Arquivo

É Tudo Verdade: 1982

Por João Pedro Faro

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O filme de arquivo do cineasta Lucas Gallo remonta 3 meses de imagens televisivas de um programa local, acerca dos eventos bélicos de retomada das Ilhas Malvinas em 1982. Gallo assume as imagens como pura propaganda do regime militar e, através de precisas sobreposições imagéticas e paralelos imediatos entre diversos registros, cria uma contranarrativa fílmica aos absurdos promovidos e televisionados à época pelo governo argentino.

Tendo como centro formal a intromissão da montagem a partir de imagens que, por si só, já falam bastante, 1982 não dispersa de seu método em nenhum momento. Enquanto assistimos uma narrativa ser montada e vendida ao povo argentino, criando uma enorme comoção popular pelas tropas nas Malvinas, acompanhamos, paralelamente, os eventos tenebrosos que discorrem nas ilhas. A primeira metade do filme funciona como filme de guerra, com jovens soldados no aguardo da chegada das tropas britânicas inimigas, enquanto toda uma mobilização nacional desmedida e insana é direcionada a jovens rapazes que esperam pela morte. Por mais propagandístico que o material do programa 60 minutos, fonte de todos os arquivos que Gallo retoma, a iminência do desastre nunca deixa de rondar os cantos dos registros. Quanto mais absurda e mais esquizofrênica se torna a expectativa criada por um movimento armado condenado ao fracasso, mais nos afastamos das imagens das Malvinas e nos fechamos aos auditórios argentinos onde, de alguma forma, a guerra ainda parece caminhar para a vitória.

Se torna, portanto, um exercício de contrastes imagéticos diretos, que expõe o terror da propaganda deixando com que a realidade fale por si só. Não temos alternativas às imagens propagandísticas, porém, elas mesmas passam a se contradizer e, aos poucos, a ruir, declaradamente omitindo o que não lhe interessa e tentando segurar um regime em clara decadência. Criam-se programas de doação com moças bem vestidas ao lado de soldados armados, televisionando um show de arrecadações financeiras para um governo responsável pelos próprios gastos em uma guerra imprestável. Nesse sentido, a figura do General Galtieri e da primeira ministra Margaret Tatcher funcionam como a oposição entre dois carrascos que aparecem de formas opostas nas imagens de propaganda.Tatcher é um fantasma o filme inteiro, representante física do colonialismo europeu, uma entidade maligna que só dá as caras quando já derrotou o país latino-americano. Mas, sem nenhuma surpresa, parece estar ideologicamente ao lado de Galtieri, que sonha com um colonialismo próprio.  Galtieri, exaltado, surge como uma força de salvação que apoia ações completamente fantasiosas, mentindo constantemente, mas sem deixar com que seu rosto pare de olhar para a câmera. A propaganda de guerra, caso esteja do lado do vencedor, serve para marcar o responsável pela vitória, o líder supremo. Caso acabe em derrota, marca eternamente o mentor dos crimes contra a humanidade. E o rosto de Galtieri, sobreposto por Gallo às imagens da destruição, representa uma fraqueza existencial digna do pior dos líderes.

O material reunido por Gallo, todo gravado em vídeo, apresenta ocasionais interferências  na imagem que deformam ainda mais os registros já naturalmente deformes. Juntando isso à sua montagem, marcada por transições entre imagens que surgem por cima de outras, temos um processo certeiro que faz as imagens quase ininterruptas, desesperadas em formular uma realidade alternativa, triunfante. Podemos dizer, então, que 1982 compreende cinematograficamente as origens e as implicações de um discurso patriótico dissimulado, criminoso e desmoralizante, pois seu objetivo é expor toda a sujeira comercial de uma nação comandada pelo militarismo em acordo com o capitalismo. O resultado, em um dos trechos mais marcantes do filme, é o que diz uma voz ao pendurar um pôster do Maradona em uma das paredes de um bar nas Malvinas: vemos, aqui, o perfeito exemplo de um rapaz argentino, patriótico, um símbolo do futuro. Só dá pra tentar se agarrar às imagens que restam, nos sonhos latinos por um imperialismo que possa chamar de seu.

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É Tudo Verdade: Atravessa a Vida

Por João Pedro Faro

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O novo documentário de João Jardim parte de uma ideia mais do que sedimentada no cinema documental das últimas décadas. Atravessa A Vida coloca uma câmera dentro de uma escola pública do interior de Sergipe, a fim de acompanhar os derradeiros dias pré-Enem dos alunos do terceiro ano. Desde High School (1986) de Frederick Wiseman até Últimas Conversas (2015), de Eduardo Coutinho, não faltam exemplos memoráveis (e, também, esquecíveis) de autores documentais que exploraram tanto o ambiente quanto os personagens do ensino médio público. Se há qualquer diferencial no filme de Jardim, ele está firmado em suas passagens mais propriamente intimistas.

A cidade pequena que dá palco à sua encenação é vislumbrada em segundo plano. Há, durante todos os diálogos, uma sombra da distância da capital e dos cursos que os alunos desejam prestar. Há uma sensação de isolamento, que percorre todo o filme, e que aponta para projetos de marginalização impostos à essas figuras adolescentes, mais do que conscientes de todo o processo por trás de sua sonhada incursão no ensino superior. Quando decide dar atenção direcionada a determinados personagens, Atravessa A Vida revela jovens em estado de elucidação e inquietação.

O que o filme não consegue carregar é, justamente, a complexidade dos sentimentos de seus personagens sendo resguardada pelo ambiente em que se encontram. Nada pode ser mais objetivo em demonstrar essa dicotomia do que alunos prestes a se formar, em correrias de estudos integrais impulsionadas por inseguranças e crises. Em seus momentos mais fortes, especialmente na primeira meia hora, integra um processo melancólico imersivo de desesperança e angústia, filmando livremente trechos de aulas, discussões e interações ordinárias carregadas de timidez e volatilidade. Já no terço final, o filme renega seus princípios e busca um encerramento mais comum e palatável, dando um nó de forca em sua integridade.

Atravessa A Vida é um caso curioso. De início, reconhece seu processo fílmico e produz imagens interessantes e ativamente relacionáveis em torno da experiência secundarista. Quando deixa de ser sobre a articulação entre a presença física da câmera e a reação desses adolescentes em crise à lente, busca os espaços mais confortáveis, conhecidos e desinteressantes. A forma como se encerra, em longos créditos que colocam o nome dos personagens ao lado do curso em que passaram ou pretendem passar, é um grande desrespeito à confiante aproximação que, inicialmente, parecia criar entre aquele grupo de pessoas. A partir do momento em que um filme age como um professor agiria, deixa de ter qualquer interesse pelos humanos em tela. Uma pena que ele não permita que esses alunos deixem de ser, por algum momento, algo além de alunos.

 

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É Tudo Verdade: Forman VS Forman

Por João Pedro Faro

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Forman VS Forman parte de uma extensa reunião de arquivos que remontam a vida do diretor tcheco. O centro do longa de Helena Třěštíková e Jakub Hejna é a colagem, que liga diversas entrevistas de Milos Forman às imagens resgatadas. Nesse sentido, funciona mais como um filme-ensaio do que como um documentário em si, tendo em vista que a única voz presente é a do protagonista. Seus relatos entregam ao filme um corpo semântico que garante uma concisa condução das imagens.

A montagem é a grande força aqui. Ao recusarem típicas estéticas ultrapassadas dos documentários narrativos, como fotos em slideshow e abuso de planos de “cabeças falantes”, os diretores extraem uma experiência que nunca deixa de ser, ao mesmo tempo, informativa e cinematográfica. Até pela curta duração de 70 minutos, que resumem quase 90 anos de vida, não há sobras de tempo que não estejam devidamente recortadas e processadas. Třěštíková, veterana do ensaio documental, realiza um trabalho sucinto e direto sem que nada pareça apressado ou resumido.

Em certos aspectos, Forman VS Forman remete aos últimos trabalhos de Agnès Varda, especialmente As Praias de Agnes (2008). Claro que se trata de um trabalho bem menos grandioso (e com um personagem central muito menos carismático), mas há sim uma liberdade incondicional gerada pela revisão de toda uma carreira nas palavras de seu principal autor. Tanto no filme de Varda quanto no de Třěštíková, a aproximação entre espectador e filme só é possibilitada pela forma como concentramos a jornada na voz do centro das criações, acompanhando, na distância da lente, um artista que reconta seus passos.

O mais surpreendente é perceber como Milos Forman reconta sua trajetória como a história viva do sonho americano. De sua saída da Praga comunista pro cenário caótico dos Estados Unidos setentista, culminando em seu vergonhoso discurso em Washingnton em 89, Forman é um personagem único que guarda todos os ideais de uma geração de artistas da Europa oriental que sonharam com a “liberdade de expressão” de uma América perfeita.

O filme de Třěštíková e Hejna é feliz em respeitar a distância que Forman tinha de si mesmo e de suas próprias desilusões, com sua terra natal, sua carreira e seu novo país. Como o cineasta explica, na primeira linha do filme: “não gosto muito de pensar sobre mim”. Está aí todo o espírito do projeto. O que resta, então, para desvendar esse personagem, é revelar todos os seus passos e todas as imagens que lhe marcaram, na esperança de que exprimam alguma existência, em um confronto entre suas palavras e suas realidades. Realmente, é Forman contra Forman.

 

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É Tudo Verdade: Meu Querido Supermercado

Por João Pedro Faro

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O longa de Tali Yankelevich tem jeito de reportagem. Com a duração de um episódio de Globo Repórter, Meu Querido Supermercado é um registro objetivo e costumeiramente simples de um grupo de funcionários durante um dia de trabalho. Contado em pequenas narrativas de seus personagens, o filme não parece confiar o bastante na capacidade individual de cada um de seus núcleos e tenta puxar uma visão unificada de um mosaico desconjuntado.

Não é surpreendente que os funcionários do mercado sejam, em geral, pessoas bastante interessantes. Os momentos de maior criação surgem em gratas presenças, como a supervisora das câmeras de segurança que passa o dia inteiro vigiando sua filha que trabalha no caixa do mercado. Ou, também, no núcleo do romance hawksiano entre dois padeiros, figuras com carisma suficiente pra carregar grande parte das sequências do filme.

O cansaço visual de Meu Querido Supermercado está justamente no contraponto dessas figuras: Tali sempre parece justificar seu projeto com ambições “superiores” ao registro do trabalho, forçando aos seus personagens banalidades cósmicas com perguntas como “Você acredita em vida após a morte?” e “O que é fé para você?”. Essas respostas, limitadas a uma fração do grupo que retrata, surgem acompanhadas de analogias visuais bastante óbvias, como a sequência em que um dos funcionários descreve o “além vida” como um “desaparecimento da forma física”, apoiado por imagens de pães velhos sendo triturados. Não há nada nesses momentos que se integre à rica e inexplorada existência dos personagens que encenam a obra de Tali.

A necessidade que Meu Querido Supermercado parece ter em querer integrar seu microcosmo aos próprios cosmos não alcança suas ambições, em um documentário que parece planejado pela metade. O que prevalece, no contato dessa presença fílmica com os indivíduos que retrata, é um breve e agradável vislumbre de vidas que transbordam os horários de descanso do trabalho.

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Olhar de Cinema: Victoria

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Por Pedro Tavares

Na rapidez que a cobertura de um festival de cinema exige até mesmo na produção de textos, um pensamento recorrente vinha ao pensar em Victoria: o cinema como vínculo entre distâncias. Um pensamento a partir do que Rancière escrevera em As distâncias do cinema a partir do prisma do que é inalcançável e a partir disso criar um diferente estado do real.

O que o filme de Sofie Benoot, Isabelle Tollenaere  e Liesbeth De Ceulaer faz, de certa maneira, é construir um western para os anos 2010. A ideia do progresso feito com asfalto e crescimento vertical encontra a ruína quando um projeto retorna ao seu princípio. Para California City ser um deserto de um homem só, antes houvera um deslocamento de diversas camadas – do leste para o oeste, de planos, perspectivas, afim de um recomeço.

Recomeçar parece uma palavra-chave na composição de um filme para os anos 2010 a julgar pelo momento de apogeu desta necessidade que passamos em 2020. A ideia de recomposição sucumbe à rotina de tratar supostamente o que é intratável. Curiosamente não há um tipo de desespero como reflexo. Contemplar e seguir segue como melhor caminho, na mesma maneira que sinalizar ruas inexistentes para que ninguém as atravesse. O único eixo concreto de Victoria está na sugestão de que houvera um caminho percorrido e certo alinhamento com a nostalgia que é brilhantemente nivelada com dispositivos modernos como o Google Maps.

Em Victoria, o cavaleiro solitário não está só, tampouco necessita de meios de transporte ou de assertividade social. Estas bordas nascem definidas fantasgoricamente. Sua luta é com o espaço e com sua memória que podem ser engolidos a qualquer momento, seja por um novo projeto de cidade ou pelo esquecimento.

Visto no Olhar de Cinema

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Ukamau e Sangue do Condor – A nação clandestina de Jorge Sanjinés

Por Bruno Pires

 Jorge Sanjinés no início dos anos 60 começa a produzir uma série de filmes dentro de um coletivo tardiamente denomidado Ukamau, que buscava um cinema de identidade nacional boliviana por via da cultura andina. Para o grupo, era menos importante circular nos festivais europeus que viajar o país exibindo seus filmes em zonas mineiras e comunidades indígenas, recebendo um parecer daqueles que eram os reais protagonistas de suas histórias. O que nasce de uma vontade de se fazer “un cine junto al Pueblo” tornou-se uma das mais eficientes formas de livrar-se de amarras eurocêntricas e produzir algumas das obras mais peculiares na filmografia mundial. O índio no cinema latino-americano deixa de ser Dolores del Río, estrela de Hollywood, e converte-se em Benedicta Huanca, aimará cujo cotidiano e luta é o mesmo que o exibido em Ukamau (1966) e Sangue do Condor (1969).

Os primeiros minutos de Ukamau, primeiro longa-metragem de Sanjinés, revelam a forte integração entre um povo e sua terra, relação mais primordial da história humana. Sanjinés faz questão de enfatizar a beleza estética da idílica Ilha do Sol no lago Titicaca, lar do protagonista Andrés e sua esposa Sabina, um local livre de estragos que resiste à cultura ocidental. Desde essas primeiras sequências há o desejo do diretor em finalmente revelar ao mundo e à Bolívia o povo indígena, que, apesar de maioria, segue vivendo como uma nação clandestina dentro de seu próprio território, incapaz de serem reconhecidos ali dentro. O caráter documental do filme é quebrado assim que esse equilíbrio é rompido: Sabina, numa tentativa de estupro, é assassinada pelo mestiço Ramos enquanto Andrés está fora de casa, o que incentiva a vingança por parte de seu marido.

Este maniqueísmo entre o indígena e aquele influenciado pela cultura branca é o que dita o rumo do filme: a vida comunitária andina em oposição ao individualismo de Ramos que deflagra um bom-mocismo por parte do protagonista. Apesar de já próximo da vivência andina, Ukamau ainda é muito próximo dos padrões de um faroeste, principalmente por uma visão dicotômica radical que se traduz no anti-heroico Andrés adiando sua revanche contra Ramos, que passa toda a duração do longa vivendo na ansiedade de ser pego pelo índio. Apesar de já haverem esforços de integrar o indígena à cinematografia nacional, ainda há forte colonialismos no olhar de Sanjinés, o que se deve principalmente à expressão de toda uma comunidade em um único personagem, algo que será gradativamente abandonado em sua carreira, havendo cada vez mais participação do próprio povo em tela. Ukamau segue sendo a vingança de um homem só, e ao individualismo não resta espaço na filmografia de Sanjinés, refletido nos dois últimos planos do filme, um primeiríssimo de Andrés após assassinar Ramos, e um geral, que será muito mais frequente dali em diante.

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Sangue do Condor, segundo longa do diretor, é conduzido em duas narrativas paralelas dividas por uma cena: a tentativa de assassinato do quíchua Ignácio, alvejado pela polícia. A trama relata o porquê dele ter sido alvo dos tiros, e também a tentativa de salvá-lo vinda de seu irmão Sixto, que hoje mora em La Paz, trabalha em uma fábrica e renega a cultura indígena. Apesar de ser avesso às suas raízes, é incapaz de escondê-las, como na sua primeira aparição onde é chamado de índio bruto por um homem branco e prontamente rebate ¡no soy indio, carajo!”. O decorrer de sua história será estritamente ligada ao desencanto com o mundo ocidental, a impossibilidade de conseguir dinheiro para operação do irmão, e a inevitável revolta contra sua defasada utopia.

A ideia de Sangue do Condor surgiu devido uma série de denúncias contra o Corpo de Paz, agência federal criada pelo presidente Kennedy para auxiliar países do terceiro mundo. Segundo muitos bolivianos, aqueles americanos estavam há quase uma década no país esterilizando indígenas, fato comprovado quatro anos após o lançamento do filme, que, segundo Sanjinés, foi forte testemunho da agência falsa-humanitária dos ianques. Essa história foi traduzida na rebelião de Ignácio e sua vila contra os gringos, fato que levou à sua quase morte.

Sendo real ou não, a tentativa de apagar os índios da história do país era uma realidade, fruto de um neocolonialismo reforçado durante os anos 60, cujo plano era embranquecer o país racial e culturalmente. Não por menos, as duas cartelas que abrem o filme são uma fala de um oficial nazista sobre a inferioridade e irrelevância dos ucranianos, e o discurso de um cientista americano sobre a diferença racial entre as nações mais ricas e pobres, e como eventualmente o terceiro mundo será devorado pelos contingentes eurocêntricos.

Por mais que esse choque entre primeiro e terceiro mundo já esteja presente nos projetos anteriores de Sanjinés, Sangue do Condor finalmente incorpora o espírito comunitário presente nas culturas indígenas, espelhando a aldeia de Ignácio, que investiga e pune os americanos infiltrados, ao compromisso de Sixto, em busca de alguém para doar sangue ao seu irmão. Além do paralelismo espaço e temporal entre o antes e depois do tiro que Ignácio recebeu, há também as diferentes opressões no campo e na cidade, como o falso messianismo americano trazendo más intenções, e o enfrentamento de Sixto diante à soberba e descaso que a burguesia da metrópole oferece, incapaz de sensibilizar-se com a situação de seu irmão.

Essas duas narrativas apesar de distintas, completam-se dialeticamente: enquanto o corpo político da comunidade se mobiliza juntamente para rebelar-se e culmina na tragédia de apenas um personagem, a jornada solitária de Sixto se completa em seu desprendimento à vida urbana e o regresso às suas origens, a comunidade, onde junto de seus camaradas ergue seu fuzil na esperança de uma revolução onde eles sejam os protagonistas.

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CINEMA E REVOLTA

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A LEI DOS DEPRAVADOS
João Pedro Faro

YOU KILLED ME FIRST/JUVENÍLIA: DOIS FILMES PARA TODA A FAMÍLIA
Natália Reis

MARGINAL NÃO FILMA: LADRÕES DE CINEMA
Pedro Tavares

O COMPLÔ DOS INOCENTES – NOTAS IRRESPONSÁVEIS SOBRE A CRIANÇA NO CINEMA
Bernardo Oliveira

QUE OS JOVENS DESTRUAM A CIDADE – FUNERAL DAS ROSAS
Gabriel Papaléo

COMO DESMONTAR UMA PRISAO: REVOLTA SILENCIOSA EM UM CONDENADO À MORTE ESCAPOU DE ROBERT BRESSON
Luís Flores

ENTREVISTA: Luiz Pretti
Pedro Tavares

CRIANÇA SOLITÁRIA: A BALADA DE LEONARDO FAVIO
Daniel Dalpizzolo

A REVOLTA DAS OPACIDADES, OU O POP E A ULTRAVIOLÊNCIA NA VIRADA DO MILÊNIO JAPONÊS
João Lucas Pedrosa

CONTRA O SILÊNCIO DO AMOR, A POESIA E A REVOLTA: UM OLHAR SOBRE TONGUES UNTIED DE MARLON RIGGS
Chico Torres

VAGA CARNE: O CORPO (R)EXISTE
Kênia Freitas

UKAMAU E SANGUE DO CONDOR – A NAÇÃO CLANDESTINA DE JORGE SANJINÉS
Bruno Pires

A VOZ MANSA DIANTE DO OESTE: FIRST COW
Gabriel Papaléo

O VULCÃO E A NUVEM: REVOLTA COMO RESIGNAÇÃO EM STROMBOLI DE ROBERTO ROSSELLINI
Diogo Serafim

ANOTAÇÕES SOBRE O GRAU ZERO DA DIFERENÇA: O CINEMA DE APICHATPONG WEERASETHAKUL E CURADORIA COMO CURA (E COMO ISSO TUDO SE APROXIMA DE UMA IDEIA DE REVOLTA)
Geo Abreu

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You Killed Me First/Juvenília: Dois filmes para toda a família

Por Natália Reis

“Let’s make a movie where we would imagine a incredible world after death, a movie that would be so wild, so sexy, so beautiful and provocative that it would make everybody wanna rush to their death.”

(David Wojnarowicz)

“A luta e a revolta implicam sempre uma certa dose de esperança”

(Paraísos Artificiais, Baudelaire)

A crítica de Eric Rohmer para “Rebel Without a Cause” na Cahiers du Cinema de maio de 1956 começa com a insatisfação com que recebia a versão francesa do título: “La Fureur de Vivre” - A fúria de viver. Para Rohmer, o título não significava nada, uma vez que “Rebel Without a Cause” seria muito mais “contido e apropriado”, por “não apresentar a chave do trabalho, mas não deixar de iluminar adequadamente o objetivo do autor: Rebelde sem Causa, a causa pela qual se luta.”. Por aqui, o filme de Nicholas Ray virou “Juventude Transviada” o que poderia nos levar, num momento de introspecção, a pensar em caminhos pré-determinados e em automóveis que teimam em sair da curva.

A causa pela qual se luta parece ser o primeiro e derradeiro tópico de análise da rebeldia juvenil. Se por um lado a cantora Lilian em 78 justificava-a com a falta de amor materno e paterno (“eu sou rebelde porque o mundo quis assim…”), a imagem de jovens parisienses bem vividos e criados arremessando pedras na polícia em 68 apresenta um outro lado da mesma moeda. Uma ideia interessante proposta por Julia Kristeva é a de conceber a revolta como uma palavra que possui “plasticidade”, que pode ser percebida pela potencialidade de transitar entre tempo e espaço e movimento –  pelo mundo do sentido (sense) e do não-sentido (non-sense).

O cinema, como outras artes, oferece um espaço propício para se rebelar. Sem contenções, um desejo sorrateiro contamina a linguagem e por sorte vai atingir em cheio quem assume a posição de espectador. Do Teatro da Crueldade aos Acionistas Vienenses, o choque parece ser uma forma súbita de arrebatamento. A ideia de transgressão e crueldade deve ser inserida aqui como prolongamento de um gesto de revolta, que se irradia em direção à realidade com a intenção de acessá-la e modificá-la – sem necessariamente ser posta como produto dela. “Quem hoje foi capaz de registrar qualquer coisa que chegue até nós como fato, sem ferir profundamente a imagem?”, o artista Francis Bacon diz olhando para sua obra. E quem foi capaz de registrar na imagem ferida a revolta contra a realidade de portas fechadas em espaços e momentos hostis?

Seguem dois exemplos de cinema insubordinado, transgressivo e cruel.

Cinema of Transgression

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Em 1985 o Sonic Youth lançava seu segundo álbum, Bad Moon Rising. O título, tirado da música de 1969 do Creedence Clearwater Revival, fazia alusão aos agouros que pairam sobre a história da América, numa linha temporal que percorre desde os seus primórdios  – o genocídio indígena  –  ao fim dos anos 60  – os assassinatos cometidos pela família Manson e o fatídico concerto dos Rolling Stones em Altamont ,  o fim da utopia hippie. Bad Moon Rising de certa forma concatenou esses acontecimentos a uma ideia de profanação do american dream, o vazio moral que guia a nação ao estado de catatonia num país amaldiçoado.

“Estamos vivendo aos pedaços/Eu quero viver em paz/A sociedade é um buraco”, a voz derretida de Thurston Moore profere em “Society is a Hole”, enquanto os corpos dilacerados dos integrantes da banda são costurados com imagens das manifestações flower power pelo fim da guerra do Vietnã no videoclipe de “Death Valley 69”, faixa que contou com a participação de Lydia Lunch e direção de Richard Kern, figuras conhecidas do underground nova-iorquino nos anos 80 e estrelas em ascensão do chamado “Cinema of Transgression”.

Como o álbum do Sonic Youth, o “Cinema of Transgression” desponta de um sentimento de revolta com modelos sociais fracassados. Jovens adultos em sua maioria nascidos no seio de famílias quebradas, sem perspectivas de futuro profissional e frustrados com a impossibilidade de inserção no âmbito cinematográfico experimental de Nova Iorque (que até o final dos anos 70 se dividia entre os expoentes do cinema estrutural como Michael Snow, “pais” e “avós” do camp como John Waters e os irmãos Kuchar e a geração relativamente nova do No-Wave como Vivienne Dick e Beth e Scott B.) buscavam através do choque e da abjeção uma via alternativa para os impulsos criativos que constantemente eram relegados às margens da marginalidade.

Crises familiares, violência policial, sexo explícito, mutilações (e sexo com mutilados), canibalismo, abuso de substâncias ilícitas, sadomasoquismo e outros fetiches tidos como perversões perpassavam os trabalhos de Nick Zedd, Richard Kern, Tessa Hugues-Freeland, Casandra Stark, David Wojnarowicz, Tommy Turner e todos aqueles que reivindicavam pra si o signo da transgressão e compartilhavam da intenção de ferir imagem e espectador do mesmo modo, tomar de assalto um engajamento que supostamente havia se tornado rarefeito pelo academicismo de vanguardas já estabelecidas.

You Killed Me First (1985)

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Uma família ordinária de classe média composta pela figura paterna dominante (David Wojnarowicz), uma mãe histérica (Karen Finley) e duas irmãs de personalidades totalmente opostas encena uma esquete trágica: Elizabeth, a filha mais nova, (interpretada por Lung Leg, atriz-performer-mostrenga do Cinema of Transgression) sofre por não conseguir se encaixar no retrato domiciliar enquanto a irmã mais velha (Jessica Craig-Martin) replica zumbificada o comportamento dos pais. Elizabeth, ou Casandra, como exige ser chamada, entra em colapso e mata todos os membros da família.

You Killed Me First (1985), curta em 8mm de Richard Kern, foi inicialmente concebido e realizado como instalação numa pequena galeria no East Village. Na obra, três manequins dispostos ao redor da mesa de jantar de ação de graças fazem a vez de vítimas de um assassinato brutal. Um crucifixo dependurado, sangue e comida misturados numa massa vermelha uniforme que escorre pelas paredes e pela toalha da mesa integram uma espécie de tableau vivant que deve ser observado através de uma janela à distância.

Ao partir da instalação para a imagem em movimento, Kern dobra a aposta no voyeurismo, revelando o que a rotina familiar pode esconder nas suas ranhuras. O filme não lida com um tipo de abuso perverso (vide Family Tyranny/Cultural Soup de Paul McCarthy e Mike Kelley). Com exceção da decapitação do coelho de estimação da filha mais nova, as cenas curtas, parte flashback parte apresentação dos possíveis motivos do crime, chegam a ser quase infantis: a mãe chora e reza o tempo inteiro, a irmã mais velha é irritantemente o que os pais esperam que seja e o patriarca brinca com a arma recém-adquirida apontando para a cabeça da esposa. A infantilidade e o exagero flutuam ao redor de Lung Leg enquanto ela parece atingir uma espécie de modo berserker: os olhos arregalados e fulminantes, rosnados, a voz engasgando as palavras “eu odeio vocês”.

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Para além de uma ilustração torta das bases enfraquecidas sob as quais a família americana apoiava sua moral, You Killed Me First, como grande parte dos filmes de Richard Kern nessa mesma época, acaba sendo um estudo/screen test das personalidades que o rodeavam e que compunham a cena artística do Lower East Side (território em Manhattan majoritariamente ocupado por imigrantes de classe operária e artistas sem apoio financeiro como a escritora Kathy Acker). Dispensa dizer aqui o quão simbólica é a imagem de David Wojnarowicz (pintor, performer, fotógrafo, cineasta e ativista) fodendo Karen Finley (a performer responsável por monólogos sobre os movimentos sensuais de uma mulher debruçada na máquina de lavar) por trás e sendo espiado com repulsa por Lung Leg, o rosto nervoso de abertura do clipe de “Death Valley 69”.

“Você me matou primeiro” é o grito que precede o matricídio na cena final e o expurgo de um estado de alienação ao qual se abandona os desajustados. Richard Kern admitiria mais tarde que as situações repulsivas retratadas em seus filmes vieram principalmente do tédio e de uma inabilidade de sentir qualquer coisa: “É mais fácil sentir alguma coisa com aversão e ódio”. A teatralização da chacina como banalidade é a negação, via cinema da transgressão, desse tédio que se transforma na morte em vida. You Killed Me First e em alguma proporção toda obra do Cinema of Transgression não deixa de ser “uma vingança dos abortados”, dedicada a todos os rebeldes sem causa que, nem por alguns segundos, já pensaram em matar seus progenitores na mesa de jantar.

Paraísos Artificiais

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Antes de desperdiçar tempo e esforço tentando se fazer conhecido como uma figura agradável do Twitter, Fernando Collor de Mello competiu a duras penas com nosso atual presidente pelo título de maior sabotador da cultura na história política do país. Assim que assumiu o governo em 1990, sob a carcaça mal maquiada de um liberalismo “de visão”, extinguiu a Lei de incentivo fiscal à cultura (Lei Sarney), a Embrafilme (já mal das pernas desde os anos 1980), o Concine, a Fundação do Cinema Brasileiro e se ainda houvesse alguma dúvida quanto a seus propósitos, o próprio Ministério da Cultura (rebaixado a secretaria). Apesar do cenário desolador, os curtas e médias-metragem pareciam ter retido ainda alguma chama de esperança, e as universidades converteram-se espaços propícios para a sua realização.

Na primeira metade dos anos 1990, Paulo Sacramento, Débora Waldman, Paolo Gregori, Marcelo Toledo e Christian Saghaard, quase todos alunos da Escola de Comunicação e Artes (ECA) da USP, integraram a produtora universitária Paraísos Artificiais. Sem manifestos e bandeiras, a paraísos – que contava com CNPJ próprio –  respirava no interior da instituição como um organismo individualizado. Foram mais de dez filmes (em grande parte extracurriculares) montados e finalizados nas imediações da ECA, num processo que envolvia, entre outras coisas, a ocupação das moviolas durante a noite e cooperação mútua, cada membro da produtora sendo um colaborador em potencial para projetos que não fossem os próprios.

Com a benção de Jairo Ferreira (crítico, realizador e guru ideogrâmico do Cinema de Invenção) e seguindo os rastros dos marginais, os filmes da Paraísos se caracterizavam pela escassez de recursos (algo que definiria bem o cinema feito no país naquela época como um todo), pela proposta DIY (herdada talvez dos mesmos ânimos punk que levaram Marcelo, Paulo e Débora a formarem uma banda) e principalmente pela forma com que se lançavam sobre o insólito, sobre uma ideia de violência redentora e a subversão da forma e conteúdo. Da ritualização de um pico com sangue de galinha injetado na veia, passando por uma gangue de homens caracterizados como Jesus Cristo que saem às ruas para crucificar mendigos até a crônica de uma mulher que persegue a própria morte enquanto alucina na rodovia, o cinema da Paraísos Artificiais emerge como imagem de um Brasil subterrâneo, tomado por uma aura turva que recai sobre lugares, pessoas e objetos –  resta reconhecer essas coisas como a memória compartilhada de um sonho ruim.

Juvenília (1994)

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Georges Bataille falava de uma violência elementar, que habita o universo interior do homem e que, quando manifestada, o aproximaria de um estado primordial, no qual toda individualidade desaparece – nos tornamos um na animalidade que renegamos. O Tabu e as leis por sua vez foram criados para não sermos tragados por essa violência, que significaria a perda da consciência e racionalidade. Mas a lei em si não é racional, e neste momento o filósofo aponta essa sustentação hipócrita: por que o homicídio é condenado, enquanto a guerra nada mais é que a permissão para matar? Obviamente Bataille não se posicionava a favor do assassínio, mas trazia à luz a natureza contraditória com que lidamos com certas interdições.

Juvenília (1994), de Paulo Sacramento, é um fotofilme que conta com 60 fotografias em preto e branco em sete minutos de duração. As fotos, feitas por uma fotojornalista que fazia a cobertura de crimes na madrugada, descrevem o esforço coletivo de jovens bonitos e sorridentes para matar e eviscerar um cachorro. Enquanto um ou outro observa de bom humor, os demais se revezam nas pauladas, marteladas, enxadadas e picaretadas até o interior do cão ser revelado. Em determinado momento, um rapaz munido de alicate arranca um canino e exibe para os amigos, três garotas seguram as patas enquanto outra pessoa mergulha a mão na fenda no meio da barriga e puxa as entranhas para fora, tudo isso embalado por uma versão ao vivo  de “A Saucerful of Secrets” do Pink Floyd, que fecha a cena bizarra com os aplausos da plateia. Ao longe, um outro cachorro espreita o ritual macabro.

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“Se você procura emoções fortes, achou. Mas atenção: se estiver apenas a fim de um programinha para passar o tempo, este não é um ‘O Bom do Dia’ para você. Essa introdução é necessária para falarmos dos sete minutos em preto-e-branco de ‘Juvenília’, provavelmente o filme mais violento feito no Brasil nos anos 90.”. Assim começa a matéria publicada na Folha de S. Paulo em 1999 anunciando as exibições de Juvenília na Faap e no MIS. Falar que o curta de Sacramento foi “provavelmente o filme mais violento feito no Brasil nos anos 90” chama a atenção por mencionar justamente uma década em que a tv aberta experimentou uma variedade de programas de jornalismo criminal (do tipo “Aqui Agora”) que apostava num sensacionalismo cretino para falar de tragédias e crimes hediondos. Do conforto do lar, o telespectador brasileiro podia receber uma dose cavalar (e ao vivo!) de reportagens sobre sequestros, estupros, balas perdidas ou assassinatos brutais, sempre contando com um comentário indignado do seu interlocutor.

Não é incomum que imagens de violência circulem e se reproduzam pelo whatsapp ou que a descrição de um rosto no jornal acarrete uma violência palpável como a do linchamento. As imagens não podem ferir – já disse Marie-José Mondzain – mas podem ser transformadas em veículo de crueldade pela sanha de audiência. Juvenília é um filme brutal (e belo) porque mostra a face da “normalidade” de uma juventude que só conhece a violência como linguagem. O plano final de um segundo cachorro, vivo, mas imóvel, olhando diretamente para a câmera é a retribuição de uma certeza: viu? Como é fácil nos fazermos reféns dessas imagens. A revolta é reservada para quem ainda se choca com a banalização do mal.

Referências Bibliográficas

BATAILLE, Georges. O erotismo. Porto Alegre: L&PM Editores, 1987.

KRISTEVA, Julia. The Sense and Non-Sense of Revolt, trans. Jeanine Herman. 2000.

MONDZAIN, Marie-José. A imagem pode matar? Lisboa: Nova Vega, 2009.

PFEFFER. Suzanne. You Killed Me First: The Cinema of Transgression. Berlin: KW. 2012.

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A voz mansa diante do oeste: First Cow

Por Gabriel Papaléo

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“the heavy leaves celebrates the cut and fill for the new road”

Outono, William Carlos Williams

Um navio enorme, como o de At Sea de Peter Hutton (para quem o filme é dedicado), atravessa a tela no primeiro plano para nos situar de que essa é uma história de chegadas e partidas que também fala do lastros históricos deixados para trás, do diálogo de sombras entre presente e passado, da investigação acidental de um encontro contemporâneo na floresta; um filme partindo da sensação da memória, de alguma forma. Dos sabores de casa que os viajantes em travessia podem ocasionalmente provar.

O apreço de Reichardt pelo cotidiano, sobretudo pelo ritual, é o que carrega o volume histórico em First Cow nos mínimos detalhes das interações dos variados coadjuvantes que vemos aqui. Um tempo se expressa pelo comportamento dos que o habitam, e em meio aos rústicos casebres e tendas do que era praticamente um país em formação, o interesse do protagonista Cookie é pela natureza. Sua exploração é silenciosa, a colheita dos ingredientes também, a pesca uma atividade paciente. A água que corre nos rios, as flores colhidas para decorar a casa; alguém que não se identifica com os delírios de dominação colonialista, enfim. É como se Jon Raymond e Reichardt estivessem interessados em contar a história de um habitante comum do que seria um faroeste, as elipses calculadas para acumular os métodos e cotidianos que assistimos, num tranquilo fluxo de dias singelos.

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E método é importante porque é através dele que entendemos também a sensação desse presente dos anos 1820, e as personalidades de Cookie, o modesto cozinheiro apresentado colhendo flores, e de King-Lu, o estrangeiro que surge nu na floresta e é acolhido com sua voz mansa e pensamento astuto. Boa parte da narrativa é concentrada na simples passagem dos dias onde Cookie e King-Lu colhem o leite da primeira vaca do título, vão fazer os bolinhos de chuva, e vendem no dia seguinte. A medida que o tempo corre, seus sonhos de futuros são assombrados pela espera do fim antecipado pelo prólogo, e Reichardt começa e termina o filme como o Sem Teto, nem Lei de Agnès Varda – uma ilustração relacionada com outro conto de solitários em travessia que precisam se virar diante da sociedade. A âncora emocional do filme, e também a bússola moral dos personagens, é a harmonia dessa amizade entre os dois, e o como se pode sobreviver no desequilíbrio proto-capitalista que motiva a construção de um assassino pelo fato banalizante de que lhe foi negado o consumo.

O comportamento e o gestual são a chave, e a algo muito frágil pairando no ar desses eventos, na qual a tênue linha da violência só pode ser combatida por um dia a dia de parcimônia. E Cookie consegue se expressar melhor no carinho no qual trata a vaquinha quando a ordenha que com qualquer relação de brutalidade que enxerga ocasionalmente – brutalidade, por assim dizer, no trato do testemunho dela frontal na briga de bar, mas também no desconforto palpável que Reichardt administra na excelente cena do clafoutis, dando toda a hostilidade velada entre o chefe inglês e os indígenas que com ele trabalham da forma econômica da qual a diretora é absoluta.

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Os hipnóticos vinte e cinco minutos finais, no coração da floresta, trazem a hostilidade e os segredos que aquela natureza então admirável guarda, e mesmo ali Cookie busca uma bela vista para admirar, na sua calada jornada. E King-Lu, homem viajado de planos futuros sem ilusões de grandiloquência, aos seus poucos bens materiais tem uma despedida diante das adversidades. O controle de ritmo, qualidade de Reichardt em todos os filmes que montou, a partir de Antiga Alegria, aqui apresenta a modulação dramática característica, mas prezando em pontuar as distinções sensoriais entre a encenação dos tempos calmos dos dois primeiros atos e o abandono ameaçador do terceiro, o tipo de tensão que a diretora trabalhara apenas em Movimentos Noturnos – e enquanto lá esse senso de perigo revelava uma distância gradativa da câmera para com os personagens, aqui essa ameaça nos aproxima de Cookie e King-Lu, cada vez mais abandonados às trevas, buscando um ao outro como fantasmas. O Oregon dos anos 1820 guarda maravilhas e segredos, e os dois se confundem em desafios diversos na câmera de Reichardt.

Quando o chefe do vilarejo diz que o bolinho de chuva de Cookie “tem sabor de Londres”, fica evidente que nenhum dos personagens de First Cow está onde nasceu, nem mesmo os indígenas que atravessam a tela, já que a dinâmica de sua terra foi radicalmente alterada pela chegada dos estrangeiros à procura do poder. À travessia são todos relegados, nesse segundo faroeste revisionista de Reichardt, depois de O Atalho. Como a Emily de lá sabia que uma vez perdida a identificação de lar precisava tomar as rédeas do próprio destino e dos que estavam sob sua responsabilidade, resta aos gentis padeiros daqui se agarrarem ao seu companheirismo em meio à surreal desproporção das vinganças dos poderosos.

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Vaga Carne: o corpo (r)existe

Por Kênia Freitas

Vozes existem
Vorazes
Pelas matérias

Com essas palavras ditas sobre uma tela preta, Vaga Carne (Grace Passô e Ricardo Alves Jr., 2019) se anuncia. Uma voz se apresenta como nossa interlocutora. Ela se declara independente das matérias que ocupa, vagando por carnes vivas e objetos inanimados. A voz nos diz não apenas que existe (indiferente à nossa capacidade de compreendê-la como algo além do humano), mas que sua existência é voraz e prazerosa. É uma existência plena pois desconectada do tempo, ilimitada pois não atrelada a nenhuma língua.

O filme estabelece um jogo de convencimento e sedução entre nós espectadores e espectadoras e essa voz: ela deseja acima de tudo nos fazer crer em sua existência. E nos convida para uma conversa:“Eu não sou um bicho, portanto não posso falar por vocês. Respeito vossas existências. Não tenho a prepotência em entendê-los. Mas vamos tentar dialogar, vamos? De diferente para diferente.” Uma conversa que portanto só pode transcorrer, como a voz sugere, em princípios de opacidades glissanianos: sem a prepotência de entender e assumindo a diferença como basilar e intransponível. Uma voz é uma voz e um bicho humano é um bicho humano. No jogo criado por Grace e Ricardo Alves Jr., a primeira provocação desse convite de conversa da voz é que façamos esse deslocamento do paradigma do humano, do orgânico, do material, do antropomórfico para o inumano, inorgânico, imaterial, disforme: “Sei também que vocês tem dificuldade de entender o que não é vocês mesmos, mas eu vou tentar explicar. Sou uma voz. Só isso. E mesmo sabendo que vocês não acreditam nesse tipo de existência, que não é humana, vim até aqui proferir sons de vossas línguas limitadas, línguas que não se decidem”.

Mas há algo no tom dessa voz.

Ela fala de dentro da matéria – e também de cima. Há um tom de avaliação superior pelos corpos, patos, café, cães, mostarda, estátuas… Às vezes, é uma manifestação de nojo ou desprezo, outras de admiração ou desejo. O marcador da nossa subalternidade como interlocutoras e interlocutores pelas palavras da voz (humanos são “egoístas”, “limitados”) complica esse jogo de convencimento e sedução. Não há encontro ou troca nessa conversa entre diferentes, mas subjugação, penetração e invasão. Nesse sentido, a escolha feita pelos diretores pela manutenção do dispositivo palco/plateia na adaptação da peça para o cinema reforça a importância de um distanciamento entre essa performance voz-e-carne-invadida e quem assiste (de fora e de dentro da narrativa).

Nesta transposição, a inscrição na encenação da primeira parte do filme de uma plateia de pessoas negras que observam de longe a relação voz-carne penetrada é fundamental para mobilizar essa distância na interlocução. A devolução do olhar desses espectadores negros é uma das pistas para nos instalarmos na desconfiança e incerteza diante do jogo proposto no filme – afinal, como a própria voz parece saber: o olhar dos outros é um bicho feroz. Farol e faca.

olhos da plateia

Parte da fruição do filme baseia-se em aceitar a sua especulatividade narrativa e inumana: vozes existem vorazes, e nossas coexistências são possíveis mas não redutíveis a uma única perspectiva. Outra parte, parece-nos estar na desconfiança dessa instância narradora e protagonista dessa voz. Voz que de saída assume uma postura de superioridade relacional. Pois é ela quem nos conduz pelos seus percursos, transformações, descobertas e afecções dentro da carne invadida. Ela é a principal ancoragem discursiva no filme, e o que nos cabe é sermos espectadores desconfiados – ainda que seduzidos pela performance. Há uma linha tênue criada pelo jogo proposto por Passô e Alves Jr. entre não refutar a existência da voz em sua diferença radical mas também não aderir de forma acrítica a sua narrativa de exploração, penetração e invasão. E aqui cabe olhar mais atentamente para a outra personagem nessa narrativa: a carne invadida.

A virada na relação voz-carne acontece quando a intrusa deseja sair e já não consegue mais. Está presa à carne. E, nesse momento, pela primeira vez o diálogo não é mais com essa espectatorialidade externa, mas internamente no amálgama carne-voz. Um acoplado que move-se de forma esquisita a princípio, que se estranha, mas permanece unido. Esse acoplado estranho voz-carne, aliás, nos lembra as figuras quebradas internamente de Corra (Get Out, Jordan Peele, 2017): filme no qual corpos negros são invadidos por subjetividades brancas. Algo não se encaixa. E aqui nos parece que o jogo inicial implode e um outro começa. Nesse momento também se desfaz a separação palco plateia e as delimitações estruturadas do espaço cênico. Os olhos das/dos artistas negras/os espreitam mais de perto. As peles se tocam. E a desconfiança segue. Agora não apenas direcionada à voz mas a esse bloco unido carne-voz, que começa talvez a delinear um corpo.

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E aqui a diferença entre carne e corpo feita por Hortense J. Spillers é crucial[1]. Para entender as fundamentações gramaticais racistas que marcam ainda hoje a existência das mulheres negras diaspóricas, Spillers volta-se para explicar o pensamento filosófico-ideológico que sustenta o processo de colonização e escravização. E olhando especificamente para o que pode separar os sujeitos cativos dos sujeitos livres nesse paradigma colonizador (ou seja, o que pode “justificar” a captura, tortura, violação, etc. de pessoas africanas), ela dirá que aos cativos cabe a ideia da carne e aos livres do corpo. Nesse sentido, a carne seria o grau zero do corpo, em outras palavras o corpo sem conceituação social, sem subjetividade e agência. É preciso considerar o corpo como carne para escravizá-lo.

É preciso considerar o corpo como carne para invadi-lo: “Essa mulher aqui é só microfone, não tem nada a dizer”, nos diz a voz.

Mas o corpo assujeitado sempre se revolta.

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A revolta desse corpo invadido é o que marca o arco final de Vaga Carne. Como o gesto de resistência possível, esse corpo não permite que a voz parta impunemente – mesmo que isso signifique o seu próprio sacrifício. Ele aprisiona e de alguma forma afecta a voz – e em algum ponto ela percebe que não quer mais partir. A carne já não é considerada pela voz um espaço vazio a ser preenchido. O ponto chave dessa virada é a descoberta de uma gestação em curso. A carne é corpo, é vitalismo, gera vida.

Então, na última rodada desse jogo conduzido por Passô e Alves Jr., a voz nos chama de volta para testemunhar o seu ato vertiginoso de olhar para o abismo de sua existência fundada em processos violentos de invasão, penetração, subjugação: “(…) se eu levanto a mão eu sou responsável. O que eu falo eu sou responsável e se nada falo eu sou responsável. E que nada tem o direito de invadir o seu corpo. E que se alguma coisa invadir o seu corpo, que lhe peça licença”. Processo sem escapatória e reconciliação, que passa pelo reconhecimento do corpo não mais como carne, mas como uma mulher negra.

Ela está aqui diante de vocês”.

Ela, assim como as vozes vorazes, existe.

[1] Spillers, Hortense J. “Mama’s Baby, Papa’s Maybe: An American Grammar Book.” Diacritics, vol. 17, no. 2, 1987, pp. 65–81.

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Como desmontar uma prisão: Revolta silenciosa em Um condenado à morte que escapou (1956), de Robert Bresson

Por Luís Flores

 

Figura 1 - prisao vista de fora

Alguém certa vez o chamou de um cineasta inclassificável e um cineasta que não envelhece. Cineasta que convida a um pensamento em contínua renovação, sempre passível de reconfiguração, de remontagem. Cineasta, aliás, que nem cineasta é, dado que recusou com veemência o termo cinema e decidiu, na esteira do amigo Jean Cocteau, a trocá-lo por cinematógrafo. “É pelo cinematógrafo que reviverá a arte que o cinema está querendo matar”. Desde cedo, Bresson assume a construção artística como uma atitude rigorosa de insubmissão e comprometimento (estético mas também político).

É conhecido o debate sobre o papel da pureza em sua obra, o poder insuperável do acaso, o sopro mágico de deus. Há um fundamento espiritual do homem, uma substância de moldes cristãos que se devora inevitavelmente em uma terra de violência e sufocamento, não sem antes desprender a derradeira consequência, difícil e sem equivalência de causas ou intenções (a imagem, por vezes, precede a explicação). A vontade humana, a paixão, também fazem parte do “tudo é graça” proclamado pelo pároco de aldeia, anúncio de uma estranha transcendência que não o é de todo, pois guarda intocada uma margem do sensual. Ainda que menos discutida, há em Bresson uma contraparte materialista feita de atenção permanente ao real, nos movimentos concretos e nas mínimas variações de tempo.

Incomum, com efeito, é flexionar essa razão bressoniana da matéria sob o prisma imponderável da revolta. Lá está ela, em todo caso, em Diário de um paroco de aldeia, com esse padre praticamente herege por levar a mensagem de Cristo demasiado a sério, ao pé da letra. Está, com rigor maior, em Um condenado à morte que escapou, talvez sua obra mais literal, na qual a via da libertação espiritual passa necessariamente pela subversão da ordem e da matéria. Nada é cartesiano, contudo, sendo que o título alternativo vem justamente recompor uma margem de imprevisibilidade: O vento sopra aonde quer. Curto-circuito irresolúvel de posições, de oposições, de relações entre o terreno e o celestial, entre o físico e o incorpóreo, entre o trabalho e a predestinação.

A sublime maldição de existir, seja no suicídio impassível de Mouchette (Mouchette), seja no olhar insondável de Balthazar (Au hasard Balthazar), repercute na redenção “por um fio” do jovem soldado francês (Um condenado). Soldado que não o é, sendo um princípio constante de Bresson tensionar as definições confortáveis de dramaturgia. Esse jovem, em todo caso, profere a magnífica frase final do filme, “se minha mãe pudesse me ver agora”, enquanto ele e Fontaine se afastam dos muros da prisão, caminhando, sem botas nem casacos, pelas ruas desertas da noite, com frio no corpo e por dentro o vigor do vento. Sim, é um baita spoiler, mas no fundo pouco importa, pois o título também o é, a cartela de abertura também o é e, a bem da verdade, se existe algo de narrável em Bresson, segue antes as vibrações imperceptíveis da alma, o tracejo das mãos e dos olhos na luz.

Figura 2 - Decisao de escaparFigura 3 - o jovem soldado francês

Certos gestos associados a diálogos, embora pareçam mínimos ou neutros, traem a presença de algo maior, uma revolta íntima e invisível que mobiliza a fuga sem, contudo, equivaler-se a ela. A revolta deve permanecer oculta, embora não velada, devido ao risco de execução sumária. Ela reflete, no entanto, uma postura mais profunda, uma incumbência impalpável sob os elementos sensíveis que o filme faz circular. A fuga, se depende da graça, ao mesmo tempo só existe no entremeio da ordem, nas brechas do sistema, nos cruzamentos que permitem desejar e partilhar. Na salvação, afinal, pois é pela porta estreita do agora que chega o Messias, segundo Benjamin. É pelas frestas que sopra o vento e, aliás, é curioso notar que os créditos do filme ressaltam, em primeiro plano, as rachaduras no concreto, provavelmente do muro da prisão. A fuga, enfim, é desejo e partilha, conta-se aos outros prisioneiros, busca-se ajuda e companhia, organiza-se, constrói-se com diligência ao se desmontar a prisão (enquanto se monta as imagens), com engajamento crítico ao se decompor sua estrutura. A questão divina, portanto, torna-se complexa: se para o padre, companheiro da prisão, o milagre ou a graça é ter a bíblia sagrada em mãos, para Fontaine é encontrar uma colher sobressalente, a fim de continuar o trabalho da escapada.

Figura 4 - colher encontrada Figura 5 - colher nas maos

Luta-se, também, do lado de fora, como membro da resistência francesa. Uma vez capturado, desobedece-se sempre que possível, em um sistema complexo de relações com objetos e pessoas. Este é outro traço distintivo das operações fílmicas de Bresson, a capacidade de conectar elementos, de reconstruir perceptos e sentidos, estabelecendo ligações singulares. A fuga, vale dizer, não é um ato individual, e talvez por isso Fontaine pareça delongá-la, buscando sem cessar um companheiro de evasão. Primeiro, tenta os amigos do lavatório. Depois Orsini, supostamente intrépido, inabalável. Depois, um detento recém-chegado, que não confia no plano. Nenhum deles aceita ou, quando aceita (Orsini), não se compromete até o fim com a estratégia. Fontaine acaba por assumir os preparativos, totalmente… Sozinho? Mas o jovem soldado francês, no último momento, será colocado em sua cela de maneira providencial, sendo que durante a execução da fuga Fontaine percebe que seria impossível ter tido êxito sem um parceiro.

Figura 6 - observar, organizar Figura 7 - Liberar as maos

Figura 8 - sondar, escutarFigura 9 - janela

Mas voltemos aos gestos distintivos da revolta. No começo, dentro do carro, a caminho da prisão, as mãos do condenado pairam sobre o seu colo, como se ele se perguntasse “o que fazer?” ou, antes, “o que fazer com estas mãos?” A resposta surge de imediato, impulsiva. A mão nervosa hesita brevemente e logo tenta abrir a maçaneta para fugir. Tentativa malograda. Ele é recapturado, espancado, castigado, aprende interiormente uma lição. A fuga malsucedida é compensada com um aumento no grau de repressão. Para não morrer, Fontaine é obrigado a fazer silêncio, fingir estar fraco. Doravante, só vai arriscar a sorte novamente com um projeto certeiro, um plano infalível de ação. Decide, portanto, organizar sua rebeldia, sistematizar o sentimento da indignação. Não é fácil dinamitar a ilha de Manhattan, como também é difícil transpor os confins da prisão fascista. Por mais justo que seja o turbilhão da revolta, da contravenção, isso não basta para desafiar a estrutura do mundo em um impulso de coragem ou aflição. Um soco no guarda de nada adiantaria. Talvez acelerasse a morte, mas não transformaria a distribuição da violência e nem perturbaria a lógica da repressão. Um plano de fuga bem arquitetado, isso poderia fazer diferença. A revolta não para de soprar em seu espírito inconquistável e, para externá-la, ele finge se submeter enquanto busca uma saída.

Figura 10 - o que fazer com as maos Figura 11 - comunicar

Na carta para a mãe, mais um ato de revolta. Por meio dela, o condenado avisa à resistência francesa que o código de comunicação foi quebrado, confrontando a tirania nazista, mesmo estando enclausurado na prisão. Há revolta, ademais, na expressão altiva que ele assume ao retirar furtivamente as algemas, sendo tomado, em suas palavras, por uma “sensação repentina de vitória”. Há revolta na mensagem motivadora com a palavra “coragem”, escrita pelas prisioneiras da ala feminina no pacote que enviam ao condenado. Há revolta quando ele, transitando clandestinamente pelos corredores, apaga a mensagem de punição na porta de uma cela, desafiando a ordem perversa exercida pelos guardas. Há revolta, sobretudo, na recusa em entregar uma mera caneta nas mãos do guarda, sob o risco de ter a cela revistada – trata-se, portanto, de uma recusa completa em obedecer, nem uma mínima concessão direta pode ser feita, apenas o imprescindível para continuar alerta e vivo.

A marca fundamental da revolta em Um condenado, afinal, não é simplesmente a decisão de escapar, mas sim o substrato indelével dessa decisão, que afeta o sistema de inscrição do corpo (que é também um regime de mise en scène) e o entrelaçamento da existência, com sua parte maldita ou secreta, proclamando em silêncio a impossibilidade de aceitar o mecanismo de confinamento imposto. Algo que se conjuga, claro, a toda uma contraparte estética, na medida em que Bresson depura o mundo com cuidado em sintagmas de cinematógrafo. Atenção aos detalhes (escassez de planos longos), proximidade com o personagem (profusão de primeiros-planos, enquadramentos rigorosos, acompanhamento estrito), reinvenção e reivindicação das relações (uso intensivo de planos/contra-planos, uso da câmera como termo de mediação entre objetos e/ou pessoas), reflexão e condensação simbólica (montagem).

Fortalecido pela graça inabalável (espírito), Fontaine confronta a des-graça da ocupação nazista, não somente um estado de morte, como também de ausência do espírito, de cerceamento absoluto de qualquer manifestação sui generis do ser. Por isso a ironia do encarregado que pergunta se ele vai tentar fugir, quando a única resposta possível é sim. Há talvez uma reverberação de Pascal, de uma aposta inominável naquilo que conduz à realização da vida. Escolher lutar, existir, agir – mesmo pela inoperatividade – é tarefa quase incontornável em um mundo cada vez mais confinado e afogado em sangue. A desobediência de Fontaine, sua insubordinação soturna, tem de certa forma um caráter ético. É uma palavra que está permanentemente com ele, anterior a qualquer enunciação, inscrita no movimento irrevogável da liberdade.

Nada o desencoraja da tarefa que assumiu antes de por os pés na prisão, mesmo quando os companheiros se mostram preocupados ou incrédulos. Nem por isso, deixam de apoiá-lo. Orsini, na cela da frente, vigia e tosse para avisar dos guardas no corredor. Cada qual cumpre o seu papel na intrincada arquitetura da predestinação, esta que Fontaine dispõe de maneira particular, destemida, quase amorosa (ouso dizer). A revolta não adquire a manifestação passional da cólera, da explosão, da reação incontida, ela forma antes uma indignação organizada, canalizada para o planejamento estratégico da fuga. Seu caráter transparece a persistência de espírito, a obstinação quase estoica, a tenacidade que nada pode aquebrantar.

A expressão mais viva de sua conduta é o trabalho incansável de des-montar a prisão, revertendo para si o que produz nesse lugar de controle e exploração (lembrando que campos de concentração nazistas forneceram amiúde mão de obra escrava para grandes corporações capitalistas). Bresson mobiliza uma reflexão minuciosa das mãos, tratando-as como membros concretos de alta significação. O que podem fazer (é a indagação inicial do primeiro-plano dentro do carro), o que representam, como transgridem? Poucos filmes mostraram o trabalho das mãos com tamanha expressividade, ampliando-as em uma legião de primeiros-planos certeiros, que vão multiplicando possibilidades e curvaturas. O diferencial em Bresson é não abstraí-las com gestos puramente simbólicos, embora a ambiguidade não deixe de estar presente. Mãos que tentam fugir do carro. Mãos que pegam o lenço para limpar ferimentos. Mãos algemadas, mãos soltas. Mãos que transmitem mensagens, escrevem letras proibidas no papel. Mãos que anseiam, esperam, fazem sinais. Mãos que varrem, que tentam se ocupar. Mãos que cultivam, que sentem o solo. Mãos que tocam o ombro em sinal de amizade. Mãos que chegam ao extremo de matar (o guarda noturno, condição para a fuga). Mãos, todas elas, com dimensões concretas, cumprindo funções específicas. Não um punho erguido contra um céu intocado, não uma utopia. Antes, um ofício paciente de insurreição.

Figura 12 - bilhete Figura 13 - mao no ombro

 Falemos, sobretudo, das mãos que trabalham, perseguindo com firmeza o fio da construção. A questão do filme pode ser, de fato, flexionada com a seguinte indagação: como utilizar os objetos que re-produzem o confinamento para alcançar seu inverso, a possibilidade de libertação. Este é, no nível discursivo, o materialismo profundo de Um condenado, inextricavelmente ligado à insubmissão do espírito e à transcendência de qualquer consenso objetivo, de todo “realismo” complacente, por assim dizer. Primeiro, é preciso compreender criticamente o mecanismo da prisão: olhar a porta, contemplá-la, descobrir, durante uma quase epifania, como desmontá-la. Depois, desviar cada utensílio para produzir outras funções. Alfinete, colher, cama, porta, travesseiro, painel, pano, arame, tudo deve ser transformado pelas mãos e convertido em ferramenta de fuga. Deve-se tomar cuidado para não denunciar o andamento do trabalho, não fazer barulho, camuflar a porta, varrer os resíduos, esperar o momento oportuno (o famoso kairós). E realizar missões de reconhecimento que permitam estudar o mecanismo carcerário, anotar os fluxos e horários, analisar a rotina, conceber um plano pormenorizado.

Figura 14 - ver, tocar Figura 15 - tocar, entender

Preservar o corpo, a lucidez, a sanidade, eis um outro ritual necessário, o cuidado de si contra o aniquilamento da subjetividade instaurado pelo mecanismo do poder (embora Bresson não flexione da mesma maneira que Foucault os tensionamentos entre corpo e alma). Conversar com o prisioneiro da cela ao lado, respirar com regularidade, olhar a janela, reinventar uma dose de vida e pertencimento nesse espaço destinado ao isolamento. Quando o jovem soldado francês entra na jogada, vale dizer, os planos do trabalho solitário de Fontaine são transformados pela presença de um segundo par de mãos. Corpos que agem em conjunto. Um condenado lembra, nesse sentido, o gesto de resistência dos prisioneiros em Um canto de amor, de Jean Genet, no qual a desobediência passa contudo pela erotização. Em ambos os casos, a arquitetura da prisão é rejeitada, em Genet pela ligação homoafetiva, em Bresson pela camaradagem proibida. Farocki, aliás, retoma os dois filmes décadas depois para problematizar a lógica midiática do controle nas prisões contemporâneas.

A maior parte do filme, portanto, mostra a subversão sorrateira do espaço da prisão, a intrincada busca da liberdade (provisória) a partir do interior de uma estrutura de fechamento. Bresson dedica sequências inteiras para mostrar as etapas do trabalho, valorizando o esforço de Fontaine e conectando-o às contingências da situação. Há uma atenção imperturbável ao real, que resulta em uma decupagem meticulosa, com enquadramentos rigorosos, elos complexos dos olhares, duração cirúrgica dos planos, foco nos objetos e nas ações. Cada plano é um respiro profundo no trabalho de reinventar o mundo, cada corte entrevê a brecha da salvação. A montagem é a oração algo profana que organiza 60.000 metros de película em 2.900 de filme, como informa João Bénard da Costa. Tudo isso atravessado por ecos elegíacos de Mozart, em trechos musicais que tensionam ainda mais os elementos da razão com a inescrutabilidade do espírito, algo que a direção de atores e a iluminação das cenas, algo aurática, reforçam.

A composição formal da obra traz um compromisso intenso do olhar. É preciso ritmo para observar, respiração para subsistir. Espírito, aliás, é ar na raiz (pneuma, anima, ruah), o que repercute no já mencionado subtítulo do filme, citação de uma frase que Jesus teria dito a Nicodemos. Tudo pode mudar a qualquer instante, o vento sopra aonde quer, tornando difícil inclusive escolher a hora certa de se agir. Note-se, uma vez mais, que o trabalho da fuga nada tem de mero produtivismo, constituindo, antes, uma reengenharia complexa de sabotagem e reversão. Assim, também o modo de filmar de Bresson é uma revolta penetrante contra a lógica espetacular do mundo das imagens, que tende hegemonicamente à alienação e à simulação.

A linha é tênue mas, no outro extremo, no regime do compulsório, do imediato, do visual, está o perigo da previsibilidade mortífera, do sistema total de captura do poder. Cansado de aguardar, Orsini arrisca escapar em plena luz do dia, sendo logo em seguida recapturado e executado. Bresson não chega sequer a mostrar esse episódio com a câmera, relegando-o ao extracampo e permanecendo coerente à readequação minimalista do visível. A fuga espetacular, impulsiva, nos é vedada, assim como o espetáculo perverso da plena satisfação visual. Cada queda, todavia, traz um novo aprendizado, sendo o fracasso de Orsini uma etapa importante para que Fontaine aprimore seu plano. Isso, somado à sua recusa em ceder.

O cinematógrafo, em certa linhagem, pode ser tomado como uma máquina para se pensar o mundo. Em Um condenado à morte que escapou, Bresson formula esse gesto no nível de uma cólera insubmissa, mas, sem se contentar com esse primeiro salto (dialético), elabora a revolta ao nível de um trabalho. Uma lição que artistas como Farocki e Straub-Huillet souberam aprender e reinventar com inteligência. “Confio nas minhas ferramentas”, diz Fontaine a certa altura. Também Bresson o poderia dizer. É nesse segundo movimento, enfim, que reside a verdadeira imbricação do pensamento crítico com a história do olhar, convocando o espectador a uma tomada de consciência e estabelecendo uma ruptura em relação à violência do mundo, que está inscrita inevitavelmente nos circuitos das imagens.

Figura 16 - Mãos

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O vulcão e a nuvem: revolta como resignação em Stromboli, de Roberto Rossellini

Por Diogo Serafim

 

Cela s’est passé. Je sais aujourd’hui saluer la beauté.

Faim, Arthur Rimbaud

No caminho para Stromboli, fez frio. Deitada ao lado do homem que aceitou casar após um breve cortejo e um beijo interrompido através de arame farpado, o personagem de Ingrid Bergman olha para o céu, contemplando o futuro incerto que começa a se aformosear à sua frente. Enquanto a Europa tenta se reconstruir com o Plano Marshall e o auxílio econômico norte americano após duas devastadoras guerras, Karin tenta esquecer os horrores que deixaram sua vida em ruínas nos últimos anos.

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“A terra é dura aqui”, lhe confessa o padre assim que ela chega na ilha, enquanto a explica como outras famílias partiram para Argentina, Estados Unidos, Austrália. O rosto de Bergman diz tudo: os sonhos que a afastam do que é material, o idealismo de toda uma nação em permanente reconstrução. Após subsequentes guerras e desastres naturais, uma terra em ruínas sonha com o novo mundo.

Stromboli opera em duas instâncias: uma intimamente ligada à mitologia da atriz Ingrid Bergman, que há menos de um ano estava filmando a obra prima Under Capricorn com Alfred Hitchcock, e outra indissociavelmente associada ao espaço no qual ela se encontra: o nome do filme é, afinal, “Stromboli, Terra de Deus”. Rossellini filma esse espaço numa lógica de contemplação ambígua, os espaços são frequentemente explorados junto com Karin que, como nós, vai descobrindo esse belo, mas implacável, mar de pedras negras, essa comunidade que vive nas ruínas causadas pela frequente atividade de um vulcão.

A chegada é imediatamente violenta. Karin perambula pelas ruínas de Stromboli e encontra uma criança. Ela sorri para o menino e tenta conversar com ele, mas ele frustra seus avanços. Ela continua a caminhar, desiludida, até encontrar um pequeno broto que nasce em um muro. Ela encontra um breve afago na planta, a qual leva até seus lábios em alguns instantes de pura graça, até que o choro de uma criança a obriga a se levantar novamente, confrontada com a dureza do ambiente na qual ela está inserida. Cada instante de prazer vem acompanhado de um de dureza, cada abraço de um golpe.

A luta de Karin não se resume à natureza, mas também à comunidade de pessoas que a circunda. Conduzir uma vida é saber dosar as suas próprias vontades com as vontades dos outros, sabendo como dispor essa balança em constante ajuste com as forças cosmológicas que regem essa tapeçaria de desejos. Vemos isso na sua tentativa em decorar a sua casa, atitude que machuca o seu marido, nostálgico pela antiga disposição dos quartos. Atitude que traz também a repulsa das mulheres da ilha, que a acusam não ter modéstia. Ou quando ela tenta convencer o padre de ajuda-la financeiramente a partir da ilha, quando seus avanços voluptuosos são rejeitados com veemência.

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A crueza com a qual Rossellini filma a pesca dos atuns, sem dúvida entre as sequências mais avassaladoras da história do cinema em sua fusão de realismo ríspido e sua precisa estilização estética (que definitivamente serviu de inspiração para uma sequência de estetas que vieram posteriormente como Vittorio De Seta, Paulo Rocha, Jean Daniel-Pollet) traz mais uma vez essa clivagem ontológica na figura perfeitamente modulada de Karin. O mais impressionante em Stromboli é como o percurso de Karin é tão vividamente sentido por nós, tão real e palpável em toda a sua violenta inconstância, tendo como principal indicador o rosto de Bergman, de uma expressividade e honestidade inefáveis, rosto que consegue extrair momentos de pura graça no meio do desespero mais destilado e vice-versa.

A cena do furão que ataca o coelho opera na mesma lógica e, apesar de supostamente menos impactante visualmente, talvez seja ainda mais efetiva: assim como os pescadores que rezaram em agradecimento após a violenta pesca de atuns, o marido de Karin sorri para a naturalidade na qual o coelho é morto, aceitando a vida tal como ela lhe é apresentada, enquanto ela chora em prantos, recusando a brutalidade da cena.

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Stromboli abre com a Epístola de São Paulo aos romanos 10, versículo 20: “Fui achado pelos que não me buscavam; manifestei-me aos que não perguntavam por mim”. Seguindo essa lógica, na qual Deus se apresenta apenas àqueles que não o procuram ativamente, o sistema que ordena nossos destinos está intimamente associado à noção de um universo cuja organização cosmológica possui uma orientação anti-teleológica. Não é que na sua tapeçaria causal tudo aconteça por casualidade, mas sobretudo que nela tudo acontece nas lacunas: aquilo que não vejo, o que não imagino, o que me escapou, é sempre o que acabo por encontrar. Minhas projeções futuras são sempre negadas pois meu destino é sempre alheio a mim mesmo. Se imagino um resultado, sou frustrado por algo maior que eu. O livre arbítrio é sempre deglutido pelo inesperado.

Não seria nenhum exagero rotular Stromboli como o filme mais religioso de Rossellini. O martírio como principal força motriz da vida, a dureza da carne, a violência da matéria, e a liberdade da ideia, a resiliência do espírito. A poeira do vulcão, a aridez do ar, a dureza da terra, a íngreme subida, o desespero da respiração. Ela desmaia. Quando acorda com o sol em seu rosto, ela percebe a beleza que a circunda e o mistério de toda a existência. O vento no seu rosto, alterando o trajeto das suas lágrimas, a criança no seu ventre, e o Deus silencioso que escuta o seu pranto por ajuda.

O confronto final com a matéria é também o confronto final com a ideia. A única revolta possível contra o mundo é a resignação. Ajoelhado na terra negra, eu testemunho no céu a liberdade dos pássaros, abraço a continuidade do meu sangue, aceito o choro da criança no meu ventre como o meu próprio e, em um derradeiro grito angustiado, imploro por força para resistir ao peso da vida.

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Que os jovens destruam a cidade – Funeral das Rosas

Por Gabriel Papaléo

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“Quanto a espadas, as ornadas com joias.”

Sei Shônagon, O Livro do Travesseiro (1002).

Faz vinte e três anos que as bombas foram jogadas em Hiroshima e Nagasaki, e com isso o milagre econômico patrocinado pelos Estados Unidos no pós-bomba já está enraizado o suficiente no cotidiano japonês. O ocidente está instalado em Tóquio, novas identidades estão fervendo, e o discurso dos jovens complexifica – estaria a destruição do passado à serviço de um ideal estrangeiro ou a um legítimo descontentamento com o histórico social de comportamentos que o país forjou para si? Um ano depois da Tóquio retratada em Funeral das Rosas, o sociólogo Toyomasa Fuse disse sobre a suposta radicalidade dos protestos juvenis: “Se estudantes não tomassem partido e protestassem, então a universidade e a sociedade seriam as vítimas da complacência e prisioneiros do anacronismo.”¹

Em Funeral das Rosas, acompanhamos Eddie, jovem cuja identidade marginal goza com o homem cis de negócios, e que vive a noite buscando suas utopias particulares. E o que os os corpos vivos de Eddie e suas amigas tem a dizer sobre essa revolta que passa por um psicológico, por uma formação de identidade, antes de qualquer âmbito socio-político racional o suficiente para se organizar e digladiar contra a moral deturpada do presente?

Na televisão, uma epidemia dos narcóticos é anunciada, no tom sóbrio e contido que é o oposto ao que somos apresentados na personalidade dos rostos que acompanhamos aqui; para Matsumoto o confronto é sobretudo uma questão comportamental e estética. Os jovens buscam uma organização social que possa se propor como antídoto desse apocalipse cultural dos bons costumes, da binariedade, até mesmo de convenções cinematográficas de gêneros que mestres japoneses como Mizoguchi, Naruse e Ozu consagraram. O cineasta “underground” (“É de underground que chamam, né?”, pergunta uma das integrantes da trupe) que se fantasia de Che Guevara e mantém o poster dos Beatles pré-separação na parede, filma as ruas, filma os corpos, procura por pulsões e não necessariamente significados. Quando alguém diz que “não entendeu”, o personagem questiona se essa pessoa “sentiu alguma coisa”, e o como isso que mais importa para ele.

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Nesse, um dos muitos comentários diretos sobre estéticas e poéticas cinematográficas, ressalta o círculo dos jovens cineastas prontos para abolir uma linguagem e tentar intuir novas, como na citação a Mekas (ou Monas Jekas, como dizem no filme). O gesto do gênero e da identidade criando uma dimensão social paralela, de convívio apenas de jovens, que acessam o mundo dos mais velhos apenas para tirar seu sustento. E como esse tipo de organização social se propõe como antídoto do apocalipse cultural? As cenas de música, de tesão entre os personagens, vivos como a câmera de Matsumoto os seguindo e sendo intrusa na coreografia anárquica da dança e do contato, buscam colocar no espectador quais são as entranhas e atrações que regem aquelas pessoas, interessadas na liberdade, no prazer, mas sobretudo numa exploração política do urbano utópico que criaram para si – e do distópico que ocasionalmente encaram, como nas cenas cômicas de briga que Matsumoto faz questão de ressaltar como farsescas, à medida que para Eddie não é o grande confronto que a atormenta, seja com as mulheres cis que provocam ela e suas amigas na rua, ou mesmo no confronto com Leda na boate; sua dor é na busca pelo contato, pelo amor, pela aceitação simbólica da figura masculina que a mantém numa relação de abuso. É quando volta ao mundo dos jovens, nas festas conduzidas pelas drogas e pelo rock, que vive sem rodeios, a profanação dando forma ao dia a dia – ou à noite, no caso desse filme.

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Aos adultos, restam as máscaras, a ideia do visual como blindagem, e não expressão, à cidade. Algo corriqueiro no cinema de Mizoguchi, como tantos os outros diálogos que Matsumoto propõe aqui – e que discutirei mais tarde -, é a presença do teatro, das peças, do noh – a prática artística japonesa da dança de máscaras. O palco costumava ser o lugar desse espetáculo das máscaras, mas em Funeral das Rosas elas aparecem nos museus, sacralizadas, na parede, inatingíveis, castradas como monumentos. O retrato da solidão é bem visível na cena na qual Eddie se vê no chão do museu, a voz impessoal narrando a importância das obras ao redor, numa distância que nada conversa com a visceralidade do seu contato em outros ambientes. As máscaras que os homens usam para se esconder socialmente agora são simbólicas, mais estranhas, difusas, difíceis de assimilar. Essa impossibilidade da assimilação dos conflitos entre o que se sabe sobre Bem e Mal nos contos morais de Mizoguchi, um humanista dos ferrenhos e que sabia contornar com esperança nas pessoas as crueldades que filmava, se torna quase impossível de ser exercida na ebulição política do final dos anos 60. O ritual é a instituição da qual Mizoguchi retratava em seus filmes a ponto de organizá-los por vezes inteiro em torno da cerimônia como em 47 Ronin (1942) e Crisântemos Tardios (1939), histórias que terminam com gestos maiores que a vida, que atravessam o simbólico até quase chegar a conexão metafísica entre humanos e seus sentimentos. Como falar sobre ele num cotidiano vivo de mudança, de contemporaneidade, que quase se coloca como anti-ritual?

A entrevista de Yoshishige Yoshida coordenada por Pascal Bonitzer e Michel Delahaye para a Cahiers du Cinema em 1970 busca traçar algo dessa relação com os monumentos e cerimônias. Yoshida não cita Funeral das Rosas diretamente, mas filmes seus como Eros + Massacre (1970), também da chamada Nova Onda Japonesa, buscam tratar dessa relação explosiva entre passado e presente na cultura japonesa cinematográfica – de forma mais frontal politicamente, digamos. Em certa passagem, Yoshida fala que “De acordo com ele (Mizoguchi), a política é apenas um dos elementos que determinam a particularidade de um período histórico, e ele buscava ir até o cerne absoluto da situação. Mas nossa situação é mais complexa do que a de seu tempo; mesmo que alguém queira ter essa mesma visão, não seria possível chegar ao ‘cerne’ das coisas. No tempo dele era muito clara a distinção entre opressores e oprimidos, entre o poder e o povo. Portanto, o realismo de Mizoguchi era completamente eficaz. Ele era perfeito, mas isso não se aplicaria ao nosso tempo.”.

É uma distinção direta dessas novas formas contemporâneas com mais vertentes, mais estranhas, com ramificações complexificadas – o que embaça a visão das coisas, as torna mais plurais mas também mais suscetíveis aos enganos e ilusões. Matsumoto, como Yoshida, sabe desse estado delicado das novas verdades que são estabelecidas, das reconfigurações perigosas do poder e o como as resistências também devem ser debatidas, complexificadas. Isso passa, novamente, pelo plano político, estético, e comportamental.

Nessa inquietação da pluralidade que chega, Matsumoto recorre a dispositivos dos mais diversos para retratar a inquietude geracional do jovem não-hegemônico no Japão dos anos 60. O confronto contra o estado e tudo o que ele representa de normatividade, acessando o dispositivo do cinema direto nas entrevistas como ética etnográfica de ouvir aquelas pessoas que não são retratadas, porque a cidade e a cultura as consideram apêndices, contos não-requisitados. O amálgama estético de Matsumoto passa dos experimentos com textura ressaltada na película, o grão violento na imagem, ao contraste do negativo no qual uma cena de amor é filmada, chegando até as fotos que interrompem a narrativa volta e meia, de poses estilizadas surgindo como iconográficos marcantes dessa performance social que acomete todos os personagens, dos figurinos contemporâneos de Eddie aos ternos sóbrios dos homens que frequentam a casa gerenciada por Leda – não por acaso nomeada Genet, aliás, em homenagem ao escritor de Querelle. A furiosa tentativa do diretor de desvelar da narrativa clássica a linearidade (temporal e estética) assalta pela harmonia, surpreendente, por conta da fluidez na qual a trama de Funeral das Rosas se desenrola. Mesmo que sempre volte a Eddie, a bússola emocional do filme, a câmera procura outras histórias ali no meio como ampliação ideológica do tema no qual discute, como uma investigação.

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Funeral das Rosas já é estabelecido como um filme mais livre de dispositivos, então não há estranhamento quando surgem as entrevistas à cinema direto. Pelas perguntas curiosas, às vezes provocativas, às vezes desajeitadas (talvez propositalmente), Matsumoto extrai daqueles personagens uma interpretação dos próprios atores sobre suas ações, não apenas como um aceno metalinguístico como se tornou corriqueiro em uma parte do cinema contemporâneo, mas sim como uma proposta ética política de discussão, de dialética – algo trabalhado por Jean-Luc Godard em O Demônio das Onze Horas (1965), aliás, nos breves comentários sobre a guerra do Vietnã. A falta de necessidade de Leda afirmar a identidade alheia, diante das perguntas de Matsumoto, demonstra esse interesse social maior em expressar suas crenças e sua sexualidade que de fato propor um julgamento – ou organização – dessa corrente de pensamento do desejo. Existe o mistério dos olhares e da atração dos corpos, e interessa a Leda, como a Eddie, que ele seja respeitado.

Pîta, a estrela que interpreta Eddie, também é perguntada sobre sua personagem. O que elas se assemelham? O que escondem? Eddie não se furta a dizer o quanto ambas são parecidas, e “tirando a questão do incesto” são quase a mesma pessoa. Ambas sabem da performance diante das câmeras e o quanto ela reflete essa postura social de encarar na aparência uma articulação estética de identidade – e Matsumoto é feliz ao entrecortar Eddie se montando e o diretor experimental deixando sua barba postiça descolar, evidenciando que a performance visual está longe de ser uma questão de um gênero específico, e da transexualidade. A atuação cisgênero é real e violenta, não menos marcada que a de Eddie e Leda, apenas mais normalizada pela sociedade.

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E no que é a normatização social o mundo dos homens japoneses aparece, sujo pelo dinheiro e pelo trabalho, como representante da manutenção. Matsumoto estrutura o filme em volta do triângulo amoroso entre Eddie, Leda e Gonda, e a dinâmica de poder é sentida desde a cena pré-créditos, na qual Eddie vê Leda na rua. A trama do triângulo amoroso aparece a revelar essa dinâmica perversa do homem que se faz valer do carinho de duas pessoas para as manter sob controle, sempre no pêndulo desarranjado do prazer cuja comunicação passa pela desonestidade da mentira para suas duas amantes. Tanto Leda quanto Eddie sentem o desconforto da situação e o expressa na rivalidade entre si, seja estética, de idades, ou geracional. O ideário da geisha “clássica” aparece cumprido por Leda, com seu quimono e seus rituais, os passos comedidos, a suposta elegância e subserviência. À Eddie é ressaltado o ícone do presente, das roupas estilosas contemporâneas, do cabelo curto, da maquiagem estilizada, do flanar nas ruas, da agressividade e do movimento jovem. Que Matsumoto coloque essas duas personagens, mulheres da noite, para se confrontar aparece como comentário dessa herança dos contos que Kenji Mizoguchi retratava quando se dispunha a falar sobre as agruras das mulheres preteridas pela sociedade, frequentemente prostitutas. Mesmo com toda a roupagem contemporânea, de quem forja identidades para si como forma de assassinar a facadas a disposição de comportamentos japoneses, existe nessas relações e nos homens que dominam os meios (no caso, a boate, e também a atenção das duas personagens) uma perversidade de controle, evidência de uma profunda raiz distorcida de lógica familiar. Tanto Eddie quanto Leda são solitárias às suas maneiras, e usam das identidades para burlar essa solidão as quais foram relegadas por um mundo corroído. É quase desolador quando nos vemos diante de uma reforma do mito de Édipo, porque se percebe que a sociedade guarda para a dinâmica familiar a crueldade final.

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E nessa luta constante pelo desejo, por achar no mundo o prazer que lhe foi negado pelo abraço a uma identidade marginal, não existe frustração maior para Eddie que se ver vítima do destino, de estar refém do arquétipo condenado que repete o mito de Édipo, sem conseguir escapar das tragédias antigas. É como se o clássico desse um jeito de espremer as entranhas do novo, cuja herança familiar tão negada vem com sua força arrasadora para impedir a revolução. A negligência com a família se alastra para seus outros círculos sociais, o abandono como punição moral (não moralista, vale ressaltar) pelo alcance assustador das ações desses homens poderosos em busca do gozo. Não é que Matsumoto condene Eddie pelo assassinato simbólico do pai e literal da mãe, nem encara como punição dos astros, do acaso, do destino que seja, o caos do final; ao diretor interessa o desarranjo da família como catalisador da mudança, do pai que colhe o que plantou porque esparramava a falta de ética em todas as relações em que entrava. A raíz da família e do trabalho são podres porque partem da mesma disposição desses homens que foram ensinados a vocação do poder. A questão é que essa vocação gera uma covardia na performance social, uma tentativa de contenção e manutenção, a História não transcorrendo porque lhe foi tolhida a destruição dos signos e rearranjo das coisas, a transgressão e as novas buscas dos jovens, a revolução se formos simplificar. As pontes culturais entre um Japão de 1968 e de um Japão do século X, digamos, são infinitas, difíceis de interpretar e por vezes de catalogar, e o que a juventude se presta a buscar dos antigos, ao renegá-los até os ossos, às vezes são apenas a ideia de que é preciso se ornamentar na hora de lutar – porque as jóias e as espadas falam da importância de se colocar diante do desafio.

À cidade de Tóquio, retratada pelas vielas e pela noite e pela agressividade, resta a destruição, um fim do mundo anunciado pelo próprio filme ao se voltar para uma das paisagens conhecidas da metrópole. Se não existe espaço para essas pessoas então que o país afunde logo de uma vez, afinal é de decisão dos jovens a permanência ou aniquilação do presente.

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Referências:

¹ – https://www.japantimes.co.jp/culture/2017/11/19/arts/1968-year-japan-truly-raised-voice/

² – https://www.diagonalthoughts.com/?p=2248

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Marginal não filma: Ladrões de Cinema

Por Pedro Tavares

“Vejam vocês que desplante. Como se cinema fosse coisa de marginais (…) porque marginal não filma”.

Apresentador de TV em Ladrões de Cinema

Eis a faceta do cinema brasileiro: estar à margem. Fernando Coni Campos segue à margem inclusive na memória do cinema brasileiro com seu Ladrões de Cinema, um filme-epítome da natureza do cinema nacional, enquanto corre em paralelo uma análise espelhada da história do país. André Bazin ao se debruçar na obra de Henri-Georges Clouzot no seu célebre O que é o cinema? afirma que o cineasta francês considerava somente a criação artística como elemento espetacular autêntico, isto é, cinematográfico, porque é essencialmente temporal.[1] Se homens que roubam o material de cineastas americanos e resolvem fazer seu próprio filme na favela – ou seja, a história que o “asfalto” não se interessa em assistir por exibir suas chagas morais – o desplante é o simples ato de co-existir temporalmente com aqueles que estão no lado do privilégio, e que Ladrões de Cinema ignora solenemente.

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É notório que em Ladrões de Cinema a revolta se dá na junção do olhar de Deus, como se os personagens estivessem geograficamente acima daqueles que Coni Campos alveja.  Não é um tipo de obra de vanguarda e de crítica às imagens produzidas por estes homens ou a construção de imagens ideológicas. Lhe interessa subverter a regra básica da subtração urbana: não se rouba ou mata para vender e sim para dar um novo sentido ao dispositivo. A história de revolta de Tiradentes, o filme dentro do filme em paralelo ao processo de filmagem, também exibe as intromissões libertárias dos acontecimentos históricos. Os tais ladrões de cinema dão a esmola obrigatória que os americanos nos solicitam. Enquanto se filma um processo de descoberta dos moradores-atores, o cinema, sua história e mercado são fuzilados ou homenageados por Coni Campos.

Seja pelo português que alinha relações de poder com esta equipe de cinema ou pela simples postura do “diretor” que zomba dos filmes de arte nos primeiros minutos de filme, Brasil e cinema se misturam numa amálgama muito instigante em seu processo que elimina qualquer interação com a marginalidade desses personagens – o julgar está à mercê das duas colunas morais da sociedade: a TV e a polícia. Para Coni Campos a chave está em como esta equipe sairá das arapucas criadas pelo “fazer”, de uma naturalidade impregnada na cultura de sobrevivência do cinema brasileiro sem qualquer abordagem sobre um possível estranhamento às nossas condições precárias.

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Este processo é como um simples curso da concepção – e aqui vale notar como Ladrões de Cinema é completamente ignorado em cursos de cinema, que inclinam-se ao dízimo dos cowboys que Coni Campos ilustra. É a pura e inconsequente tanatopolítica. Vai da ideia na mesa do bar, do roteiro que é uma negociata, à produção que é um eterno exercício de criatividade e de aprendizado. Na mesma medida em que celebra o cinema, sua formulação como um norte de reflexões a respeito da sociedade, Coni Campos pega o caminho inverso e celebra as reflexões como essência deste tipo de arte. Coni Campos optou por não construir imagens de destruição e sim, à moda antiga, narrar a destruição.

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E este caminho segue pelas referências ao cinema novo, dando a ele uma sequência inteira ou pela a quebra total do silêncio entre campo e contracampo numa sugestão de diálogo e uma nova visão destes “marginais”. A visão antagônica é preponderante e corta todo o filme como pensamento alienado de uma classe invisível à câmera, mas que motiva a ação geral de Ladrões de Cinema. A história do Brasil não reside numa persona específica e sim num pensamento geral. Para um país que investe tanto em cinebiografias, é intrigante que este filme continue como um retrato muito atual sobre o país que inibe qualquer criação artística e consequente circulação fora do âmbito aristocrático.

[1] Idem.

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