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Ukamau e Sangue do Condor – A nação clandestina de Jorge Sanjinés

Por Bruno Pires

 Jorge Sanjinés no início dos anos 60 começa a produzir uma série de filmes dentro de um coletivo tardiamente denomidado Ukamau, que buscava um cinema de identidade nacional boliviana por via da cultura andina. Para o grupo, era menos importante circular nos festivais europeus que viajar o país exibindo seus filmes em zonas mineiras e comunidades indígenas, recebendo um parecer daqueles que eram os reais protagonistas de suas histórias. O que nasce de uma vontade de se fazer “un cine junto al Pueblo” tornou-se uma das mais eficientes formas de livrar-se de amarras eurocêntricas e produzir algumas das obras mais peculiares na filmografia mundial. O índio no cinema latino-americano deixa de ser Dolores del Río, estrela de Hollywood, e converte-se em Benedicta Huanca, aimará cujo cotidiano e luta é o mesmo que o exibido em Ukamau (1966) e Sangue do Condor (1969).

Os primeiros minutos de Ukamau, primeiro longa-metragem de Sanjinés, revelam a forte integração entre um povo e sua terra, relação mais primordial da história humana. Sanjinés faz questão de enfatizar a beleza estética da idílica Ilha do Sol no lago Titicaca, lar do protagonista Andrés e sua esposa Sabina, um local livre de estragos que resiste à cultura ocidental. Desde essas primeiras sequências há o desejo do diretor em finalmente revelar ao mundo e à Bolívia o povo indígena, que, apesar de maioria, segue vivendo como uma nação clandestina dentro de seu próprio território, incapaz de serem reconhecidos ali dentro. O caráter documental do filme é quebrado assim que esse equilíbrio é rompido: Sabina, numa tentativa de estupro, é assassinada pelo mestiço Ramos enquanto Andrés está fora de casa, o que incentiva a vingança por parte de seu marido.

Este maniqueísmo entre o indígena e aquele influenciado pela cultura branca é o que dita o rumo do filme: a vida comunitária andina em oposição ao individualismo de Ramos que deflagra um bom-mocismo por parte do protagonista. Apesar de já próximo da vivência andina, Ukamau ainda é muito próximo dos padrões de um faroeste, principalmente por uma visão dicotômica radical que se traduz no anti-heroico Andrés adiando sua revanche contra Ramos, que passa toda a duração do longa vivendo na ansiedade de ser pego pelo índio. Apesar de já haverem esforços de integrar o indígena à cinematografia nacional, ainda há forte colonialismos no olhar de Sanjinés, o que se deve principalmente à expressão de toda uma comunidade em um único personagem, algo que será gradativamente abandonado em sua carreira, havendo cada vez mais participação do próprio povo em tela. Ukamau segue sendo a vingança de um homem só, e ao individualismo não resta espaço na filmografia de Sanjinés, refletido nos dois últimos planos do filme, um primeiríssimo de Andrés após assassinar Ramos, e um geral, que será muito mais frequente dali em diante.

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Sangue do Condor, segundo longa do diretor, é conduzido em duas narrativas paralelas dividas por uma cena: a tentativa de assassinato do quíchua Ignácio, alvejado pela polícia. A trama relata o porquê dele ter sido alvo dos tiros, e também a tentativa de salvá-lo vinda de seu irmão Sixto, que hoje mora em La Paz, trabalha em uma fábrica e renega a cultura indígena. Apesar de ser avesso às suas raízes, é incapaz de escondê-las, como na sua primeira aparição onde é chamado de índio bruto por um homem branco e prontamente rebate ¡no soy indio, carajo!”. O decorrer de sua história será estritamente ligada ao desencanto com o mundo ocidental, a impossibilidade de conseguir dinheiro para operação do irmão, e a inevitável revolta contra sua defasada utopia.

A ideia de Sangue do Condor surgiu devido uma série de denúncias contra o Corpo de Paz, agência federal criada pelo presidente Kennedy para auxiliar países do terceiro mundo. Segundo muitos bolivianos, aqueles americanos estavam há quase uma década no país esterilizando indígenas, fato comprovado quatro anos após o lançamento do filme, que, segundo Sanjinés, foi forte testemunho da agência falsa-humanitária dos ianques. Essa história foi traduzida na rebelião de Ignácio e sua vila contra os gringos, fato que levou à sua quase morte.

Sendo real ou não, a tentativa de apagar os índios da história do país era uma realidade, fruto de um neocolonialismo reforçado durante os anos 60, cujo plano era embranquecer o país racial e culturalmente. Não por menos, as duas cartelas que abrem o filme são uma fala de um oficial nazista sobre a inferioridade e irrelevância dos ucranianos, e o discurso de um cientista americano sobre a diferença racial entre as nações mais ricas e pobres, e como eventualmente o terceiro mundo será devorado pelos contingentes eurocêntricos.

Por mais que esse choque entre primeiro e terceiro mundo já esteja presente nos projetos anteriores de Sanjinés, Sangue do Condor finalmente incorpora o espírito comunitário presente nas culturas indígenas, espelhando a aldeia de Ignácio, que investiga e pune os americanos infiltrados, ao compromisso de Sixto, em busca de alguém para doar sangue ao seu irmão. Além do paralelismo espaço e temporal entre o antes e depois do tiro que Ignácio recebeu, há também as diferentes opressões no campo e na cidade, como o falso messianismo americano trazendo más intenções, e o enfrentamento de Sixto diante à soberba e descaso que a burguesia da metrópole oferece, incapaz de sensibilizar-se com a situação de seu irmão.

Essas duas narrativas apesar de distintas, completam-se dialeticamente: enquanto o corpo político da comunidade se mobiliza juntamente para rebelar-se e culmina na tragédia de apenas um personagem, a jornada solitária de Sixto se completa em seu desprendimento à vida urbana e o regresso às suas origens, a comunidade, onde junto de seus camaradas ergue seu fuzil na esperança de uma revolução onde eles sejam os protagonistas.

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CINEMA E REVOLTA

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A LEI DOS DEPRAVADOS
João Pedro Faro

YOU KILLED ME FIRST/JUVENÍLIA: DOIS FILMES PARA TODA A FAMÍLIA
Natália Reis

MARGINAL NÃO FILMA: LADRÕES DE CINEMA
Pedro Tavares

O COMPLÔ DOS INOCENTES – NOTAS IRRESPONSÁVEIS SOBRE A CRIANÇA NO CINEMA
Bernardo Oliveira

QUE OS JOVENS DESTRUAM A CIDADE – FUNERAL DAS ROSAS
Gabriel Papaléo

COMO DESMONTAR UMA PRISAO: REVOLTA SILENCIOSA EM UM CONDENADO À MORTE ESCAPOU DE ROBERT BRESSON
Luís Flores

ENTREVISTA: Luiz Pretti
Pedro Tavares

CRIANÇA SOLITÁRIA: A BALADA DE LEONARDO FAVIO
Daniel Dalpizzolo

A REVOLTA DAS OPACIDADES, OU O POP E A ULTRAVIOLÊNCIA NA VIRADA DO MILÊNIO JAPONÊS
João Lucas Pedrosa

CONTRA O SILÊNCIO DO AMOR, A POESIA E A REVOLTA: UM OLHAR SOBRE TONGUES UNTIED DE MARLON RIGGS
Chico Torres

VAGA CARNE: O CORPO (R)EXISTE
Kênia Freitas

UKAMAU E SANGUE DO CONDOR – A NAÇÃO CLANDESTINA DE JORGE SANJINÉS
Bruno Pires

A VOZ MANSA DIANTE DO OESTE: FIRST COW
Gabriel Papaléo

O VULCÃO E A NUVEM: REVOLTA COMO RESIGNAÇÃO EM STROMBOLI DE ROBERTO ROSSELLINI
Diogo Serafim

ANOTAÇÕES SOBRE O GRAU ZERO DA DIFERENÇA: O CINEMA DE APICHATPONG WEERASETHAKUL E CURADORIA COMO CURA (E COMO ISSO TUDO SE APROXIMA DE UMA IDEIA DE REVOLTA)
Geo Abreu

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You Killed Me First/Juvenília: Dois filmes para toda a família

Por Natália Reis

“Let’s make a movie where we would imagine a incredible world after death, a movie that would be so wild, so sexy, so beautiful and provocative that it would make everybody wanna rush to their death.”

(David Wojnarowicz)

“A luta e a revolta implicam sempre uma certa dose de esperança”

(Paraísos Artificiais, Baudelaire)

A crítica de Eric Rohmer para “Rebel Without a Cause” na Cahiers du Cinema de maio de 1956 começa com a insatisfação com que recebia a versão francesa do título: “La Fureur de Vivre” - A fúria de viver. Para Rohmer, o título não significava nada, uma vez que “Rebel Without a Cause” seria muito mais “contido e apropriado”, por “não apresentar a chave do trabalho, mas não deixar de iluminar adequadamente o objetivo do autor: Rebelde sem Causa, a causa pela qual se luta.”. Por aqui, o filme de Nicholas Ray virou “Juventude Transviada” o que poderia nos levar, num momento de introspecção, a pensar em caminhos pré-determinados e em automóveis que teimam em sair da curva.

A causa pela qual se luta parece ser o primeiro e derradeiro tópico de análise da rebeldia juvenil. Se por um lado a cantora Lilian em 78 justificava-a com a falta de amor materno e paterno (“eu sou rebelde porque o mundo quis assim…”), a imagem de jovens parisienses bem vividos e criados arremessando pedras na polícia em 68 apresenta um outro lado da mesma moeda. Uma ideia interessante proposta por Julia Kristeva é a de conceber a revolta como uma palavra que possui “plasticidade”, que pode ser percebida pela potencialidade de transitar entre tempo e espaço e movimento –  pelo mundo do sentido (sense) e do não-sentido (non-sense).

O cinema, como outras artes, oferece um espaço propício para se rebelar. Sem contenções, um desejo sorrateiro contamina a linguagem e por sorte vai atingir em cheio quem assume a posição de espectador. Do Teatro da Crueldade aos Acionistas Vienenses, o choque parece ser uma forma súbita de arrebatamento. A ideia de transgressão e crueldade deve ser inserida aqui como prolongamento de um gesto de revolta, que se irradia em direção à realidade com a intenção de acessá-la e modificá-la – sem necessariamente ser posta como produto dela. “Quem hoje foi capaz de registrar qualquer coisa que chegue até nós como fato, sem ferir profundamente a imagem?”, o artista Francis Bacon diz olhando para sua obra. E quem foi capaz de registrar na imagem ferida a revolta contra a realidade de portas fechadas em espaços e momentos hostis?

Seguem dois exemplos de cinema insubordinado, transgressivo e cruel.

Cinema of Transgression

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Em 1985 o Sonic Youth lançava seu segundo álbum, Bad Moon Rising. O título, tirado da música de 1969 do Creedence Clearwater Revival, fazia alusão aos agouros que pairam sobre a história da América, numa linha temporal que percorre desde os seus primórdios  – o genocídio indígena  –  ao fim dos anos 60  – os assassinatos cometidos pela família Manson e o fatídico concerto dos Rolling Stones em Altamont ,  o fim da utopia hippie. Bad Moon Rising de certa forma concatenou esses acontecimentos a uma ideia de profanação do american dream, o vazio moral que guia a nação ao estado de catatonia num país amaldiçoado.

“Estamos vivendo aos pedaços/Eu quero viver em paz/A sociedade é um buraco”, a voz derretida de Thurston Moore profere em “Society is a Hole”, enquanto os corpos dilacerados dos integrantes da banda são costurados com imagens das manifestações flower power pelo fim da guerra do Vietnã no videoclipe de “Death Valley 69”, faixa que contou com a participação de Lydia Lunch e direção de Richard Kern, figuras conhecidas do underground nova-iorquino nos anos 80 e estrelas em ascensão do chamado “Cinema of Transgression”.

Como o álbum do Sonic Youth, o “Cinema of Transgression” desponta de um sentimento de revolta com modelos sociais fracassados. Jovens adultos em sua maioria nascidos no seio de famílias quebradas, sem perspectivas de futuro profissional e frustrados com a impossibilidade de inserção no âmbito cinematográfico experimental de Nova Iorque (que até o final dos anos 70 se dividia entre os expoentes do cinema estrutural como Michael Snow, “pais” e “avós” do camp como John Waters e os irmãos Kuchar e a geração relativamente nova do No-Wave como Vivienne Dick e Beth e Scott B.) buscavam através do choque e da abjeção uma via alternativa para os impulsos criativos que constantemente eram relegados às margens da marginalidade.

Crises familiares, violência policial, sexo explícito, mutilações (e sexo com mutilados), canibalismo, abuso de substâncias ilícitas, sadomasoquismo e outros fetiches tidos como perversões perpassavam os trabalhos de Nick Zedd, Richard Kern, Tessa Hugues-Freeland, Casandra Stark, David Wojnarowicz, Tommy Turner e todos aqueles que reivindicavam pra si o signo da transgressão e compartilhavam da intenção de ferir imagem e espectador do mesmo modo, tomar de assalto um engajamento que supostamente havia se tornado rarefeito pelo academicismo de vanguardas já estabelecidas.

You Killed Me First (1985)

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Uma família ordinária de classe média composta pela figura paterna dominante (David Wojnarowicz), uma mãe histérica (Karen Finley) e duas irmãs de personalidades totalmente opostas encena uma esquete trágica: Elizabeth, a filha mais nova, (interpretada por Lung Leg, atriz-performer-mostrenga do Cinema of Transgression) sofre por não conseguir se encaixar no retrato domiciliar enquanto a irmã mais velha (Jessica Craig-Martin) replica zumbificada o comportamento dos pais. Elizabeth, ou Casandra, como exige ser chamada, entra em colapso e mata todos os membros da família.

You Killed Me First (1985), curta em 8mm de Richard Kern, foi inicialmente concebido e realizado como instalação numa pequena galeria no East Village. Na obra, três manequins dispostos ao redor da mesa de jantar de ação de graças fazem a vez de vítimas de um assassinato brutal. Um crucifixo dependurado, sangue e comida misturados numa massa vermelha uniforme que escorre pelas paredes e pela toalha da mesa integram uma espécie de tableau vivant que deve ser observado através de uma janela à distância.

Ao partir da instalação para a imagem em movimento, Kern dobra a aposta no voyeurismo, revelando o que a rotina familiar pode esconder nas suas ranhuras. O filme não lida com um tipo de abuso perverso (vide Family Tyranny/Cultural Soup de Paul McCarthy e Mike Kelley). Com exceção da decapitação do coelho de estimação da filha mais nova, as cenas curtas, parte flashback parte apresentação dos possíveis motivos do crime, chegam a ser quase infantis: a mãe chora e reza o tempo inteiro, a irmã mais velha é irritantemente o que os pais esperam que seja e o patriarca brinca com a arma recém-adquirida apontando para a cabeça da esposa. A infantilidade e o exagero flutuam ao redor de Lung Leg enquanto ela parece atingir uma espécie de modo berserker: os olhos arregalados e fulminantes, rosnados, a voz engasgando as palavras “eu odeio vocês”.

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Para além de uma ilustração torta das bases enfraquecidas sob as quais a família americana apoiava sua moral, You Killed Me First, como grande parte dos filmes de Richard Kern nessa mesma época, acaba sendo um estudo/screen test das personalidades que o rodeavam e que compunham a cena artística do Lower East Side (território em Manhattan majoritariamente ocupado por imigrantes de classe operária e artistas sem apoio financeiro como a escritora Kathy Acker). Dispensa dizer aqui o quão simbólica é a imagem de David Wojnarowicz (pintor, performer, fotógrafo, cineasta e ativista) fodendo Karen Finley (a performer responsável por monólogos sobre os movimentos sensuais de uma mulher debruçada na máquina de lavar) por trás e sendo espiado com repulsa por Lung Leg, o rosto nervoso de abertura do clipe de “Death Valley 69”.

“Você me matou primeiro” é o grito que precede o matricídio na cena final e o expurgo de um estado de alienação ao qual se abandona os desajustados. Richard Kern admitiria mais tarde que as situações repulsivas retratadas em seus filmes vieram principalmente do tédio e de uma inabilidade de sentir qualquer coisa: “É mais fácil sentir alguma coisa com aversão e ódio”. A teatralização da chacina como banalidade é a negação, via cinema da transgressão, desse tédio que se transforma na morte em vida. You Killed Me First e em alguma proporção toda obra do Cinema of Transgression não deixa de ser “uma vingança dos abortados”, dedicada a todos os rebeldes sem causa que, nem por alguns segundos, já pensaram em matar seus progenitores na mesa de jantar.

Paraísos Artificiais

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Antes de desperdiçar tempo e esforço tentando se fazer conhecido como uma figura agradável do Twitter, Fernando Collor de Mello competiu a duras penas com nosso atual presidente pelo título de maior sabotador da cultura na história política do país. Assim que assumiu o governo em 1990, sob a carcaça mal maquiada de um liberalismo “de visão”, extinguiu a Lei de incentivo fiscal à cultura (Lei Sarney), a Embrafilme (já mal das pernas desde os anos 1980), o Concine, a Fundação do Cinema Brasileiro e se ainda houvesse alguma dúvida quanto a seus propósitos, o próprio Ministério da Cultura (rebaixado a secretaria). Apesar do cenário desolador, os curtas e médias-metragem pareciam ter retido ainda alguma chama de esperança, e as universidades converteram-se espaços propícios para a sua realização.

Na primeira metade dos anos 1990, Paulo Sacramento, Débora Waldman, Paolo Gregori, Marcelo Toledo e Christian Saghaard, quase todos alunos da Escola de Comunicação e Artes (ECA) da USP, integraram a produtora universitária Paraísos Artificiais. Sem manifestos e bandeiras, a paraísos – que contava com CNPJ próprio –  respirava no interior da instituição como um organismo individualizado. Foram mais de dez filmes (em grande parte extracurriculares) montados e finalizados nas imediações da ECA, num processo que envolvia, entre outras coisas, a ocupação das moviolas durante a noite e cooperação mútua, cada membro da produtora sendo um colaborador em potencial para projetos que não fossem os próprios.

Com a benção de Jairo Ferreira (crítico, realizador e guru ideogrâmico do Cinema de Invenção) e seguindo os rastros dos marginais, os filmes da Paraísos se caracterizavam pela escassez de recursos (algo que definiria bem o cinema feito no país naquela época como um todo), pela proposta DIY (herdada talvez dos mesmos ânimos punk que levaram Marcelo, Paulo e Débora a formarem uma banda) e principalmente pela forma com que se lançavam sobre o insólito, sobre uma ideia de violência redentora e a subversão da forma e conteúdo. Da ritualização de um pico com sangue de galinha injetado na veia, passando por uma gangue de homens caracterizados como Jesus Cristo que saem às ruas para crucificar mendigos até a crônica de uma mulher que persegue a própria morte enquanto alucina na rodovia, o cinema da Paraísos Artificiais emerge como imagem de um Brasil subterrâneo, tomado por uma aura turva que recai sobre lugares, pessoas e objetos –  resta reconhecer essas coisas como a memória compartilhada de um sonho ruim.

Juvenília (1994)

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Georges Bataille falava de uma violência elementar, que habita o universo interior do homem e que, quando manifestada, o aproximaria de um estado primordial, no qual toda individualidade desaparece – nos tornamos um na animalidade que renegamos. O Tabu e as leis por sua vez foram criados para não sermos tragados por essa violência, que significaria a perda da consciência e racionalidade. Mas a lei em si não é racional, e neste momento o filósofo aponta essa sustentação hipócrita: por que o homicídio é condenado, enquanto a guerra nada mais é que a permissão para matar? Obviamente Bataille não se posicionava a favor do assassínio, mas trazia à luz a natureza contraditória com que lidamos com certas interdições.

Juvenília (1994), de Paulo Sacramento, é um fotofilme que conta com 60 fotografias em preto e branco em sete minutos de duração. As fotos, feitas por uma fotojornalista que fazia a cobertura de crimes na madrugada, descrevem o esforço coletivo de jovens bonitos e sorridentes para matar e eviscerar um cachorro. Enquanto um ou outro observa de bom humor, os demais se revezam nas pauladas, marteladas, enxadadas e picaretadas até o interior do cão ser revelado. Em determinado momento, um rapaz munido de alicate arranca um canino e exibe para os amigos, três garotas seguram as patas enquanto outra pessoa mergulha a mão na fenda no meio da barriga e puxa as entranhas para fora, tudo isso embalado por uma versão ao vivo  de “A Saucerful of Secrets” do Pink Floyd, que fecha a cena bizarra com os aplausos da plateia. Ao longe, um outro cachorro espreita o ritual macabro.

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“Se você procura emoções fortes, achou. Mas atenção: se estiver apenas a fim de um programinha para passar o tempo, este não é um ‘O Bom do Dia’ para você. Essa introdução é necessária para falarmos dos sete minutos em preto-e-branco de ‘Juvenília’, provavelmente o filme mais violento feito no Brasil nos anos 90.”. Assim começa a matéria publicada na Folha de S. Paulo em 1999 anunciando as exibições de Juvenília na Faap e no MIS. Falar que o curta de Sacramento foi “provavelmente o filme mais violento feito no Brasil nos anos 90” chama a atenção por mencionar justamente uma década em que a tv aberta experimentou uma variedade de programas de jornalismo criminal (do tipo “Aqui Agora”) que apostava num sensacionalismo cretino para falar de tragédias e crimes hediondos. Do conforto do lar, o telespectador brasileiro podia receber uma dose cavalar (e ao vivo!) de reportagens sobre sequestros, estupros, balas perdidas ou assassinatos brutais, sempre contando com um comentário indignado do seu interlocutor.

Não é incomum que imagens de violência circulem e se reproduzam pelo whatsapp ou que a descrição de um rosto no jornal acarrete uma violência palpável como a do linchamento. As imagens não podem ferir – já disse Marie-José Mondzain – mas podem ser transformadas em veículo de crueldade pela sanha de audiência. Juvenília é um filme brutal (e belo) porque mostra a face da “normalidade” de uma juventude que só conhece a violência como linguagem. O plano final de um segundo cachorro, vivo, mas imóvel, olhando diretamente para a câmera é a retribuição de uma certeza: viu? Como é fácil nos fazermos reféns dessas imagens. A revolta é reservada para quem ainda se choca com a banalização do mal.

Referências Bibliográficas

BATAILLE, Georges. O erotismo. Porto Alegre: L&PM Editores, 1987.

KRISTEVA, Julia. The Sense and Non-Sense of Revolt, trans. Jeanine Herman. 2000.

MONDZAIN, Marie-José. A imagem pode matar? Lisboa: Nova Vega, 2009.

PFEFFER. Suzanne. You Killed Me First: The Cinema of Transgression. Berlin: KW. 2012.

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A voz mansa diante do oeste: First Cow

Por Gabriel Papaléo

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“the heavy leaves celebrates the cut and fill for the new road”

Outono, William Carlos Williams

Um navio enorme, como o de At Sea de Peter Hutton (para quem o filme é dedicado), atravessa a tela no primeiro plano para nos situar de que essa é uma história de chegadas e partidas que também fala do lastros históricos deixados para trás, do diálogo de sombras entre presente e passado, da investigação acidental de um encontro contemporâneo na floresta; um filme partindo da sensação da memória, de alguma forma. Dos sabores de casa que os viajantes em travessia podem ocasionalmente provar.

O apreço de Reichardt pelo cotidiano, sobretudo pelo ritual, é o que carrega o volume histórico em First Cow nos mínimos detalhes das interações dos variados coadjuvantes que vemos aqui. Um tempo se expressa pelo comportamento dos que o habitam, e em meio aos rústicos casebres e tendas do que era praticamente um país em formação, o interesse do protagonista Cookie é pela natureza. Sua exploração é silenciosa, a colheita dos ingredientes também, a pesca uma atividade paciente. A água que corre nos rios, as flores colhidas para decorar a casa; alguém que não se identifica com os delírios de dominação colonialista, enfim. É como se Jon Raymond e Reichardt estivessem interessados em contar a história de um habitante comum do que seria um faroeste, as elipses calculadas para acumular os métodos e cotidianos que assistimos, num tranquilo fluxo de dias singelos.

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E método é importante porque é através dele que entendemos também a sensação desse presente dos anos 1820, e as personalidades de Cookie, o modesto cozinheiro apresentado colhendo flores, e de King-Lu, o estrangeiro que surge nu na floresta e é acolhido com sua voz mansa e pensamento astuto. Boa parte da narrativa é concentrada na simples passagem dos dias onde Cookie e King-Lu colhem o leite da primeira vaca do título, vão fazer os bolinhos de chuva, e vendem no dia seguinte. A medida que o tempo corre, seus sonhos de futuros são assombrados pela espera do fim antecipado pelo prólogo, e Reichardt começa e termina o filme como o Sem Teto, nem Lei de Agnès Varda – uma ilustração relacionada com outro conto de solitários em travessia que precisam se virar diante da sociedade. A âncora emocional do filme, e também a bússola moral dos personagens, é a harmonia dessa amizade entre os dois, e o como se pode sobreviver no desequilíbrio proto-capitalista que motiva a construção de um assassino pelo fato banalizante de que lhe foi negado o consumo.

O comportamento e o gestual são a chave, e a algo muito frágil pairando no ar desses eventos, na qual a tênue linha da violência só pode ser combatida por um dia a dia de parcimônia. E Cookie consegue se expressar melhor no carinho no qual trata a vaquinha quando a ordenha que com qualquer relação de brutalidade que enxerga ocasionalmente – brutalidade, por assim dizer, no trato do testemunho dela frontal na briga de bar, mas também no desconforto palpável que Reichardt administra na excelente cena do clafoutis, dando toda a hostilidade velada entre o chefe inglês e os indígenas que com ele trabalham da forma econômica da qual a diretora é absoluta.

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Os hipnóticos vinte e cinco minutos finais, no coração da floresta, trazem a hostilidade e os segredos que aquela natureza então admirável guarda, e mesmo ali Cookie busca uma bela vista para admirar, na sua calada jornada. E King-Lu, homem viajado de planos futuros sem ilusões de grandiloquência, aos seus poucos bens materiais tem uma despedida diante das adversidades. O controle de ritmo, qualidade de Reichardt em todos os filmes que montou, a partir de Antiga Alegria, aqui apresenta a modulação dramática característica, mas prezando em pontuar as distinções sensoriais entre a encenação dos tempos calmos dos dois primeiros atos e o abandono ameaçador do terceiro, o tipo de tensão que a diretora trabalhara apenas em Movimentos Noturnos – e enquanto lá esse senso de perigo revelava uma distância gradativa da câmera para com os personagens, aqui essa ameaça nos aproxima de Cookie e King-Lu, cada vez mais abandonados às trevas, buscando um ao outro como fantasmas. O Oregon dos anos 1820 guarda maravilhas e segredos, e os dois se confundem em desafios diversos na câmera de Reichardt.

Quando o chefe do vilarejo diz que o bolinho de chuva de Cookie “tem sabor de Londres”, fica evidente que nenhum dos personagens de First Cow está onde nasceu, nem mesmo os indígenas que atravessam a tela, já que a dinâmica de sua terra foi radicalmente alterada pela chegada dos estrangeiros à procura do poder. À travessia são todos relegados, nesse segundo faroeste revisionista de Reichardt, depois de O Atalho. Como a Emily de lá sabia que uma vez perdida a identificação de lar precisava tomar as rédeas do próprio destino e dos que estavam sob sua responsabilidade, resta aos gentis padeiros daqui se agarrarem ao seu companheirismo em meio à surreal desproporção das vinganças dos poderosos.

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Vaga Carne: o corpo (r)existe

Por Kênia Freitas

Vozes existem
Vorazes
Pelas matérias

Com essas palavras ditas sobre uma tela preta, Vaga Carne (Grace Passô e Ricardo Alves Jr., 2019) se anuncia. Uma voz se apresenta como nossa interlocutora. Ela se declara independente das matérias que ocupa, vagando por carnes vivas e objetos inanimados. A voz nos diz não apenas que existe (indiferente à nossa capacidade de compreendê-la como algo além do humano), mas que sua existência é voraz e prazerosa. É uma existência plena pois desconectada do tempo, ilimitada pois não atrelada a nenhuma língua.

O filme estabelece um jogo de convencimento e sedução entre nós espectadores e espectadoras e essa voz: ela deseja acima de tudo nos fazer crer em sua existência. E nos convida para uma conversa:“Eu não sou um bicho, portanto não posso falar por vocês. Respeito vossas existências. Não tenho a prepotência em entendê-los. Mas vamos tentar dialogar, vamos? De diferente para diferente.” Uma conversa que portanto só pode transcorrer, como a voz sugere, em princípios de opacidades glissanianos: sem a prepotência de entender e assumindo a diferença como basilar e intransponível. Uma voz é uma voz e um bicho humano é um bicho humano. No jogo criado por Grace e Ricardo Alves Jr., a primeira provocação desse convite de conversa da voz é que façamos esse deslocamento do paradigma do humano, do orgânico, do material, do antropomórfico para o inumano, inorgânico, imaterial, disforme: “Sei também que vocês tem dificuldade de entender o que não é vocês mesmos, mas eu vou tentar explicar. Sou uma voz. Só isso. E mesmo sabendo que vocês não acreditam nesse tipo de existência, que não é humana, vim até aqui proferir sons de vossas línguas limitadas, línguas que não se decidem”.

Mas há algo no tom dessa voz.

Ela fala de dentro da matéria – e também de cima. Há um tom de avaliação superior pelos corpos, patos, café, cães, mostarda, estátuas… Às vezes, é uma manifestação de nojo ou desprezo, outras de admiração ou desejo. O marcador da nossa subalternidade como interlocutoras e interlocutores pelas palavras da voz (humanos são “egoístas”, “limitados”) complica esse jogo de convencimento e sedução. Não há encontro ou troca nessa conversa entre diferentes, mas subjugação, penetração e invasão. Nesse sentido, a escolha feita pelos diretores pela manutenção do dispositivo palco/plateia na adaptação da peça para o cinema reforça a importância de um distanciamento entre essa performance voz-e-carne-invadida e quem assiste (de fora e de dentro da narrativa).

Nesta transposição, a inscrição na encenação da primeira parte do filme de uma plateia de pessoas negras que observam de longe a relação voz-carne penetrada é fundamental para mobilizar essa distância na interlocução. A devolução do olhar desses espectadores negros é uma das pistas para nos instalarmos na desconfiança e incerteza diante do jogo proposto no filme – afinal, como a própria voz parece saber: o olhar dos outros é um bicho feroz. Farol e faca.

olhos da plateia

Parte da fruição do filme baseia-se em aceitar a sua especulatividade narrativa e inumana: vozes existem vorazes, e nossas coexistências são possíveis mas não redutíveis a uma única perspectiva. Outra parte, parece-nos estar na desconfiança dessa instância narradora e protagonista dessa voz. Voz que de saída assume uma postura de superioridade relacional. Pois é ela quem nos conduz pelos seus percursos, transformações, descobertas e afecções dentro da carne invadida. Ela é a principal ancoragem discursiva no filme, e o que nos cabe é sermos espectadores desconfiados – ainda que seduzidos pela performance. Há uma linha tênue criada pelo jogo proposto por Passô e Alves Jr. entre não refutar a existência da voz em sua diferença radical mas também não aderir de forma acrítica a sua narrativa de exploração, penetração e invasão. E aqui cabe olhar mais atentamente para a outra personagem nessa narrativa: a carne invadida.

A virada na relação voz-carne acontece quando a intrusa deseja sair e já não consegue mais. Está presa à carne. E, nesse momento, pela primeira vez o diálogo não é mais com essa espectatorialidade externa, mas internamente no amálgama carne-voz. Um acoplado que move-se de forma esquisita a princípio, que se estranha, mas permanece unido. Esse acoplado estranho voz-carne, aliás, nos lembra as figuras quebradas internamente de Corra (Get Out, Jordan Peele, 2017): filme no qual corpos negros são invadidos por subjetividades brancas. Algo não se encaixa. E aqui nos parece que o jogo inicial implode e um outro começa. Nesse momento também se desfaz a separação palco plateia e as delimitações estruturadas do espaço cênico. Os olhos das/dos artistas negras/os espreitam mais de perto. As peles se tocam. E a desconfiança segue. Agora não apenas direcionada à voz mas a esse bloco unido carne-voz, que começa talvez a delinear um corpo.

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E aqui a diferença entre carne e corpo feita por Hortense J. Spillers é crucial[1]. Para entender as fundamentações gramaticais racistas que marcam ainda hoje a existência das mulheres negras diaspóricas, Spillers volta-se para explicar o pensamento filosófico-ideológico que sustenta o processo de colonização e escravização. E olhando especificamente para o que pode separar os sujeitos cativos dos sujeitos livres nesse paradigma colonizador (ou seja, o que pode “justificar” a captura, tortura, violação, etc. de pessoas africanas), ela dirá que aos cativos cabe a ideia da carne e aos livres do corpo. Nesse sentido, a carne seria o grau zero do corpo, em outras palavras o corpo sem conceituação social, sem subjetividade e agência. É preciso considerar o corpo como carne para escravizá-lo.

É preciso considerar o corpo como carne para invadi-lo: “Essa mulher aqui é só microfone, não tem nada a dizer”, nos diz a voz.

Mas o corpo assujeitado sempre se revolta.

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A revolta desse corpo invadido é o que marca o arco final de Vaga Carne. Como o gesto de resistência possível, esse corpo não permite que a voz parta impunemente – mesmo que isso signifique o seu próprio sacrifício. Ele aprisiona e de alguma forma afecta a voz – e em algum ponto ela percebe que não quer mais partir. A carne já não é considerada pela voz um espaço vazio a ser preenchido. O ponto chave dessa virada é a descoberta de uma gestação em curso. A carne é corpo, é vitalismo, gera vida.

Então, na última rodada desse jogo conduzido por Passô e Alves Jr., a voz nos chama de volta para testemunhar o seu ato vertiginoso de olhar para o abismo de sua existência fundada em processos violentos de invasão, penetração, subjugação: “(…) se eu levanto a mão eu sou responsável. O que eu falo eu sou responsável e se nada falo eu sou responsável. E que nada tem o direito de invadir o seu corpo. E que se alguma coisa invadir o seu corpo, que lhe peça licença”. Processo sem escapatória e reconciliação, que passa pelo reconhecimento do corpo não mais como carne, mas como uma mulher negra.

Ela está aqui diante de vocês”.

Ela, assim como as vozes vorazes, existe.

[1] Spillers, Hortense J. “Mama’s Baby, Papa’s Maybe: An American Grammar Book.” Diacritics, vol. 17, no. 2, 1987, pp. 65–81.

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Como desmontar uma prisão: Revolta silenciosa em Um condenado à morte que escapou (1956), de Robert Bresson

Por Luís Flores

 

Figura 1 - prisao vista de fora

Alguém certa vez o chamou de um cineasta inclassificável e um cineasta que não envelhece. Cineasta que convida a um pensamento em contínua renovação, sempre passível de reconfiguração, de remontagem. Cineasta, aliás, que nem cineasta é, dado que recusou com veemência o termo cinema e decidiu, na esteira do amigo Jean Cocteau, a trocá-lo por cinematógrafo. “É pelo cinematógrafo que reviverá a arte que o cinema está querendo matar”. Desde cedo, Bresson assume a construção artística como uma atitude rigorosa de insubmissão e comprometimento (estético mas também político).

É conhecido o debate sobre o papel da pureza em sua obra, o poder insuperável do acaso, o sopro mágico de deus. Há um fundamento espiritual do homem, uma substância de moldes cristãos que se devora inevitavelmente em uma terra de violência e sufocamento, não sem antes desprender a derradeira consequência, difícil e sem equivalência de causas ou intenções (a imagem, por vezes, precede a explicação). A vontade humana, a paixão, também fazem parte do “tudo é graça” proclamado pelo pároco de aldeia, anúncio de uma estranha transcendência que não o é de todo, pois guarda intocada uma margem do sensual. Ainda que menos discutida, há em Bresson uma contraparte materialista feita de atenção permanente ao real, nos movimentos concretos e nas mínimas variações de tempo.

Incomum, com efeito, é flexionar essa razão bressoniana da matéria sob o prisma imponderável da revolta. Lá está ela, em todo caso, em Diário de um paroco de aldeia, com esse padre praticamente herege por levar a mensagem de Cristo demasiado a sério, ao pé da letra. Está, com rigor maior, em Um condenado à morte que escapou, talvez sua obra mais literal, na qual a via da libertação espiritual passa necessariamente pela subversão da ordem e da matéria. Nada é cartesiano, contudo, sendo que o título alternativo vem justamente recompor uma margem de imprevisibilidade: O vento sopra aonde quer. Curto-circuito irresolúvel de posições, de oposições, de relações entre o terreno e o celestial, entre o físico e o incorpóreo, entre o trabalho e a predestinação.

A sublime maldição de existir, seja no suicídio impassível de Mouchette (Mouchette), seja no olhar insondável de Balthazar (Au hasard Balthazar), repercute na redenção “por um fio” do jovem soldado francês (Um condenado). Soldado que não o é, sendo um princípio constante de Bresson tensionar as definições confortáveis de dramaturgia. Esse jovem, em todo caso, profere a magnífica frase final do filme, “se minha mãe pudesse me ver agora”, enquanto ele e Fontaine se afastam dos muros da prisão, caminhando, sem botas nem casacos, pelas ruas desertas da noite, com frio no corpo e por dentro o vigor do vento. Sim, é um baita spoiler, mas no fundo pouco importa, pois o título também o é, a cartela de abertura também o é e, a bem da verdade, se existe algo de narrável em Bresson, segue antes as vibrações imperceptíveis da alma, o tracejo das mãos e dos olhos na luz.

Figura 2 - Decisao de escaparFigura 3 - o jovem soldado francês

Certos gestos associados a diálogos, embora pareçam mínimos ou neutros, traem a presença de algo maior, uma revolta íntima e invisível que mobiliza a fuga sem, contudo, equivaler-se a ela. A revolta deve permanecer oculta, embora não velada, devido ao risco de execução sumária. Ela reflete, no entanto, uma postura mais profunda, uma incumbência impalpável sob os elementos sensíveis que o filme faz circular. A fuga, se depende da graça, ao mesmo tempo só existe no entremeio da ordem, nas brechas do sistema, nos cruzamentos que permitem desejar e partilhar. Na salvação, afinal, pois é pela porta estreita do agora que chega o Messias, segundo Benjamin. É pelas frestas que sopra o vento e, aliás, é curioso notar que os créditos do filme ressaltam, em primeiro plano, as rachaduras no concreto, provavelmente do muro da prisão. A fuga, enfim, é desejo e partilha, conta-se aos outros prisioneiros, busca-se ajuda e companhia, organiza-se, constrói-se com diligência ao se desmontar a prisão (enquanto se monta as imagens), com engajamento crítico ao se decompor sua estrutura. A questão divina, portanto, torna-se complexa: se para o padre, companheiro da prisão, o milagre ou a graça é ter a bíblia sagrada em mãos, para Fontaine é encontrar uma colher sobressalente, a fim de continuar o trabalho da escapada.

Figura 4 - colher encontrada Figura 5 - colher nas maos

Luta-se, também, do lado de fora, como membro da resistência francesa. Uma vez capturado, desobedece-se sempre que possível, em um sistema complexo de relações com objetos e pessoas. Este é outro traço distintivo das operações fílmicas de Bresson, a capacidade de conectar elementos, de reconstruir perceptos e sentidos, estabelecendo ligações singulares. A fuga, vale dizer, não é um ato individual, e talvez por isso Fontaine pareça delongá-la, buscando sem cessar um companheiro de evasão. Primeiro, tenta os amigos do lavatório. Depois Orsini, supostamente intrépido, inabalável. Depois, um detento recém-chegado, que não confia no plano. Nenhum deles aceita ou, quando aceita (Orsini), não se compromete até o fim com a estratégia. Fontaine acaba por assumir os preparativos, totalmente… Sozinho? Mas o jovem soldado francês, no último momento, será colocado em sua cela de maneira providencial, sendo que durante a execução da fuga Fontaine percebe que seria impossível ter tido êxito sem um parceiro.

Figura 6 - observar, organizar Figura 7 - Liberar as maos

Figura 8 - sondar, escutarFigura 9 - janela

Mas voltemos aos gestos distintivos da revolta. No começo, dentro do carro, a caminho da prisão, as mãos do condenado pairam sobre o seu colo, como se ele se perguntasse “o que fazer?” ou, antes, “o que fazer com estas mãos?” A resposta surge de imediato, impulsiva. A mão nervosa hesita brevemente e logo tenta abrir a maçaneta para fugir. Tentativa malograda. Ele é recapturado, espancado, castigado, aprende interiormente uma lição. A fuga malsucedida é compensada com um aumento no grau de repressão. Para não morrer, Fontaine é obrigado a fazer silêncio, fingir estar fraco. Doravante, só vai arriscar a sorte novamente com um projeto certeiro, um plano infalível de ação. Decide, portanto, organizar sua rebeldia, sistematizar o sentimento da indignação. Não é fácil dinamitar a ilha de Manhattan, como também é difícil transpor os confins da prisão fascista. Por mais justo que seja o turbilhão da revolta, da contravenção, isso não basta para desafiar a estrutura do mundo em um impulso de coragem ou aflição. Um soco no guarda de nada adiantaria. Talvez acelerasse a morte, mas não transformaria a distribuição da violência e nem perturbaria a lógica da repressão. Um plano de fuga bem arquitetado, isso poderia fazer diferença. A revolta não para de soprar em seu espírito inconquistável e, para externá-la, ele finge se submeter enquanto busca uma saída.

Figura 10 - o que fazer com as maos Figura 11 - comunicar

Na carta para a mãe, mais um ato de revolta. Por meio dela, o condenado avisa à resistência francesa que o código de comunicação foi quebrado, confrontando a tirania nazista, mesmo estando enclausurado na prisão. Há revolta, ademais, na expressão altiva que ele assume ao retirar furtivamente as algemas, sendo tomado, em suas palavras, por uma “sensação repentina de vitória”. Há revolta na mensagem motivadora com a palavra “coragem”, escrita pelas prisioneiras da ala feminina no pacote que enviam ao condenado. Há revolta quando ele, transitando clandestinamente pelos corredores, apaga a mensagem de punição na porta de uma cela, desafiando a ordem perversa exercida pelos guardas. Há revolta, sobretudo, na recusa em entregar uma mera caneta nas mãos do guarda, sob o risco de ter a cela revistada – trata-se, portanto, de uma recusa completa em obedecer, nem uma mínima concessão direta pode ser feita, apenas o imprescindível para continuar alerta e vivo.

A marca fundamental da revolta em Um condenado, afinal, não é simplesmente a decisão de escapar, mas sim o substrato indelével dessa decisão, que afeta o sistema de inscrição do corpo (que é também um regime de mise en scène) e o entrelaçamento da existência, com sua parte maldita ou secreta, proclamando em silêncio a impossibilidade de aceitar o mecanismo de confinamento imposto. Algo que se conjuga, claro, a toda uma contraparte estética, na medida em que Bresson depura o mundo com cuidado em sintagmas de cinematógrafo. Atenção aos detalhes (escassez de planos longos), proximidade com o personagem (profusão de primeiros-planos, enquadramentos rigorosos, acompanhamento estrito), reinvenção e reivindicação das relações (uso intensivo de planos/contra-planos, uso da câmera como termo de mediação entre objetos e/ou pessoas), reflexão e condensação simbólica (montagem).

Fortalecido pela graça inabalável (espírito), Fontaine confronta a des-graça da ocupação nazista, não somente um estado de morte, como também de ausência do espírito, de cerceamento absoluto de qualquer manifestação sui generis do ser. Por isso a ironia do encarregado que pergunta se ele vai tentar fugir, quando a única resposta possível é sim. Há talvez uma reverberação de Pascal, de uma aposta inominável naquilo que conduz à realização da vida. Escolher lutar, existir, agir – mesmo pela inoperatividade – é tarefa quase incontornável em um mundo cada vez mais confinado e afogado em sangue. A desobediência de Fontaine, sua insubordinação soturna, tem de certa forma um caráter ético. É uma palavra que está permanentemente com ele, anterior a qualquer enunciação, inscrita no movimento irrevogável da liberdade.

Nada o desencoraja da tarefa que assumiu antes de por os pés na prisão, mesmo quando os companheiros se mostram preocupados ou incrédulos. Nem por isso, deixam de apoiá-lo. Orsini, na cela da frente, vigia e tosse para avisar dos guardas no corredor. Cada qual cumpre o seu papel na intrincada arquitetura da predestinação, esta que Fontaine dispõe de maneira particular, destemida, quase amorosa (ouso dizer). A revolta não adquire a manifestação passional da cólera, da explosão, da reação incontida, ela forma antes uma indignação organizada, canalizada para o planejamento estratégico da fuga. Seu caráter transparece a persistência de espírito, a obstinação quase estoica, a tenacidade que nada pode aquebrantar.

A expressão mais viva de sua conduta é o trabalho incansável de des-montar a prisão, revertendo para si o que produz nesse lugar de controle e exploração (lembrando que campos de concentração nazistas forneceram amiúde mão de obra escrava para grandes corporações capitalistas). Bresson mobiliza uma reflexão minuciosa das mãos, tratando-as como membros concretos de alta significação. O que podem fazer (é a indagação inicial do primeiro-plano dentro do carro), o que representam, como transgridem? Poucos filmes mostraram o trabalho das mãos com tamanha expressividade, ampliando-as em uma legião de primeiros-planos certeiros, que vão multiplicando possibilidades e curvaturas. O diferencial em Bresson é não abstraí-las com gestos puramente simbólicos, embora a ambiguidade não deixe de estar presente. Mãos que tentam fugir do carro. Mãos que pegam o lenço para limpar ferimentos. Mãos algemadas, mãos soltas. Mãos que transmitem mensagens, escrevem letras proibidas no papel. Mãos que anseiam, esperam, fazem sinais. Mãos que varrem, que tentam se ocupar. Mãos que cultivam, que sentem o solo. Mãos que tocam o ombro em sinal de amizade. Mãos que chegam ao extremo de matar (o guarda noturno, condição para a fuga). Mãos, todas elas, com dimensões concretas, cumprindo funções específicas. Não um punho erguido contra um céu intocado, não uma utopia. Antes, um ofício paciente de insurreição.

Figura 12 - bilhete Figura 13 - mao no ombro

 Falemos, sobretudo, das mãos que trabalham, perseguindo com firmeza o fio da construção. A questão do filme pode ser, de fato, flexionada com a seguinte indagação: como utilizar os objetos que re-produzem o confinamento para alcançar seu inverso, a possibilidade de libertação. Este é, no nível discursivo, o materialismo profundo de Um condenado, inextricavelmente ligado à insubmissão do espírito e à transcendência de qualquer consenso objetivo, de todo “realismo” complacente, por assim dizer. Primeiro, é preciso compreender criticamente o mecanismo da prisão: olhar a porta, contemplá-la, descobrir, durante uma quase epifania, como desmontá-la. Depois, desviar cada utensílio para produzir outras funções. Alfinete, colher, cama, porta, travesseiro, painel, pano, arame, tudo deve ser transformado pelas mãos e convertido em ferramenta de fuga. Deve-se tomar cuidado para não denunciar o andamento do trabalho, não fazer barulho, camuflar a porta, varrer os resíduos, esperar o momento oportuno (o famoso kairós). E realizar missões de reconhecimento que permitam estudar o mecanismo carcerário, anotar os fluxos e horários, analisar a rotina, conceber um plano pormenorizado.

Figura 14 - ver, tocar Figura 15 - tocar, entender

Preservar o corpo, a lucidez, a sanidade, eis um outro ritual necessário, o cuidado de si contra o aniquilamento da subjetividade instaurado pelo mecanismo do poder (embora Bresson não flexione da mesma maneira que Foucault os tensionamentos entre corpo e alma). Conversar com o prisioneiro da cela ao lado, respirar com regularidade, olhar a janela, reinventar uma dose de vida e pertencimento nesse espaço destinado ao isolamento. Quando o jovem soldado francês entra na jogada, vale dizer, os planos do trabalho solitário de Fontaine são transformados pela presença de um segundo par de mãos. Corpos que agem em conjunto. Um condenado lembra, nesse sentido, o gesto de resistência dos prisioneiros em Um canto de amor, de Jean Genet, no qual a desobediência passa contudo pela erotização. Em ambos os casos, a arquitetura da prisão é rejeitada, em Genet pela ligação homoafetiva, em Bresson pela camaradagem proibida. Farocki, aliás, retoma os dois filmes décadas depois para problematizar a lógica midiática do controle nas prisões contemporâneas.

A maior parte do filme, portanto, mostra a subversão sorrateira do espaço da prisão, a intrincada busca da liberdade (provisória) a partir do interior de uma estrutura de fechamento. Bresson dedica sequências inteiras para mostrar as etapas do trabalho, valorizando o esforço de Fontaine e conectando-o às contingências da situação. Há uma atenção imperturbável ao real, que resulta em uma decupagem meticulosa, com enquadramentos rigorosos, elos complexos dos olhares, duração cirúrgica dos planos, foco nos objetos e nas ações. Cada plano é um respiro profundo no trabalho de reinventar o mundo, cada corte entrevê a brecha da salvação. A montagem é a oração algo profana que organiza 60.000 metros de película em 2.900 de filme, como informa João Bénard da Costa. Tudo isso atravessado por ecos elegíacos de Mozart, em trechos musicais que tensionam ainda mais os elementos da razão com a inescrutabilidade do espírito, algo que a direção de atores e a iluminação das cenas, algo aurática, reforçam.

A composição formal da obra traz um compromisso intenso do olhar. É preciso ritmo para observar, respiração para subsistir. Espírito, aliás, é ar na raiz (pneuma, anima, ruah), o que repercute no já mencionado subtítulo do filme, citação de uma frase que Jesus teria dito a Nicodemos. Tudo pode mudar a qualquer instante, o vento sopra aonde quer, tornando difícil inclusive escolher a hora certa de se agir. Note-se, uma vez mais, que o trabalho da fuga nada tem de mero produtivismo, constituindo, antes, uma reengenharia complexa de sabotagem e reversão. Assim, também o modo de filmar de Bresson é uma revolta penetrante contra a lógica espetacular do mundo das imagens, que tende hegemonicamente à alienação e à simulação.

A linha é tênue mas, no outro extremo, no regime do compulsório, do imediato, do visual, está o perigo da previsibilidade mortífera, do sistema total de captura do poder. Cansado de aguardar, Orsini arrisca escapar em plena luz do dia, sendo logo em seguida recapturado e executado. Bresson não chega sequer a mostrar esse episódio com a câmera, relegando-o ao extracampo e permanecendo coerente à readequação minimalista do visível. A fuga espetacular, impulsiva, nos é vedada, assim como o espetáculo perverso da plena satisfação visual. Cada queda, todavia, traz um novo aprendizado, sendo o fracasso de Orsini uma etapa importante para que Fontaine aprimore seu plano. Isso, somado à sua recusa em ceder.

O cinematógrafo, em certa linhagem, pode ser tomado como uma máquina para se pensar o mundo. Em Um condenado à morte que escapou, Bresson formula esse gesto no nível de uma cólera insubmissa, mas, sem se contentar com esse primeiro salto (dialético), elabora a revolta ao nível de um trabalho. Uma lição que artistas como Farocki e Straub-Huillet souberam aprender e reinventar com inteligência. “Confio nas minhas ferramentas”, diz Fontaine a certa altura. Também Bresson o poderia dizer. É nesse segundo movimento, enfim, que reside a verdadeira imbricação do pensamento crítico com a história do olhar, convocando o espectador a uma tomada de consciência e estabelecendo uma ruptura em relação à violência do mundo, que está inscrita inevitavelmente nos circuitos das imagens.

Figura 16 - Mãos

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O vulcão e a nuvem: revolta como resignação em Stromboli, de Roberto Rossellini

Por Diogo Serafim

 

Cela s’est passé. Je sais aujourd’hui saluer la beauté.

Faim, Arthur Rimbaud

No caminho para Stromboli, fez frio. Deitada ao lado do homem que aceitou casar após um breve cortejo e um beijo interrompido através de arame farpado, o personagem de Ingrid Bergman olha para o céu, contemplando o futuro incerto que começa a se aformosear à sua frente. Enquanto a Europa tenta se reconstruir com o Plano Marshall e o auxílio econômico norte americano após duas devastadoras guerras, Karin tenta esquecer os horrores que deixaram sua vida em ruínas nos últimos anos.

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“A terra é dura aqui”, lhe confessa o padre assim que ela chega na ilha, enquanto a explica como outras famílias partiram para Argentina, Estados Unidos, Austrália. O rosto de Bergman diz tudo: os sonhos que a afastam do que é material, o idealismo de toda uma nação em permanente reconstrução. Após subsequentes guerras e desastres naturais, uma terra em ruínas sonha com o novo mundo.

Stromboli opera em duas instâncias: uma intimamente ligada à mitologia da atriz Ingrid Bergman, que há menos de um ano estava filmando a obra prima Under Capricorn com Alfred Hitchcock, e outra indissociavelmente associada ao espaço no qual ela se encontra: o nome do filme é, afinal, “Stromboli, Terra de Deus”. Rossellini filma esse espaço numa lógica de contemplação ambígua, os espaços são frequentemente explorados junto com Karin que, como nós, vai descobrindo esse belo, mas implacável, mar de pedras negras, essa comunidade que vive nas ruínas causadas pela frequente atividade de um vulcão.

A chegada é imediatamente violenta. Karin perambula pelas ruínas de Stromboli e encontra uma criança. Ela sorri para o menino e tenta conversar com ele, mas ele frustra seus avanços. Ela continua a caminhar, desiludida, até encontrar um pequeno broto que nasce em um muro. Ela encontra um breve afago na planta, a qual leva até seus lábios em alguns instantes de pura graça, até que o choro de uma criança a obriga a se levantar novamente, confrontada com a dureza do ambiente na qual ela está inserida. Cada instante de prazer vem acompanhado de um de dureza, cada abraço de um golpe.

A luta de Karin não se resume à natureza, mas também à comunidade de pessoas que a circunda. Conduzir uma vida é saber dosar as suas próprias vontades com as vontades dos outros, sabendo como dispor essa balança em constante ajuste com as forças cosmológicas que regem essa tapeçaria de desejos. Vemos isso na sua tentativa em decorar a sua casa, atitude que machuca o seu marido, nostálgico pela antiga disposição dos quartos. Atitude que traz também a repulsa das mulheres da ilha, que a acusam não ter modéstia. Ou quando ela tenta convencer o padre de ajuda-la financeiramente a partir da ilha, quando seus avanços voluptuosos são rejeitados com veemência.

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A crueza com a qual Rossellini filma a pesca dos atuns, sem dúvida entre as sequências mais avassaladoras da história do cinema em sua fusão de realismo ríspido e sua precisa estilização estética (que definitivamente serviu de inspiração para uma sequência de estetas que vieram posteriormente como Vittorio De Seta, Paulo Rocha, Jean Daniel-Pollet) traz mais uma vez essa clivagem ontológica na figura perfeitamente modulada de Karin. O mais impressionante em Stromboli é como o percurso de Karin é tão vividamente sentido por nós, tão real e palpável em toda a sua violenta inconstância, tendo como principal indicador o rosto de Bergman, de uma expressividade e honestidade inefáveis, rosto que consegue extrair momentos de pura graça no meio do desespero mais destilado e vice-versa.

A cena do furão que ataca o coelho opera na mesma lógica e, apesar de supostamente menos impactante visualmente, talvez seja ainda mais efetiva: assim como os pescadores que rezaram em agradecimento após a violenta pesca de atuns, o marido de Karin sorri para a naturalidade na qual o coelho é morto, aceitando a vida tal como ela lhe é apresentada, enquanto ela chora em prantos, recusando a brutalidade da cena.

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Stromboli abre com a Epístola de São Paulo aos romanos 10, versículo 20: “Fui achado pelos que não me buscavam; manifestei-me aos que não perguntavam por mim”. Seguindo essa lógica, na qual Deus se apresenta apenas àqueles que não o procuram ativamente, o sistema que ordena nossos destinos está intimamente associado à noção de um universo cuja organização cosmológica possui uma orientação anti-teleológica. Não é que na sua tapeçaria causal tudo aconteça por casualidade, mas sobretudo que nela tudo acontece nas lacunas: aquilo que não vejo, o que não imagino, o que me escapou, é sempre o que acabo por encontrar. Minhas projeções futuras são sempre negadas pois meu destino é sempre alheio a mim mesmo. Se imagino um resultado, sou frustrado por algo maior que eu. O livre arbítrio é sempre deglutido pelo inesperado.

Não seria nenhum exagero rotular Stromboli como o filme mais religioso de Rossellini. O martírio como principal força motriz da vida, a dureza da carne, a violência da matéria, e a liberdade da ideia, a resiliência do espírito. A poeira do vulcão, a aridez do ar, a dureza da terra, a íngreme subida, o desespero da respiração. Ela desmaia. Quando acorda com o sol em seu rosto, ela percebe a beleza que a circunda e o mistério de toda a existência. O vento no seu rosto, alterando o trajeto das suas lágrimas, a criança no seu ventre, e o Deus silencioso que escuta o seu pranto por ajuda.

O confronto final com a matéria é também o confronto final com a ideia. A única revolta possível contra o mundo é a resignação. Ajoelhado na terra negra, eu testemunho no céu a liberdade dos pássaros, abraço a continuidade do meu sangue, aceito o choro da criança no meu ventre como o meu próprio e, em um derradeiro grito angustiado, imploro por força para resistir ao peso da vida.

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Que os jovens destruam a cidade – Funeral das Rosas

Por Gabriel Papaléo

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“Quanto a espadas, as ornadas com joias.”

Sei Shônagon, O Livro do Travesseiro (1002).

Faz vinte e três anos que as bombas foram jogadas em Hiroshima e Nagasaki, e com isso o milagre econômico patrocinado pelos Estados Unidos no pós-bomba já está enraizado o suficiente no cotidiano japonês. O ocidente está instalado em Tóquio, novas identidades estão fervendo, e o discurso dos jovens complexifica – estaria a destruição do passado à serviço de um ideal estrangeiro ou a um legítimo descontentamento com o histórico social de comportamentos que o país forjou para si? Um ano depois da Tóquio retratada em Funeral das Rosas, o sociólogo Toyomasa Fuse disse sobre a suposta radicalidade dos protestos juvenis: “Se estudantes não tomassem partido e protestassem, então a universidade e a sociedade seriam as vítimas da complacência e prisioneiros do anacronismo.”¹

Em Funeral das Rosas, acompanhamos Eddie, jovem cuja identidade marginal goza com o homem cis de negócios, e que vive a noite buscando suas utopias particulares. E o que os os corpos vivos de Eddie e suas amigas tem a dizer sobre essa revolta que passa por um psicológico, por uma formação de identidade, antes de qualquer âmbito socio-político racional o suficiente para se organizar e digladiar contra a moral deturpada do presente?

Na televisão, uma epidemia dos narcóticos é anunciada, no tom sóbrio e contido que é o oposto ao que somos apresentados na personalidade dos rostos que acompanhamos aqui; para Matsumoto o confronto é sobretudo uma questão comportamental e estética. Os jovens buscam uma organização social que possa se propor como antídoto desse apocalipse cultural dos bons costumes, da binariedade, até mesmo de convenções cinematográficas de gêneros que mestres japoneses como Mizoguchi, Naruse e Ozu consagraram. O cineasta “underground” (“É de underground que chamam, né?”, pergunta uma das integrantes da trupe) que se fantasia de Che Guevara e mantém o poster dos Beatles pré-separação na parede, filma as ruas, filma os corpos, procura por pulsões e não necessariamente significados. Quando alguém diz que “não entendeu”, o personagem questiona se essa pessoa “sentiu alguma coisa”, e o como isso que mais importa para ele.

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Nesse, um dos muitos comentários diretos sobre estéticas e poéticas cinematográficas, ressalta o círculo dos jovens cineastas prontos para abolir uma linguagem e tentar intuir novas, como na citação a Mekas (ou Monas Jekas, como dizem no filme). O gesto do gênero e da identidade criando uma dimensão social paralela, de convívio apenas de jovens, que acessam o mundo dos mais velhos apenas para tirar seu sustento. E como esse tipo de organização social se propõe como antídoto do apocalipse cultural? As cenas de música, de tesão entre os personagens, vivos como a câmera de Matsumoto os seguindo e sendo intrusa na coreografia anárquica da dança e do contato, buscam colocar no espectador quais são as entranhas e atrações que regem aquelas pessoas, interessadas na liberdade, no prazer, mas sobretudo numa exploração política do urbano utópico que criaram para si – e do distópico que ocasionalmente encaram, como nas cenas cômicas de briga que Matsumoto faz questão de ressaltar como farsescas, à medida que para Eddie não é o grande confronto que a atormenta, seja com as mulheres cis que provocam ela e suas amigas na rua, ou mesmo no confronto com Leda na boate; sua dor é na busca pelo contato, pelo amor, pela aceitação simbólica da figura masculina que a mantém numa relação de abuso. É quando volta ao mundo dos jovens, nas festas conduzidas pelas drogas e pelo rock, que vive sem rodeios, a profanação dando forma ao dia a dia – ou à noite, no caso desse filme.

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Aos adultos, restam as máscaras, a ideia do visual como blindagem, e não expressão, à cidade. Algo corriqueiro no cinema de Mizoguchi, como tantos os outros diálogos que Matsumoto propõe aqui – e que discutirei mais tarde -, é a presença do teatro, das peças, do noh – a prática artística japonesa da dança de máscaras. O palco costumava ser o lugar desse espetáculo das máscaras, mas em Funeral das Rosas elas aparecem nos museus, sacralizadas, na parede, inatingíveis, castradas como monumentos. O retrato da solidão é bem visível na cena na qual Eddie se vê no chão do museu, a voz impessoal narrando a importância das obras ao redor, numa distância que nada conversa com a visceralidade do seu contato em outros ambientes. As máscaras que os homens usam para se esconder socialmente agora são simbólicas, mais estranhas, difusas, difíceis de assimilar. Essa impossibilidade da assimilação dos conflitos entre o que se sabe sobre Bem e Mal nos contos morais de Mizoguchi, um humanista dos ferrenhos e que sabia contornar com esperança nas pessoas as crueldades que filmava, se torna quase impossível de ser exercida na ebulição política do final dos anos 60. O ritual é a instituição da qual Mizoguchi retratava em seus filmes a ponto de organizá-los por vezes inteiro em torno da cerimônia como em 47 Ronin (1942) e Crisântemos Tardios (1939), histórias que terminam com gestos maiores que a vida, que atravessam o simbólico até quase chegar a conexão metafísica entre humanos e seus sentimentos. Como falar sobre ele num cotidiano vivo de mudança, de contemporaneidade, que quase se coloca como anti-ritual?

A entrevista de Yoshishige Yoshida coordenada por Pascal Bonitzer e Michel Delahaye para a Cahiers du Cinema em 1970 busca traçar algo dessa relação com os monumentos e cerimônias. Yoshida não cita Funeral das Rosas diretamente, mas filmes seus como Eros + Massacre (1970), também da chamada Nova Onda Japonesa, buscam tratar dessa relação explosiva entre passado e presente na cultura japonesa cinematográfica – de forma mais frontal politicamente, digamos. Em certa passagem, Yoshida fala que “De acordo com ele (Mizoguchi), a política é apenas um dos elementos que determinam a particularidade de um período histórico, e ele buscava ir até o cerne absoluto da situação. Mas nossa situação é mais complexa do que a de seu tempo; mesmo que alguém queira ter essa mesma visão, não seria possível chegar ao ‘cerne’ das coisas. No tempo dele era muito clara a distinção entre opressores e oprimidos, entre o poder e o povo. Portanto, o realismo de Mizoguchi era completamente eficaz. Ele era perfeito, mas isso não se aplicaria ao nosso tempo.”.

É uma distinção direta dessas novas formas contemporâneas com mais vertentes, mais estranhas, com ramificações complexificadas – o que embaça a visão das coisas, as torna mais plurais mas também mais suscetíveis aos enganos e ilusões. Matsumoto, como Yoshida, sabe desse estado delicado das novas verdades que são estabelecidas, das reconfigurações perigosas do poder e o como as resistências também devem ser debatidas, complexificadas. Isso passa, novamente, pelo plano político, estético, e comportamental.

Nessa inquietação da pluralidade que chega, Matsumoto recorre a dispositivos dos mais diversos para retratar a inquietude geracional do jovem não-hegemônico no Japão dos anos 60. O confronto contra o estado e tudo o que ele representa de normatividade, acessando o dispositivo do cinema direto nas entrevistas como ética etnográfica de ouvir aquelas pessoas que não são retratadas, porque a cidade e a cultura as consideram apêndices, contos não-requisitados. O amálgama estético de Matsumoto passa dos experimentos com textura ressaltada na película, o grão violento na imagem, ao contraste do negativo no qual uma cena de amor é filmada, chegando até as fotos que interrompem a narrativa volta e meia, de poses estilizadas surgindo como iconográficos marcantes dessa performance social que acomete todos os personagens, dos figurinos contemporâneos de Eddie aos ternos sóbrios dos homens que frequentam a casa gerenciada por Leda – não por acaso nomeada Genet, aliás, em homenagem ao escritor de Querelle. A furiosa tentativa do diretor de desvelar da narrativa clássica a linearidade (temporal e estética) assalta pela harmonia, surpreendente, por conta da fluidez na qual a trama de Funeral das Rosas se desenrola. Mesmo que sempre volte a Eddie, a bússola emocional do filme, a câmera procura outras histórias ali no meio como ampliação ideológica do tema no qual discute, como uma investigação.

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Funeral das Rosas já é estabelecido como um filme mais livre de dispositivos, então não há estranhamento quando surgem as entrevistas à cinema direto. Pelas perguntas curiosas, às vezes provocativas, às vezes desajeitadas (talvez propositalmente), Matsumoto extrai daqueles personagens uma interpretação dos próprios atores sobre suas ações, não apenas como um aceno metalinguístico como se tornou corriqueiro em uma parte do cinema contemporâneo, mas sim como uma proposta ética política de discussão, de dialética – algo trabalhado por Jean-Luc Godard em O Demônio das Onze Horas (1965), aliás, nos breves comentários sobre a guerra do Vietnã. A falta de necessidade de Leda afirmar a identidade alheia, diante das perguntas de Matsumoto, demonstra esse interesse social maior em expressar suas crenças e sua sexualidade que de fato propor um julgamento – ou organização – dessa corrente de pensamento do desejo. Existe o mistério dos olhares e da atração dos corpos, e interessa a Leda, como a Eddie, que ele seja respeitado.

Pîta, a estrela que interpreta Eddie, também é perguntada sobre sua personagem. O que elas se assemelham? O que escondem? Eddie não se furta a dizer o quanto ambas são parecidas, e “tirando a questão do incesto” são quase a mesma pessoa. Ambas sabem da performance diante das câmeras e o quanto ela reflete essa postura social de encarar na aparência uma articulação estética de identidade – e Matsumoto é feliz ao entrecortar Eddie se montando e o diretor experimental deixando sua barba postiça descolar, evidenciando que a performance visual está longe de ser uma questão de um gênero específico, e da transexualidade. A atuação cisgênero é real e violenta, não menos marcada que a de Eddie e Leda, apenas mais normalizada pela sociedade.

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E no que é a normatização social o mundo dos homens japoneses aparece, sujo pelo dinheiro e pelo trabalho, como representante da manutenção. Matsumoto estrutura o filme em volta do triângulo amoroso entre Eddie, Leda e Gonda, e a dinâmica de poder é sentida desde a cena pré-créditos, na qual Eddie vê Leda na rua. A trama do triângulo amoroso aparece a revelar essa dinâmica perversa do homem que se faz valer do carinho de duas pessoas para as manter sob controle, sempre no pêndulo desarranjado do prazer cuja comunicação passa pela desonestidade da mentira para suas duas amantes. Tanto Leda quanto Eddie sentem o desconforto da situação e o expressa na rivalidade entre si, seja estética, de idades, ou geracional. O ideário da geisha “clássica” aparece cumprido por Leda, com seu quimono e seus rituais, os passos comedidos, a suposta elegância e subserviência. À Eddie é ressaltado o ícone do presente, das roupas estilosas contemporâneas, do cabelo curto, da maquiagem estilizada, do flanar nas ruas, da agressividade e do movimento jovem. Que Matsumoto coloque essas duas personagens, mulheres da noite, para se confrontar aparece como comentário dessa herança dos contos que Kenji Mizoguchi retratava quando se dispunha a falar sobre as agruras das mulheres preteridas pela sociedade, frequentemente prostitutas. Mesmo com toda a roupagem contemporânea, de quem forja identidades para si como forma de assassinar a facadas a disposição de comportamentos japoneses, existe nessas relações e nos homens que dominam os meios (no caso, a boate, e também a atenção das duas personagens) uma perversidade de controle, evidência de uma profunda raiz distorcida de lógica familiar. Tanto Eddie quanto Leda são solitárias às suas maneiras, e usam das identidades para burlar essa solidão as quais foram relegadas por um mundo corroído. É quase desolador quando nos vemos diante de uma reforma do mito de Édipo, porque se percebe que a sociedade guarda para a dinâmica familiar a crueldade final.

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E nessa luta constante pelo desejo, por achar no mundo o prazer que lhe foi negado pelo abraço a uma identidade marginal, não existe frustração maior para Eddie que se ver vítima do destino, de estar refém do arquétipo condenado que repete o mito de Édipo, sem conseguir escapar das tragédias antigas. É como se o clássico desse um jeito de espremer as entranhas do novo, cuja herança familiar tão negada vem com sua força arrasadora para impedir a revolução. A negligência com a família se alastra para seus outros círculos sociais, o abandono como punição moral (não moralista, vale ressaltar) pelo alcance assustador das ações desses homens poderosos em busca do gozo. Não é que Matsumoto condene Eddie pelo assassinato simbólico do pai e literal da mãe, nem encara como punição dos astros, do acaso, do destino que seja, o caos do final; ao diretor interessa o desarranjo da família como catalisador da mudança, do pai que colhe o que plantou porque esparramava a falta de ética em todas as relações em que entrava. A raíz da família e do trabalho são podres porque partem da mesma disposição desses homens que foram ensinados a vocação do poder. A questão é que essa vocação gera uma covardia na performance social, uma tentativa de contenção e manutenção, a História não transcorrendo porque lhe foi tolhida a destruição dos signos e rearranjo das coisas, a transgressão e as novas buscas dos jovens, a revolução se formos simplificar. As pontes culturais entre um Japão de 1968 e de um Japão do século X, digamos, são infinitas, difíceis de interpretar e por vezes de catalogar, e o que a juventude se presta a buscar dos antigos, ao renegá-los até os ossos, às vezes são apenas a ideia de que é preciso se ornamentar na hora de lutar – porque as jóias e as espadas falam da importância de se colocar diante do desafio.

À cidade de Tóquio, retratada pelas vielas e pela noite e pela agressividade, resta a destruição, um fim do mundo anunciado pelo próprio filme ao se voltar para uma das paisagens conhecidas da metrópole. Se não existe espaço para essas pessoas então que o país afunde logo de uma vez, afinal é de decisão dos jovens a permanência ou aniquilação do presente.

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Referências:

¹ – https://www.japantimes.co.jp/culture/2017/11/19/arts/1968-year-japan-truly-raised-voice/

² – https://www.diagonalthoughts.com/?p=2248

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Marginal não filma: Ladrões de Cinema

Por Pedro Tavares

“Vejam vocês que desplante. Como se cinema fosse coisa de marginais (…) porque marginal não filma”.

Apresentador de TV em Ladrões de Cinema

Eis a faceta do cinema brasileiro: estar à margem. Fernando Coni Campos segue à margem inclusive na memória do cinema brasileiro com seu Ladrões de Cinema, um filme-epítome da natureza do cinema nacional, enquanto corre em paralelo uma análise espelhada da história do país. André Bazin ao se debruçar na obra de Henri-Georges Clouzot no seu célebre O que é o cinema? afirma que o cineasta francês considerava somente a criação artística como elemento espetacular autêntico, isto é, cinematográfico, porque é essencialmente temporal.[1] Se homens que roubam o material de cineastas americanos e resolvem fazer seu próprio filme na favela – ou seja, a história que o “asfalto” não se interessa em assistir por exibir suas chagas morais – o desplante é o simples ato de co-existir temporalmente com aqueles que estão no lado do privilégio, e que Ladrões de Cinema ignora solenemente.

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É notório que em Ladrões de Cinema a revolta se dá na junção do olhar de Deus, como se os personagens estivessem geograficamente acima daqueles que Coni Campos alveja.  Não é um tipo de obra de vanguarda e de crítica às imagens produzidas por estes homens ou a construção de imagens ideológicas. Lhe interessa subverter a regra básica da subtração urbana: não se rouba ou mata para vender e sim para dar um novo sentido ao dispositivo. A história de revolta de Tiradentes, o filme dentro do filme em paralelo ao processo de filmagem, também exibe as intromissões libertárias dos acontecimentos históricos. Os tais ladrões de cinema dão a esmola obrigatória que os americanos nos solicitam. Enquanto se filma um processo de descoberta dos moradores-atores, o cinema, sua história e mercado são fuzilados ou homenageados por Coni Campos.

Seja pelo português que alinha relações de poder com esta equipe de cinema ou pela simples postura do “diretor” que zomba dos filmes de arte nos primeiros minutos de filme, Brasil e cinema se misturam numa amálgama muito instigante em seu processo que elimina qualquer interação com a marginalidade desses personagens – o julgar está à mercê das duas colunas morais da sociedade: a TV e a polícia. Para Coni Campos a chave está em como esta equipe sairá das arapucas criadas pelo “fazer”, de uma naturalidade impregnada na cultura de sobrevivência do cinema brasileiro sem qualquer abordagem sobre um possível estranhamento às nossas condições precárias.

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Este processo é como um simples curso da concepção – e aqui vale notar como Ladrões de Cinema é completamente ignorado em cursos de cinema, que inclinam-se ao dízimo dos cowboys que Coni Campos ilustra. É a pura e inconsequente tanatopolítica. Vai da ideia na mesa do bar, do roteiro que é uma negociata, à produção que é um eterno exercício de criatividade e de aprendizado. Na mesma medida em que celebra o cinema, sua formulação como um norte de reflexões a respeito da sociedade, Coni Campos pega o caminho inverso e celebra as reflexões como essência deste tipo de arte. Coni Campos optou por não construir imagens de destruição e sim, à moda antiga, narrar a destruição.

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E este caminho segue pelas referências ao cinema novo, dando a ele uma sequência inteira ou pela a quebra total do silêncio entre campo e contracampo numa sugestão de diálogo e uma nova visão destes “marginais”. A visão antagônica é preponderante e corta todo o filme como pensamento alienado de uma classe invisível à câmera, mas que motiva a ação geral de Ladrões de Cinema. A história do Brasil não reside numa persona específica e sim num pensamento geral. Para um país que investe tanto em cinebiografias, é intrigante que este filme continue como um retrato muito atual sobre o país que inibe qualquer criação artística e consequente circulação fora do âmbito aristocrático.

[1] Idem.

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Contra o silêncio do amor, a poesia e a revolta: Um olhar sobre Tongues Untied de Marlon Riggs

 

Por Chico Torres

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Quero agradecer a contribuição de Janderson Felipe e Lucas Litrento. Ambos me abriram os olhos para o cinema e para a literatura negras. Dedico este texto a eles.

 

Sou uma máquina de escrever excitada. Egoísta, sábia, um soneto, um beatbox (…) Molhe-me com a língua seguinte, com um coro ressoante de homens adultos apaixonados” (trecho de um poema lido por Essex Hemphill em Tongues Untied).

 

Uma língua desatada está disposta tanto à fala quanto ao prazer. Uma língua liberta clama por palavra e saliva, mas quando está presa o que se ouve é apenas o silêncio. Tongues Untied (1989), de Marlon Riggs, é sobre quebrar esse silêncio através da língua em sua mais alta potência. A obra põe em diálogo elementos que, em um mundo cartesiano, podem ser vistos como antagônicos, mas que lá coexistem perfeitamente simbolizados por aquilo que a língua pode suscitar: sexo e razão, política e poesia, corpo e alma, som e silêncio.

O filme pode ser classificado de diversas formas: documentário, ensaio, manifesto, mas tudo isso sob um elemento norteador: o relato autobiográfico. Seguimos as memórias de Marlon Riggs, monólogos sobre experiências e traumas de um norte-americano negro e homossexual durante a década de 1980. Sua expressão física e intelectual é uma mistura de ancestralidade, raiva e melancolia. Riggs mostra através do seu corpo e de seu texto a exata proposta do filme: denúncia e valor documental sobrepujados pela poesia, pelo poder da voz, do som, da liberdade da mente e do corpo. Ele não está sozinho em seus monólogos, há uma série de personagens que o representam: homossexuais, poetas, artistas, mas também homens raivosos. É dá boca de Essex Hemphill, a voz responsável por todas as intervenções poéticas do filme, que ouvimos que “é mais fácil ficar furioso do que se emocionar”. Aqueles homens compartilham da mesma dor e do mesmo desejo de viver plenamente seus talentos e sentimentos, mas que são impedidos pelo racismo e homofobia cotidianas. Antes de panfletário, Tongues Untied é um filme sobre a possibilidade de amar.

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Vivendo de amor, texto de Bell Hooks, desenvolve um olhar sobre como o racismo em toda a sua complexa estrutura é responsável pela falta de expressão de afeto entre pessoas negras, sobretudo mulheres, já que, para o racismo, elas são estereotipadas como “mulheres fortes”, enquanto os homens negros como engraçados e infantiloides. Segundo Hooks, expressar afeto se torna uma tarefa árdua quando o que sempre se impõe é a noção de sobrevivência. Como amar se o tempo todo se viveu violência e perseguição? “Somos um povo ferido. Feridos naquele lugar que poderia conhecer o amor, que estaria amando. A vontade de amar tem representado um ato de resistência para os Afro-Americanos. Mas ao fazer essa escolha, muitos de nós descobrimos nossa incapacidade de dar e receber amor.” Amor como ato de resistência, não há melhor expressão para definir as intenções de Riggs e todos aqueles que o acompanham enfrentando a câmera. Ao olhar retrospectivamente, não é exagero dizer que esse tipo de problematização faz parte de uma tradição artística produzida por pessoas negras, basta pensarmos em Alice Walker e James Baldwing, ambos escreveram livros que tratam das dores e superações de personagens que estão em busca da compreensão e da realização do amor.

“Não importa quão bem construída a casa, não importa quão alta se eleve, ela precisa estar apoiada em algo” (provérbio africano citado em Black is Black Ain´t)

Em sua complexidade discursiva, Tongues Untied dá conta de temas centrais que se relacionam ao que é ser um homem negro e homossexual nos EUA: racismo em suas expressões físicas e verbais; a violência das ruas e a policial; preconceitos com soropositivos; opressão religiosa. De modo mais profundo, é igualmente sobre questões sutis que estão no âmago do ser complexo de Marlon Riggs. Por exemplo, a imposição ideológica e estética que se manifesta no próprio Riggs, quando revela que  desejava apenas homens brancos em sua juventude. Há também o desmascaramento da homofobia dentro da própria comunidade negra, e Riggs exemplifica isso com ícones do entretenimento (Eddie Murphy e Laurence Fishburne) para mostrar o quanto esses sujeitos perpetuam o preconceito em seus shows.

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Todas essas coisas são a faceta do silêncio. A obra tem uma carga pessimista e trágica, não estamos olhando para outra coisa que não a realidade desses homens, suas histórias, seus dilemas e todo o silenciamento que os cercam. Mas esses aspectos estão sempre sendo confrontados através da poesia, da linguagem corporal e da vivência do amor entre esses homens. “brother to brother” é repetido como um mantra no início e no final do filme, afirmando a vontade de criar e expressar afeto, música e palavra de ordem. A língua desatada que faz versos e constrói o rap; línguas e dedos que estalam para expressar pertencimento e linguagem corpot; o canto e a dança que ressaltam a beleza da linguagem artística e corporal daqueles homens tão guetificados. Todos esses elementos se reúnem como modos de resistência sob um olhar poético penetrante, como se suas vozes estivessem sendo sussurradas em nossos ouvidos, mas que na verdade são gritos de revolta.

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Então você pega um pouco de cor. Pode ser uma pitadinha ou uma colherona, não importa. Aí você mistura com um monte de características físicas que reflitam todos os rostos que existem nesse mundão. Misture tudo isso com uma cultura que simplesmente ama improvisar, dar significado, reivindicar, renovar e ler. E aí está a receita para fazer o povo negro” (Angela Davis em Black is Black Ain´t).

Em Black is Black Ain´t (1994), último filme de Riggs, assistimos comovidos, tanto a sua luta contra a AIDS como o seu empenho para quebrar novamente o silêncio, trazendo a questão da negritude em um sentido mais abrangente e afirmativo. Sua busca neste filme, diferentemente do que acontece em Tongues Untied, é mais propositiva e dialoga diretamente com questões internas das comunidades afro-americanas, mas sem perder o olhar reflexivo e poético característicos do diretor, que nesse filme conta com contribuições de nomes como o de Angela Davis, Bell Hooks, Michele Wallace e Cornel West. Compreendemos a luta, a beleza e a inteligência de Marlon Riggs, seu desejo pela palavra, pela imagem, pelo som, pelo amor. Com sua curtíssima obra, me parece ter conseguido ser um dos mais sofisticados documentaristas e ensaístas do cinema negro de todos os tempos. Foi poeta e sabia que o amor é um ato revolucionário.

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Anotações sobre o grau zero da diferença: o cinema de Apichatpong Weerasethakul e curadoria como cura (e como isso tudo se aproxima de uma ideia de revolta)

Por Geo Abreu

Era um dia de isolamento social e eu voltei ao cinema de Apichatpong Weerasethakul na tentativa de explicar aos alunos de iniciação ao vídeo os motivos e temas do cinema de fluxo. O filme era Tropical Malady, do qual eu pouco lembrava. Esse reencontro com o filme de 2004 me levou também ao cinema contemporâneo brasileiro, que há décadas parece girar num movimento de sempre-retorno macunaímico, cinema de índio, de preto, de arigó, de favelado, na tentativa de se afirmar nacional e universal, de se conectar com cinemas semelhantes, encontrar uma voz perdida que conte histórias de maneira desregulada, mística e doente.

Abraçar essa pecha de doença tropical, de sub-bactéria infernal, é algo que o Apichatpong faz e com doçura. Primeiro achei que tinha me conectado a obra dele porque a cor dos filmes e das pessoas [entre amarelo, preto e marrom, com muito verde de fundo] me lembrava a Amazônia. Fantasmas (aka visagens), onças, macacos e xamãs, a testa ensebada dos protagonistas, os dentes desalinhados, o sorriso infantil, as casas de madeira, distante do cinema comercial comédia-de-shopping, e próximo de quando abro qualquer janela pra rua de casa.

Em maio acompanhei as discussões entre curadores do Cachoeira Doc, a edição online realizada em meio a pandemia e que se autodenominou Festival Impossível com uma Curadoria Provisória & Filmes para se estar junto nesse período de confinamento. Nessa aposta de curadoria a conectividade entre os filmes se dava pelo entendimento da ação curatorial como cura; a curadoria como constelação de possibilidades de imagens que gostaríamos de ver e das quais precisamos – sem saber – para entrarmos num processo de libertação de tantos anos de apagamentos e silenciamentos em certa produção cinematográfica. É libertador demais pra um realizador de periferia assistir a Relatos Tecnopobres[1], de João Batista Silva, e finalmente encontrar eco num festival de cinema. Se procurarmos bem, a ideia de revolta que liga essas minhas anotações a proposta do dossiê da Multiplot está entre isso e a antipropaganda das comédias-de-shopping.

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Ainda sobre o cinema de Apichatpong, alguns estudos[2] apontam nele aspectos do perspectivismo ameríndio, esse modelo filosófico baseado em traduções de cosmologias indígenas que operam numa lógica relacional de predação e da centralidade do corpo como materialidade fundamental de expressão da cultural, e lendo algumas entrevistas do diretor, sabemos que há menos de filosófico que de intuitivo na abordagem dos personagens em seus filmes. Aqui cabe mencionar que cada vez mais teóricos indígenas têm sido chamados a dar opiniões sobre um mundo que se acaba, como naquela letra do Caetano em que um índio descerá de uma estrela colorida brilhante e aquilo que ele dirá surpreenderá a todos, não pelo exótico, mas pelo óbvio no fim de tudo.

As florestas tailandesas ganham estatuto de pessoa nos filmes do Apichatpong, assim como as montanhas do Vale do Rio Doce conseguem se comunicar com os Krenak, como diz o Aílton. Parece tão difícil pra nós, criaturas urbanas, voltar a esse grau zero da diferença e imaginar que estejamos mesmo todos conectados e que performar identidades fixas não faça sentido num jogo de perspectivas mutáveis, que variam de acordo com as trocas de cenários e dos atores em cena. Em estado de vigília permanente acreditamos que trocar a casa de taipa pelo prédio de concreto traz segurança e nos tornamos cínicos ao descobrir que deus não existe quando as notas do caixa eletrônico acabam bem na nossa vez.

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Aproximar esse cinema e essa teoria antropológica baseada no erro comunicativo e na necessidade da tradução diplomática de conflitos – você também vive com a sensação de que uma palavra infeliz pode virar literalmente uma arma apontada pra sua cara? – é interessante pra mim e pros meus porque fortalece – atenção pro óbvio – a nossa existência como pessoas, valida nossas/outras perspectivas, e nos permite uma aproximação precária a esse sistema excludente: o cinema (eu poderia ter escrito capitalismo aqui, mas como não há fora, resolvi assim). Aqui vai um beijo pro meu amigo André Sandino que um dia me disse que a gente trabalhava com um negócio que não foi feito pra gente, sabe Geo?

Se há uma revolta aqui é com protocolos de cinema comercial que excluem modelos precários de contar histórias e suprimem diversos relatos tecnopobres de avançar e encontrar com seus públicos. E a escolha por filtrar o mundo através do perspectivismo pode ser entendido como um motim programático contra a narratividade comercial. Assumir que o corpo seja a única máquina e a única câmera possível, saudar a centralidade desses corpos invisíveis e elaborar suas histórias é uma das armas que devemos forjar para recomeçar o mundo.

Curar festivais de rua e montar um telão no meio da praça e elaborar pensamentos difusos sobre o mundo entre o barulho da Baía do Guajará ou da Guanabara, tiros, gritos, co(r)pos tilintando e uma imagem enorme, um frame do filme, do qual só lembraremos do essencial amanhã. Esse modus operandi Exu, de conexão e fruição, de estabelecimento de ligações entre sentidos dispersos, como partículas de saliva que a gente tem precisado evitar é o que forma o melhor do pensamento macunaímico. Já que a tranquilidade agitada dos filmes do tailandês Apichatpong parece difícil de alcançar por aqui é preciso abordar a realidade como possível.

 

[1] http://www.cachoeiradoc.com.br/festivalimpossivel/relatos-tecnopobres/

[2] https://www.redalyc.org/jatsRepo/814/81457433002/html/index.html

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A revolta das opacidades, ou o pop e a ultraviolência na virada do milênio japonês

 

por João Lucas Pedrosa

Perfect Blue mostra pela primeira vez o rosto de sua protagonista por volta de 2min40s de filme. Formas desfocadas que sugerem um túnel correm para a direita para revelar uma ampla visão em movimento da cidade. O enquadramento recua e revela o semblante de Mima Kirigoe refletido no vidro de uma janela. Nosso primeiro contato com os traços pelos quais a identificaremos ao longo do filme – e que, portanto, supostamente representam sua identidade – é por um reflexo sobreposto à concretude do espaço externo. Mima está do lado de dentro, apartada, e a barreira entre esta e aquele não é apenas o vidro, mas a sua própria imagem, que dificulta uma visão clara da vista. Apenas o plano seguinte localiza a cena dentro de um vagão de trem, de forma que, antes do corte, existe apenas a personagem, o mundo, e uma impossibilidade relacional.

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Parte respondendo a tendências da época, parte estranhamente premonitório de um zeitgeist vindouro, o primeiro longa de Satoshi Kon lançou em festivais num ano peculiar da história japonesa recente. Uma bolha financeira e imobiliária inflacionada que estourou em 1991 levou, enfim no ano de 1997, à falência em série grandes instituições bancárias que equivocadamente investiram em seus ativos ao longo dos anos.[1] É também o ano em que Shinichiro Azuma, 14 anos, assassinou duas crianças de 10 e de 11 anos, respectivamente. Deixou a cabeça da última, o menino Jun Hase, em frente a uma escola secundária com um bilhete enfiado na boca. Nele, ameaça continuar matando para se vingar do “sistema educacional compulsório”. Azuma é preso após mandar uma carta para um jornal local: “Eu só consigo me libertar do ódio e me sentir em paz quando estou matando alguém. Só vendo outros sentindo dor, eu consigo aliviar a minha.”.[2]

Ele é o marco inicial de uma feroz onda de delinquência juvenil que marcaria a virada do milênio japonês. As oportunidades de emprego continuam diminuindo e a excelência acadêmica é essencial para a definição de um futuro. O rigor das escolas é mantido, mas os alunos nunca foram tão frustrados, desrespeitosos ou violentos. Agressões físicas a professores não são mais inconcebíveis, e o bullying institui na adolescência comum o direito do mais forte, levando à introversão exponencial dos alunos abusados. O alheamento causado pela televisão e pelo computador é eleito culpado direto segundo comentaristas e políticos conservadores nacionais, já que não tão raramente crimes partem de jovens retraídos e famintos por evasão. A maioridade penal desce de 16 para 14 anos. O comportamento predominante da juventude é a alienação e a ultraviolência.[3]

A protagonista de Perfect Blue está abandonando a carreira musical como líder do grupo j-pop CHAM para investir na atuação televisiva. Ela deixará de ser uma idealização feminina de pureza e alegria para incorporar papéis difíceis e violentos. Sua imagem é violada por dentro (num dos papéis, ela assassina alguém como consequência de um transtorno dissociativo) e por fora (noutro, ela é uma stripper que sofre estupro coletivo sobre o palco em que dançava[4]). Essa maculação gera atentados e assassinatos contra seu agente, contra o roteirista de sua série e contra o fotógrafo de seu ensaio nu. Mas a ameaça não é só externa. Mima perde vertiginosamente noção do limite entre real, interpretação e alucinação, uma difusão que se prenunciava desde a montagem paralela em que integra o plano revelador de seu rosto: por meio de um falso raccord, seu balançar de braço no vagão torna-se o mesmo movimento feito sobre o palco em sua apresentação de despedida. Procedimentos formais similares se dão quando falas se repetem em diferentes circunstâncias, circunstâncias se repetem em diferentes ambientes, ambientes se alteram num piscar de olhos, encenações e acontecimentos se espelham e se sobrepõem. Ao longo do filme, essas falsas continuidades e familiaridades viram reflexos da moribunda lucidez da protagonista, jogando-nos no abismo ao confiar por instinto numa sugestão de linearidade.

Desenfreadamente, a subjetividade de Mima se desfaz – desfaz-se sua condição de sujeito. Ela não sabe se é Mima Kirigoe, atriz, personagem, cantora, e até mesmo se inocente ou culpada das mortes à sua volta. Em dado momento, a Mima-virtual (seu primeiro produto em imagem, das tevês e monitores) afronta a Mima-sujeito de dentro do computador, dizendo ser a “verdadeira Mima”. Ela sai da tela e pula janela afora, após a promessa de retomar seu lugar. A imagem não mais é apenas uma barreira na relação entre Mima e o espaço, mas é quem exerce a função de agente dentro dele, no mundo concreto.

A bidimensionalidade opaca das figuras animadas, assim como próprio o formato animado, têm peso discursivo, autoral. Kon percebe que a potência da animação está no traço que compartilha com o cinema filmado: a ilusão de movimento. Ilusão, esta, que rivaliza o real e o simulacro, tornando a obra um quebra cabeça de (i)materialidades. Faz também parte da ludibriação dos estímulos o número de frames usados por segundo em cada personagem ou momento de filme. Cenas animadas a 10FPS, principalmente as de cotidiano, são alternadas com ou justapostas a movimentos mais cadentes e palpáveis, geralmente feitos com apoio de rotoscopia (animação pelo contorno direto de um corpo/objeto filmado). A técnica, além de copiar para o traço o movimento, reproduz em sua opacidade plástica a ação da gravidade sobre os corpos, conferindo às cenas uma mistura entre familiaridade e estranhamento (o famoso uncanny valley). A cadência dos corpos é particularmente hipnótica e flerta com o fetichismo quando Mima performa sobre palco ou sobre tela, e é particularmente assombrosa na cena do assassinato do fotógrafo, em que tudo exala uma corporalidade cruamente agressiva e responde ao fetiche com o horror. Os ápices sensoriais do filme se dão, assim, no encantamento do simulacro e na fisicalidade da violência: as reações conseguintes da juventude pós-estouro da bolha.

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Se a animação ganha involuntariamente tom premonitório, é principalmente pela rica formulação de um descolamento subjetivo com a realidade urbana concreta. Decerto que o simulacro não opera como gatilho da violência, mas de vertiginosa sublimação individual num sistema social de severa contenção física e subjetiva em prol da produtividade, na época em decadência. O funcionamento nipônico usual é o do sacrifício. Pelo bem maior, pela manutenção do ritmo coletivo (que, em última instância, é o da economia nacional). Mas a crise de uma ideologia da unidade corpórea e mental entre indivíduo e nação, iniciada com a derrota na Segunda Guerra e aprofundada com a modernização econômica conseguinte (mote central da filmografia de Ozu), esgarçou-se com o tempo e desembocou na violência anárquica como resposta extrema.

É partindo das reconfigurações dessa relação que o horror satírico de Sion Sono, O Pacto (2002), opera. Na cena de abertura, cinquenta alunas secundaristas se jogam, de mãos dadas e cantando em gracejo até três, nos trilhos do trem. A sequência é frenética e ironicamente ornada por uma trilha folk alegre e dançante, enquanto os passageiros horrorizados à plataforma são banhados por violentos jatos de sangue. Apenas um plano mostra uma jovem tendo sua cabeça esmagada de forma cartunesca pela roda do trem, todo o resto é o devastador efeito: uma surreal chuva vermelha, tão poderosa que cobre tudo e todos no local e quebra o vidro da janela de um dos vagões. O passar do trem gera um jorro tão forte que obstrui a objetiva da câmera – uma resposta ácida a L’Arrivée d’un train à La Ciotat (1895), dos irmãos Lumiére, símbolo da modernidade e do advento do cinema: o sangue faz irrefreável o andar maquínico, que por sua vez só gera ainda mais sangue. A sanguinolência cumulativa representa o peso social massivo do acontecimento que, como no caso dos crimes de Azuma, será o primeiro de uma onda suicida no país.

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Os suicídios que se dão, entretanto, são expressivos exatamente pelo seu teor anti-sacrificial. A fracassada busca policial pelo suposto “culpado” do ocorrido é, em última instância, uma busca pelo seu sentido. Ela parte, certamente, de algumas evidências que sugerem conexão entre os eventos (como os rolos de pele deixados nas cenas “de crime”), mas também da lógica cultural que gerou o seppuku, esse gesto final de honra e dignidade por samurais e ronins após serem capturados por inimigos ou terem seus senhores feudais mortos. Porém, os gestos, se entendidos enquanto “movimentos expressivos a um interlocutor”, são nada confiáveis neste filme: os suicidas são sorridentes e jocosos[5], e a escolha pela autodestruição parece nada além de um paradoxo. Uma enfermeira, ao abrir a janela e sentir o vento pelos cabelos, diz ao segurança do hospital que se sente ótima num tom satisfeito consigo mesma logo antes de se jogar pela abertura. Uma dona de casa, no imparável cortar de um legume, fatia junto seus próprios dedos em frente à filha pequena (formando um riacho de sangue pela pia, o movimento automático sempre a vazar um abundante vermelho) sem abalar o sorriso ou a serenidade de seu semblante. O indivíduo se faz opaco, ilegível ao coletivo, pois o seu gesto traz uma camuflagem automática, cuja espontaneidade verdadeira surge com a violência autoinfligida. Qualquer pessoa, a qualquer momento e em qualquer lugar, sem qualquer sinal prévio, pode vir a brutalmente se matar. A opacidade social faz das reais intenções de cada um uma completa incógnita, até o corpo que a performa entrar em combustão.

Se apenas o suicida sabe o porquê do suicídio, é porque, a priori, ele é um ato individual, cujas motivações podem nascer e morrer dentro da subjetividade que por ele decidiu. Se ele é um ato individual, descolado e independente do coletivo que o corpo como agregado, tem potencial subversivo. À medida em que é feito em grupo, torna-se um ato anárquico. Mas à medida em que é ferramenta de um gracejo jovem, torna-se entretenimento. O caso das jovens ganha grande atenção e, em consequência, inspira ecos performáticos. Na manhã seguinte ao incidente das secundaristas na estação, estudantes no terraço de uma escola brincam incitando o suicídio uns dos outros. Uma moça, a fim de atenção e instigada pelos colegas, se posta à beira do terraço, ameaçando fazê-lo para fundar o “Clube do Suicídio”. Uma outra se posta a seu lado, falando que faria de verdade, diferente dela. Cerca de 10 alunos se juntam no total. Dão as mãos, contam até três e pulam… mas três sobram. Nem todos levaram de fato a sério. Uma das que sobrou vai até um rapaz catatônico e o puxa junto consigo para baixo, contra a vontade dele (“Temos que morrer”, ela diz). Alunos e professores correm para salvar a única que ainda não pulou: a primeira a subir na beira do terraço. Ela incitou todos, agora não pode ser a única a viver. Ela se vira para trás e diz: “Clube do Suicídio. Nós somos os fundadores do Clube do Suicídio.” e pula.

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A cena se destaca no filme sem fugir de seu tom geral por desenhar complexidades e contradições que surgem da opacidade comportamental, e por ela se sabotam. O tortuoso encontro entre inconsequência pueril (lidar com o suicídio como um jogo adolescente), joguete performático (fingir querer se suicidar até que seja verdade), coerção do coletivo (não poder voltar atrás quando todos os outros já seguiram em frente) e desejo de status (querer impressionar os colegas seguindo com a ideia errada e, em última instância, ser marcado como “fundador” da mórbida associação) explica a morte de outro número significativo de estudantes, nuances que apenas existem pela hesitação dos três adolescentes. Um evento deslocado do primeiro, mas que será tomado pela polícia e pelos jornais como a formação de uma tendência. Eis, então, que o “Clube do Suicídio”, ao partir de diferentes grupos jovens e sob a alcunha de “clube”, torna-se uma sorte de moda, aderida em massa. Sequências de violência como a cena de abertura são guiadas pela trilha, num conjunto que flerta ironicamente com o formato de videoclipe. O pop japonês, também aqui, se sobrepõe à ultraviolência anárquica, mas no que tange sua fome de potência performática e de produção de seguidores. Numa cena, Gênesis, o líder de uma gangue de assassinos seriais (interpretado pelo músico Rolly Teranishi) canta e toca guitarra para uma informante da polícia que sequestrou, enquanto um de seus capangas estupra e mata uma moça a facadas. Ele a deixa entregá-lo e ser falsamente culpado pela histórica onda de suicídios mídia nacional afora: o que ele queria era ser um ícone pop, o rosto por trás da moda da morte (sua falsa Gênese). Mais uma vez, as instituições do coletivo caem nas pistas fajutas da performance.

Sono demoniza menos o pop que o sistema subjetivo em que ele é ferramenta. A raiz de tudo está, ironicamente, numa banda adolescente de j-pop chamada Dessert. A namorada de um fã que se jogou do alto de um prédio encontra pistas que a levam aos bastidores do próximo show da banda, onde descobre um culto presidido por crianças. Sobre um palco, e com um holofote sobre sua cabeça (o teste final da integridade se dá no lar da performance, do distanciamento do si intrínseco), os menores, no auge da idade curiosa, atiram, da platéia, perguntas de fervor existencialista: “Você veio refazer a conexão consigo mesma? Ou veio destruí-la? (…) Está conectada consigo mesma como eu e você, como você e seu namorado?”. Ela responde com um impaciente e seguro sim. O questionário do culto punha em cheque única e simplesmente o quanto o ser é sujeito e o quanto é dependente do outro – em última instância, se existe além da opacidade que usa para funcionar em coletivo. Sob a salva de palmas da plateia, cai um pano com alegres desenhos infantis coloridos. Era redescobrir a existência no mundo com os sentidos mais primários a resposta de tudo?

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Mima também só triunfa com a autoafirmação em meio à anarquia dos sentidos. Ela descobre que sua gerente, a ex-pop idol Rumi Hidaka, teve um surto psicótico e assumia a personalidade da Mima-virtual, sob a qual cometeu os crimes. Tudo culmina num embate final entre a Mima-sujeito e sua imagem, corporificada em Rumi. Em fuga, ela pula da janela de seu apartamento e corre pelas ruas gritando por ajuda, sangrando com a facada que tomou no ombro. Ela restabelece o contato com o concreto à sua volta, com o concreto de seu corpo.

Tempos depois, saindo do centro psiquiátrico em que Rumi está internada, nossa protagonista tem outra identidade visual. Duas enfermeiras se perguntam se era de fato a Mima Kirigoe ou alguém parecido. Dentro do carro, no banco do motorista (ela não mais é levada por um trem – talvez o sob o qual as secundaristas se jogaram – mas agora guia o próprio deslocamento), Mima quebra a quarta parede no plano final do filme, olhando-nos pelo retrovisor e proferindo num sorriso: “Não, eu sou a real!”. O jogo entre imagem e realidade não vai terminar, e, mesmo que não saibamos onde ir, a capacidade do movimento é segura com a certeza do existir.

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[1] “Japan’s Financial Crises and Lost Decades – Federal Reserve ….” https://www.dallasfed.org/assets/documents/institute/wpapers/2014/0220.pdf. Acessado em 17 jun.. 2020.

[2] “14-Year-Old Arrested in Japan for the Brutal Slaying of a Child ….” 29 jun.. 1997, https://www.nytimes.com/1997/06/29/world/14-year-old-arrested-in-japan-for-the-brutal-slaying-of-a-child.html. Acessado em 17 jun.. 2020.

[3] “Violent juvenile crimes in Japan point to a deeper social crisis ….” 18 out.. 2000, https://www.wsws.org/en/articles/2000/10/jap-o18.html. Acessado em 18 jun.. 2020.

[4] A representação do corpo violado (em predominância o feminino) é particularmente simbólica na cultura japonesa, frequentemente retomada em momentos de turbulência sociopolítica. É expressivo, portanto, que no filme as vítimas sejam os homens produtores dessa imagem. Sobre o assunto, há a tese de doutorado de Marcia Regina Casturino, Autonomia e sujeição na aporia da modernidade japonesa: Representações do corpo violado como expressão política. Disponível em: http://www2.dbd.puc-rio.br/pergamum/tesesabertas/1211382_2017_completo.pdf

[5] O suicídio sorridente é, interessantemente, uma imagem que aparece em trabalhos de Satoshi Kon: a corrente de executivos risonhos que se jogam em mergulho sincronizado do topo de um prédio corporativo em Paprika (2006), e a abertura de Paranoia Agent (2004), com seus personagens gargalhando em cenários de desolação. A primeira é a protagonista, rindo descalça do topo de um prédio.

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Entrevista: Luiz Pretti

Por Pedro Tavares

Coletivo-Alumbramento
Estrada Para Ythaca

Junho, 2020. Pouco mais de dez anos do prêmio dado para Estrada Para Ythaca na Mostra Aurora dentro da 13ª edição da Mostra de Cinema de Tiradentes, tive a oportunidade de conversar com Luiz Pretti que, à época, junto de Guto Parente, Pedro Diógenes e Ricardo Pretti dirigiu, produziu e escreveu o filme e compunha a Alumbramento. Muita coisa aconteceu para a Alumbramento desde então, inclusive o encerramento de suas atividades oficialmente como um coletivo, ainda que seus integrantes colaborem uns com os outros em seus respectivos filmes. Para o cinema brasileiro, na última década, o turbilhão foi ainda mais intenso. Da ascensão da produção de filmes independentes, cursos e mostras de cinema ao declínio que chega à máxima intensidade em plena pandemia. O que naturalmente serviria como um papo-celebração sobre o trabalho de um modelo-chave de produção independente nos últimos dez anos virou um diagnóstico sobre como a união e poesia trazem a mínima sensação de liberdade em tempos de revolta.

Começo pulando algumas etapas na linha do tempo falar sobre um momento muito simbólico para a carreira da Alumbramento que é a cena-motim final d’Os Monstros. A cena do free jazz, especificamente. Gostaria que você falasse um pouco sobre a criação e a sensação sugerida por ela.

Luiz: Cara, a palavra motim a princípio me remete a algum tipo de relação com uma força maior, geralmente representado pelo Estado, pelo exército. Nesse sentido específico, acho que não tem nenhum filme da Alumbramento com esse tipo de relação, talvez Com os Punhos Cerrados. Mas a ideia de unir forças para enfrentar os desafios impostos pelo capital, por exemplo, são o cerne do cinema feito pela Alumbramento. Tudo que foi feito lá, em alguma medida, era um pequeno levante frente à certas regras impostas pelo mainstream do cinema, como ele é financiado, etc. Todos os filmes ali têm a sua parcela e sua forma particular de fazer esse levante. Agora, sobre essa cena d’Os Monstros, é uma cena que eu tenho um carinho especial. Acho que a música de improviso, pra mim com certeza, foi uma referência muito forte sobre o que poderia ser esse coletivo. Na música a gente via uma forma de co-existir, com vozes vindas de diferentes culturas, com visões de mundo diferentes e que se encontram através da música e conseguem formar esse coletivo provisório de uma força incrível.

E o free jazz faz parte do seu processo de criação? Pois acredito que ele incita algum tipo de ordem numa segunda camada.

Luiz: Sempre conversamos muito sobre como traduzir o improviso livre musical (que é misto de espontaneidade e composição) para o cinema. Não acho que conseguimos, mas a cena final d’Os Monstros é debitaria das inúmeras ideias e tentativas. E mesmo hoje é um desafio que continua me interessando.

Os Monstros - Improviso
Improviso em Os Monstros

A Alumbramento começou em 2006, certo? Se me recordo vocês fizeram um longa-metragem filmado no Leblon…

Luiz: Sim, mas isso foi antes de irmos para Fortaleza. Ainda não existia a Alumbramento. Foi bem antes, na verdade, e se chamava A Estética da Solidão e só foi exibido na Mostra do Filme Livre em 2000. A gente conseguiu uma mini-DV emprestada com um amigo e testamos algumas coisas. É um filme muito mais de exercício, de rascunho do que exatamente um filme…

Um detalhe que lembrei agora e que acho importante mencionar, é que o site da Alumbramento, que também é um gesto de preocupação com a memória, disponibilizou os filmes do coletivo e também de realizadores do mesmo círculo. Agora com o fim do coletivo, como vocês pretendem manter a memória viva? Existe essa intenção?

Luiz: Existe, demais. O site infelizmente não está no seu melhor, precisamos atualizar alguns links antigos. O site é dividido em três seções: os filmes, os textos e uma parte de memórias, com fotos de making of, fotos da galera. O site foi criado justamente pra resguardar a memória da Alumbramento. Lá tem um link que leva para três textos diferentes, um de 2006 que escrevi para simbolizar o início do coletivo e falar sobre nossas motivações naquele momento. Um segundo texto que eu escrevi quando o coletivo passou por uma transformação com a saída de algumas pessoas e a entrada de outras, diminuindo o seu tamanho. Tentei colocar ali quais seriam as motivações dessa segundo fase da Alumbramento. E tem um terceiro texto escrito pelo Ricardo uns dois anos após o fim da Alumbramento e se esforça em fechar os trabalhos relembrando pontos chaves na história do coletivo. Os textos nunca vão dar conta do que foi a Alumbramento, mas é um desejo de guardar uma parcela dessa memória, mesmo sabendo que parte de pontos de vista específicos que não necessariamente representam os vários outros pontos de vista. Dentro do coletivo cada qual tem sua história pra contar. Eu adoraria ver essas histórias contadas, compartilhadas e preservadas.

Já que falamos de memória…há um filme inicial oficial da Alumbramento?

Luiz: A gente considera que o primeiro filme da Alumbramento é o Sábado à Noite do Ivo Lopes Araújo, lançado em 2007. Sem dúvida alguma é o ponto de partida do que veio a ser a Alumbramento. Todas as pessoas que trabalham nele fizeram parte do coletivo diretamente ou eram muito próximas, envolvidas. Sábado à noite é muito importante, pois uniu pessoas em torno de um projeto cinematográfico que buscava uma relação intensa com a cidade de Fortaleza, que era uma das questões primordiais do coletivo. Perguntas como: a gente como artista consegue intervir na cidade, criar relações entre o que a gente faz e as pessoas que habitam a cidade? Outros filmes nossos partiram desse interesse, como o Praia do Futuro…são filmes que desejavam se colocar em relação ou em conflito com a cidade. Geralmente exibíamos os filmes no São Luiz, um cinema da região central da cidade. Teve uma sessão histórica do Sábado à noite, com pessoas que embarcaram no filme, outras que detestaram, mas tinham pessoas de todos os cantos da cidade, do entorno, que entraram lá pra assistir.

Coletivo-Alumbramento
Sábado à Noite

Outro ponto importante é o Estrada Para Ythaca. Já havia uma movimentação para um “novo cinema” com a criação da Mostra Aurora, a sessão do Novíssimo cinema brasileiro que posteriormente virou a Semana dos Realizadores no Rio, mas o Estrada para Ythaca passou do circuito dos festivais e chegou ao circuito. É um marco muito importante. 

Luiz: Sim, ele foi lançado na Sessão Vitrine.  Só para não perder o fio, os primeiros quatro anos da Alumbramento foram essenciais para que o Estrada Para Ythaca pudesse existir. Foi o momento que começamos a realizar um cinema que conseguia quebrar com certas estruturas opressoras, que geralmente aceitamos de cabeça baixa, que determinam as regras para ser um cineasta…

O cinema da retomada.

Luiz: A retomada não retomou porra nenhuma. O cinema brasileiro continuou muito restrito a uma elite que já estava segurando o dinheiro, era detentora do poder em relação ao cinema brasileiro. Não foi nada democrática essa retomada. Em 2006 começa uma reação a isso, com o entendimento que o Brasil é algo muito maior que Rio de Janeiro e São Paulo. O que parece hoje óbvio, não era nada óbvio. Quando eu e Ricardo decidimos sair do Rio para ir para Fortaleza, nós éramos ridicularizados. O preconceito que existia…e eu tô falando de gente do cinema, progressista. Tinha muito preconceito mesmo. Esse movimento que a gente fez teve muita reação de piada. Bem, a gente era visto como uma piada. E falavam que a gente ia sair do Rio, onde acontece tudo…não acontece porra nenhuma! No Rio, só se você trabalhar na Globo ou na Conspiração. E eu não queria entrar no esquemão. Eu não julgo ninguém que trabalha para lá, mas acho estranho considerarem isso um grande acontecimento, um plano de vida. Eu tive sorte de ir para Fortaleza na época do governo Lula, pois permitiu que o Brasil como um todo entendesse que o país é maior que o sudeste. Em Fortaleza a gente começou a realizar filmes independentes, da nossa maneira e quebrando a lógica estabelecida. Começamos a ter alguma atenção, tinha algum desejo de conhecer o cinema fora do eixo Rio-São Paulo. E eles começaram a serem vistos nos festivais. Quando a gente lançou parecia que as pessoas se perguntavam o que tinha acontecido em Fortaleza, de repente, e achavam que o Estrada Para Ythaca era o início da Alumbramento, mas não é.

E isso ficou com claro com o interesse pelo cinema mineiro, especificamente, e pelo diálogo de vocês com os autores mineiros.

Luiz: Sim, total. A [produtora] Teia era uma referência pra gente, uma galera de BH. Isso começou com o Ivo [Lopes Araújo], o primeiro filme que ele fez por lá acho que foi O Céu Sobre os Ombros do Sérgio Borges. Depois ele fez A Falta que Me Faz da Marília Rocha, Girimunho da Clarissa Campolina…ele ficou muito empolgado com o pessoal de BH, mostrou os filmes da galera pra gente, do Dellani [Lima].

E vocês já mensuraram o tamanho dessa ação que de certa forma é contrária ao cinema da retomada? 

Luiz: Pra mim é um pouco difícil mensurar. Uma coisa que o Estrada Para Ythaca fez que eu acho muito importante, mais que conquistar circuito, foi abrir a porta do “podemos fazer filmes”. Sem precisar fazer no sistema tradicional. Acho que a nossa geração e a seguinte foi muito influenciada por esse gesto. O Ythaca, em alguma medida, empolgou a galera a fazer cinema, fazer bons filmes, sem precisar passar por todo o processo habitual. Ao invés de esperar dez anos pra fazer seu primeiro longa, essa geração esperou dois, três anos. E em muitos dos casos feito com espírito coletivo, com orçamento de curta, ou nenhum orçamento. Isso é uma quebra de paradigma. Mas não chegamos a um circuito maior, estamos num nicho. O circuito de cinema é dominado pelo mainstream e furar isso é muito difícil, ainda mais com esse cinema que fazemos.

E nos tempos de streaming a internet é um bom lugar para distribuição? Como falamos, o site de vocês sempre disponibilizou por tempo limitado os filmes…

Luiz: A gente sempre quis abrir pra internet. É um campo fértil para alcançar as pessoas. Agora tão na moda, em tempos de pandemia, mas sempre fizemos sessões virtuais. Em 2012 fizemos com os curtas. A ideia de um curta-metragem ficar preso aos festivais é muito estranha. A gente deixava por uma semana porque o tempo limitado faz as pessoas não perderem os filmes no oceano de informações. Colocamos o Não Estamos Sonhando, Dizem que os cães veem coisas, Retratos de uma paisagem. Aí notamos que seria legal ter filmes de outros realizadores com dificuldade de distribuição. Aí nós exibimos filmes do Ricardo Miranda, da Helena Ignez, Luis Alberto Rocha Melo, Paula Gaitán, Flora Dias…foi um momento ótimo. E também convidamos pessoas para escreverem sobre os filmes, tipo o Hernani Heffner escreveu sobre o filme da Flora Dias. É a ideia de criar uma cultura ao redor desses filmes. E recentemente colocamos o Estrada Para Ythaca online. O Guto me mandou uma crítica de um usuário do Letterboxd sobre o filme que é super sincera e direta, e esse tipo de retorno é o mais legal. Digo isso sem demagogia. É mais importante que o reconhecimento do festival X ou Y. No fundo o que dá sentido ao que fazemos é a troca com as pessoas, seja em pequena escala ou grande.

Sobre isso, lembro-me da primeira vez que vi o filme na mostra dedicada à primeira década dos anos 2000 curada pelo Eduardo Valente. Preciso revisitá-lo, mas lembro de referências claras ao Glauber ali.

Luiz: Sim, tem a cena do Glauber no Vento do Leste. A gente faz uma citação a essa cena.

E depois do Ythaca como foi o fluxo de produção de vocês? Havia algum tipo de planejamento “de carreira” para os longas? Visto que todos eles de alguma forma rodaram em festivais e foram lançados no circuito.

Luiz: Não, isso não era planejado. A gente nem sabia da possibilidade de carreira pra filmes. Depois do Estrada Para Ythaca a gente começou a entender que haviam espaços pra passar os filmes. A gente mandou o Ythaca pra Tiradentes meio que rezando pra passar, já preparados pra levar um não. Como depois o filme teve alguma reverberação, a gente começou a conhecer alguns festivais, outras pessoas tiveram interesse em assistir os nossos filmes, tanto aqui quanto lá fora…

E como foi essa chance de intercâmbio com o público e realizadores internacionais? 

Luiz: Uma sessão muito legal foi no BAFICI. Marcou a gente na época, abriu uma possibilidade de diálogo com o pessoal da América Latina. A gente não tem muito ainda, é uma pena. Depois da exibição a gente teve uma conversa longa, fomos pro bar com uma galera jovem, todos realizadores. E abriu-se ali uma possibilidade de intercâmbio, ideias de fazer filmes. Acabou que não rolou nada, mas no ano seguinte quando voltamos com Os Monstros, o pessoal também estava lá exibindo um filme novo chamado Hoje eu não tive Medo, que era claramente um gesto de libertação e que dialogava com Ythaca. O diretor desse filme já havia até passado um filme em Cannes. Ele se chama Ivan Fund.

E com os festivais de fora, havia um trabalho concentrado nas burocracias de inscrições? 

Luiz: Na verdade ninguém queria fazer nada disso! O Guto tinha mais paciência, chegou a fazer uma planilha com uma lista de festivais que nós exibimos os filmes, pra facilitar. Mas na hora de mandar era sempre uma bagunça…Aí gente tentou fazer da Alumbramento uma produtora respeitável, contratamos uma estagiária, a Amanda Pontes (que hoje é ótima produtora e diretora e continua trabalhando com Carol e Pedro), e ela fazia esse trabalho de organizar melhor os festivais e contatos.

E depois da Alumbramento, cada um foi fazer o seu projeto solo. O Ricardo fez um filme para a trilogia Sonia Silk com o Bruno [Safadi], o Guto fez o Doce Amianto, você se concentrou no trabalho de montador…

Luiz: É, eu sou montador. O Bruno fez o Uivo da Gaita, o Ricardo fez O Rio Nos Pertence e tem o Fim de uma Era, que é dirigido pelos. E é isso, o Guto fez o Doce Amianto com o Uirá [dos Reis] e A Misteriosa Morte de Pérola com a Tici [Ticiana Augusto Lima], fez o Inferninho com o Pedrinho [Pedro Diógenes] e com o grupo de teatro Bagaceira. Você falou em projeto solo, mas é curioso porque a maior parte dos filmes depois da Alumbramento foi feita em parceria com alguém. O Guto fez sozinho  O Curioso Caso de Ezequiel e o Clube dos Canibais, o Ricardo fez O Rio nos Pertence sozinho também, eu fiz o Enquanto Estamos Aqui com a Clarissa [Campolina], fizemos O Porto, eu, Ricardo [Pretti], Júlia [de Simone] e Clarissa. Tem um tanto de filmes…eu tenho prazer nessa troca. É um desejo de continuar fazendo filmes onde minhas ideias podem ser confrontadas com as ideias do outro. As ideias fundadoras do filme, sabe?

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A Misteriosa Morte de Pérola

E houve um fator decisivo para esse distanciamento de vocês como um coletivo?

Luiz: Acho que um fator foi a intensidade que a gente se jogou nessa parceria. Não há relação que aguente. É muita intensidade. O Guto foi o primeiro a sacar que as ideias que ele tinha não ia…ia ser demais. Ele tinha um desejo de pesquisa de cinema que dentro do nosso coletivo não tinha espaço e naturalmente foi encontrando o seu lugar para realizar sua pesquisa. A gente fez cinco longas em conjunto e vários curtas-metragens em que participávamos como equipe, mas chegou a um certo esgotamento. Ia implodir. Precisávamos extravasar para outros lados.

Há um caso interessante nessa trajetória que é o de Com os Punhos Cerrados, considerado como um comentário imediato sobre as manifestações de 2013…

Luiz: Acho que é um filme que a cada dia que passa fica mais como um reflexo do nosso tempo. Eu gostaria de aproveitar para tentar consertar certos equívocos. As pessoas acham que é uma reação às jornadas de junho e na verdade não é. A gente filmou aquilo antes, mas ele foi exibido depois. Estreou em agosto de 2013 em Locarno e a reação em torno dele foi instantânea: um filme que respondendo à 2013. Mas ele foi concebido em 2012, em dezembro. Acho interessante que a gente fez esse filme antes de tudo ficar uma merda. Quando a gente lançou o filme ainda não tinha o golpe, mas sabíamos que as manifestações não tinham dado certo. Já se via a ascensão de figuras como o Marco Feliciano, essa galera que tomou o poder aos poucos…e quanto mais eles apareciam, mais absurdo o Brasil parecia. E com isso mais sentido o filme fazia. Uma das críticas que o filme teve é que ele era muito caricato. Porque a figura do vilão, ele ficava de costas com um discurso reacionário exagerado…e logo depois disso apareceu esse pessoal com discursos semelhantes, à la tradição família propriedade. Nesse momento, o filme parecia uma reprodução fiel do que a gente vivia no Brasil. E ainda vive. Esse embate dos discursos da extrema direita aos discursos anarquistas do filme é o nosso dia-a-dia, de certa forma. Seja no jornal, nas mídias sociais…e no filme a gente dizia que a batalha estava perdida. Ao mesmo tempo insistíamos na ideia de movimento, de continuar se movimentando, como forma de continuar vivo. Eu gostaria de revê-lo para saber como ele bate hoje em dia. Acho que isso está na cena final d’Os Monstros que você comentou. A gente entendeu por via do anarquismo que a primeira transformação é a do eu. Acredito que assa transformação possa se dar pela poesia, no sentido amplo, como uma experiência poética de vida, que qualquer ser humano pode ter, uma experiência de transformação, maior…que acabar por transformar a sociedade.

Coletivo-Alumbramento
Com os Punhos Cerrados

Então temos um certo complemento ao comentário inicial dessa cena.

Luiz: Sim, e acho que o Estrada Para Ythaca também tem um pouco disso. É uma coisa muito forte que a gente tinha nessa época. É conseguir ver a arte num lugar cotidiano. Não fazer uma diferenciação da expressão artística com a vida cotidiana. Quebrar essas barreiras e é por isso que eu falo “poética” e com isso, por exemplo, viver o tempo de uma forma particular. Por exemplo, no Ythaca, viver o tempo pleno do luto. Não deixar que a máquina do capital atropele o tempo do luto. O Ythaca é basicamente sobre isso e no filme tem uma fusão entre vida e arte nesse sentido.

Como o poder da música pra sintetizar tudo isso também.

Luiz: O caso da música sempre traz isso pra mim também. Ela tem o poder…é uma coisa que eu gostaria de estudar um pouco mais.  A relação entre a música de improviso negra vinda dos anos 60 e 70 e o ativismo político da mesma época. Vejo nessa música uma forma de ação direta. É pra mim entrar em contato direto com isso que eu chamo de vida poética. Acho que não dá pra desassociar o que Malcom-X e Martin Luther King faziam na luta política daquilo que John Coltrane estava fazendo na música. E acho que isso ainda pode ser uma chave de entendimento para nós, de como podemos agir no mundo atual. Perder um pouco o sentimento de impotência. Na sessão de curtas da Sarah Maldoror, a Janaína Oliveira fez uma associação da obra da Sarah com a do o Zózimo Bulbul e ela relacionou o Art Ensemble of Chicago na obra da Maldoror com o Coltrane no filme do Zózimo [Alma no Olho, 1974]. Ela percebe um ponto de conexão entre esses filmes, realizados por dois cineastas da diáspora africana, através da música. Acho isso muito bonito. A música como um elo, como aproximação das diferentes lutas.

Isso me remete ao movimento No Wave de Nova York, que tinha ligação direta com a música de improviso e o cinema de improviso. Os filmes do Amos Poe, da Beth B…filmes sem orçamento e músicos que tinham carreiras baseadas no underground.

Luiz: Essa cultura do do it yourself conecta com certeza. O movimento punk, o movimento free jazz, o reggae na Jamaica, o funk no Brasil…

E sobre o tempo de produção/filmagem/montagem? Geralmente quando duas ou mais pessoas estão na direção a diferença de ritmo cria algumas dificuldades…

No caso do Com Punhos Cerrados, a pré, ou uma espécie de pré, foi em dezembro de 2012 e já tinha uma espécie de equipe formada. As filmagens foram no final de dezembro e começo de janeiro. Os Monstros passamos três semanas filmando. O Ivo fotografou uma parte e o Vitinho de Melo fotografou outra parte. O No Lugar Errado foi super rápido porque o grupo tinha uma janela de uma semana de ensaio da peça e a gente foi lá e filmou nessa semana. O que a gente conseguiu filmar virou o filme. O Estrada Para Ythaca foi uma semana também, uma semana na estrada, filmando direto. À noite a gente decupava, de dia a gente filmava, foi um trabalho insano. A gente editava tudo junto…passamos um tempo montando, tivemos duas ou três etapas de montagem. A gente tinha treze horas de material bruto. A primeira cena, a do bar, foi a mais difícil pra montar. A gente voltou várias vezes nessa cena. Já Os Monstros foi ao contrário, a gente montou em uma semana, pois tinha uma narrativa simples e trabalhamos com planos-sequência. Foi bem rápido.

E nessa época você começou a montar mais filmes, inclusive de outras pessoas…

Luiz: Por mim poderia ser de mais pessoas até. Eu adoro montar filmes, tenho um prazer enorme. Adoro entrar e participar de universos novos e sinto que contribuo bastante.

E aquela pergunta cliché de quarentena: conseguiu produzir alguma coisa nesse tempo?

Luiz: Sim, eu estou finalizando um curta novo chamado Jogo de Sete Lances (Perdido No Fabuloso Universo Dos Fragmentos). Eu comecei em pré-quarentena, ainda estou mexendo um pouco na imagem e no som. É um filme que fiz a partir de arquivos pessoais, dos últimos sete, seis anos. Ele tem uns vinte minutos.

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Crônica de uma Criança Solitária: A balada de Leonardo Favio

Por Daniel Dalpizzolo

Entre cigarros, bofetadas e castigos, um grupo de garotos atravessa os dias em um reformatório na Argentina. Não sabemos quem são ou o que passaram até chegarem ali, mas as cenas introdutórias revelam um núcleo de personagens ao mesmo tempo homogêneo e singular. Embora eleja entre os garotos um protagonista para acompanhar no restante da narrativa (Polín), o olhar lançado por Leonardo Favio para aquele ambiente é preciso ao estabelecer seu contexto, instaurando, por meio de poucos e elaborados planos, um cenário sombrio habitado por múltiplas almas solitárias, moleques errantes cujas trajetórias de vida os levaram para trás das mesmas grades e muros, de onde expressam sua inquietação provocando brigas no banheiro, jogando, contrabandeando fumo ou curtindo o alvorecer da sexualidade ao redor de uma foto da Monica Vitti.

As sequências iniciais inserem Crônica de uma Criança Solitária entre as grandes obras que exploram a juventude em conflito com os limites da ordem social, a exemplo de clássicos europeus como Zero de Conduta, de Jean Vigo, e Os Incompreendidos, de François Truffaut. Entretanto, se existem óbvios pontos de conexão temática entre essas obras, todas elas debruçadas sobre um mesmo recorte de final da infância de seus personagens, o que imediatamente salta aos olhos na estreia de Favio são os elementos que exaltam suas singularidades: os ambientes decrépitos do reformatório, com iluminação escassa, vidros quebrados e paredes descascadas; os brinquedos singelos ou imaginários; as fardas militares; os olhares duplamente tristes dos garotos; as sombras preponderantes no quadro; o ritmo singular das cenas, que parecem suspensas no fluxo de um pesadelo.

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Estamos, enfim, na América Latina dos regimes fascistas, na qual, entre golpes militares e governos provisórios, crescia uma juventude periférica apartada dos principais avanços da modernidade. Se os jovens de Truffaut rebelavam-se contra as autoridades matando aula para frequentarem casas de jogos e salas de cinema parisienses, aos de Favio resta a crua dimensão da realidade das ruas, percorrendo becos das periferias argentinas, espiando atentamente sobre o ombro antes de virarem a esquina para desviarem de desafetos ou da polícia. Celebrado como uma das mais importantes vozes da geração do cinema argentino que despontou na década dos Cinemas Novos, Favio aproxima sua obra do que Glauber Rocha nomearia como Estética da Fome, filmando em diálogo com mestres do cinema europeu, porém dando forma a uma estética que assimilava a realidade latino-americana e a representava em tela por meio de uma assinatura urgente, autoral e singular.

A assimilação dessas influências torna o trabalho de Favio ainda mais notável. É possível pensar em Vigo e Truffaut, mas também em Robert Bresson, Jean-Luc Godard, Jean Renoir, Roberto Rossellini, Michelangelo Antonioni e Ingmar Bergman, com os quais a relação se constrói às vezes simultaneamente, em uma mesma cena, na transição de um plano para outro. Cineastas formalmente muito distintos, mas que compartilhavam um mesmo anseio por materializar em suas imagens as inquietações existenciais e sociais da Europa pós-guerras, e que aqui tornam-se somente um ponto de partida para estabelecer um conjunto de referências que serão ressignificadas pelo modo como Favio articula a ação com o cenário filmado. Por essa perspectiva, é possível pensar que trata-se de um dos trabalhos mais complexos e ricos realizados na América Latina durante a década de 1960, a década em que, até então, com maior atenção se olhou para a história do cinema, propondo a partir dessa autoconsciência a construção de um novo marco revolucionário na cinematografia mundial.

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Como os filmes anteriormente mencionados, Crônica de uma Criança Solitária retrata uma juventude em revolta com o meio que habita. Mas a revolta, aqui, possui uma dimensão de tristeza e desconsolo. Relembro o filme com uma frase na cabeça: “A revolta é uma forma de impotência diante de uma situação de desespero”. A sentença é verbalizada por uma presa política recém libertada da prisão, durante uma conversa documentada por Pere Portabella em El Sopar, e revela uma perspectiva possível para dar conta das experiências representadas por Favio (por sinal, autobiográficas). Os garotos de Favio não escolhem a errância, são escolhidos por ela em razão da realidade que os circunda. Jovens desamparados, perseguidos pelo mesmo Estado que ignora sua existência enquanto não se tornam assunto das páginas policiais, mantendo esses garotos em um looping infinito entre delegacias, reformatórios e a incerteza das ruas.

Por esse contexto é que a fuga da prisão, o ímpeto que materializa a revolta de Polín logo no primeiro terço da obra, é das mais tristes cenas de fuga já filmadas, lembrando uma versão ainda mais desolada do bressoniano Um Condenado à Morte Escapou. Ambos os registros compartilham um interesse pelo silêncio e pelo tempo dilatado da ação, que transcorre vagarosamente e acompanha com esmero os movimentos empreendidos pelo fugitivo – aqui, ao longo de mais de 10 minutos de um silêncio absoluto e ensurdecedor. Entretanto, enquanto em Bresson a fuga é o apogeu da narrativa, culminando no triunfo da ação prometido pelo título da obra (o condenado à morte escapa, afinal), em Favio a fuga de Polín é um recurso com o qual o diretor convoca o espectador não a desfrutar da sensação de liberdade com seu protagonista, mas sim a conhecer, ao seu lado, a dura realidade do meio em que sobrevive, a respirar o mesmo ar e mergulhar na mesma água condenada.

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O filme se divide entre o dentro e o fora da prisão. Entretanto, as sensações provocadas pelas imagens, seja em cenários abertos ou fechados, podem coexistir em um único plano. Estão no dentro e no fora os mesmos ambientes decrépitos, com iluminação escassa, vidros quebrados e paredes velhas e descascadas; os mesmos brinquedos singelos ou imaginários; as mesmas fardas militares habitando cada esquina; os mesmos olhares duplamente tristes dos garotos; as mesmas sombras preponderantes no quadro; o mesmo ritmo singular das cenas, que parecem suspensas no decurso de um pesadelo, mesmo quando ambientadas à luz do dia, mesmo quando parecem romper a regra à beira de um rio, numa tarde ensolarada de verão; uma tarde de liberdade que culmina na violação do corpo, no choro, grito, dor, silêncio, desespero, o desespero de lidar com a impotência que convoca à revolta.

A estética de Favio, que sustenta essa angústia pelos breves 75 minutos, é construída com um trabalho fascinante na condução da câmera, desde os inúmeros movimentos aos jump cuts da montagem, criando imagens ambivalentes e misteriosas, que flertam com o testemunhal, com a crueza do registro realista, ao mesmo tempo em que compartilham uma dimensão quase onírica. Uma explicação possível para o estilo elaborado de Favio talvez seja sua relação com a música, ofício que exercia ao lado de suas aventuras no cinema (onde, além de cineasta, também era ator). A impressão é de que Favio extrai musicalidade de suas imagens, as encadeia e as monta como quem combina notas e acordes para a composição de uma canção – cujos tons variam ao longo de sua obra, do dedilhado solitário de um violão em Crônica de uma Criança Solitária até chegar ao psicodelismo de um Nazareno Cruz e Lobo.

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Como uma balada tocada em repeat, o garoto solitário de Favio transita entre delegacias, reformatórios e a incerteza das ruas, idas e vindas para dentro e fora das grades, numa canção cujos versos conduzem sempre a um mesmo e melancólico refrão. O semblante desolado testemunhado em Polín ao longo do filme, a farda e as mãos autoritárias que sempre o espreitam, retornam mais uma vez à imagem final da obra, mas agora não somos somente nós que olhamos Polín. Polín também nos olha. O choro, a dor, o silêncio, o desespero, a revolta. Na última nota tocada, a criança desaparece na penumbra do quadro enquanto, com a quebra da quarta parede, nos convida a segui-la, para quem sabe, junto dela, atravessar os dias em uma cela, uma delegacia, um reformatório na Argentina, entre cigarros contrabandeados, bofetadas e castigos, provocando brigas no banheiro, jogando, contrabandeando fumo ou gozando o alvorecer da sexualidade ao redor de uma foto da Monica Vitti, até que a balada recomece mais uma vez.

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O complô dos inocentes — notas irresponsáveis sobre a criança no cinema

por Bernardo Oliveira

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1.

As representações da criança no cinema resultam de diversas concepções científicas e correntes relativas à educação e ao crescimento humano, com enfoque nos aspectos subjetivos (psicológicos) e sociais (sociológicos), que resultaram na instauração da ciência pedagógica e, como consequência, na invenção da sala de aula no século XIX. Buscando na história dos conceitos os elementos, acontecimentos e ideias que circunscreveram a emergência da sala de aula global e sua centralidade característica na educação moderna, percebemos que é neste período que o campo semântico da educação se estrutura. Primeiramente, segundo Philippe Ariès, através da ideia de passagem entre o mundo da criança e o mundo dos adultos. Depois, em termos de construção de ferramentas teóricas e institucionais que promovem termos como formação, transmissão, emancipação e autonomia. O que se observa, entretanto, é que como o peixe cai na rede, a criança entra no balaio da reprodução social, através de processos intensivos de formação e disciplinarização. “O grande tema da pedagogia que surge e se desenvolve no século 16” é o governo das crianças, escreve Foucault. Capturada por uma reforma do “ensigno”, a criança foi “ensignada” — (observação mental: ensinar, isto é, entranhar um signo).

2.

E é fácil notar como o cinema absorveu de diversas maneiras, algumas sem eira nem beira, não somente a criança enquanto corpo expressivo, como também enquanto significação de cunho social, cultural e político. Em relação à criança, a associação entre a escola e família encarna na maioria das vezes um poder de intransigência social, por vezes autoritário, a ser ultrapassado, ridicularizado ou destinado a servir como foco e motivo de resistência. A criança no contexto moderno/liberal/eurocêntrico: tanto a imagem “fofinha”, edulcorada e vulnerável de bochechas carnudas e rosadas, como o sujeito psicológico e social a ser educado (produção do comportamento) e ensinado (transmissão do conhecimentos) pela própria vontade do estado e da sociedade, dentro de estabelecimentos controlados e aptos a criarem força de trabalho e sociabilidade. A educação obrigatória emerge como um novo dispositivo para produzir obediência em massa, no contexto de migrações forçadas, cidades crescendo descontroladamente e ritmo frenético de crescimento em todas as ordens.

3.

Todavia essa estrutura que vai se formando ao longo do século XIX para ser plasmada sobre o corpo infantil, na maioria das vezes, não explica por si só a solidariedade da visão moderna “progressista” e seu diálogo direto e indireto com o senso comum: a criança apresenta, como a mulher e o escravo, um risco permanente de insurreição contrária à estabilidade social. Para que o perigo seja neutralizado ou domesticado, é preciso estabelecer um modelo através do qual as ferramentas disciplinares possam produzir um corpo dócil e moldável. Desde o século XVIII, com Kant, torna-se central a noção de que a criança deve ser educada e ensinada, visão esta que contrasta com as reais necessidades de controle. Não parece de todo absurda a mítica dickensiana acerca dos bandos que aterrorizam com saques e demais delitos as primeiras cidades erigidas pelo capitalismo fabril europeu do XIX, bandos de crianças esquecidas, insubmissas aos novos códigos e a marra das novas instituições.

4.

Nasce então a apologia da imagem de uma criança indefesa e inocente, que carece de cuidados e nada sabe da vida e do mundo. Aliás, sob esse ponto de vista, a criança não é bem um “ser”; como a mulher e o escravo diz-se dela que não possui densidade ontológica, que precisa ser controlada ou que deve vir-a-ser, “tornar-se” humana. Algumas crenças começam a ganhar forma: a disciplina, a economia do silêncio e da postura podem preparar esse corpo rebelde para assimilar palavras de ordem e conhecimento. A criança é mais um dos corpos a serem estratificados e sobrecodificados pelas instituições discriminatórias que nascem com a nova ordem. O século XX, o século da família e da conveniência, o século dos produtos “para todas as faixas etárias”, consolida-se a consciência de que produtos culturais específicos devem ser adaptados e traduzidos para uma suposta linguagem mais acessível ao “público infantil”. Materializa-se o fenômeno da infantilização da infância, do nivelamento arbitrário das crianças para fins de reprodução. É neste momento que, para uma sociedade, torna-se plausível adaptar, por exemplo, um disco dos Beatles para arranjos musicais considerados aceitáveis do ponto de vista de uma dita “música infantil”. É nesse panorama que o problema da criança e da infância é como que apreendido única e exclusivamente sob a ótica da infantilização familial-institucional.

5.

Nesse processo, generaliza-se a concepção de que a criança não é um adulto em miniatura, que a criança deve ser contida, educada e ensignada (como diz o outro, a escola provê as “coordenadas semióticas” que ensignam todas as “bases duais da gramática”…). No cinema, amplas representações da criança e da infância que se aproximam e distanciam do primado pedagógico moderno. Em sua base genealógica, nos séculos XVI e XVII, a Educação Moderna encontra o método mecânico-catecista dos Jesuítas, um dos primeiros experimentos concretos e exitosos de processamento didático coletivo (vale perguntar “exitoso para quem ?”, mas essa é outra história…). A criança é representada sob o duplo signo de uma representação estática e pueril e de, outra, a possibilidade de uma coletividade ameaçadora. A imagem da pureza absoluta se coaduna com a necessidade de produzir uma obediência coletiva, revelando um cotidiano brutal, através do qual se deseja criar um tipo de comportamento. Daí que algumas representações oscilam no mais das vezes entre a romantização da infância — o aspecto lúdico dos “anjinhos” ou o aspecto pitoresco dos “pestinhas” — e os enfrentamentos reais ocasionados pelo complô dos inocentes.

6.

Acerca do “pestinha”, os anos 90 trouxeram sua versão edulcorada por criancinhas loiras e sapecas através de filmes como “Esqueceram de mim” (1990), de Chris Columbus e “Dennis, o pimentinha” (1993), de Nick Castle. Já a relação entre a figuração da inocência e o chamado à responsabilidade como um fator de mediação, surge décadas antes, por exemplo em ”O Garoto“ (1921), de Charles Chaplin  — a infância romantizada, infantilizada, a celebração da inocência, a ética da empatia. Tomado pela ternura e vivendo nas condições que prenunciam a Grande Depressão, o Vagabundo recebe um chamado à responsabilidade: encontra um bebê órfão chorando no chão da rua. Imediatamente se vê compelido a participar da criação, do crescimento desta criança, pois, diz o senso comum, a criança é um ser indefeso que precisa ser protegido, educado e ensinado. A concessão do vagabundo à nobreza desse chamado corresponde a uma concessão que ele faz contra si mesmo. São conhecidas as sequências em que ambos, criança e vagabundo, se completam, sentados na beira da calçada ou dobrando uma esquina, como que exibindo a materialização de uma necessidade de acolhimento que se impõe. As crianças em “tempos interessantes”, retratadas pelo Neorealismo, são personagens inspiradas no garoto de Chaplin, como em “Ladrões de Bicicleta” (1948), de Vittorio De Sica. O impressionante personagem Bruno Ricci (Enzo Staiola), é forçado a adotar uma postura adulta e tomar iniciativa diante dos problemas, encarnando uma infância cuja representação fora atualizada pelas necessidades trazidas pelo contexto do Pós-Guerra. “Pixote, a lei do mais fraco” (1981), de Hector Babenco, esgarça ainda mais o tecido da infância destruída pelas condições políticas e sociais, exibindo o cotidiano escabroso de um menor abandonado de 11 anos nas periferias do Brasil.

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7.

Nos sécs XVII e XVIII, a pedagogia do detalhe de La Salle institui o chamado Método global, seguido dos conteúdos normativos no “aprender a pensar” de Trapp e na humanização dos humanos de Kant no XVIII. A sala de aula prussiana, conhecida como a primeira experiência organizada de educação pública coletiva, representa o coroamento dessas tendências disciplinares e normativas, transformando o grupo de crianças em rebanho e ligando seu controle a um poder pastoral. “A escola é uma cultura coercitiva”, escreve Kant em seu conjunto de anotações posteriormente intituladas “Sobre a Pedagogia”, postulando a vigilância e a correção como tarefas da educação. Para aprender a pensar, para manejar os códigos civilizacionais e participar da sociedade, o corpo da criança deve ser controlado, calado e, daí sim, ensinado.

8.

Nos anos 30, surge um filme de revolta infantil coletiva, que bota abaixo o otimismo rousseuaniano: “Zero de Conduta” (1933), de Jean Vigo expõe os perigosos e contraditórios códigos do complô infantil. A criança isolada, enquanto modelo conceitual, remete à puerilidade, mas em grupo, organizados e agindo coletivamente, a potência pueril se desdobra em características capazes de desordenar os espaços disciplinares, como as guerras que ocorrem no refeitório e no dormitório. A ação coletiva desse corpo rebelde requer todo um aparelho de vigilância que, contudo, falha. Usando as penas dos travesseiros e a câmera lenta, Vigo, então, converte o corpo coletivo rebelde em uma ordem angelical, expondo a ironia ambígua de uma oscilação que é marcada no próprio projeto de controle do corpo infantil. Alguns filmes manifestam essas relações ambivalentes entre o aspecto pueril e a maldade latente ao complô dos inocentes: a obra-prima “Bom dia” (1959), de Yasujiro Ozu, “A Aldeia dos amaldiçoados” (1960), de Wolf Rilla, e sua refilmagem, “Cidade dos Amaldiçoados”, por John Carpenter em 1995.

Zero de conduta 2 Zero de Conduta

Cidade dos Condenados

9.

Com a consolidação de uma ampla zona de correntes  pedagógicas modernas nos sistemas de educação pública do XIX e do XX, de Pestalozzi a Herbart, as representações da infância coletiva passaram a atender às necessidades e protocolos impostos por uma pedagogia psicossocial. “Fanny & Alexander” (1983), de Ingmar Bergman, narra a história de duas crianças a quem o complô fora negado, construindo-se como uma espécie de corolário da interpretação psicológica. Quando todas as forças disciplinares conseguem calar os códigos do complô, enclausurando o poder desordenador das crianças, o filme abre espaço para uma representação romântica da clausura. O diretor parece assistir, até mesmo com certa nostalgia, seu duplo infantil se desdobrando para resistir e superar os conflitos e a opressão.

Fanny Alexander 2 Fanny Alexander

10.

Na oscilação entre o senso comum e a psicologização da pedagogia, o cinema investe muitas vezes em uma exploração banal da criança no drama e no terror. A criança representa algo da ordem do não-natural, de um acesso perigoso ao insconsciente, àquilo que “ainda não é”, que ainda carece de vir-a-ser. O cinema instala uma tensão sobrenatural nesse vão entre o ser e o não-se, o meio termo entre o natural e o sobrenatural. No drama, o cinema usa a Inocência para gerar a piedade. No terror, porém, partindo da criança como meio despersonalizado, suspensa entre o inconsciente e a vigília, e, portanto, aberta às possessões e à mediunidade, chovem exemplos: desde filmes como “A Profecia” (1976), de Richard Donner, e, mais tarde, “O sexto sentido” (1999), de M. Night Shyamalan, até as franquias de terror como as do boneco Chucky — a propósito, noto que as motivações adultas que sustentam a insustentável visão de um “brinquedo assassino” parecem revelar algo de uma significação coletiva muito particular, de uma uma perversidade assentada sobre algumas visões coletivas da criança e da infância. Tem que ver isso aí.

11.

Há os exemplos mais complexos como “Um mundo perfeito” (1993), de Clint Eastwood, que se apresentam como ramificações moderadas da infância infantilizada, estipulando uma inocência básica, um tipo de comportamento parece atender às expectativas do senso comum, porém abrindo espaço para modos de existência divergentes, agentes de rupturas e gestos imprevistos. De formas diferentes, “Os Incompreendidos” (1959), de François Truffaut, “Mouchette, a virgem possuída“ (1967) de Robert Bresson, “As Boas Maneiras” (2017), de Juliana Rojas e Marcos Dutra, e ”En Rachâchant” (1982), de Danièle Huillet, são exemplos que manifestam o inconveniente da criança singular, que reage à brutalidade. Um passo adiante, pois aqui não há redenção. A criança como um não-destino, a captura de um aqui-e-agora puro, a criança liberada da infância e aberta para as potências e descaminhos da vida.

12.

É neste ponto que entramos nos casos problemáticos, como o do professor e pedagogo Fernand Deligny e “O Mínimo Gesto” (1971), filme que realizou com seus pacientes autistas na Instituição La Grande Cordée entre os anos de 1962 e 1965. Para Deligny, a carga de controle dos afetos que é despejada sobre a criança, com o intuito de produzir uma estabilização psicossocial, mata boa parte do élan vital e criativo. É preciso recuperá-los através de uma outra educação, outros ritos de passagem, outras maneiras de “tornar-se quem se é”. Assim, contra a infância inadaptada preconizada pelo governo francês, Deligny e seus parceiros autistas opunham uma “pedagogia da revolta”, a única resposta possível à violência institucional. Ao lado de Yves Guignard, criança autista considerada “ineducável”, Deligny se lança em uma viagem que os levará para fora da instituição através de situações aparentemente sem sentido, como cair em um buraco. Nem a grandiloquência luxuosa de “Satyricon”, nem a “descida aos infernos” de Dante, Deligny simplesmente abandona o sanatório junto com seus colegas. O mínimo gesto é o gesto de grandeza, devir minoritário, salto de banda.

O Minimo Gesto

13.

Dentre os contextos mais radicais, em que as crianças se encontram expostas a uma experiência pedagógica particular e até mesmo ao perigo, vale lembrar o caso controverso de Otto Muehl. Integrante ativo do Acionismo Vienense, inspirado pelas ideias de Wilhelm Reich, Muehl fundou a Comuna Friedrichshof (1972–90) e, com Therese Schulmeister e as crianças da comuna, realizou os “Friedrichshofer Kinderfilme”. Nos anos 80, a comuna comprou equipamento de vídeo e, entre 1985 e 1987, produziu filmes de curta e média-metragem encenados e realizados pelas crianças, jogando com a história e a biografia de personagens como Stálin, Hitler, Picasso e Colombo. Em 1991, Muehl foi condenado a sete anos de prisão por pedofilia e por incitar as crianças a usarem drogas. Depois de pagar a pena, sua visão do processo oscilou entre pedir desculpas e relativizar as acusações até morrer em maio de 2013. No quesito “infância e perigo”, recordo também das crianças delirantes em “Trás-os-Montes” (1976), de Margarida Cordeiro e António Reis, sobretudo na primeira parte em que as crianças recaem em uma espiral do tempo que os leva a encontrarem-se, bem mais velhos, consigo mesmos.

Friedrichshofer Kinderfilme

Trás os montes

14.

Há também um cinema que, partindo de um legado não-eurocêntrico, despreza as pedagogias modernas ocidentais e aposta em outras possibilidades, como a de uma “pedagogia da estratégia” — isto é, um outro sentidos de “autoridade” através da qual a desobediência é calculada e até mesmo esperada. Último filme do senegalês Djibril Diop Mambéty, lançado após sua morte em 1998, “A pequena vendedora de Sol” (1999) é um média-metragem impressionante pela sensibilidade com que expõe um cotidiano marcado pela miséria, por relações de poder injustas e pela vontade inexorável de resistir a todo um ambiente atravessado pela opressão. O filme narra as desventuras de Sili Laam, personagem principal desempenhada pela incrível Lissa Balera, uma menina com deficiência motora nas pernas e muita personalidade para encarar a violência, o machismo e a polícia. Sili sai de sua casa no bairro pobre de Tomates em busca de comida e acaba descolando um trabalho como distribuidora do Soleil, jornal da região. A menina enfrenta o machismo dos patrões (“as mulheres também podem fazer o que os homens fazem”), a desconfiança dos distribuidores, a arbitrariedade da polícia e as ameaças do grupo de pequenos vendedores do Soleil. Contudo, vende todos os jornais a bom preço e, com o dinheiro recebido, tenta comprar uma sombrinha para a avó, mas um policial desconfia da nota de dinheiro alta e lhe dá voz de prisão. Sili responde com convicção: “só se for agora”. Chega na delegacia, mostra o recibo de vendedora, dá um pito no policial e no delegado e, para completar, questiona o aprisionamento de outra mulher que, aos gritos, alega sua inocência. Livre, comemora com amigos dançando ao som do boombox de um cadeirante desempenhado por Moussa Balde, que cobra por música tocada e que a observa durante toda a jornada. O cerco dos meninos jornaleiros cresce, eles agridem Sili, mas surge Babou Seck, um amigo que lhe salva de apanhar. Com ele, tem um diálogo esclarecedor de sua posição enquanto uma criança capaz de uma estratégia e de um sentimento ético superior em relação a sua comunidade:

— Por que o Sud vende mais do que o Soleil?

— Porque o Sud é do povo e Soleil é do governo.

— Então continuarei a vender Soleil, assim o governo se aproximará do povo…

As sequências finais são incríveis: o bando de meninos jornaleiros vendendo jornal (“África sai da zona do franco!”), roubam as muletas de Sili, ela sobe nas costas de Babou e prosseguem por um corredor escuro: “quem respirar primeiro vai ao paraíso”. Mambéty dedicou o filme “à coragem das crianças de rua”, o que de certa maneira vai direto ao ponto: sobreviver com coragem a uma situação de acentuada pobreza, repressão e divisão de classe é também o papel a ser cumprido por muitas crianças que não cabem nos códigos pedagógicos hegemônicos.

vendedora do sol

15.

Da mesma forma que reconhecemos e identificamos a criança pueril e nos emocionamos com sua aparente fragilidade, portadora do aspecto cativante de um indivíduo em crescimento, assim também nos é verossímil a representação de uma criança que, como no filme de Mambéty, demonstra uma razão superior. Uma criança que nem sempre maneja seus sentimentos com inocência e ingenuidade, algumas possuindo desde cedo o sentido da responsabilidade, da força, da resistência e da estratégia, seja mediante a ameaça do castigo, ou mesmo dos constrangimentos políticos e sociais. Novamente Bruno Ricci, o menino de “Ladrão de Bicicleta”, mas também Ahmad, a criança em “Onde fica a casa do meu amigo?” (1987), de Abbas Kiarostami. Ahmad leva o caderno de turma do colega Nematzadeh para casa e sabe que isto lhes renderá castigo. Ele se arrisca a levar possíveis palmadas do pai e da mãe e parte para o vilarejo próximo de Poshteh, onde se encontra seu amigo. Ao longo da jornada, Kiarostami vai construindo paulatinamente um personagem que tateia o mundo e utiliza seus poucos conhecimento para fazer cumprir o destino ético. Ahmad pergunta para os habitantes do vilarejo, entra nas casas, verifica a umidade da calça no varal em uma quintal, pergunta novamente, escuta atentamente os sons dos animais e das conversas ao longe, rastreia o percurso da água nos encanamentos para descobrir a presença humana e, quem sabe, encontrar seu objetivo. O medo do castigo que o professor severo impõe à desobediência faz coro com o que o avô afirma para um amigo: “é preciso dar umas palmadas para que ele não seja preguiçoso”, associando castigo físico e disciplina. Visando o nivelamento do comportamento e o fortalecimento do sentimento de responsabilidade, as crianças são submetidas a humilhações e ameaças violentas. O medo do castigo queima sua alma sem que os arautos do castigo, os adultos, facilitem ou ajudem em sua empreitada. Aliás, é na conversa entre os adultos que percebemos os motivos pelos quais uma sombra de desconfiança paira sobre as crianças. Pois conforme a fala de seu avô e dos amigos adultos de seu avô, percebe-se o quão desrespeitosos e indisciplinados são os adultos que preconizam palmadas para que as crianças não sejam desrespeitosas e indisciplinadas. O avô faz apologia da obediência ao contar uma história da época em que trabalhava como engenheiro, quando recebia pela metade por não assimilar o trabalho a ser realizado desde a primeira ordem. E completa: “temos que lhes dar disciplina para que obedeçam às ordens e recebam o salário completo.” Durante todo o filme, Ahmad defenderá justamente a “primeira ordem” sem que os adultos sequer lhes dê ouvidos. A lógica da disciplina e do castigo imposta pela escola e pela família contrasta com a atitude civilizadora de Ahmad. E, por fim, Kiarostami introduz a percepção de que crianças oprimidas pela escola mantém entre si relações solidárias e, ao contrário dos adultos, ajudam-se umas às outras.

Title: KHANE-YE DOUST KODJAST? / WHERE IS THE FRIEND'S HOME ¥ Pers: POOR, BABEK AHMED ¥ Year: 1987 ¥ Dir: KIAROSTAMI, ABBAS ¥ Ref: KHA004AB ¥ Credit: [ INSTITUTE FOR THE INTELLECTUAL DEVELOPMENT OF CHILDREN AND YOUNG ADULTS / THE KOBAL COLLECTION ]

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Nota conclusiva: por que irresponsáveis? Ora, Lili e Ahmad são crianças que encarnam a razão superior da infância, na infância. As representações comuns do cinema norte-americano exibem o corpo infantil como o espaço de tudo aquilo que escapa ao racional e ao compreensível: a compreensão vital, o terror, a mediunidade, a desordem absoluta, a empatia natural pela ausência de civilidade, de responsabilidade… É evidente que a heterogeneidade das representações da criança e da infância no cinema me obriga a assumir uma postura modesta, pé-no-chão, beirando a irresponsabilidade: não tenho qualquer pretensão de esgotar o tema, sequer de apontar uma interpretação geral. Também estou ciente de que misturo criança e infância, educação e pedagogia de modo demasiado ambivalente. Ok, ciente. Trata-se de uma delimitação primeira, que toma como ponto de partida um conjunto limitadíssimo de filme, um enquadramento tão breve quanto possível. Filmes e abordagens que ficaram de fora e poderiam ter entrado: “O Balão Branco”, “Boyhood”, “A infância de Ivan”, “Meninos de Tóquio”, “Aniki Bobó”, “Pather Panchali”, uma análise mais densa para “Bom dia”, os filmes de Tatit (Sr. Hulot era uma espécie de criança…), “Criança cega” do grande Van Der Keuken, “Um dia quente de verão” e “Yi Yi” de Edward Yang, “Jacquot de Nantes”…não foi possível. Sinto muito.

 

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