnior — São Paulo, 2015. 412 p. : il.

 

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