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Um Filme de Verão (Jô Serfaty, 2019)

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De costas para o mar

Há entre os limites de Um Filme de Verão uma reflexão sobre o verdadeiro significado de um feel good movie. Os fins que a diretora Jô Serfaty traça colocam o filme num caminho muito significativo sobre a representação do jovem periférico – o verão para eles é completamente diferente daquele vendido pelo cinema, de praia e diversão despudorada.

E como estes limites são muito bem estabelecidos, o filme vem numa espécie de fluxo de cenas, sem obedecer a uma ordem cronológica e sim numa representação fugaz dos momentos que nada mais são que a espera para um novo período de aulas. Em Rio das Pedras, próximos à praia da Barra, o acesso a ela é só no fim da tarde para estes jovens; o dia é feito para procurar empregos, sonhar com uma vida melhor e aproveitar seus dispositivos eletrônicos, no qual Serfaty usa como um registro muito peculiar de momentos intrínsecos ao verão, como as chuvas fortes, enchentes e falta de luz.

Entre eles, a imaginação destes jovens, de gostos voláteis e longe de qualquer certeza, faz de Um Filme de Verão o que mais próximo chegamos a Prazeres Desconhecidos de Jia Zhang-Ke até o momento, com a orquestração da liberdade cênica, da noção de dominância do espaço e como ele é capaz de oferecer novas procedências, inclusive estéticas – a sequência do sonho japonês fica como maior exemplo por ser a mais explícita, porém há diversos momentos no filme no qual as vielas e lajes ganham novas representações.

Permeando este mundo de signos, há o princípio do que é de fato um filme de verão no Brasil, muito mais próximo do calor do asfalto e de piscina de plástico do que praias paradisíacas e quartos luxuosos. É prazeroso ver como estes signos se complementam nas associações – ao exemplo das fugas deste ócio como os tipos diferentes de endeusamento, às figuras religiosas aos músicos e às drogas. E na mesma medida, Um Filme de Verão martela sempre uma realidade distinta do que é vendido, numa analogia simples à beleza do Rio de Janeiro que em suas costas esconde zonas periféricas e uma rotina de caos – pouco comentada no filme explicitamente, mas pulsante na relação com a cidade – e se complementa como um grande filme político.

Visto na 22ª Mostra de Cinema de Tiradentes

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Vermelha (Getúlio Ribeiro, 2019)

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A grande novela masculina

O resgate da identidade da Mostra Aurora durante a 22ª Mostra de Cinema de Tiradentes veio como um óvni: Vermelha, na medida em que remete às obras que regeram o cinema nacional contemporâneo e que confirmaram a força do evento nos últimos anos, tem particularidades inerentes a este cinema, enquanto boa parte dos filmes até então se entregavam à oralidade e a força da palavra, o filme de Getúlio Ribeiro entrega-se ao cotidiano com propostas coligadas a este tipo de cinema.

A principal estranheza de Vermelha vem na forma: duas metades, a primeira, inclinada a enxugar ações e planos, como ode ao cancioneiro masculino e ao imaginário feminino – as novelas, vindas em capítulos e que constroem seus mistérios pela montagem em blocos, com ações incompletas submissas ao corte. A segunda metade segue o caminho oposto, as cenas são elásticas, seus personagens vêm e vão como num teatro do cotidiano, no qual o bairro filmado serve como um espaço muito útil de representação da intimidade além dos muros – ou melhor, do telhado.

Outro relevante detalhe é como Getúlio deixa os comentários para o seu dispositivo. A câmera, verdadeira dona da casa, que passeia por todos os cômodos com liberdade, tece os comentários sempre bem humorados sobre esta família; é como uma sombra que assiste a TV, escuta música sertaneja e acompanha os jogos de futebol. Este é um detalhe muito importante para o filme e que remete a uma parcela importante para a Mostra de Cinema de Tiradentes, que é o bloco de filmes feitos pela produtora Filmes de Plástico, em especial os filmes de André Novais Oliveira, da união do humor ao cinema de gênero, sempre interligados à rotina como uma grande ponderação que envolve discursos pessoais sui generis.

Vermelha, antes de tudo, é um filme sobre a falta de contato, sobre o afeto fantasma, que homens e mulheres não se encontram, mas são sempre citados, pela certeza do não dito numa barreira que o cotidiano coloca a ponto de uma briga ser banalizada e o filme resolvê-la com deboche – uma das grandes cenas do filme. Portanto, aqui pouco importa a estirpe de cada personagem: o que importa a Getúlio Ribeiro é a apresentação mais pura de cada um deles, longe de uma capa de adjetivos e sim mais próximos da possibilidade de mutação entre as cenas, de humor e postura voláteis e como eles afetam o dia-a-dia. Da força do abraço ao silêncio cortante, o lado humano pulsa fortemente.

Visto na 22ª Mostra de Cinema de Tiradentes

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Desvio (Arthur Lins, 2018)

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O outro lado da ponte

Como um transeunte nas próprias memórias, Pedro, protagonista de Desvio, representa bem os caminhos possíveis e tomados por Arthur Lins, diretor do filme, como maneira de controlar analogias e simbioses. Há um limite muito claro de tempo e de como os personagens serão delineados como representações de sentimentos distintos. Ainda que tudo pareça muito controlado e polido, Desvio apresenta alguns atritos muito interessantes.

A julgar pelo primeiro ato – e atrito – do filme, quando se apresenta como uma proto-trama de superação, o que vem em seguida é um encontro frontal com o passado, um desejo de retomada de um ponto da vida e que permeia por algum tempo a narrativa. Outro atrito muito interessante criado por Desvio é mais uma sugestão de um novo filme, um slacker feito por punks, que conversam e usam drogas e criam um mundo próprio e conivente com seus desejos. Logo este filme também será abolido por Arthur Lins para mais uma sugestão de trama.

Nestes constantes encontros e descartes, o filme parece estar sempre dentro de um limite para que as emoções sugeridas estejam sempre em primeiro plano; são raros os momentos no qual a imagem ganha da palavra e curiosamente estes são os melhores momentos do filme, como por exemplo, nas cenas de shows de punk e como o olhar de Pedro dirige-se ao palco carregado de nostalgia e certo sentido de superação.

Há o senso de legado que é a chave do filme. Se Pedro representa em diversas vias o equívoco e o arrependimento, há por trás a ideia da mutação do tempo e que tudo pode ser novo e diferente. Nesta linha narrativa, Arthur Lins enfim preserva suas pontas e faz uma cartografia de sentimentos juvenis, da revolta ao sonho da vida adulta, enquanto transforma o envelhecimento em cinzas e exemplo sempre questionável. Se falamos de extremos, Pâmela, uma jovem punk é a representação ideal para o outro lado da ponte e extermina qualquer intenção moral sobre seus personagens.

Desvio, por mais controlado que seja, tem como base o fim do julgamento sobre o olhar da câmera, como se seus personagens estivessem acima da moral que a própria estabelece. Cabe a ela a observação, mais despudorada a partir do último ato e uma aproximação com o filosofia de vida de seus personagens, ou seja, um tipo de compreensão à fórceps que aniquila qualquer consideração antecipada.

Visto na 22ª Mostra de Cinema de Tiradentes

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A Rainha Nzinga Chegou (Junia Torres e Isabel Gasparino, 2019)

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Entre as minúcias e o atropelo

A Rainha Nzinga Chegou é composto por dicotomias interessantes acerca de seu objetivo e de seus meios de produção. Na mesma medida em que é um filme indubitavelmente etnográfico e com o peso do pensamento de preservação da história e da cultura, o filme tende a criar um jogo de proximidades e distâncias entre atos que é inevitável que o olhar não se desvie para esta extremidade.

Dividido em três atos no qual a passagem do tempo é o alicerce, o filme vai da grande jogada de adormecer a presença da câmera ao oposto, quando a câmera submete atenção. O curioso é que o dispositivo está sempre à mostra no filme. Justificado pelo espaço filmado e pela linguagem, é possível ver a câmera, o operador e o restante da equipe em diversos momentos do filme, a justificar o momento único a ser registrado. Mas o peso da presença da câmera em cena é volátil – e mais interessante quando as diretoras Junia Torres e Isabel Gasparino conseguem nos entorpecer pelas alegorias.

O grande ajuste do filme é na certidão dos rituais, estes de uma força descomunal sem que palavras sejam ditas; neles, anos de história são arrematados, o discurso etnográfico e a força de resistência extrapolam a ideia de performance, que em muitos momentos do filme é colocada, principalmente quando a conversa é o ponto de largura para o discurso e suporte para o filme.

E se A Rainha Nzinga Chegou deixa de ser um filme-atropelo sobre milhares de anos em poucos minutos, sobram as minúcias que estão em cheque sobre suas reais funções: o que não foi dito pela imagem que as palavras deveriam reforçar? Estar entre os dois extremos pode ser uma zona de conforto e tentativa de manter o discurso intacto. Para o momento de extermínio de culturas mínimas, fica a relevância de um ricochete a tempo de consideração sobre o tema.

Visto na 22ª Mostra de Cinema de Tiradentes

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Trágicas (Aida Marques, 2019)

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Por Gabriel Papaléo

As primeiras cenas de Trágicas são bem reveladoras: um palco, com a luz estilizada teatral, e a interpretação grandiloquente da atriz que interpreta as três deusas gregas, seguidas de depoimentos de mulheres que perderam seus filhos na ditadura. Uma tentativa de interpretação metafórica entre duas questões díspares demais, a dor das tragédias gregas em consonância com mortes cujos rastros revelam um problema essencialmente social e estrutural. O letreiro com a palavra “Trágicas” em diversas línguas dá uma ideia da proposta por uma universalidade que a diretora parece buscar pelo filme, decisão delicada dado os temas.

O explicitar da metáfora através dos cortes entre os rostos das mulheres entrevistadas com a atriz performando no palco se repete pelos 70 minutos sem que exista uma progressão na reflexão do filme, apenas a repetição dos cacoetes de montagem colocando o off de uma mulher para comentar a da outra, aproximando perdas sem quaisquer parâmetro além da associação de morte, uma tese acadêmica filmada com mão pesada, e closes que recortam as bocas e olhos chorosos das mulheres em falas de impacto – o que só me faz lembrar dos planos abertos e médios de Chantal Akerman, que não queria “cortar as mulheres ao meio” para propósitos dramáticos explícitos demais.

Quando o foco vai para as entrevistadas que perderam seus filhos para a milícia ou para a polícia, uma miopia social e especialmente de classe tremenda em nivelar problemas de origens distintas aparece. A violência dos relatos é coberta sob olhos simbólicos e previsíveis da câmera, e a montagem entrecortada tira o impacto e só aumenta o desconforto de algo que poderia estar num programa jornalístico sensacionalista, e não num documentário cuja ética social passa pelo cuidado com quem está exposto na frente da câmera.

A tendência à exploração desconfortável das dores das mães que perderam seus filhos por suas etnias, descrevendo com riqueza de detalhes atos atrozes e que em nada se associam às dores de Medeia ou Electra, dizima qualquer contato emocional com um filme que parece cínico em suas associações, academicista ao triturar fatos sob a venda do bom gosto plástico. Colocar a mulher que matou seus filhos por vingança e fazer qualquer comparação com os mortos da ditadura, do genocídio negro ou étnico me parece condenável especialmente em 2019. No debate, o roteirista disse que os depoimentos foram filmados em close para se assemelhar com as máscaras do teatro grego, o tipo de relação ofensiva que privilegia a metáfora acerca do peso social da tradição oral do relato.

A estrutura investe nessa interminável associação entre ficção e realidade, entre palco e depoimentos, entre poéticas da metáfora e do relato oral, e não só subestima o espectador ao exaurir a já óbvia relação academicista e cansada como passa por cima de responsabilidades sociais através de uma suposta dialética do afeto que me parece tirar o protagonismo das palavras dessas mulheres vítimas da brutalidade estrutural da sociedade e do estado. O palco sempre parece ser o carro chefe do filme, e enquanto ambos estiverem na mesma narrativa e a interpretação mitológica embasada nas teorias mais superficiais se sobrepor às questões urgentes dos relatos brutais que precisam ser ouvidos além das páginas policiais exploratórias, haverá uma discrepância enorme nessa dialética que antes de tudo é um dever cívico.

Visto na 22ª Mostra de Cinema de Tiradentes

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SESSÃO CURTAS PANORAMA – DIA 3

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Por Gabriel Papaléo
Verde Limão
Relato de fantasias e um histórico de resistências subjetivas e também políticas, é dos raros filmes da Mostra que conciliam sua proposta estética com um ativismo social frontal e combativo. O dispositivo das memórias da drag queen que protagoniza o filme propõe uma liberdade formal para cada memória que relembra no caminho para o que parece sua última performance. A paz com o corpo traz a paz de espírito que escapa nos cerceamentos sociais que interferem no projeto estético de cores e purpurinas, as vezes com os percalços do didatismo em um número musical, mas sem perder a honestidade e principalmente a sensibilidade do esforço de traduzir enfrentamentos em cenas e luzes.Princesa Morta do Jacuí
A armadilha da visão das memórias como ciclos intermináveis de busca e curiosidade que alcançam níveis de paranoia que sequestram o poder de escolhas nas ações é o que move essa ficção-científica especial, nos enquadramentos 4×3 do 16mm que conferem a fantasia fabular necessária as matas abandonadas desse pós-apocalipse industrial a ser visitado pelo arqueólogo protagonista. É um ambiente de pesadelo colonialista como Jauja e Zama, mas sob o filtro dos escombros, das memórias pessoais que interferem na narrativa como forma de difusão temporal, uma ilha dos desejos mais profundos como em Solaris, mas conduzida com o apego ao registro oral da narração que atravessa o curta inteiro. Estimula a criação de um mundo além das margens da imagens, sugere passados incompletos para o presente árido, e ainda deixa clara sua ideia da falência paradoxal do ato de descobrir terras – um progresso industrial enraizado na exploração colonialista que não parece ter fim.

Liberdade
Quando exatamente existe a transição de povos na convivência entre estrangeiros em um lugar comum no qual eles não pertencem por completo? O segundo plano de Liberdade já dá o tom do filme, com a senhora japonesa que habita a casa que conhecemos com o bairro ao seu fundo, meio fora de foco, presente como paisagem mas soando como uma reminiscência de casa, espaço e humana nunca conciliados propriamente. Os diferentes registros das memórias, a família japonesa em fotos 35mm preto e branco, a família guinéu-equatoriana em fotos digitais coloridas bem mais recentes – todo um imaginário de congregações exibido apenas pela nostalgia de casa.

Bup
O fluxo de consciência doido de uma artista tentando organizar seus pensamentos enquanto atua apenas com o rosto para uma câmera em close, um tanto inquisidora, que parece guardar as expectativas de um público específico mesmo que Dandara esteja nervosa diante deles – e na ótima narração em off ela desarma totalmente a pose do que poderia cair num pomposo registro de processo da atriz. Uma adaptação curiosa de Lago dos Cisnes, meio na sátira, meio na franca zoeira, que parece entender que passar num festival às vezes é atender a expectativas e lidar com elas com senso de humor, sabendo dos códigos para então subverte-los, com a personalidade inquieta da diretora e atriz que se expõe com estilo diante daquele plano único.

Mesmo com tanta Agonia
Recortes difusos de uma rotina de combates cotidianos, de lutas quase invisíveis sob a banalidade do cotidiano. Do primeiro contato com o chefe homem na cozinha quase exclusivamente de mulheres até o potente final de luzes e trânsitos, a protagonista anda em meio a lentes de longa distância e o caos da cidade de São Paulo em uma rotina de poucos eventos, passando brevemente por momentos de brutalidade corporativa no metrô e a fuga através da linda cena da festa da filha. As lutas de uma mulher negra de classe média diante das opressões tão específicas e tão enraizadas na ideia de metrópole, justificadas pelo serventilismo e o machismo, e distantes de uma resolução mas não de confrontos possíveis.

Visto na 22ª Mostra de Cinema de Tiradentes

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Tremor Iê (Elena Meirelles, Lívia de Paiva, 2019)

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Acreditar na palavra

Um rápido pensamento durante a sessão de Tremor Iê remete a um comentário feito por Adirley Queirós sobre o seu Era Uma Vez Brasília há um ano atrás durante debate na 21ª Mostra de Tiradentes e a negação da fala no filme: eis aqui o seu complemento perfeito. Tremor Iê, assim como o filme de Adirley e Com os Punhos Cerrados da Alumbramento, é um filme destinado às ruas, mas que nega a performance como o grande catalisador de suas ideias.

Para Elena Meirelles e Lívia de Paiva, a palavra coloca o tão discutido futuro distópico no agora, na certeza do declínio da sociedade, na igualdade como um sonho distante e que atitudes – como um simples batucar – é um ato político. Portanto, o que se vê em Tremor Iê, como a construção de um filme de suspense, é um compêndio de lamentos; fala-se sobre a opressão do Estado e como a saída é inviável, também como passado e futuro estão numa espécie de curso amaldiçoado de repetições.

Quanto a isso, uma só ação é esperada e que dá na melhor sequência do filme, no qual um filme de assalto à banco é correspondente; Tudo que Adirley tomou por uma dormência como sentimento geral, ao filme de Elena e Lívia ainda há um respiro, a certeza de vida entre os muros da opressão. Contra tudo e contra todos, Tremor Iê é um filme do agora e para o agora, e se notarmos neste ciclo infinito de “agoras” que a política constrói (vide 1964 e 2019), será um filme reverberado por muito tempo.

A palavra, neste momento, é a arma notável contra toda truculência do Estado, por mais que pareça utópico; chegar ao mesmo nível é o atestado de fraqueza, é o momento de uma sagacidade que reverbera até o próprio fazer do filme – boa parte do longa se passa em locações-chaves de Fortaleza e que espelham esse diálogo do ciclo entre passado e futuro. E é disso que Tremor Iê é feito: para Elena e Lívia, observar o que está o redor é pretexto para maior, uma jogada-chave para fazer o coração voltar a bater e não de afirmar que o jogo está ganho. Falta muito para chegar lá e em Tremor Iê o batuque seguirá vivo.

Visto na 22ª Mostra de Cinema de Tiradentes

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Seus Ossos e Seus Olhos (Caetano Gotardo, 2019)

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De olhos fechados

A cena que abre Seus Ossos e Seus Olhos é essencial: lá está o diretor, roteirista e protagonista Caetano Gotardo munido de um telefone, com sua emoção aflorada. O telefone e a emoção são dois caminhos indispensáveis em seu formalismo. Ainda sobre o aparelho telefônico, vale dizer que o filme serve como uma bela analogia a uma conversa, sobre a oralidade e como ela é a espinha dorsal para a imaginação e não para uma verdade definitiva.

A definição do que se vê, como uma certeza absoluta, é quebrada pela montagem, na ideia que pela oralidade a verdade é pertencente a uma pessoa, que cria inconscientemente os detalhes do que se ouve, se desconecta de onde pisa para ir a um lugar impalpável. Aqui, primeiro se ouve, se analisa o prazer de ouvir e imaginar para depois absorver a posição de passividade que o espectador geralmente toma ao sentar numa poltrona de cinema.

E para todo esse exercício, que na casca parece simples, mas que carrega uma complexidade corpulenta, a base está na teatralidade, o grande suporte para a filmografia de Caetano Gotardo. É na agudez da mise en scène, nas declamações ou no simples jogo de corpo – e de cena – que se coloca o dia-a-dia como um grande tablado; de um simples tapete às ruas da cidade, os corpos estão a serviço de uma mensagem – construir narrativas.

Seus Ossos e Seus Olhos se resume a este emblema que leva a muitos córregos a se discutir, principalmente sobre a representação e suas variantes, como o teatro e a oralidade ainda são de extrema importância para o cinema em tempos de puro prazer visual. Caetano Gotardo arremata o filme nos closes e nos planos gerais, saídas básicas do cinema narrativo, sem levar sua câmera para os lados, sem tirá-la do tripé, como uma testemunha de um caminho a ser tomado ou um quadro a ser pintado.

Caetano Gotardo mostra que seu modus operandi é revitalizado em comparação a O que se Move (2013), seu último longa-metragem, mas que continua um realizador com olhar único no circuito por onde seus filmes passam. Na mesma medida em que se mostra apaixonado pelo fazer, o ver e o narrar ganham a mesma importância.

Visto na 22ª Mostra de Cinema de Tiradentes

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22ª Mostra de Cinema de Tiradentes

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PARQUE OESTE (Fabiana Assis)
Gabriel Papaléo

UM FILME DE VERÃO (Jo Serfaty)
Pedro Tavares

VERMELHA (Getúlio Ribeiro)
Pedro Tavares

DESVIO (Arthur Lins)
Pedro Tavares

A RAINHA NZINGA CHEGOU (Junia Torres e Isabel Gasparino)
Pedro Tavares

TRÁGICAS (Aida Marques)
Gabriel Papaléo

SESSÃO DE CURTAS – PANORAMA, DIA 3
Gabriel Papaléo

TREMOR IÊ (Elena Meirelles, Lívia de Paiva)
Pedro Tavares

SEUS OSSOS E SEUS OLHOS (Caetano Gotardo)
Pedro Tavares

CALYPSO (Rodrigo Lima e Lucas Parente)
Pedro Tavares

INFERNINHO (Guto Parente e Pedro Diógenes)
Pedro Tavares

ILHA (Glenda Nicácio e Ary Rosa)
Pedro Tavares

OS SONÂMBULOS (Tiago Mata Machado)
Pedro Tavares

TEMPORADA (André Novais Oliveira)
Pedro Tavares

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EXTREMOS DA CARNE – OS CORPOS E AS POSSIBILIDADES DA IMAGEM

EDITORIAL – O RITO DE SENTAR-SE À MESA
Pedro Tavares

CORPOS QUE COLIDEM, CORPOS QUE SE ATRAEM
Camila Vieira

STUART GORDON: FETICHE, CAOS E METAMORFOSE
João Pedro Faro

QUAL PEDAÇO? – SEXO SURREALISTA E VIOLÊNCIA
Adrian Martin

A COR ENQUADRADA NOS VÃOS DA IMAGEM – EM BUSCA DO ROSTO DA MORTE
Diogo Serafim

BUSH MAMA: ASSIMETRIAS DA CARNE E DO CORPO
Kênia Freitas

BIOPOLÍTICA E CYBERPUNK: AS MÁQUINAS DESEJANTES
Zoë Masan

Vídeo: CAM (2018) – AS EXTREMIDADES DO CORPO
Arthur Tuoto

KINOGLAZ PEEPING TOM: SUTURAS
Bernardo Oliveira

A CIDADE FOI FEITA PARA CAMINHAR – O ANDARILHO DE TSAI MING-LIANG
Gabriel Papaléo

NÃO FUI EU QUE TRANSCENDI, MAS DEUS QUE DESCEU ATÉ O INFERNO, OU: A HISTÓRIA DO OLHO
Felipe Leal

O CORPO COMO SENTIDO
Chico Torres

MAL DO SÉCULO
Carla Oliveira

21 REFLEXÕES SOBRE CRIATIVIDADE E CINEMA NO SÉCULO XXI
Daniel Fawcett & Clara Pais

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Biopolítica e cyberpunk: as máquinas desejantes

Por Zoë Masan

“O corpo sob a pele é uma fábrica superaquecida, e por fora, o doente brilha, reluz, em todos os seus poros, estourados”

– Antonin Artaud

“Se não se montar uma máquina revolucionária capaz de se fazer cargo do desejo e dos fenômenos de desejo, o desejo continuará sendo manipulado pelas forças de opressão e repressão, ameaçando, mesmo por dentro, as máquinas revolucionárias”

– Gilles Deleuze

 

Um fetichista por metal, um assalariado e uma prostituta. Os arquétipos base de Tetsuo: The Iron Man (1989), ironicamente, mostram protótipos nos quais os cidadãos das grandes capitais super-industrializadas do final do século XX se estruturam: a obsessão pela máquina, o homem médio executivo e as vontades carnais do sexo. Esses três pilares da narrativos de Tetsuo, encontram um lugar comum para acontecerem: o corpo.

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Enquanto muitas obras de cyberpunk e outros subgêneros da ficção científica são construídas sob uma cidade distópica estruturada por um Estado controlador, Tetsuo: The Iron Man (1989), trabalha o cyberpunk fundado no corpo. Com uma visão pós-estruturalista da significação da tecnologia, máquina, industrialização e tensões corpóreas. O corpo em Tsukamoto ressignifica o próprio cyberpunk, enquanto gênero, e assume o corpo como uma estrutura onde todas as possibilidades estão abertas, até mesmo da carne ser dominada pelo metal.

Cercado por metal, O Fetichista implanta em sua carne um pedaço da pilha de metais que o cercam. O experimento não ocorre como o esperado, e como uma doença, o metal se multiplica e se alastra por sua carne, o dominando gradativamente. Não há estatização da máquina, tampouco uma indústria, apenas o desejo pulsante pela modificação e potencialização das capacidades do corpo humano, um pós-humano micropolítico que abriga poder em suas moléculas de metal. Como uma doença, o metal toma conta do corpo do Fetichista, assim como acontece com o Assalariado, quando esse, atropela o Fetichista. Uma espécie de epidemia maquinaria se alastra transformando deformando corpos, com uma força de poder incontrolável.

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Em Tetsuo (1989) o metal toma uma forma autoconsciente, ele vive, como um parasita que necessita do corpo para suprir suas necessidades de dominação e sobrevivência. O metal produz uma espécie de adestramento, reeduca o corpo para transformá-lo. Não existe máquina antes do corpo, apenas metal. A máquina é a fornicação entre o metal e a carne. O organismo de poder representado pelo metal, exerce a castração das vontades humanas e impõe uma utilidade belicista para esses corpos. Quando o Assalariado está com parte do seu corpo transformado em máquina, e tenta ter relações sexuais com uma prostituta (que também começa a ter seu corpo dominado pelo metal), as vontades humanas (sexuais) entram em conflito com as da máquina (destrutivas), transformando o sexo entre os dois em uma cena tragicômica em que o pênis se torna uma broca de metal, fazendo dessa uma das cenas de sexo mais grotescas e intensas do cinema.

A biopolítica pode ser definida como uma nova dimensão de poder que visa controlar a vida humana no campo biológico dos saberes. Para estabelecer controle sobre homem enquanto espécie é necessário entender, analisar e estudar esse corpo. Em Tetsuo (1989) a biopolítica é exercida através da máquina de uma maneira prática e bem mais crua. O corpo humano é assimilado gradativamente pelo metal que o domina, criando uma tecnologia própria de controle: a epidemia. Fetichista, Assalariado e prostituta se fundem em uma grande maquina constituída de metal e carne com o objetivo desejante da dominação bélica e aniquilação. Esses novos humanos tiveram seus desejos carnais suprimidos e substituídos pela vontade latente da maquina de se alastrar e disciplinar corpos humanos ao redor do mundo e transformar carne em metal. É uma nova fase de evolução da espécie, um novo passo em um mundo regido pela biopolítica do homem, as maquinas instalaram sua própria biopolítica, muito mais poderosa, que coloca em prática um controle em níveis moleculares.

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Quando o experimento inicial do Fetichista acaba o transformando em uma máquina sub-humana, é possível entender o experimento como uma tentativa de subversão e descentralização do domínio maquinário-industrial, bem como, do poder biopolítico exercido pelo Estado (controle de natalidade, políticas de controle populacional, etc.) Mas no universo de Shinya Tsukamoto, o metal vive, e a máquina emana um poder epidêmico por si só. Esse maquinario biológico e desejante, se coloca aberto a qualquer tipo de possibilidade vida. Um desejo pulsante de se expandir e criar. Recusa-se quaisquer interpretações, sejam elas de natural moral ou política. A biopolítica torna a vida humana um ato político por si só, mas a máquina aniquila o controle biológico estatal sobre o corpo, destrói a biopolítica humana e cria uma biopolítica pós-humana, a maquina controla sua própria e nova estrutura, o corpo humano.

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As maquinas desejantes do Anti-Édipo de Deleuze e Guattari, são os organismos que se conectam e formam o corpo humano, que é por sua vez, outra máquina inserida dentro de uma máquina social. Pode-se dizer que “o que define precisamente as máquinas desejantes é o seu poder de conexão ao infinito em todos os sentidos e em todas as direções.” Deleuze & Guattari.

A máquina se conecta, mantém fluxo e produz. Como uma super estrutura de uma indústria, a produção não cessa. Tudo o que se cria e se expande é através do desejo. As maquinas desejantes são sistematicamente organizadas para se encaixar na máquina social, através de papéis e funções sociais bem definidas. Em uma interpretação menos psicanalítica possível, o homem-maquina de Tsukamoto, que antes era um Fetichista e um Assalariado, é o resultado mais genuíno possível da libertação da maquina social. É uma maquina desejante anti-social e anti-sociedade, um grande abolicionista dos desejos sociais, um herói que alcançou a revolução em nível celular, rejeitando a carne e abraçando as possibilidades do metal.

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A cidade foi feita para caminhar – o Andarilho de Tsai Ming-Liang

Por Gabriel Papaléo

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Qual a reação possível de indivíduos em um espaço social de metrópole cuja arquitetura e disposição econômica não foram pensadas para a existência deles? Nos filmes do diretor Tsai Ming-Liang, especialmente a partir de Adeus, Dragon Inn (2003), os personagens andam muito por espaços vazios, por ambientes que parecem apocalípticos devido ao abandono, mas sem que percam uma localização evidente de cidade, como dejetos espaciais de um projeto de metrópole que se renova esquecendo dos seus passados. O corpo em manifestação social quase anestesiada seja pelo excesso, pela culpa, pelo peso da memória – isso varia dentro da filmografia do malaio radicado em Taiwan. O ritmo do presente em Hong Kong, Tóquio e Marselha não parece combinar com o ritmo do corpo, e ao passo que o diretor sabe da problemática nesse conflito Tsai também sabe que andar é importante, sempre, porque é um sinal em harmonia com a ideia de que o mundo está em movimento. O convite é a repensar a lentidão, porque a velocidade está na perspectiva, e de cidade em cidade encontramos a exaustão tanto do corpo quanto do ambiente que ele está inserido.

O movimento cênico inicial de Walker e Jornada ao Oeste é um recado visual das origens imateriais do Andarilho vivido por Lee Kang-Sheng, inclusa no zen-budismo no qual a tradição do monge está inscrita: a saída de ambientes similares à cavernas, com cores terrosas, remetendo quase a um primitivismo histórico das moradas humanas, recusando não apenas estímulos visuais contemporâneos como também sonoros, cujo som da cidade abafado em Walker e o silêncio de Jornada ao Oeste se comportam como prenúncios estéticos de um excesso. A saída psicológica e física do lugar cujos costumes e tradições imateriais têm mais signos evidentes no quadro para a metrópole, lugar onde esses costumes e tradições estão enterrados, por vezes até visíveis mas ainda tímidos e em minoria, pela passagem do tempo. E se existe uma certa lamentação pela perda dessa ideia por vezes abstrata da plenitude no que não vemos mas sentimos, nunca está associada a um signo de estagnação, ou de fatalismo na passagem material do tempo. O que interessa ao Andarilho é a resistência do flanar porque não é uma antítese da cidade, mas sim uma ressignificação do espaço. A importância da cidade ser ambiente pensado para pessoas interessadas na mudança dos tempos, no fluxo – estudado pelo zen-budismo – contínuo da vida, no qual o progresso seja uma ideia espiritual ao invés de materialista do capital. O choque da violência entre corpo e cidade, da cidade hostil com o corpo habitante de outro ambiente e outro tempo – não-cronológico, mas relativo.

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E por um conflito de corpos não apenas vemos o Andarilho de Tsai em choque com o urbano, mas os próprios transeuntes que por ele passam. A câmera surge como um dispositivo fílmico de observação escancarado, desvelado diante dos habitantes das cidades filmadas, e interferindo nas suas vidas mesmo apenas colocada num tripé à média distância, raramente privilegiando closes, sempre expondo a distância cênica entre ela e os sujeitos – e entre os sujeitos e a cidade. Na Marselha de Jornada ao Oeste talvez seja a relação mais agressiva dentre os três filmes do Andarilho abordados aqui, talvez por ser a única dessas cidades situadas fora da Ásia; porque para Tsai existe um movimento político no flanar, uma ocupação espacial que outrora, e sob outra via, não seria possível. A estranheza dos pedestres com aquela ação em tela é por conta do movimento extremamente lento do Andarilho e do personagem de Denis Lavant em proporção ao ritmo da cidade, mas também por uma interação entre continentes distintos, entre culturas por vezes em choque, e até por ideais religiosos: o monge budista que enfrenta a cidade esgotando seu corpo pelo oposto do hiperestímulo em uma França majoritariamente ateia.

É nesse diálogo com as narrativas mais fragmentadas que Tsai começou a explorar em seus filmes rodados em digital – culminando na duração maior dos planos que a película dificultava (ou até impossibilitava) – que o Andarilho existe nesses filmes, na alta definição das câmeras expondo o desafio de um corpo ao extremo de suas possibilidades, as pequenas expressões que vazam no rosto quase impávido de Lee Kang-Sheng na sua meditação de tempos suspensos, no tecido que parece se mover numa velocidade diferente do homem que o traja. Parece que a cidade está toda cristalina quando filmada em planos abertos, iluminada e com todos os seus pequenos movimentos em foco, e no meio desse frenesi visual banalizado pelas experiências do cotidiano a figura do Andarilho entra como um dispositivo cênico que nos convida a olhar e experimentar uma nova dimensão do que é visto como banal para quem vive em metrópoles, quadros rigorosos que expõe a escala quase operática da cidade como também explicita o esforço cru de um corpo em movimento deslocado ao meio. Não à toa Tsai expõe esses filmes mundo afora em museus, ambientes cuja natureza é mais volátil, cujas possibilidades visuais são mais diversas que a unidade da tela escura projetando uma única perspectiva – e portanto mais similares ao jogo imagético que as metrópoles que filma propõe.

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A distância corpórea dos homens na sauna em Wu Wu Mian, em ritual de resistência à cidade à suas próprias maneiras, parece guardar um canal metafísico que a urgência dos planos noturnos da Tóquio lotada dos pedestres em Shinjuku e do metrô em movimento brusco a observar uma cidade cujas luzes estão se desfazendo sob nossos olhos em registro digital não chama para si. É como se fosse o chavão da cidade que nunca dorme versus os homens que dormem como enfrentamento a ela, mediada pelo monge em seu tempo próprio, encontrando ambientes que procuram essa mesma dinâmica – talvez a exclusividade de noturnas aqui seja um sinal de que é o horário do dia que mais se pensa o absurdo do fluxo irrestrito da cidade, o momento diária e também ritualístico da ansiedade da privação do sono, da dificuldade de conciliar o ritmo acelerado com a desaceleração proposta pelo corpo ao pedir repouso. É a jornada mais abstrata dos três filmes, por partir de um choque de sentimentos, de exaustão política refletida no ciclo corporal, cuja geopolítica está em segundo plano mas tão relevante e mapeada quanto nos outros.

Em Walker, o Andarilho passa por anúncios múltiplos e coloridos, por mercados ao ar livre, e filmado como silhueta em meio aos habitantes passando por uma ponte provavelmente de algum transporte coletivo, e nunca deixa de estar solitário nos quadros; não parece haver distinção tão grande entre os planos abertos afastados do monge na cidade noturna e vazia para os planos mais ocupados pelo fluxo de pedestres, porque o que o enclausura diante de Hong Kong é uma solidão que não interpreta multidões e vazios sob diferentes óticas, a impessoalidade surgindo equivalente em ambas as dimensões. O momento de maior impacto, quando este é filmado frontalmente em meia distância ocupando uma rua lotada, é reconhecido por transeuntes que param ao seu redor, o filmam, no maior diálogo que uma interação assim pode proporcionar. Se em Hong Kong e Tóquio os obstáculos são íngremes, de proporções diferentes, ambientes fechados e vazios com os mesmos estímulos visuais caóticos, em Marselha os entraves são em planície, mais turísticos, com corpos que parecem mais interessados em uma investigação/contemplação do que está ao redor, mas também aparentemente desconectados para com o outro.

Em Hong Kong o monge termina sua jornada comendo algo após ser negado o seu acesso a um lugar, em Tóquio é através de um sono em uma cápsula que lhe aliena do ambiente – ambos rituais solitários de sobrevivência, mas também de autoconhecimento dada a metafísica tão convidativa desses filmes. Mas em Marselha a jornada termina na cidade literalmente de cabeça para baixo, com o monge e seu seguidor ocidental em meio aos transeuntes, todos dispersos no ritual do flanar, sem apreensão individual, sem conciliação entre o pessoal e o público. A metrópole na França está fadada ao peso do turístico, da cidade-museu, do urbano não funcional ao humano, do ambiente cujas motivações não são de um trânsito de acasos mas a um ritual muito marcado e formulado, assimilado pelo status que o flanar com viés cultural traz.

O esforço corporal deixa de ser do monge para ser de todos os outros corpos anônimos na cidade, impessoais, diante de um ritmo imposto a eles por uma dinâmica de sociedade ao redor do trabalho, quase oposta a ideia do Andarilho a dançar no urbano. No início dos três filmes o extremo e o cansaço podem ser características associadas ao monge protagonista, mas ao final a impressão que fica é que exaustos estão os corpos em movimento desordenado e perdido que testemunhamos com frequência ao redor dele.

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Kinoglaz Peeping Tom: suturas

Por Bernardo Oliveira

Em “Nós: variações do manifesto” (1919), o Conselho dos Três — capitaneado por Dziga Vertov, sua esposa Elizaveta Svilova e seu irmão Philip Kaufman — assevera que o futuro da arte cinematográfica estaria condicionado à aceleração de sua morte. “Nós afirmamos que o futuro da arte cinematográfica é a negação do seu presente. A morte da ‘cinematografia’ é indispensável para que a arte cinematográfica possa viver.” Opondo-se ao campo semântico que circunscrevia nesta época o termo “Cinema”, cuja morte o Conselho previa ainda no curso da década seguinte, Vertov propunha o Kinokismo, cujos preceitos diferiam radicalmente dos princípios norteadores da “arte sem futuro” no contexto norte-americano. Para além de um suporte meramente narrativo, o Kinokismo consistia “na arte de organizar os movimentos necessários dos objetos no espaço, graças à utilização de um conjunto artístico rítmico adequado às propriedades do material e ao ritmo interior de cada objeto.”

No contexto pós-revolucionário russo, o Conselho propunha uma clara deriva em relação à perspectiva eisensteiniana sobre a arte cinematográfica, a busca pela especificidade do cinema segundo uma sorte de acoplamento técnico. Sua autonomia em relação a outras artes estaria diretamente ligada à substituição do drama e de seu fator “psicológico” inerente, relativo à imprecisão do olho e do corpo humanos, pelo cinematógrafo, o dispositivo maquínico revolucionário capaz de captar os registros invisíveis ao olho humano, transformar a imaginação coletiva e, com isso, a experiência de mundo. Articulado à precisão da câmera e da moviola, o olho humano poderia não só captar e regular os movimentos invisíveis da realidade —  por exemplo, a opressão, a superação — como também abrir caminho para outras formas de percebê-la e, por consequência, transformá-la.

Pela natureza transversal de seu movimento, o otimismo teórico de Vertov extrapolava o pensamento cinematográfico e se imiscuía nos debates políticos e científicos com suas reflexões que, sob certos aspectos, assemelhavam-se àquelas propostas pelo Futurismo e por todo o sentimento triunfalista que a ascenção dos valores tecno-científicos tornou unânime na Europa do final do XIX. Foram fundamentais suas projeções acerca de um “homem do futuro”, imune à morte e às imperfeições do corpo, da percepção, do entendimento: “o ‘psicológico’ impede o homem de ser tão preciso quanto o cronômetro, limita o seu anseio de se assemelhar à máquina.” Vale segui-los adiante em uma espécie de guinada futurista, e, a depender do ponto de vista, eugenista: “Pela poesia da máquina, iremos do cidadão lento ao homem elétrico perfeito.” A busca pela concretização do “homem perfeito” remete a um consenso de época, de caráter multidisciplinar, relacionado à perceptível tendência para a fixação de modelos ontogenéticos. Servindo de paradigma, tais modelos se constituiriam como uma estratégia eficaz de reprodução da normalidade, garantindo o enraizamento da ideologia tecno-científica que marcou a virada do XIX para o XX.

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A ciência se utilizou das potencialidades do registro cinematográfico, como na produção do neurologista romeno Gheoge Marinescu, enquanto cineastas flertavam com os anseios de depuração, aperfeiçoamento técnico e enaltecimento da própria raça. Não raro percebemos os traços indisfarçáveis das linhas da produção cinematográfica atravessando o campo de batalhas políticas de cunho estatal, ou científicas, inseridas como ferramenta nos gabinetes, centros técnicos e laboratórios de pesquisa. De tal forma que o problema do racismo científico excede as fronteiras da própria ciência, reproduzindo socialmente toda a cornucópia de falseios nos quais se baseiam os modelos de segregação racial. O cinema criou suas ficções com ampla repercussão social e cultural, inclusive valendo-se de assuntos que fortaleciam as razões para a eclosão de movimentos fascistas e racistas nos Estados Unidos e em países europeus. Antes da biopolítica, antes mesmo da necropolítica, pudemos acompanhar, por dentro de suas entranhas, as sendas e veredas por onde se entrecruzaram o registro da imagem, as ciências e o racismo.

O modelo do “homem perfeito” egresso do Futurismo reverbera por todo o discurso Kinok, através de uma apologia do homem que detém o poder de subtrair-se à própria morte. Mas de que perspectiva o Kinokismo nos fala sobre a vida e a morte? A experimentação nos limites da estética como forma de purgar os efeitos libidinais de uma civilização autofágica? O acoplamento da percepção aos objetos técnicos como forma de transformar uma realidade, ampliando-a do ponto de vista da expansão do campo de experiências? Ou a utilização servilista da máquina assassina e opressora, que só concretiza seu poder através da eliminação do outro? Este último caso parece se identificar com Mark, o Peter Pan atormentado de “Peeping Tom”, filme dirigido em 1960 pelo cineasta britânico Michael Powell. Se pode ser considerado também como um “homem com sua câmera”, não me parece aleatório que sua relação com o objeto técnico seja atravessada por algumas demandas de ordem psico-fisiológica. O esquema que o filme de Powell propõe não é tão complexo, mas o resultado extrapola os fatores exclusivamente técnicos ou psíquicos e nos impele a uma análise tecno-fisiológica do que este homem faz com sua câmera.

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Quando criança, seu pai, psicólogo e estudioso do comportamento humano, o atormentava registrando em detalhes todos os momentos de sua vida, focando particularmente nos momentos em que Mark sentia medo. Já adulto, ele não resistirá ao impulso de causar o medo para poder captá-lo com seu objeto técnico, no caso, o cinematógrafo. Enquanto, do ponto de vista do Conselho, o olhar subjetivo é empecilho para uma apropriação potente do dispositivo audiovisual — o olho percebendo a realidade através de uma plasticidade regulável possibilitada pela câmera —, para Mark a câmera se constituirá como um prolongamento psiquíco, um disco rígido externo capaz de reencenar e ajustar provisoriamente os sentimentos negativos que o acometem quando revive os momentos torturantes de sua infância.

O fascínio pela morte tenderia a destacar-se da pulsão de morte, a primeira remetendo ao efeito libidinal associado a um regime afetivo que goza ante a anulação de toda existência (pois nunca concretizamos a morte como uma experiência). Ao passo que a pulsão de morte encena uma contradança com o instinto de vida, lançado-nos em uma existência determinada por aquilo que Espinosa chamava conatus, a potência em perseverar em seu próprio ser. Em decorrência deste entrelaçamento entre vida e morte, eclode um conjunto de relações, de trocas e equivalências libidinais, que oscilam entre a sustentação das contradições do capitalismo e a eclosão de seu mais terrível aspecto pulsional: niilista, assassino, destrutivo — por vezes, auto-destrutivo. Atentando para a diferença de natureza entre fascínio e pulsão, chegamos à conclusão de que o primeiro, como processo isolado, tende à satisfação neurótica, ao passo que o segundo se afigura de forma inescapável a toda existência.

O Kinokismo percebe o mundo através do dispositivo cinematográfico com o objetivo de criar movimento, o que implica em escapar do caráter indireto da representação e fazer com que aquilo que escapa à nossa percepção “se torne visível”: suturas entre a realidade disponível e a força de realização concreta atravessada por uma imaginação ampliada. Substitui, assim, a máquina psicanalítica estruturada sobre a relação consciente/inconsciente pelos efeitos criadores do homem-máquina. Ao passo que Mark, tomado pela tendência à satisfação neurótica, só vê a si mesmo e, por razões diferentes, também se transforma em uma espécie de “homem-máquina”. Mas uma máquina incapaz de criar movimento, máquina feminicida que silencia, oprime, massacra e se alimenta do medo alheio. Em sua aparente vulnerabilidade, Mark encontra força na máquina: introjeta a câmera, torna-se câmera e vice-versa. A câmera também ganha uma consciência, faz-se de armadilha, captura suas presas sempre em situação vulnerável, acolhe a covardia alheia, faz dessa covardia a sua própria: preconceito de câmera. Seu movimento é negativo porque simula a interiorização da violência e concretiza uma realização escabrosamente dialética. A câmera como máquina de matar e, através do feminicídio, uma ferramenta de ajustes e auto-correções psíquicas. Uma máquina assassina que se limita a buscar incessantemente a sutura canalha para uma ferida que permanece irremediavelmente aberta.

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Editorial – O Rito de sentar-se à mesa

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Senta-se à mesa.

Ao comentar a análise de Giuseppe Lo Duca sobre erotismo e cinema em L’Érotisme au cinéma, André Bazin conclui que o olhar do autor enxerga a fonte do erotismo cinematográfico nos traços comuns ao espetáculo cinematográfico e ao sonho pela passagem: “O cinema está próximo do sonho, cujas imagens acromáticas são como as do filme, o que em parte explica a menor intensidade erótica do cinema em cores, que de algum modo escapa às regras do mundo onírico”.

Abre-se o cardápio.

O texto de Bazin, de 1957, parece incompatível com o ideal dos desejos da carne no cinema contemporâneo. O sonho, hoje, é de cores saturadas, não pela certeza do cinema a cores e variá-lo parece um caminho justificável, mas levado às dúvidas de uma afirmação mambembe no qual o sentido e a sugestão são mais importantes que a imagem. Ela parte de uma afirmação, de uma força insolúvel na qual filmes como Cam e Apesar da Noite carregam – ambos comentados nesta edição.

Faz-se o pedido.

Dois exemplos muito atuais da função da carne na tela: Em Sedução da Carne (2018), Julio Bressane exibe o básico do cinema: luz e sombra. Num simbolismo rasteiro considerando o tema da edição, digamos que seja o feijão com arroz do processo. Mas, ao lado, a carne, literalmente –  industrializada, em estado de putrefação, que nos persegue e nos domina. O reducionismo de Bressane sobre a indústria, a morte, os cineastas, o dispositivo e as funções do corpo como símbolo vão de encontro com a proposta desta edição da Multiplot! Em Climax (2018), Gaspar Noé em sua metodologia perfumada e artificial, coloca o sistema – corpo – e seu funcionamento em constantes tropeços em entidades morais – família, religião, drogas, etc. O corpo, aquele que é vítima infecções, que possibilita o gozo e aceita a morte – resumindo, o de Cronenberg – nunca pareceu tão em voga nos tempos em que o voyeurismo é tão popular.

A sexta edição da Multiplot! no formato de revista parte de uma noção contrária à associação do discurso da carne: o corpo como bacia dos desejos no cinema de Todd Haynes – poderia ser o córrego para a discussão do cinema de Catherine Breillat e Jean-Claude Brisseau e seu lado sensorial, mas o que se discute é o coração. O corpo e a cidade que poderia passar pela noção nefasta de Jia Zhang-Ke ou Brillante Mendoza decorre para Walker, o personagem andarilho de Tsai-Ming Liang, uma visão mais intimista e que está em paralelo à análise de Peeping Tom (1960) de Michael Powell no pesadelo do homem urbano, aquele que acopla suas fantasias ao horror – e a câmera como extensão deste homem, concomitante às teorias de Marshall McLuhan. Este que tem em David Cronenberg o seu grande representante e em Crash (1996) o seu apogeu. O  personagem andarilho de Tsai-Ming Liang  leva ao diretor a questionar as assimetrias da carne, sobre corpos que ocupam o espaço urbano e exercem funções primordiais e que são impedidas de seguir o fluxo natural por questões cruéis, próximas ao canibalismo. O texto sobre Bush Mama é mais evidente sobre como o homem ainda é, no fim das contas, irracional.

Se Crash, um dos grandes filmes de gênero a intuir o corpo a partir de outro extremo, vale lembrar de Stuart Gordon, um grande amante das vísceras e sangue que vai além do fetiche e a carne, além do desejo, consome a vida, à espera da morte como prato principal indesejado. Abel Ferrara e Stan Brakhage, cada um à sua maneira, discutem a congruência do palpável e o sobrenatural. Vale lembrar que Ferrara sempre conta com a arma como extensão. Esta edição traz textos sobre o cyberpunk e a máquina (Tetsuo, 1989), corpos em colisão (Crash), a webcam como arma de prazer e horror (o já citado Cam), a câmera como arma  mortal em Peeping Tom e o sexo e violência surrealista discutido por Adrian Martin, que vai de Franju e Buñuel a Lynch e os filmes de horror.

Sentar-se à mesa, portanto, é uma questão que engloba grandes conflitos filosóficos sobre o que e quando se consome.

Vira-se a página. Agora é degustar.

Bon appetit.

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