Noites Brancas no Píer (Paul Vecchiali, 2014)

Por Fernando Mendonça

“Meus olhos têm um brilho totalmente diverso.
Receio que eles façam buracos no céu.”
Nietzsche

Já não é tão fácil encontrar a solidão. Há quem pense ser a sociedade do séc. XXI prioritariamente solitária, preenchida por indivíduos que se perdem alheios ao movimento do próximo, que restringem seus atos aos desejos mais imediatos, como virtualidades e distopias ocupadas em contorcer o espaço, abandonando suas identidades a uma condição de real obtusa, simulada. Mas é questionável a verdadeira qualidade deste estar só, num mundo que já não ‘progride’ sem a perpétua distração dos sentidos, sem multiplicar os anseios de um Eu que se perceba presente e seja alguém numa multidão de máscaras. Já não conseguimos tão fácil a fuga destas distrações, a apreciação de se satisfazer com ausências, com faltas que também importam para que existamos completos. Roubam-nos de nós mesmos. Distraem-nos do que vai na alma.

Até que um filme como Noites Brancas no Píer surge, revolvendo o espírito de um tempo, escavando a procura de uma dimensão que supere a aparência das formas, que restitua o prazer e a saúde do bom isolamento. Obra que não tem medo de se erguer sozinha num cenário que pouco tem a oferecer além do desamparo, pois bem sabe que nesta coragem encontrará seus pares e igualmente ecoará outros possíveis perdidos, outros estranhos não encaixados. Solidão é coisa que melhor se vive a dois, que na força de uma conversa sincera esvazia os resíduos de uma civilização.

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É impossível não considerar a companhia que Paul Vecchiali vem prestar aquele que talvez seja o cineasta mais solitário da atualidade. Ao Jean-Marie Straub de Diálogo de Sombras (2013), as novas Noites contrapõem a mais bela troca de confidências que dois artistas travaram nos últimos anos, claramente, através da expressão que conosco também partilham. Eis aí dois filmes que se correspondem com a intimidade de amigos, que juntos provocam uma plenitude pouco encontrada, acentuando a maneira como se isolam do cinema restante. Pois são eles que restam. Na extrema contramão, são eles que nos prestam o favor de recordar a essência.

Respondem-se como num jogo: Straub filma o dia para nos dar as sombras, Vecchiali filma a noite para nos dar a luz. Se desde L’Étrangleur (1970), a condição noturna não importava tão visceralmente para o seu universo, em Noites Brancas no Píer vemos a inauguração de uma nova ordem temporal para Vecchiali. O que não surpreende nada, já que tratamos aqui de um artista que parece recomeçar suas pesquisas do zero a cada nova experiência, desafiando a capacidade rasteira de observação a que nos acostumamos, especialmente diante de carreira longas, profícuas. Outro exemplo: não é porque Noites Brancas alicerça boa parte de seus efeitos no uso da palavra, que poderemos evocar as inesquecíveis verborragias de Femmes Femmes (1974) ou Le Café des Jules (1989). Naqueles casos, digladiavam-se personagens que para falar, existiam; hoje, nos deparamos com seres que para existir, falam.

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No domínio da palavra, justamente, é que se aliançam Vecchiali e Straub. O espanto é o mesmo nos dois filmes: diálogos que aproximam as vozes pela certeza da separação, verbos que constroem pontes sobre abismos intransponíveis, ou seja, verbos falhos, falidos em seu intento nobre (daí ter a palavra um tratamento diverso de outros realizadores importantes que também a estão operando com ênfase – Bressane, Linklater, Green –, aqui, a palavra cresce pela sua impotência, pelo que não pode consumar e a torna, com toda intensidade, um elemento humano, finito). Num e noutro, casais que só podem ser uma carne por aquilo que dizem, que confessam, seja pela lembrança ou pela invenção (toda memória é criada).

Ao luto que recobre o filme de 2013, Vecchiali responde com vozes que também não podem ser mais do que fantasmas. Píer que é teatro, mas também cemitério, eis o cenário perfeito de uma fronteira: entre o céu, a terra e as águas, eclodem as forças de toda tragédia. Aos cortes que Straub assina como mecanismos de singularidade, pois são eles que definem os limites de um corpo-plano, Vecchiali contrasta o forjar da iluminação, a farsa que somente o ângulo exato de um holofote pode narrar. Assim que, na conversa de seu casal, são as luzes que convidam as palavras para o baile, clareando ou obscurecendo a sonoridade, definindo o alcance de cada sentimento. E se Godard já foi um dos que fizeram questão de confirmar Vecchiali como herdeiro direto de Minnelli, agora não há dúvidas de que toda boa música também é uma questão de luz.

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Não adianta falar muito sobre esta cena rompante de Noites Brancas, o momento mais Fred Astaire que o cinema deste século poderia gerar. A pausa que os atores fazem nas vozes para que o diálogo prossiga dentro da inquietante coreografia-surpresa é o que nos permite sentir mais totalmente a melancolia que até ali tínhamos por sugestão de texto. Por incrível que pareça, esta é a sequência que melhor representa a origem literária de Dostoievski, um dos escritores que da maneira mais refinada nos ensinou a desconfiar do verbo, a entender que as vozes também se manifestam no pormenor das entrelinhas, que elas também nos revelam por aquilo que escolhem calar.

Se pela palavra o casal de Noites Brancas, livro e filme, pode se irmanar e almejar a esperança de um amor concreto, também é por aquilo que não cabe no discurso que vemos se construir a tristeza de uma abstração. Dançamos quando já não temos outro meio de sentir o outro na pele, quando não temos mais confiança nos minutos seguintes e entendemos que tudo consiste em manter a presença, em perdurar o que já nasce como um fim. Balé mais solitário que se poderia traçar, Vecchiali encerra com esta cena a sua leitura de um desencontro humano, como num rito fúnebre, pois toda música e toda palavra (e por que não a imagem) só pode terminar em silêncio.

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BNSF (James Benning, 2013)

Por Fernando Mendonça

Um dos realizadores de maior influência para o cinema contemporâneo, pelo que experimentou e rompeu no audiovisual, a partir dos anos 1970, James Benning continua sendo uma pedra de toque para os atuais desdobramentos de vanguarda e os caminhos auto reflexivos da imagem, num sentido prático de criação. Foram necessárias três décadas para que a obra do autor ecoasse com relevância nos pensamentos teóricos e acadêmicos, pois, por muito tempo, foi mais comum vê-lo mencionado por outros cineastas e artistas do que por críticos e curadores. O recente impacto no reconhecimento e retomada de suas questões, em compilações impressas e coberturas eletrônicas, é valorizado ainda mais pela contínua produção que Benning apresenta, não apenas em cinemas e festivais, mas em diversos ambientes e contextos de projeção.

Um de seus experimentos mais recentes, BNSF (2013), filme primeiramente realizado em formato de instalação, em 2008, posteriormente ampliado e estendido para a exibição em salas coletivas, consiste num longo e único plano de quase 200 minutos, capturado digitalmente sobre uma paisagem desértica americana. O quadro é atravessado na diametral pelos trilhos de uma linha da rede ferroviária BNSF, por onde passam trens, em esporádicos intervalos, no decorrer do longa-metragem. Trata-se, claramente, de um exercício que desafia os parâmetros de expectativa do público, seja pelo tempo de exposição da imagem, como pelo esvaziamento que seu conteúdo problematiza.

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A relação Cinema e Deserto encontra aqui um curioso exemplo para impulsionar ramificações deste diálogo. Pois BNSF aproxima as qualidades de sua imagem às da areia – sempre movediça e centrípeta, dinâmica e irrepetível – ao mesmo tempo em que tece provocações aos limites do próprio cinema enquanto linguagem, realocando sua primeira condição fotográfica e, principalmente, pictórica, enquanto encenação do mundo. A tela de Benning, em diversos de seus filmes, é herdeira direta da série que Monet concebeu para avaliar a gradação de cores na Catedral de Rouen. O autêntico movimento buscado pelo diretor não é somente o mecânico, do trem, mas o que emana das formas e das sombras, nas pedras, no relevo do horizonte, na árida vegetação, que brota na consciência diante do correr das horas, o lapidar do tempo.

Por toda a sua carreira, o realizador tem sido constantemente associado ao imaginário dos irmãos Lumière, pela maneira como lida com o acaso, a angulação dos planos e o raro equilíbrio documental de subjetivar formas fixas e históricas dentro de um universo próprio, numa linguagem que se assume em processo de descoberta. BNSF tem lugar dentro deste repertório, nutrindo pontos de interseção com os pré-cinemas pela maneira como estes veiculam um caráter de movimento ainda coerente para o séc. XXI. A dilatação da imagem-tempo, que Benning empresta das experiências mais radicais de Andy Warhol, amplia a dimensão dos limites intrínsecos à sua linguagem, fomentando a rarefação das margens que distinguem o Cinema da Pintura, por exemplo.

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Eis uma compreensão dos novos parâmetros de produção artística que nos parece descrever com precisão aquilo em que consiste um projeto como BNSF: “um dispositivo de inscrição relacionado à materialidade dos meios e à criação de subjetividades”. James Benning é atualmente um dos únicos inscritores de sentimentos em superfícies geográficas que conflitam seu movimento interno na relação com as ‘bordas mortas’ de um quadro. Pois não é uma tela, ou um computador, ou uma sala escura, ou um ambiente de museu, que impõe limites ao mover da vida. Viver não tem margens.

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Terra de Leite e Mel (Pierre Étaix, 1971)

Por Fernando Mendonça

“Humor é a polidez do desespero”.
Bernard Shaw

Nenhuma frase seria mais apropriada do que esta, dita por uma das entrevistadas, já próximo ao desfecho de Pays de Cocagne, para expressar a perspectiva de Pierre Étaix, seja no documentário citado como na obra que ele construiu em sua carreira de cineasta. Pelo que vimos nos trabalhos anteriores do diretor, já ficara muito claro o caráter de refinamento crítico buscado através do riso, este exato polimento de uma sociedade que transborda problemas e entraves pela simples constituição de coletividade que a determina. É possível sentir o desespero de ‘estar no mundo’ e ‘estar com o Outro’ em cada gag ou ação dramática solucionada por seus filmes, sendo Cocagne o acúmulo mais absoluto que Étaix poderia alcançar para amarrar as dobras ficcionais anteriormente propostas.

Estruturado numa espécie de filme-ensaio, o documentário maldito foi responsável por encerrar a carreira de Étaix como diretor, após uma série de processos na Justiça e uma forte repressão da censura francesa. Tudo o que o diretor fizera, após o Maio de 68, foi filmar os franceses em férias, ou em campanhas publicitárias e eleitorais. Porém, muitas das pessoas que permitiram previamente o uso de sua imagem, não concordaram com as ideias difundidas pelo autor, sentindo-se ludibriadas. Problema equilibrado entre a ideologia política e a montagem cinematográfica, percebe-se aí uma confirmação daquilo que Étaix problematiza em seu filme: o estado alienado de uma sociedade que já não consegue se refletir, que não suporta a autocrítica e, por isso, foge. É desta fuga impossível que trata seu cinema, sempre, e por mais que ele tenha entrelaçado ao pensamento sociológico um complexo jogo de questionamentos ao próprio humor e o riso (originando uma nova forma documentária, no mínimo), Étaix não conseguiu driblar as limitações que já sabia existentes, o que não foi exatamente um problema fílmico, já que ele nunca pretendeu fugir.

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Nota pessoal, não posso deixar de registrar o fato desta minha breve reflexão sobre Pays de Cocagne vir à luz, imediatamente, após a conclusão de um livro que também foi decisivo para os franceses da época: As Coisas (Les Choses), publicado em 1965, por Georges Perec. Passei toda a leitura do romance-inventário com Étaix em mente, mas não só ele, como também Tati, Rivette, Godard, Chabrol e cia. Todos estes, em algum momento, tocaram no mesmo e delicado ponto da sociedade manipulada, engessada e oprimida por rotinas que se impunham a despeito de qualquer lógica ou vontade própria de seus indivíduos. Os excessos do consumo, da publicidade e do capital, foram todos vértices de artistas inconformados, não somente com os rumos da conduta humana, mas da linguagem que usavam em suas artes, igualmente corrompida e aprisionada pela maior parte do público. A descrição de Perec para seu casal de protagonistas é mais do que aplicável ao estado social de Cocagne: “O inimigo era invisível. Ou melhor, estava dentro deles, os tinha apodrecido, gangrenado, estragado. Cabia-lhes pagar o pato. Pequenas criaturas dóceis, fiéis reflexos de um mundo que zombava deles. Estavam enfiados até o pescoço num bolo do qual nunca teriam mais que as migalhas.”

O mais doloroso, no fim, é constatar que os males apontados naquela década, longe de serem resolvidos, apenas se intensificaram, e rareiam as vozes dispostas a discuti-los. O exercício de montagem desafiado por Étaix, de concepção tão simples e elementar ao cinema, é cada vez menos prosseguido ou desdobrado em seus efeitos, sendo o esvaziamento do mesmo, a pior das censuras que lhe poderia caber. Possivelmente, a chave de conscientização para as novas gerações bem poderia se localizar na preciosa abertura deste Cocagne, dois minutos dos melhores que se pode conseguir no cinema: neles, o próprio Étaix é entrevistado a respeito da realização do novo longa, aparecendo mergulhado em quilômetros de negativos, película acumulada na sala de montagem para o corte do filme; ele menciona sentir-se atacado pelo infinito material e, numa inspiração à Méliès, vemos os metros e mais metros de filme ganhar vida e se movimentar monstruosamente, não cabendo mais na sala e enrolando por completo as pessoas em cena. Nada mais sintomático para uma contemporaneidade que já não tem o controle de suas imagens e que as multiplica desordenadamente e sem o tempo para sua depuração. Fica aí o recado de alguém que sentiu na pele as consequências e os riscos de uma filmagem, ou melhor, de um pensamento que se faz ouvir pelo que é filmável. Para que as próprias imagens de nosso tempo não ‘apodreçam, gangrenem e estraguem’, ainda há muito a se descobrir com Pierre Étaix.

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Coração de Cristal (Werner Herzog, 1976)

Por Fernando Mendonça

Fluem
as águas, densa neblina,
da cadente luz o irromper
do sol ou das formas
terrestres, com os bichos, ruídos da vida,
abismo que atrai para si
atenção a pulsar, escorrer, evanescer entre
rochas, fendas, aberturas de finita superfície.
Prefigurações do fim.
Destruição que é começo, princípio das coisas,
novos céus e terra
pelo olhar lapidados, reformados, corrigidos
em suas imperfeições. Plenos.
Eis a dimensão do universo,
retratação de um cosmo oculto
sob a umidade do ar, a levar consigo
o tempo. A conosco
fluir.

Beira a leviandade pretender qualquer lógica do verbo diante de uma obra como Coração de Cristal. Recebê-la em palavras é igualmente obrigar-se à criação, determinar o raciocínio não pela organização de conceitos, mas num articular de sensações que ultrapassem o logos para contaminar todo um estado instintivo de percepção.

Perpetuar o que Werner Herzog aqui poetiza é lidar com o caos, com as formas não organizadas de vida que, em si, já respiram, deglutem, piscam, ordenam um novo parâmetro de visibilidade. Experiência incomparável de imagens, sons e poesia, Herzog elabora um de seus mais viscerais e arrebatadores trabalhos, sendo vã a tentativa de esgotar adjetivos para o que ele realiza.

Basta dizer que Coração de Cristal é filme que mal cabe no cinema. Seu rigoroso corpo de luz e sombra, de silêncio e voz, é material humano dos mais densos, potência que vislumbra os fundamentos do mundo, recuperando a gênese de toda uma dimensão física a nível que mal se permite comprovar como enxergado, por mais que o vejamos.

Situado numa aldeia da Bavária, século XVIII, seu enredo desenvolve-se sobre um pequeno apocalipse que os habitantes do local enfrentam ao saber da morte de um velho vidraceiro, negociante responsável pela sobrevivência econômica da região e único conhecedor da fórmula para o famoso Vidro rubi, principal e misteriosa fonte de renda, agora perdida, enterrada com seu criador.

Do luto sofrido pela comunidade, um reflexo do agonizante mundo natural, de um planeta que ainda não se sabe redondo, da esperança que se debate a beira da morte. É o profeta da região quem nos alerta do fim, Hias (Josef Bierbichler), eremita que atravessa toda a duração do filme prevendo as configurações de uma catástrofe. Concretizando o trágico pelo corpo de sua voz.

É o profeta quem enxerga todas as coisas. Quem dá forma inclusive ao que não se pode ver. Seu duelo com o invisível urso selvagem, cena nuclear dentro de tudo o que Herzog já concebeu, sinaliza o estado absoluto contido em Coração de Cristal de representar o irrepresentável, de ofertar aos sentidos aquilo que, platonicamente, nunca se afastou de um mundo ideal. É como se Herzog rompesse as estruturas do universo, alterando as composições físicas não somente dos corpos ou superfícies naturais, mas dilatando-as na própria dimensão do tempo. Pois em sua escatologia até mesmo o que não se pode ver ganha a atenção de uma câmera, torna-se imagem. A violenta luta do profeta Hias contra a criatura transparente reconfigura um embate primitivo do próprio cinema contra a transparência em si, contra o que não se filma, mas ainda assim sobrevive na tela. Violação do olhar, do que recobre todas as formas numa frágil materialidade, epiderme do caos. Pois não importa o que antecede a imagem, é nela que a criação se completa.

Igualmente exemplar a encenação conseguida dentro da fábrica de vidros, entre simples trabalhadores (únicos no elenco do filme, junto a Bierbichler, a não trabalharem sob o efeito de hipnose, pois sim, Herzog fez questão de extrair de seus atores qualquer naturalismo ou entorno dramático) que lapidam a matéria incandescente e no vidro concretizam as mais variadas formas imaginárias. E talvez seja na cena em que vemos um dos operários esculpir um cavalo de vidro que finalmente cheguemos ao motivo de Herzog não apenas diante deste filme, mas de toda sua vida criativa junto ao cinema. Cena direta, de mise en scène fixa, invariável; dar a ver inquestionável de uma ontologia que brota pela imagem e que nela arremata todos os sentidos possíveis da criação; ainda que inserida num painel ficcional dos mais complexos, nela Herzog confirma o exceder da ilusão, seu ultrapassar, um preocupar-se com a realidade concreta ou, pelo menos, com o que é possível concretizar de real dentro do cinema. Do foco de luz que emana do centro para as bordas do quadro, do vidro para o espaço e sua decorrente cristalização, testemunhamos imagens do fôlego em eterna presença, da vida que, seja na criação ou no fim do mundo, permanece alvo de todo movimento expressivo. Em Coração de Cristal fluem os ecos de um testamento da humanidade, contornos da existência, lugar em que Herzog confirmou a ambição das ambições: cabe ao cinema não apenas espelhar a vida, mas fazê-la nascer, dela ser fonte. Eis a luz.

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Rir é o Melhor Remédio (Pierre Étaix, 1966)

Por Fernando Mendonça

Quatro curtas compõem essa pequena antologia de Pierre Étaix, tesouro que também guarda um quinto e substancial momento de brilho já em sua introdução, na criativa abertura de créditos sustentada como uma espécie de filme autônomo, de iluminação para os seguintes episódios, assim como para tudo o que o diretor refletiu em sua produção de curtas. Nos dois minutos que abrem Tant Qu’on a la Santé, um reflexo imediato do espetáculo, com grandes cortinas se abrindo para a projeção dos créditos, numa tela que não esconde o artifício da pintura e ganha novas dimensões com a camada sonora que desdobra: o que ouvimos são os sons exatos de uma sala cheia, à espera da representação, pessoas conversando, pedindo silêncio, alterando-se no humor, como se digladiassem num pequeno inferno em que é quase impossível o necessário e solitário gesto da concentração. Perfeito o descortinar da sessão, que contará com filmes a respeito disso mesmo, de infernos causados pela relação com o Outro, em variados níveis de contato humano, dos mais íntimos aos que publicamente se contornam, não importam os espaços ou as intenções em jogo.

Já no primeiro episódio, Insomnie, também a estreia de um trabalho colorido do diretor — que sinaliza uma sensibilidade refinadíssima para texturas e contrastes, diversificando a paleta em tons inteligentes e narrativos —, vemos sob uma perspectiva bem humorada, o tormento noturno de um leitor que, ao lado da adormecida esposa, envolve-se nas páginas de um livro sobre vampiros. Realidades confundidas, suores imprevistos, parágrafos vencidos, trata-se não somente de uma das mais inventivas reflexões sobre as teorias literárias da recepção, dentro da linguagem fílmica, mas de uma amostra desse confronto de gêneros pretendido pelo cinema de Étaix, como se na própria superfície narrativa já se pressagiasse o inferno. Humor e horror dão as mãos para indicar que as crises levantadas pelo autor (que também interpreta o leitor), podem até começar no recôndito de uma mente, nos anseios individuais de alguém que sofre pela incerteza do futuro (a próxima página, a possibilidade do sono), mas sempre terminam por romper as distâncias da realidade, alcançando as pessoas próximas e nelas revelando uma espécie de fonte dos medos, de origem do mal. Não por acaso, o desfecho fantástico em que a esposa ao lado vem se tornar uma manifestação concreta do vampirismo, ansiosa pelo vulnerável pescoço que adormeceu, ao fim da leitura.

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Do ambiente doméstico ao coletivo, entramos no filme seguinte, Le Cinématographe, uma das mais ácidas críticas já feitas ao espaço das imagens em movimento, seja num sentido físico ou ideológico. No primeiro momento, a comédia se instala pela infernal procura de um espectador (sempre o próprio Étaix) por um lugar na sala lotada de cinema. Filme iniciado (um western!), luzes apagadas, a jornada é penosa, e em poucos minutos, já não sabemos se rimos ou choramos com a situação do personagem. Lidar com a má educação do público, a exploração dos funcionários e a péssima arquitetura da sala, que não permite uma boa visão da tela em diversos pontos erroneamente ocupados por poltronas, despe a potência da sessão de qualquer contorno romântico: ver um filme, como indicava o som dos créditos iniciais, pode ser uma experiência trágica, em que o conflito da coletividade anula os efeitos do espetáculo, e em que se torna impossível uma devida postura do olhar, qualquer risco de introspecção.

O filme prossegue, não aquele que o espectador não viu, mas o que continuamos acompanhando, do lado de cá. E o nível de autorreflexão aprofunda na medida em que notamos uma inadequada utilização, não apenas do espaço cinematográfico, mas daquele que é propriamente fílmico, ou seja, o espaço da película, daquilo que se projeta na tela e deixa de se preocupar com qualquer princípio estético. A propaganda que preenche os intervalos da sessão no cinema acompanha o espectador mesmo fora da sala. Nas ruas, nas casas, entre os amigos, a ordem dominante é publicitária, consumista, à beira do ditatorial. São gestos extremos e patéticos que Étaix usa para mais uma vez questionar os rumos da imagem, a validade do que se pode fazer com as câmeras e o domínio da representação. Um inferno que brota das telas, contaminando de forma massiva e desproporcional todas as camadas da sociedade. Afinal, o cinema também é o Outro.

E, finalmente, o encerramento da antologia com dois curtas que se espelham, um na cidade e outro no campo, dando prova de que não há lugar privilegiado ou livre de ameaças, no caso, isento dos mórbidos risos insistidos por Étaix. Tant Qu’on a la Santé e Nous N’Irons Plus Aux Bois, fecham a sessão e se completam como se fossem a luz e a sombra originalmente pretendidas, aqui. Neles, infiltram-se crises que nasceram desde Heureux Anniversaire (1962), na terrível lapidação de um tempo que é insuficiente para qualquer ponto de vista, pois Étaix faz questão de explorar suas ações como num prisma cubista: médico e pacientes, homens do campo ou da cidade, todas as possibilidades são levadas em conta para concluir o acertado título que ganhamos do filme em português. Neste cinema, o riso se estabelece de fato como único remédio, derradeiro antídoto para situações de que não se pode escapar. Não se trata de fuga, de alheamento, mas de um corajoso embate contra o estabelecido e aceito. Pierre Étaix nos recorda, cena após cena, de que todo inferno depende de um céu para existir.

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Seleção comentada: Filmes sobre cinema

Daniel Dalpizzolo e Fernando Mendonça comentam 30 obras que abordam a realização do cinema, em exercícios de metalinguagem e de reflexão sobre a natureza das imagens cinematográficas. A seleção está em ordem cronológica e não pretende delimitar os melhores filmes sobre o tema, mas sim traçar um recorte de obras que ambos consideram especiais entre tantas outras igualmente importantes para a História do cinema.

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Bancando o Águia  [Sherlock Jr., 1924], de Buster Keaton / O Homem das Novidades [The Cameraman, 1928], de Buster Keaton e Edward Sedgwick

Dois filmes essenciais sobre a invenção do cinema. Em Sherlock Jr., Buster Keaton explora a metalinguagem como artifício para projetar os desejos e a imaginação do homem na tela do cinema, esta janela que se abria para lhe permitir voar e sonhar. Já em O Homem das Novidades, onipresente na história, a câmera reaparece como mecanismo de intervenção no cotidiano para aproximar corpos afastados por obstáculos físicos, morais ou sentimentais; como interveniente às restrições do olhar, que não nos permitem enxergar sem amparo dela o que se mantém distante do alcance dos nossos olhos – mesmo estando às vezes muito próximo. Seja para nos deslocar da realidade ou nos reafirmá-la, Keaton reconhece no cinema uma ferramenta essencial à vida moderna, em filmes de humor e singeleza incrivelmente encantadores. (Daniel)

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O Homem com a Câmera [Chelovek s kinoapparatom, 1929], de Dziga Vertov

Se as obras de Keaton apropriavam-se do maquinário do cinema para reafirmar virtudes humanas, Dziga Vertov e seu O Homem Com a Câmera sugerem um contraponto a este olhar, numa celebração sinfônica da frieza e do caos modernos. O registro do cotidiano pelo qual o cineasta se interessa não contempla individualidades, atordoado pela movimentação em grande escala das metrópoles no início do século XX. As virtudes estéticas de Vertov representam um deslumbre pelo progresso tecnológico e pelos efeitos gerados por estes novos espaços urbanos, quando, com eles, era reinventada toda uma noção de movimento. É deste mesmo apreço pelo movimento e pelo progresso tecnológico que nasceu o cinema, e a ele O Homem Com a Câmera é um presente ofertado com esmero. (Daniel)

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Contrastes Humanos [Sullivan’s Travells, 1940], de Preston Sturges

Um dos primeiros diretores independentes do cinema americano, Sturges precisou entrar na indústria para denunciá-la, convertendo o humor clássico na mais profunda e hedônica ironia. Sullivan’s Travels, no (des)equilíbrio entre a ficção e o documental, alcança pela jornada trágica de seu protagonista — um cineasta de comédias que almeja concluir um filme sobre a miséria humana — questionamentos que não se limitam ao sistema hollywoodiano de produção, mas que tocam a própria necessidade do riso e do espetáculo, de toda a motivação que existe para se fazer cinema. (Fernando)

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Crepúsculo dos Deuses [Sunset Boulevard, 1950], de Billy Wilder

A decadência da mitologia hollywoodiana nunca foi tão cruelmente devassada como em Sunset Boulevard, filme abismo que dilacera sua metalinguagem ao materializar dois ícones (Von Stroheim e Gloria Swanson) e recuperar cenas do jamais concluído Queen Kelly (1929). Mais do que um jogo de ficções, Wilder parece colocar realidades dentro de realidades, como o faria mais uma vez em seu testamento, Fedora (1978). Mas foi em 1950 que ele chegou mais perto da morte, num fúnebre oratório a velar o próprio cinema, em sua decomposição narrativa, na diluição de suas formas. À beira do abstrato, como pede o luto. (Fernando)

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No Silêncio da Noite [In a Lonely Place, 1950], de Nicholas Ray

Muito já foi escrito sobre esta obra-prima no Multiplot. Aqui e aqui. (Daniel)

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Cantando na Chuva [Singin’ In the Rain, 1952], de Stanley Donen & Gene Kelly

Além de figurar como um dos maiores exemplares do gênero dourado de Hollywood, Singin’ In the Rain representa uma das reflexões históricas mais autoconscientes que o cinema clássico realizou. No meio de tanto bom humor e refinada sensualidade, Donen & Kelly conseguiram uma obra definitiva sobre a indústria e as transformações tecnológicas que ao mesmo tempo ameaçaram um modus operandi artesanal e abriram horizontes para um exercício estético ainda mais completo e totalizante do filme — no caso, o surgir do advento sonoro. A renovação de um sonho audiovisual, da magia que a ilusão impõe, de um pacto do cinema para consigo. (Fernando)

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Assim Estava Escrito [The Bad and The Beatiful, 1952], de Vincente Minelli

Dono de um cinema da desilusão e já responsável por retratar o caráter decadente de outras artes, Minelli expressa aqui uma visão bastante pessoal que interpreta nesta decadência e maldade do sistema os motivos também responsáveis pela genialidade e beleza do movimento cinematográfico. O personagem inescrupuloso de Kirk Douglas — ator e diretor fariam em Two Weeks in Another Town (1962) outra provocação aos bastidores de Hollywood —, dá prova de que o cinema e a humanidade já foram corrompidos a um ponto irremediável, mas que talvez somente por isso sobrevivam. (Fernando)

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A Tortura do Medo [Peeping Tom; Inglaterra, 1960], de Michael Powell

Filme maldito que condenou a carreira de seu diretor ao ostracismo definitivo, Peeping Tom é dos mais cruéis retratos que o cinema produziu sobre o fetiche voyeur. Para narrar a trajetória de seu patético e cinéfilo serial killer — no sentido psicanalítico do termo, em que a cinefilia surge como neurose fundadora da pulsão escópica — e associar tal personagem a todo um entendimento espectatorial onde o público também é criminoso, Powell exercitou aquilo que aprendera com Buñuel e Hitchcock, legando uma catártica, uma quase demoníaca visão do objeto cinematográfico. (Fernando)

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O Terror das Mulheres [The Ladies Man, 1961], de Jerry Lewis

Para que exista misé-en-scène, é necessário ao cineasta compreender, primeiramente, a postura e a imposição dos corpos sobre o espaço, e o distanciamento com que estes elementos, corpo e espaço, serão enquadrados pela câmera. Toda obra de Jerry Lewis, como a de Keaton, Chaplin, irmãos Marx e outros mestres da comédia, sugere através de sua misé-em-scène particular um desarranjo com o mundo que nasce justamente do equívoco de cálculo na imposição de seus corpos sobre o espaço. Esse exercício talvez atinja o ápice em O Terror das Mulheres, em que um set cinematográfico com múltiplos andares, ambientes, objetos e figurantes é construído para Lewis protagonizar uma longa sequência de insanas desventuras e malabarismos. (Daniel)

 10.-oito-e-meio

Oito e Meio [Otto e Mezzo; Itália, 1963], de Federico Fellini

Cinema de confissão, em Oito e Meio Fellini materializa todas as sombras presentes nos pesadelos de um cineasta. Do ócio criativo ao vislumbre da musa, da crise existencial aos picadeiros do estrelato moribundo, a encarnação de Marcello Mastroianni enquanto alter ego confesso de seu diretor é das mais desesperadoras que o cinema já provou. Uma descida aos infernos é do que se pode chamar o seu clímax, apesar de o filme merecer indiscutível lugar no olimpo da sétima arte. (Fernando)

 11.-o-desprezo

O Desprezo [Le Mépris, 1965], de Jean-Luc Godard

Éric Rohmer dizia que “o essencial no cinema não é questão de linguagem, mas de ontologia”. O termo linguagem é constante nos textos sobre Godard em especial para destacar o rompimento de procedimentos protocolares da narrativa cinematográfica, e esse deslumbramento postmodern acaba por preterir o que há de mais especial em filmes como Pierrot le Fou e O Desprezo, e que sobrevive mais modestamente ao tempo, sem saltar aos olhos apressados. O Desprezo é pura ontologia, em um filme de sentimentos e personagens pulsantes, compostos com a precisão do olhar de um cineasta que acredita na força do cinema e de suas imagens como mediadora da própria existência humana. (Daniel)

 12.-introdução-à-antropologia

Introdução à Antropologia [Erogotoshi-tachi yori: Jinruigaku nyûmon, 1966], de Shohei Imamura

O sexo é tema recorrente na Noberu Bagu japonesa, e pelo menos dois grandes filmes do período discutiram abertamente a intervenção da câmera no prazer sexual. Se A Mulher do Lago, de Yoshishige Yoshida, segue assustadoramente contemporâneo nestes tempos de polêmicas sobre o compartilhamento clandestino de fotografias de nudez na internet (e o infame debate sobre a condescendência do registro, que em geral aponta não mais que a predominância do conservadorismo e do machismo em nosso senso comum), em Introdução à Antropologia o mestre Shohei Imamura realiza uma obra-prima sobre a obsessão pelo pornográfico, discutindo com seu humor duro e subversivo temas como voyeurismo, pedofilia, incesto, prostituição, masturbação e orgias – a busca ilimitada por prazer nas diversas formas de sexo, sejam aceitas moralmente ou não. (Daniel)

 13.-targets

Na Mira da Morte [Targets, 1968], de Peter Bogdanovich

Como temer os monstros da ficção em um mundo onde homens empunham armas de fogo e alvejam outros na rua sem real motivo? Targets segue um dos mais precisos estudos do medo e da emergente violência urbana, com um choque gerado através da presença do corpo de Boris Karloff, intérprete de populares filmes de horror da primeira metade do século XX, cuja incapacidade de assustar novas gerações representa toda decadência de um imaginário da fantasia que não encontra mais espaço em nosso doentio cotidiano. É um dos melhores trabalhos de Bogdanovich e um dos filmes mais fortes da Nova Hollywood. (Daniel)

14.-louis-lumiere

Louis Lumière [idem; França, 1968], de Eric Rohmer

No emblemático ano de 1968, Rohmer provoca toda uma cinefilia ao entrevistar Jean Renoir e Henri Langlois, num documentário para a Televisão Escolar, a respeito do potencial de Louis Lumière enquanto cineasta moderno. Pela importância da conservação histórica e no debate que surge a respeito da receptividade fílmica junto a uma nova geração de público, os filmes do séc. XIX irrompem na tela desafiando toda uma concepção de contemporaneidade cinematográfica. (Fernando)

 15.-o-homem-que-deixou-seu-testamento-no-filme

O Homem que Deixou Seu Testamento no Filme [Tôkyô Sensô Sengo Hiwa, 1970], de Nagisa Oshima

Um dos trabalhos mais experimentais de seu realizador, Tôkyô Sensô sintetiza muito do que se convencionou chamar de nouvelle vague japonesa além de representar parte do núcleo formado pela Teoria da Paisagem, fundamental para o cinema nipônico pós-68. No contexto das manifestações estudantis e do impacto cineclubista trazido pelos ‘cinemas novos’, Oshima revoluciona não só a maneira de fazer cinema, mas de compreender o próprio lugar da câmera num mundo que sofre de agônico esvaziamento. O filme dentro de seu filme, enquanto testemunho suicida, reconfigura a condição primeira da imagem enquanto coisa morta, enquanto túmulo do olhar. (Fernando)

 16.-bang-bang

Bang Bang [idem, 1970], de Andrea Tonacci

Radical meta-cinema em que a presença da câmera em cena não apenas denuncia a metalinguagem, mas vai além, permitindo ao filme renegar qualquer neutralidade no olhar – pois ele está todo contaminado por esta câmera. É um filme de vísceras, que nasce do interior dos mecanismos do cinema, gestando em seu corpo sequências por vezes oníricas, descontínuas ou infladas, mas que abraçam desmedidamente um ideal de ficção plena para impor a força do cinema sobre a realidade. Há uma incrível sequência, próximo do fim, em que um dos personagens ensaia explicar a história do filme para o espectador e é repentinamente alvejado por uma torta cremosa que surge de trás da câmera, como se arremessada pela equipe de filmagem para silenciá-lo, que sintetiza com precisão a coragem e a genialidade deste filme de Tonacci. (Daniel)

17.-precauções-de-uma

Precauções Diante de Uma Prostituta Santa [Warnung Von Einer Heiligen Nutte, 1971], de Rainer W. Fassbinder

Responsável por um cinema que será para sempre lembrado como da humilhação — humilhação do afeto, das relações, da humanidade —, Fassbinder entrega com Warnung Von Einer… um cinema que agora se humilha a si mesmo, dentro de uma narrativa prostituída que sintetiza todo o cerne do novo cinema alemão. O esvaziamento dos corpos e espaços em jogo (e da homenagem avessa que fazem ao classicismo de Marienbad) denuncia a esterilidade não só de um sistema produtivo, mas da imaginação criativa que beira o abismo nesta crepuscular Modernidade dos tempos. (Fernando)

 18.-noite-americana

A Noite Americana [La Nuit Américaine, 1973], de François Truffaut

Aquele que talvez seja o cineasta mais assumidamente cinéfilo da história não poderia deixar de entregar em sua filmografia uma visão pessoal do ofício. Por mais que La Nuit Américaine desnude alguns mitos técnicos e exponha os bastidores com certa acidez, o registro romântico de Truffaut sempre fala mais alto, como ainda melhor acontece em sua prática crítica. Se do rigor didático sobram alguns excessos, não há como ignorar obra de tamanho afeto, tão passional e honesta em sua exposição. (Fernando)

19.-o-espirito-da-colmeia

O Espírito da Colmeia [El Espíritu de La Colmena, 1973], de Victor Érice

O cinema nasce de um olhar para se libertar em outro. A magia de todo trânsito entre ambos está em O Espírito da Colmeia. Mais aqui. (Daniel)

20.-blow-out

Um Tiro na Noite [Blow Out, 1980], de Brian De Palma

Como em No Silêncio da Noite, quando o escritor é abandonado por seu grande amor e enfim descobre que a frase que imaginava ter criado para um roteiro representava na verdade sua própria e inevitável tragédia, Blow Out é uma melancólica elegia à interseção entre a vida e a arte. É descortinando os artifícios do cinema e reempregando novo sentido a cada um deles, na belíssima sequência com Travolta operando a moviola, que De Palma resolve o mistério do acidente investigado por Jack Terry, e é no assassinato de Sally, seu grande amor, quando o microfone capta o mais agudo e doloroso grito de horror, que o cineasta sadicamente concede a Jack o registro perfeito para finalizar seu filme. Da miséria da vida nasce o triunfo da arte, quando a escuridão da noite, iluminada pelas cores dos fogos da Liberdade, submerge o destino de Jack em uma indissipável treva. (Daniel)

21.-o-estado-das-coisas

O Estado das Coisas [Der Stand Der Dinge, 1982], deWim Wenders

Da recorrente metalinguagem que assola a carreira de Wim Wenders, a mais impactante na abordagem do próprio cinema foi a que marcou seus primeiros filmes da década de 80. Lightning Over Water (1980) e Chambre 666 (1982) são exemplos de um cinema que assume considerável temor, pelo passado ou pelo futuro, contra o rigor do tempo. Der Stand Der Dinge é o clímax de toda uma crise narrativa, ao filmar uma refilmagem interrompida pelo desaparecimento do produtor. Sem película e sem dinheiro não há filme, mas sem movimento ou imaginação, todo o cinema é impossível. (Fernando)

 22.-sem-sol

Sem Sol [Sans Soleil; França, 1983], de Chris Marker

Ainda que, filme após filme, Chris Marker nunca abandone a reflexão sobre o mecanismo cinematográfico, é preciso destacar três títulos essenciais pelo foco a outros cineastas: A.K. (1985), sobre Kurosawa, Le Tombeau D’Alexandre (1993), a respeito de Aleksander Medvedkin e Une Journée D’Andrei Arsenevitch (2000), em homenagem à Tarkovski. Se inserimos um filme além destes na presente lista é porque em Sans Soleil, Marker aprofunda suas observações sobre o cinema com uma nostalgia ainda mais íntima e singular, por mais que também ancorada em outros nomes, a exemplo de Hitchcock e seu Vertigo. Porque a cinefilia também escreve em diários. (Fernando)

 23.-alcazar

As Poltronas do Cine Alcazár [Les sièges de l’Alcazar, 1989], de Luc Moullet

O apaixonado cinéfilo/crítico e suas dúvidas tenras e por vezes deliciosamente bobas. Da escolha pela melhor poltrona na sala de cinema à eterna guerra ideológica em torno dos cineastas, transitando pela decisão por ficar ou não com uma mulher pelo gosto cinematográfico dela ou, em um encontro no cinema, fixar os olhos à telona ao invés da boca ao beijo da companheira, Luc Mollet filma em Sièges de l’Alcazar uma das mais divertidas e singelas representações da cinefilia, da paixão pelos filmes e por toda áurea mística que os cercam. (Daniel)

 24.-baisers-de-securs

Les Baisers de Secours [idem; França, 1989], de Philippe Garrel

Poucas vezes o cinema terá gerado tamanha introspecção, tão marcante equilíbrio entre a Imagem e a Vida, a Ficção e a Realidade. Ao filmar sua própria vida de cineasta e colocar nisso um núcleo familiar verdadeiro (esposa, pai e filho, todos atores de ofício), Philippe Garrel acompanha a luta de uma geração que já não sabe como se enxergar no cinema. O fazer do filme em Les Baisers de Secours, assim como em Sauvage Innocence (2001, do mesmo diretor), se reflete como num espelho manchado, um diário de amores que não poderia ser escrito senão pela grafia da câmera. (Fernando)

25.-close-up

Close-Up [Nema-ye Nazdik, 1990], de Abbas Kiarostami

O cinema de Kiarostami propõe um exercício permanente de ressignificação. A cada plano, novas verdades – ou possíveis farsas – se integram a um conjunto de observações sobre o comportamento e a relação dos seus personagens – seja com outros personagens em cena, com nosso mundo ou com a realidade proposta ao filme. Close Up, neste ou em qualquer outro sentido, é um dos grandes trabalhos do cineasta iraniano. É um filme que abraça as potências do documentário e da ficção e dilui as barreiras entre ambos para remontar brilhantemente uma curiosa história de farsa – como todas as histórias de farsa, também uma história de amor pela ficção e pela representação. (Daniel)

 26.-o-jogador

O Jogador [The Player; EUA, 1992], de Robert Altman

O estilo fragmentário peculiar das narrativas de Altman só poderia cair como uma luva para um enredo a respeito dos dissabores do sistema hollywoodiano. Sendo o cinema arte da coletividade, The Player encontra no excesso de colaborações e citações interfílmicas o tom exato para a ironia pretendida pelo diretor, a começar do ponto de vista protagonista, que, ao seguir um produtor da indústria, já se dispõe a focar aspectos paralelos ao da criação estética em si, pois mais interessados no caráter mercantilista da sétima arte. Entre trapaças e cifrões, a ácida visão de mitos despidos. (Fernando)

27.-irma-vep

Irma Vep [idem, 1996], de Olivier Assayas

A câmera de Assayas filma ao mesmo tempo a História do mundo e do cinema. Pessoas e personagens. Vidas e tramas. Sua lente é um filtro pelo qual estas representações se rarefazem para serem projetadas ao espectador como uma realidade híbrida cuja existência está terminantemente fadada a pertencer à arte. Ao mesmo tempo, há uma vida que pulsa destes personagens que nos envolve e nos aproxima deles como de outros poucos no cinema atualmente. É este olhar cinematográfico e ao mesmo tempo tão humano que fascina em seus filmes, e Irma Vep é uma orgânica representação do estudo sobre a [des]construção de signos, imaginários, personagens e narrativas que precederiam e sucederiam sua existência na filmografia do diretor. (Daniel)

28.-onde-jaz-o-teu-sorriso

Onde Jaz o Teu Sorriso? [Où Gît Votre Sourire Enfoui?; Portugal/França, 2001], de Pedro Costa

Exercício ensaístico que observa a montagem do filme Sicília!, filmado em 1999 pelos diretores Jean-Marie Straub e Danièle Huillet, o trabalho de Pedro Costa firma pelo diálogo com o casal um cinema que prioriza a dimensão do olhar, sua sensibilidade, sua maneira particular de encontrar o mundo e guardá-lo com um carinho próprio, nostálgico, vivo. Onde Jaz o Teu Sorriso? é a pergunta que fica diante de um rosto filmado pelos Straub e que, num movimento íntimo e irrecuperável, pareceu sorrir, sem que tal gesto pudesse estampar em definitivo uma imagem de cinema. (Fernando)

29.-dragon-inn

Adeus, Dragon Inn [Bu San, 2003], de Tsai Ming-Liang

Rumores indicam que um cinema de calçada na Coreia, que terá sua última exibição antes de fechar as portas definitivamente, é assombrado por fantasmas. Enquanto a projeção ilumina a tela na noite derradeira (o filme é Dragon Inn, de King Hu), poucos espectadores ocupam algumas poltronas da vasta sala – parte deles procurando refúgio contra a chuva avassaladora que desaba na cidade. A câmera acompanha delicadamente os gestos e as ações destas pessoas, os olhares que se voltam à tela ou que se cruzam com outros olhares durante este curto período, mas também observa a amplitude do vazio, o silêncio que reverbera pela sala como notas de um réquiem emudecido. Em seu atordoante clímax surge o rito fúnebre, quando as portas são trancadas pela última vez e o templo antes habitado, lar de múltiplas histórias e vidas, se transforma enfim em um legítimo casulo de espectros. (Daniel)

30.-aquele-querido

Aquele Querido Mês de Agosto [idem, 2009], de Miguel Gomes

A câmera é também um instrumento para desvendar o mundo. E é do prazer pela descoberta do novo registro que cresce mais este híbrido entre documentário e ficção, acompanhando uma equipe de filmagem em visita à locação de seu próximo filme e os desdobramentos que cada personagem encontrado por eles no percurso provocam dentro da própria ficção que o grupo propõ­­­e, que brota naturalmente pela narrativa durante a trajetória e se intersecta magicamente à realidade disposta pelo filme. Miguel Gomes filma aqui um dos mais prazerosos exercícios sobre fazer cinema justamente porque cada plano e movimento registrados, mesmo em condições absolutamente triviais, são impregnados de um encantamento contagiante pelo ato de observar o mundano e nos surpreender com ele através das mais singelas ações. (Daniel)

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Terra Prometida (Gus Van Sant, 2012)

Por Fernando Mendonça

A primeira imagem: sob as águas, nos aproximamos de uma superfície que espelha o rosto de Matt Damon, capturado de forma quase abstrata e irreconhecível, dado o movimento de agitação no líquido que o ator usa para se lavar.

A última imagem: num afastamento panorâmico, nos distanciamos de uma pequena cidade rural, ao som de uma trilha (Danny Elfman) que destoa levemente do desfecho, causando um estranhamento na atmosfera até então sustentada.

Uma e outra, são estas as imagens que parecem realmente carregar a marca de Gus Van Sant, diretor que não viu problema algum em assinar friamente um projeto encomendado pelo amigo Matt Damon, ator/roteirista que já lhe fora parceiro em dois momentos importantíssimos da carreira (Gênio Indomável, um dos títulos que aliou respeito e popularidade ao seu nome, nos anos 90, e Gerry, a experiência que alavancou a sua fase mais expressiva de realização, nos anos 2000). A bem da verdade, não é incomum a prática desta ‘brodagem’ dentro da produção cinematográfica, nem mesmo no âmbito de Hollywood; por toda a história vemos bons realizadores abrindo mão de sua perspectiva autoral para favorecer algum amigo intérprete (Hitchcock, Wyler, Ford, nem mesmo os gigantes escaparam disso), então não é surpresa, e nem se esperou o contrário, de que o novo Van Sant não fosse exatamente novo, nem exatamente Van Sant. De forma bem calculada, Gus cumpre todos os requisitos pedidos pelo roteiro do amigo, abrindo uma espécie de hiato, entre a primeira e última imagem de Terra Prometida, sem deixar de, com estas cenas, dar a piscada de olho que, aí sim, se espera de um diretor como Van Sant.

Vejamos bem quão significativa é esta abertura, no sentido da fragmentação que ela confere aos contornos do rosto, justamente, daquele que é a razão de ser do filme. Se Van Sant não se importa em elevar a presença de Matt, em alça-lo como núcleo central de sua filmagem, ele também só cumpre esta função depois de ‘borrar’ e desconstruir toda a força de um close (ângulo retomado exaustivamente no decorrer da projeção). É o tipo de cena que diz: “fica aqui o meu ponto de vista para entrar o seu”, dando margem a toda uma provocação do diretor que, ainda posteriormente diluída, não deixa de nos lembrar dos confrontos típicos já proporcionados justamente a partir do rosto e corpo de Matt Damon, na carreira de Van Sant. Mesmo tipo de crise sugerida pela última imagem do filme, marcada por um significativo distanciamento do espaço, um conceito tão caro à Gus e tão esquecido em Terra Prometida; novamente, uma cena que diz: “fica aqui o seu ponto de vista, para que eu retome o meu”, em algum próximo trabalho, inspiração ou mesmo encomenda (pois não é este um problema a priori de encenação, mas a maneira como ele é resolvido).

No mais, ainda que possamos, com relativo esforço, encontrar outros ‘momentos Van Sant’ em seu próprio filme — como na imagem de uma ave sobre a fiação de postes, interrompendo sem prejuízos uma ação dos protagonistas, ou o vertiginoso giro de câmera sobre o corpo de Matt na cena em que ele tenta interpelar o oponente (John Krasinski) pela primeira vez — as imagens que realmente importam ao realizador, dentro de uma perspectiva autoral, só podem ser estas que emolduram toda a extrema transparência de Terra Prometida e, de alguma forma (e com alguma torcida nossa), indicam a autoconsciência devida a um cinema que não se entrega em definitivo à diluição. Como na imagem de abertura, é tudo uma questão de se reencontrar o foco certo, sob as condições adequadas.

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Yoyo (Pierre Étaix, 1965)

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Por Fernando Mendonça

É um dos primeiros gestos do milionário Pierre, ainda na abertura de Yoyo (1965): olhar desconsolado para um porta-retratos, num gesto de saudade e impotência, após esconder-se de seus criados e dos barulhos mundanos. Na fotografia, a imagem da amada, perdida no tempo, lembrando-o de que nem tudo pode ser comprado com uma fortuna, que nem todos os desejos podem ser satisfeitos. Cena-repetição nascida desde o primeiro curta-metragem de Étaix, Rupture (1961), obra-prima que brindava seu protagonista com o recebimento de uma carta trazendo-lhe o próprio retrato, rasgado ao meio pela namorada que bruscamente findava a relação. Tais momentos pausam o bom humor destes filmes e perfazem a exata lembrança de que o riso é um contraponto, um movimento de resistência ao que se pode viver de doloroso, sentimental ou historicamente. Se os primeiros trabalhos de Étaix já bastavam para comprovar um conhecimento absoluto do mecanismo narrativo e da história guardada pelo cinematógrafo — é notável como algumas de suas gags concentram meio século de cinema, reagrupando e recodificando diversas camadas da imagem e do som —, com Yoyo, o realizador confirma a rara maestria de saber representar uma emoção ou estado de espírito através de um cuidadoso pormenor de linguagem, uma questão de mise en scène.

Vertiginosa a recorrência dos retratos. E o garoto Yoyo, filho que será descoberto pelo mesmo milionário após reencontrar sua paixão de outrora num espetáculo circense, também terá o seu: uma fotografia da mansão em que vivia seu pai, antes da falência, antes da paternidade em si mesma. Pois o rico homem só retomará seus amores após perder todas as posses no período da Segunda Guerra. Só se ganha com a perda, só se ri com a dor. E na fotografia do lar não habitado, da espantosa arquitetura que lhe fora roubada na infância, o garoto (Philippe Dionnet) também ecoa a saudade pelo que não viveu. Vemos o seu carinho pela imagem, guardando-a entre as partituras que usa nos ensaios de violino, o lugar mais certo para nos fazer entender que são estas memórias perdidas a verdadeira melodia do cinema de Pierre Étaix. Não é somente para disputar com La Strada, o Fellini citado em seu longa mais assumidamente felliniano, que Étaix busca uma melodia simples e certeira para centralizar as dores da nova família mambembe. O caráter de homenagem, típico em toda sua carreira, adquire identidade por justamente não se esquivar das referências. Ao tocar uma música própria, Yoyo também nos toca a memória num ponto quase impossível de largar — não há como encerrar a sessão sem cantarolar as tristes notas, sem perceber-se tão genuinamente equilibrado entre o riso e a lágrima.

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Já sabíamos que o interesse pela sonoridade é uma das tônicas que obceca Étaix. Desde seus curtas, o imaginário do cinema mudo dominava as dimensões de cada personagem ou situação, o que se exacerba na magistral apresentação do protagonista em seu primeiro longa, Le Soupirant (1962), personagem interpretado, como sempre, pelo próprio diretor, numa cena em que veda os ouvidos com tampões para não se perder em seus afazeres, deixando de escutar tudo o que se passa dentro de casa e nos conduzindo ao mais pleno silêncio — deslocado pelo que vemos sem poder ouvir, pela ciência do som, mas não a sua percepção. Se ali tínhamos a sonoridade explorada com todos os requintes de experimentação formal possíveis para o cinema falado, em Yoyo esta mesma marca aprofunda a tessitura da diegese, tornando-se um dos principais temas, ou melhor, o carro chefe de todos os temas que circundam as peripécias do roteiro. Justamente por tratar-se de um filme sobre a perda (das riquezas, das memórias, das inocências e certezas), aí o mais acertado enredo que poderia haver para se refletir as perdas do próprio cinema. Afinal, o que mais perdeu essa arte ao se despedir do silêncio? Qual foi o nível de negociação, quais os novos elementos realmente envolvidos, em quê a materialidade da representação se transubstanciou?

Numa das incontáveis gags do longa, Pierre Étaix comete a trapalhada de depositar um relógio sobre um pequeno forno com as chamas acesas. O objeto derrete sem que ele perceba, entretido com a leitura da nova carta dos pais (perdido entre as memórias, como no início). Há muito que deduzir com esta sequência, e a conclusão é certa: o cinema de Pierre Étaix é, acima de tudo, o registro de uma ferida que jamais cicatrizou, a incômoda lembrança de uma dor que não amorteceu. Um cinema sobre o cinema interrompido, sobre as necessidades de uma atualização que pouca novidade traz.

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O crescimento do menino Yoyo e sua interpretação retomada pelo próprio Étaix, que também encarnara seu pai, enfatiza este eterno retorno da arte, a necessidade de duplicações, de reescritas, de abismais reflexos como estes que dão forma a todo legado do realizador. É o mesmo homem dando corpo ao pai e ao filho, são as mesmas notas da música se repetindo, a mesma história das artes, em sua ascensão e queda, buscando os meios de se perpetuar. O menino cresce, segue a carreira de palhaço, esbarra com o sucesso e, num golpe do destino, enriquece e reassume os espaços paternos, a mesma mansão da fotografia escondida. Mas se o tempo se foi, se o passado não mais retorna, não adianta fingir a identificação. O reencontro com os pais, que renegam as escolhas do filho e nos negam a própria imagem — não mais os vemos, mesmo no cortante último diálogo que travam —, é dos mais tristes episódios que o cinema já concebeu sobre a diluição de um afeto. Já não há o reconhecimento do sangue, do sobrenome, dos espaços que um dia foram lar. Yoyo tem seu desfecho entre ruínas, ainda que maquiadas e ornamentadas pelo esnobe luxo das celebridades, como se espelhasse a desgraça de uma linguagem que se resumiu à indústria, assentando as últimas notas críticas contra seu próprio sistema.

Não poderíamos viver em melhores dias para se entender e sentir cada uma das alfinetadas que Étaix desferiu contra seu tempo. Pois mais tempo se foi, maiores são as perdas, ao ponto de hoje redescobrirmos num filme dessa grandeza, que em pouco mais de 90 minutos atravessa gerações e nos faz íntimos de cada detalhe que deu vida a um século com o cinema, uma qualidade quase totalmente perdida dentro da comédia, de tornar o riso um dos maiores atos políticos que se possa realizar, para não dizer um princípio de filosofia. Se a última cena do filme resiste ao tom trágico (Yoyo montado num elefante, afundando no lago de seu próprio terreno, como numa sombra de Mizoguchi), isto ocorre porque qualquer possibilidade de lágrima, em Étaix, precisa secar antes que o sorriso se forme no rosto. E, numa simples fusão, o lago se converte em picadeiro, o suicídio em ressurreição. Eis a esperança da imagem, sobreposta sobre si mesma, o derradeiro resgate da memória, pois, no círculo do picadeiro lembrado, reencontra-se o círculo/ciclo da vida, jamais fechado. Pierre Étaix sabe que, para se salvar uma imagem, somente outra. Nada mais adequado que nossos dias façam destes filmes, o seu picadeiro.

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Filmografia Comentada – David Cronenberg

Aproveitamos o lançamento de Cosmópolis no Brasil, adiado tantas vezes pela distribuidora nacional que ainda conseguimos nos antecipar a ele apesar do atraso de dois meses na atualização, para novamente nos reunirmos em um artigo coletivo sobre a obra de um cineasta (como fizemos com Nicholas Ray, à época da comemoração do seu centenário). O resultado é este passeio pela filmografia completa do canadense David Cronenberg, em que analisamos desde Stereo, sua estreia no cinema em 1969, até Senhores do Crime, lançado em 2006 — Um Método Perigoso e Cosmópolis, seus dois filmes mais recentes, possuem críticas à parte no site, que podem ser acessadas na home page.

Stereo (1969)

Ângulos, sombras, vozes, arquiteturas, sexos, futuros, solidões… A densa matéria que dá forma a Stereo, trabalho profético de um cinema, de uma ciência e filosofia, de um tempo humano ainda não encerrado, não esconde a relação obsessiva de David Cronenberg para com certos temas e procedimentos. Dos mais notáveis exercícios de estreia já vistos numa tela, esta primeira obra guarda paralelos com absolutamente todos os filmes a serem assinados pelo autor a partir de então. Impossível esgotar as interseções, os ecos e repetições dispersos pela filmografia em jogo. Por isso um inusitado interesse junto aos elementos que aqui ganham único tom: o preto e branco, o áudio em off, o frescor que emana da montagem principiante, por mais rígida que ela seja. Escapamos dos limites de orçamento abrindo um horizonte de encenação como raras vezes veremos no Cronenberg subsequente, mérito de um destemor típico dos primeiros passos, estes que são dados sob a incerteza de talvez serem os últimos. Stereo não poupa uma só convicção, abala toda uma estrutura lógica a partir de racionalidade própria, de confiança somente naquilo que tem em mãos: o movimento que extrai dos corpos e que origina a partir deles. Deste novo mundo aqui traçado, em que a carne e o desejo são confrontados pela insuficiência do toque, emana uma dolorosa esperança de um porvir que extinga a intransigência de opostos. Não se trata de utopia, mas de possíveis que não se excluem, de um cinema que aliança as distâncias — morais, estéticas, políticas — para favorecer uma harmonia perdida e fazer dela mais do que mera ficção. (Fernando Mendonça)

Crimes do Futuro (1970)

Filme independente filmado, escrito e dirigido por Cronenberg, o segundo de sua carreira. Neste seguimos Adrian Tripod, ex-diretor de uma clínica dermatológica, na procura pelo seu mentor, Antoine Rouge. O sumiço de Rouge está ligado de forma enigmática a uma doença infecciosa provocada por produtos cosméticos – infecção que parece ter sido a culpada pelo extermínio da população feminina sexualmente desenvolvida. Nesse mundo pós-apocaliptico, temos a vitória das instituições (que se mantém com toda a sua pompa burocrática e protocolar) sobre os indivíduos (que vagam errantes, morrem ou adoecem sem grandes explicações). Os homens seguem cumprindo procedimentos científicos e perpetuando racionalizações acadêmicas, ainda que essas atividades não pareçam ter qualquer efeito transformador sobre a realidade, além do descritivo. Para piorar, os únicos grupos que demonstram algum interesse em revitalizar a existência da espécie humana são círculos obscuros de conspiração de pedófilos, que objetivam criar por meio de outra forma de sexualidade uma espécie substituta para a humanidade. Dito assim, o filme soa muito mais repugnante do que ele de fato é. Mas, assim como seus homens indiferentes da pós-catástrofe, é na frieza das imagens e na anti-fruição narrativa em que o diretor se fia. Os contatos humanos são estranhos, o ambiente é hostil e esses seres sorumbáticos perambulam através de uma arquitetura opressora. O roteiro quase surrealista se arrasta  pelo vagar ilógico das ações. A narração em voz over e a intervenção de ruídos diversos e pouco agradáveis (o som do filme é todo indireto e de pós-produção) só aumentam o distanciamento do espectador. Se o filme beira o insuportável, resta o consolo de que ele foi construído para isso. (Kênia Freitas)

Calafrios (1975)


Como obra de seu período inicial, Calafrios ainda é um pouco imatura frente a outros filmes de Cronenberg; daí sua aparência “trash”, seu inegável flerte com a estética barata de produções de low budget, algumas imperfeições que a tornam única dentro da carreira de seu realizador e também como peça profética: tanto para o cinema, pois antecipa Alien e seus monstros de infiltração gosmenta, como para a discussão de grandes chagas (não apenas físicas) contemporâneas, como a ganância extrema que faz cientistas criarem em laboratório ameaças para a vida humana, visando à glória de ser reconhecido na luta contra o perigo artificialmente fabricado. Não é um pouco o que dizem ter havido com a AIDS? Aí Calafrios deixa de ser tão futilmente fantasioso (como se a imaginação fosse por si algo vulgar, descartável) se o consideramos nesse contexto, e de qualquer modo o terror sempre presente nunca se faz ridículo ou fora do tom, pois Cronenberg sabe como segurá-lo na sua cadência, que faz todo o sentido ao se impor no cotidiano das personagens. Ao se manifestarem de maneira explícita, os Calafrios percorrem também a espinha de seu público. E de repente talvez percebamos que a questão moral proposta por Cronenberg não se esgota no extermínio das criaturas macabras vistas neste filme, mas numa mudança de postura e mentalidade. (Filipe Chamy)

Enraivecida na Fúria do Sexo (1977)

Imprevista atualização de mítica vampiresca, Rabid é o filme que conecta uma primeira fase de Cronenberg — de poucos recursos, quase artesanal — ao estilo que caracteriza todo o restante de sua carreira. Da dialética Corpo X Ciência, eis um reflexo exponencial dos traumas que este conflito moderno origina dentro daqueles que se submetem, ou são submetidos, a modificações de sua natureza para sobrevivência. É para não morrer que a protagonista suga a vida e o sangue (e o sexo) de todos que se aproximam; para continuar em seu corpo que, incontrolável e inconscientemente, ela espalha uma peste, a Raiva do título original, entre a população local. Os princípios de uma antropofagia espelhados pelo próprio cinema, pelo referencial de gênero em que Cronenberg adentra e pelo que ele lega e compartilha com autores de seu tempo (Romero, Craven, Rollin), cinemas feitos com os restos da humanidade. Neste corpo neutralizado a que se restringe o contorno da mulher atriz (Marilyn Chambers, advinda do mundo pornô e por isso com a única experiência legítima ao universo de Rabid, um filme a que só importam os resquícios dos corpos e de suas ações mecânicas), Cronenberg encontra a carnalidade devida e necessária ao seu projeto de imagem; é o que sua última cena confirma, no caminhão de lixo que tritura o cadáver esquecido, que se afasta dentro de uma rotina apocalíptica sem o menor pudor ou impressão nostálgica. Constatação de um tempo em que já não cabe a saudade, de um espaço que não alivia a mortalidade do mundo. Em Rabid um cinema que volta ao pó, que se rende ao finito, uma lembrança de que já não importa a ficção se tudo é frágil, ilusório, enfermo. (Fernando Mendonça)

Fast Company (1979)

Fast Company carrega o velho e bom discurso bufão de liberdade “hit the road” anos 70, concepção residual da semifalida contracultura sessentista e da agonizante transição, no cinema, do douradíssimo Monument Valley pralgum triste pedaço de asfalto entre o Novo México e a Louisiana — radiografia translúcida do jovem cinema americano tirada por um filme B de Alberta, Canadá. Embora pareça estranho ver um carsploitation entre filmes de horror na filmografia de Cronenberg, Fast Company guarda, ainda que sob as ressalvas de uma produção precária, indícios da mise-en-scène minimalista vista mais claramente a partir da década seguinte. A câmera é erradia e os cortes são rudes (especialmente naquele campo-contracampo frenético das cenas de corrida), mas acabam sempre por recompor a cadência de um outro cinema. No macro, Cronenberg é mesmo afeito ao escândalo, ao absurdo; mas na minutiae dos seus filmes sempre se instalou aquele olhar kafkiano que narra o desconcerto como banal, que faz da loucura a mais anêmica trivialidade. Para além do filme em si, que não despertaria mesmo um interesse genuíno (nem dentro do seu sub-gênero), há este semiclassicismo prematuro em Fast Company, de adotar a insurgência lisérgica exportada pela Nova Hollywood com preceitos do cinema clássico guardados no bolso. (Luis Henrique Boaventura)

Filhos do Medo (1979)

 

Nem o espectador nem os personagens que circundam Nola Cavendish — o médico trambiqueiro cujo tratamento se revela mais eficiente do que deveria; o marido que vai de um lado a outro em busca de uma explicação para os eventos cada vez mais inexplicáveis que ocorrem à sua volta — sabem, até as cenas finais de Os Filhos do Medo, se ela tem consciência ou não da existência de sua “ninhada” e de como as atitudes dos “filhos” refletem seus estados emocionais. A revelação é adiada por Cronenberg pelo maior tempo possível; a narrativa nos despista inúmeras vezes, empurrando Nola para uma posição de vítima indefesa de Oliver Reed; e tudo isso carrega a hora da reviravolta de expectativa, porque, embora sejamos levados a pensar que temos uma noção bastante boa do que está de fato acontecendo, o filme toma o cuidado de não nos deixar cristalizar uma certeza nunca. Assim, o momento em que Frank entra naquela quarto é valorizado, e é logo depois que estaremos diante da (apenas) segunda irrupção explícita, em todo o filme, do horror cronenberguiano como tomou forma na primeira fase da carreira do diretor, o das anomalias e deformações corporais; o que pode parecer estranho num filme com temática tão convidativa à imagem frontal do corpo padecendo de um mal físico ou psicológico que Cronenberg cultivou durante toda a sua carreira. Os Filhos do Medo tem essa postura porque aqui não importa tanto a mutação particular que vemos, mas sim o fato de que Nola não só a aceita como a celebra: e a mise en scène é sua cúmplice nesse aspecto, na forma como esconde de nossa vista, pela sua elegância, pela cadência da narrativa, muito mais próxima de um suspense clássico que um Scanners, a verdadeira natureza dos eventos. Nos filmes anteriores não existia olhar simpático algum para o que acontecia; mas de Os Filhos do Medo em diante a câmera de Cronenberg sempre enquadrará a anomalia (física ou mental) num misto de horror e fascinação. (Robson Galluci)

Scanners — Sua Mente Pode Destruir (1981)

 

Uma ficção-científica de terror, Scanners, com seu clima pesado, não deixa de trazer algumas questões caras ao cinema de Cronenberg: tecnologia e coerção social controlando e moldando os corpos dos indivíduos, que resistem como podem. No filme, um grupo de pessoas adquiriu a capacidade de ler e controlar mentes, devido a um experimento científico malsucedido. Com o fracasso das experiências, esses scanners (leitores de mentes) tornaram-se páreas na sociedade, incapazes de adaptarem essa aptidão a uma vida ordinária. A situação só muda quando um scanner decide reunir todos esses enjeitados em um plano de dominar o mundo. E apenas um outro scanner será capaz de acabar com essa revolução violenta. É essa guerra telecinética que filma Cronenberg. Se pela temática poderíamos supor uma abordagem mais psicológica, o que interessa ao diretor é o embate físico desses corpos. Os olhos se esbugalham, as veias saltam, o rosto se deforma. Como de costume no seu cinema, é essa metamorfose corporal que interessa a Cronenberg: o que se passa na tela como uma pele. O poder mental dos scanners se materializa como a carne e o sangue nas imagens, às vezes tão densos que as cabeças até explodem. (Kênia Freitas)

Videodrome — A Síndrome do Vídeo (1983)

Mcluhan apontou a tecnologia eletrônica – e posteriormente cibernética – emergente no século XX como uma extensão do corpo humano, o faz dela, deste ponto de vista, um tema natural para o cinema de Cronenebrg. Desde então diversos filmes se aproveitaram da ideia de diluição entre a realidade física e a ilusão virtual para a composição de uma única entidade-mundo – o próprio Cronenberg realizaria anos mais tarde nova investida no tema com eXistenZ -, nenhum deles com a precisão assustadora e visionária de Videodrome. Ao participar de algumas exibições de filmes snuffs – antes mesmo do termo ser cunhado para classificar os vídeos que reproduzem violência física e mortes não encenadas, reais – o personagem de James Woods passa a sofrer alucinações e é de seu ponto de vista distorcido e insano que acompanharemos tudo o que se desenrola na história, sem jamais sabermos quais elementos são reais dentro do conceito de “realidade” proposto para o filme e quais são meras intervenções de seus delírios. O dispositivo central parte de uma forte inversão: enquanto os limites morais da encenação são postos em xeque nos filmes-dentro-do-filme, com a reprodução de mortes reais em vídeo, a vida do personagem é sugada por um imaginário de gênero através do qual é transformada em uma grande ficção, com direito a cenas de ação, perseguição, sexo, assassinato e gore, elementos básicos do códice das ficções oitentistas – e também dos filmes canadenses do cineasta, que faria com Videodrome sua estreia em solo estadunidense. Desta dicotomia nascem momentos emblemáticos como o abdômen de Woods abrindo-se para ser transformado em um vídeo-cassete humano, ou a televisão o engolindo, ou a arma que ele porta se integrando ao seu corpo, fundindo assim máquina e homem em um mesmo ser – imagens que não poderiam refletir com maior precisão sobre nossos tempos. A tecnologia, embora à serviço da civilização do homem, também pode ser sua ruína. Long live the new flesh, diz Cronenberg, e salve-se quem, nesta intempérie de estímulos artificiais, conseguir se manter imune à insanidade. (Daniel Dalpizzolo)

A Hora da Zona Morta (1983)

A sintonia que o original literário de Dead Zone nutre para com o universo de Cronenberg é facilmente identificável pela relação de forças polarizada em torno do corpo humano, da dimensão que escapa à ciência e expande o horizonte de atuação dos entes racionais no mundo em que vivem. Abordagem de um vigoroso romance de Stephen King, este filme converge alguns aspectos que complementam o imaginário de Cronenberg no que tange o seu habitual alargamento dos limites físicos, no caso, uma demolição das barreiras que a mente encontra para exercer poder num domínio exterior à pele, sem a necessidade de qualquer contato com seus agentes de percepção. O protagonista encarnado por Christopher Walken, vítima de um acidente que libera em seu cérebro uma paranormalidade fundamentada na visão de dores e medos sofridos em espaços-tempo descontínuos ao de sua presença, concentra problemas característicos aos tipos que se multiplicam na filmografia do diretor: angústias de pessoas que se encontram num estado de diferença, que se fundem numa alteridade não compreendida e, por isso, são impedidos de uma comunicação social e afetiva com aqueles que já não conseguem enxergar neles mais do que uma memória latente, uma impressão perdida do passado. Apesar de tudo, o foco acentuado por Cronenberg sobre a interrompida vida amorosa/familiar de seu personagem — de um romantismo frustrado como só veríamos novamente em Marcas da Violência — ecoa uma impotência compartilhada pelo próprio resultado final de A Hora da Zona Morta, filme um tanto quanto envelhecido e formalmente dissonante dentro do cinema que ele desenvolveu no século passado. Talvez por isso, seu trabalho que melhor esboce os caminhos que ele trilharia nestes anos mais recentes, maduros o suficiente para assumir um classicismo indiscreto, confrontador. (Fernando Mendonça)

A Mosca (1986)

Precedido por uma reputação cheia de meias verdades, A mosca é tido na conta de refilmagem, de festim “gore” e de ficção-científica absurda e descerebrada. Mas na superfície tudo é raso, e é difícil subestimar este filme de David Cronenberg após assistir a ele com um mínimo de atenção. A Mosca não é um remake caça-níqueis, é uma outra versão do mesmo texto literário (não lembrando em nada o filme de 1958, aliás); também não se refestela nunca na gosma e na sujeira e no podre como uma maneira de chamar a atenção ou estilizar maneirismos estúpidos: é uma jornada de destruição, e claro que na putrefação física os detritos e chagas são abundantes; o rótulo de ficção científica — empregada aqui, pela ala detratora, como atributo pejorativo — também parece inadequado, sendo A Mosca um filme essencialmente romântico e dramático, uma saga de ambição e desespero, incrivelmente trágico, com uma moral encerrada no fundo de sua percepção da megalomania humana, com a eterna vontade que temos de usar a ciência para superar a natureza, sermos um pouco criaturas divinais. A Mosca está portanto longe do oportunismo, do amadorismo e do conservadorismo. É uma obra madura disfarçada sob a aparência de tolo entretenimento, e aí Cronenberg acerta na mosca. (Filipe Chamy)

Gêmeos — Mórbida Semelhança (1988)

Se as deformidades e transformações do corpo eram o leitmotiv da obra de Cronenberg até A Mosca, em Gêmeos — Mórbida Semelhança adentramos numa operação que desfacela esta regra e, por sua necessidade de encenação (fazer de um mesmo corpo, em tela, dois), concede à misè en scène do diretor um status cirúrgico — não sem propósito, é um filme que aproxima a ciência e a arte com certa frequência. Pois a consciência única dividida pelos gêmeos interpretados por Jeremy Irons permite a Cronenberg fazer uso de instrumentos próprios ao cinema (o corte, a angulação da câmera, o campo/contracampo) para nos cercar com um jogo de espelhos, partindo substancialmente de um mesmo e imutável corpo. Enquanto em Shivers, Rabid ou A Mosca as anomalias do corpo eram observadas frontalmente pela câmera, em Gêmeos essa mutação é originada justamente por ela, através de seus truques mais fundamentais, para dar à luz a ilusão da arte — e a arte não fora sempre, em sua gênese, uma grande ilusão? O corpo de Irons vela em si toda transgressão imagética deste filme de narrativa cristalina (como dito com frequência, o princípio do que se convencionou chamar de segunda fase da carreira de Cronenberg, dedicada ao estudo da mente humana e seus desvios), alternando personalidades a cada plano para fundir personagens que vivem alimentando-se uns dos outros — não apenas Bev e Elliot, mas todas as combinações geradas entre eles nas transformações físicas e verbais de Irons, que sustentam uma danação estimulada mutuamente e enlaçada à incompletude da outra metade, entregue a nós sempre com o retardo de um corte. Quando enquadrados frontalmente e imóveis num mesmo plano, com o rigor de uma pintura degenerada, Cronenberg reconduz o espectador à mórbida realidade da vida para lembrar que Bev e Shaw, ao final, não são nada além de matéria morta e inanimada; apenas mais um truque do cinema. Apagam-se as luzes e a ilusão tem fim. (Daniel Dalpizzolo)

Mistérios e Paixões (1991)

 

Cineastas do naipe de canadense David Cronenberg, com tantas obras-primas no currículo, não permitem que se possa aferir ou apontar com certeza absoluta qual trabalho que fizeram seria o melhor de todos. Mas, no caso, posso dizer que meu preferido dentre todos os que ele realizou é este Naked Lunch (o crítico norte-americano Jonathan Rosenbaum é outro que, salvo engano, o têm como favorito, mas curiosamente nunca foi um filme muito querido entre a crítica brasileira). Temos aqui um escritor frustrado que trabalha num emprego de merda, para quem não conhece, trata-se da história de Bill Lee (Peter Weller, de Robocop), um escritor junkie que trabalha como exterminador de baratas para poder pagar as contas. Porém, ele começa a correr grandes riscos de perder o emprego, ao ser acusado de desperdício do seu estoque de inseticida. O que acontece é que sua esposa, Joan (Judy Davis), esgota o material ingerindo-o como uma droga qualquer. Incentivado pela esposa, ele, que também já foi viciado, volta a usar da droga, o que faz com que dialogue com insetos falantes, que o incumbem de matar a mulher, o que ele acaba fazendo acidentalmente. Bill foge para um lugar estranho por onde é levado por suas alucinações, a Interzone, onde, munido de uma máquina de escrever que briga e se transforma em insetos gigantes, ele redige “relatórios” em que narra a seus “superiores” (os insetos) a vida dos nativos dos lugares, entre os quais, outros escritores obcecados por drogas, literatura e homossexualismo. Na verdade, Bill e esses outros escritores são agentes disfarçados que tentam descobrir o gerenciador local no tráfico de lacraias pretas brasileiras gigantes, que dão origem a uma droga de efeito ainda superior as demais. Não é preciso dizer que esse enredo de acontecimentos inacreditáveis e inenarráveis formam um universo surreal cheio de bizarrices, um delírio visual em que se sobressaem os insetos gigantes que mais parecem crustáceos, verdadeiras criaturas que se assemelham às que costumam povoar filmes de terror, mas que aqui fazem parte das “viagens” perpetradas pela mente psicodélica dos personagens quando sob efeito dos alucinógenos. O romance original do escritor beat William Burroughs foi publicado em 1959, e, desde sua estréia, considerado escandaloso. Muitos o julgavam intransponível para o cinema, até David Cronenberg encarar o desafio de levá-lo para as telas e filmá-lo na Inglaterra, Canadá e Japão, em 1991. De fato, a tarefa de transformar esse argumento em filme sem resvalar na mediocridade parecia ser uma tarefa das mais difíceis. Cronenberg superou todas as barreiras da transposição e criou um filme extraordinário. Ainda não li o romance, mas embora digam que Cronenberg tenha atenuado bastante o livro original, pode-se dizer que o canadense nunca levou suas bizarrices até as últimas consequências que nem em Naked Lunch. Em tempo: alguém tem dúvida de que William Burroughs, em seus delírios, escreveu esse livro na sublime companhia espiritual de Franz Kafka? Entre metamorfoses e mutações, a arte se recicla e se renova. Contar uma história dessas sem que o resultado se torne uma bobagem muito grande é mesmo coisa de gênio. (Vlademir Lazo)

M. Butterfly (1993)

M. Butterfly é um filme sobre a superfície da imagem. A ficção do corpo. O corpo é a peça-chave da filosofia misantropa cronenbergueana. O corpo que se transmuta, que se torna oculto, que resiste, disposto a domar a lógica das pulsões à sua volta, seja as violentas ou sexuais. Para quem ainda não viu o filme do diretor canadense, não se trata de uma adaptação da ópera Madame Butterfly, de Giacomo Puccini, mas da relação de Rene Gallimard, o personagem de Jeremy Irons, com uma interprete do papel-título em uma montagem da famosa ópera. A obsessão do primeiro pela imagem de Butterfly, cuja efígie é a materialização dos seus desejos, uma representação de algo próximo de um sonho (ou de um pesadelo), faz com que Gallimard persiga o seu adorado objeto de veneração por todos os lugares. Um grau de encantamento do qual não se quer acordar. Ao mesmo tempo, uma ambígua relação do exótico mundo da cultura chinesa com as perversões da burguesia ocidental (como define a personagem-título), que conduz a jogos políticos e a um intenso romance. Mas a trama aqui já não é mais apenas o que parece, ela revela-se um emaranhado de expressões faciais, de olhares, de gestos, de medos, de desejos, de frustrações, de expectativas. E o próprio Jeremy Irons, que nos acostumamos a ver vestido de modo impecável, com sua postura absolutamente contida e equilibrada, seus movimentos medidos, as palavras utilizadas de forma exata, com toda sua etiqueta aristocrática sendo posta em prática de forma exemplar, ao final não será mais o mesmo, depois de ser amado por uma mulher perfeita e após a visão de damas esbeltas com cheosan e quimonos, que morrem pelo amor de indignos demônios estrangeiros. Um filme sobre aparências, os enganos e a transitoriedade, as falsas percepções e certezas de um personagem inserido dentro de outra noção da realidade, como em tantas outras obras de David Cronenberg. (Vlademir Lazo)

Crash — Estranhos Prazeres (1996)

Antes que um filme sobre perversões sexuais, Crash é uma narrativa sobre valores contemporâneos: é consideravelmente moderna a percepção de que afinal nos mecanizamos cada vez mais, e este filme de Cronenberg trata dessa nova condição com impressionante exposição — os corpos, os movimentos, as penetrações na carne (e da carne) são retratados com brutal transparência, quase um sentido físico extra-tela, uma força mesmo aterrorizante. Mas não tanto quanto a que impulsiona as personagens do longa, que procuram nas cicatrizes, nos hematomas, colisões, sangue e feridas toda sorte de compensação por sua deficiência sentimental; quando as batidas de carros as excitam, é como se as máquinas lhes fossem armaduras com as quais resolvem finalmente entregar-se à luta, ou ao prazer. É portanto uma forma de decepção íntima que as anima a terem o gozo com a dor, pois na alegria é que elas sofrem mais. Então quando dois corpos se abraçam e se penetram, a cópula é antes uma exibição fria de poder e domínio que um ato humano de envolvimento. Se visto apressadamente, Crash parecerá a descrição de uma simples jornada de autodestruição inconsequente e fútil. Mas ainda que talvez seja também isso, há algo de mais profundo e tocante. E tocar nesse nervo doloroso é tarefa cumprida com êxito por Cronenberg, que, como tentam suas criaturas, é incansável manipulador de corpos e mentes. (Filipe Chamy)

eXistenZ (1999)

No final dos anos 90, Cronenberg já abandonara havia muito as mutações e deformações físicas extremas da primeira fase de sua carreira em favor de um universo em que a mente é a origem das atribulações do indivíduo, mas é apenas em eXistenZ que esse ponto de vista se concretiza da maneira mais radical até então. Antes, o personagem cronenberguiano via-se delimitado (em como percebia a si mesmo e se colocava no mundo) pelo seu próprio corpo, e só podia sair de sua passividade, com resultados violentos, via intervenções externas — parasitas, deformações, experimentos científicos malsucedidos —, mais tarde colocadas sob um frágil controle: o homem maquina sua própria mutação. Em eXistenZ, porém, isso tudo desaparece, porque o fora não existe mais. Tudo está no jogo, tudo está na mente. Suspeita-se até mesmo do próprio corpo, talvez apenas outra ficção, como toda a (aparência de) realidade que circunda os personagens. Certos elementos típicos da primeira fase dão as caras, como a bioporta na espinha e o gamepad, porém mais como despiste ou referência irônica ao universo mental do diretor, e preenchendo o papel de alívio cômico mais de uma vez; e deve-se destacar como, fora a própria bioporta, todas as mutações que vemos — o console orgânico vivo, os anfíbios mutantes — não são causadas nos próprios personagens, e sim na realidade/ficção mental pela qual se deslocam. Daqui em diante, o fantástico e a ficção-científica começarão a sumir do cinema de Cronenberg, conforme essa realidade que é criada e deformada obedecendo aos impulsos da mente passa a assumir formas cada vez mais “realistas” (delírios esquizofrênicos, mentiras contadas deliberadamente); e, embora eXistenZ adote uma postura de completa negação de que sequer haja um fora, nos filmes seguintes o mundo externo voltará a dar sinais de vida, apenas para ser ferozmente repelido. Porque a única coisa que pode sacudir os personagens da nova fase de Cronenberg de sua passividade é a mesma que tanto afligiu os anteriores: um assalto inesperado da realidade física. Em retrospecto, diante da situação dos protagonistas de eXistenZ quando o filme acaba, Seth Brundle não terminou, no final das contas, tão mal. (Robson Galluci)

Spider — Desafie Sua Mente (2002)

“Se o hábito faz o monge, quanto menos monge, mas hábito se faz necessário.”
Essa foi a primeira frase sobre Spider que me fez ligá-lo prontamente ao protagonista solitário de O Perfume, de Patrick Suskind. Ambos os personagens manejam com engenho algumas das faculdades mais humanas, ao passo que são absurdamente deficientes em serem propriamente humanos, e é isso que melhor os define. Em Suskind, um perfumista sofre por ter vindo ao mundo sem cheiro próprio. Em Spider, um homem esgota suas últimas forças, num tremendo esforço de memória, para reconstrução de um quebra-cabeça, até chegar a quem escondeu a peça que falta. Na minha trajetória com Cronenberg, Spider parece o monstro mais contido. Aliás, tudo ao redor serve apenas para ilustrar a contrição do personagem, em verdade, certo desmerecimento por tudo que pareça acessório em relação à sua obsessão dramática pela morte da mãe. Sempre me ocorre pensar que os ambientes entre cinza e tons pastéis denotem a falta de sangue (como signo de vida) nestas histórias de personagens que impregnam a cor do filme com a profundidade de suas questões. No jogo de substituição das personagens femininas, confesso, minha atenção perturbada se viu esfregar o olhos. Sofro ao pensar naquele personagem-aranha absorto na criação de sua própria rede mantendo assim as perspectivas turvas ao levantar a atenção de seu projeto. É fácil perder o fio da meada.. Aliás, para Spider não existe fora: tudo que importa/existe está de alguma forma abarcado por algum dos nós que ele foi deixando pelo caminho. Engraçado perceber a dor do protagonista ao não poder sair à rua com um mega novelo, e amarrar a cidade inteira. Acaba contentado em expor seus fluxos no quartinho apertado do sanatório. Complexo de Édipo? Na verdade a obsessão de Spider passa tanto pela morte da mãe, como pela criação da narrativa à qual precisará dar um final. Um homem perturbado que se isola na solidão da paranóia, criando intrincadas relações neurais, teias, para resolução do quebra cabeças. Aquilo que se esconde, ou aquilo que escondemos de nós mesmos? Quem nunca viu esse filme? (Geo Abreu)

Marcas da Violência (2005)

Marcas da Violência profana as escrituras e retifica o mito do assassínio original em página nova, onde Abel mata Caim, ganha o perdão no lugar do exílio e funda sobre seu corpo o edifício da sagrada família, misturando no mesmo barro o sangue inocente com o maligno. Porque há um mal atávico que sopra do Mediterrâneo no ouvido dos homens e contra o qual não vale a composição dos velhos testamentos, por isto Marcas da Violência é menos sobre a história das fundações e as fundações da História do que sobre o papel do perdão na manutenção do mundo; um perdão não ao indivíduo, mas à natureza e seu mistério, interregno rudimentar geradouro do bem e do mal, do pai e do assassino. Como quando Tom, aos pés do seu matador, é salvo por um tiro do filho. Sem saber o que esperar, se a reprimenda do pai ou dois tapas nas costas, ele permanece quieto, assustado, dando conta ainda do estranho quadro que lhe assalta os olhos (três corpos em torno do pai baleado), estes olhos prematuros jamais expostos a um certo mundo que rosna e espreita aos portões da cidadezinha. Tom levanta-se, tira das mãos adolescentes do filho a espingarda e o absolve com um abraço, gesto redentor do patriarca que tem o rosto manchado de sangue. Não importa que seus prodígios se extraviem, a violência acaba sempre por encontrar um caminho de volta, e é natural que se proceda no seio da família a esta esquize elementar: entre o filho puro e o corrompido, entre o pai e o estranho. Daí a beleza da composição de gestos na cena final. Restaurar a casa que tomba sem esquecer que em nossa pedra angular foi imolada uma criança. (Luis Henrique Boaventura)

Senhores do Crime (2007)

O início de Senhores do Crime parece saído de uma história de Dostoiévski. Em quatro minutos de filme, Cronenberg apresenta duas mortes. A primeira, um assassinato praticado por alguém que experimenta pela primeira vez a sensação de matar. A segunda, de uma adolescente grávida que busca socorro em uma farmácia, com o que parece ser uma hemorragia. Levada ao hospital, ela não resiste e morre um minuto antes do nascimento da filha. Ao encontrar o diário da garota, em meio a seus pertences, a enfermeira responsável pelo parto decide ir atrás da família para entregar o bebê. Através do diário, as histórias das duas mortes e da parteira se ligam a uma família russa mafiosa, que usa um restaurante de fachada para seus negócios. Falar mais que isso sobre a trama é estragar a experiência que o filme proporciona, antecipando as viradas de roteiro. Apesar de mergulhar no mundo da máfia russa, apresentando o código de tatuagens e rituais de aceitação, Cronenberg não faz um filme interessado em depor sobre o sistema (mesmo tendo detalhes cuidadosos na representação, como o uso de facas no lugar de armas de fogo, obedecendo aos códigos da Vory v Zakone, e o sotaque impecável de Viggo Mortensen – cuja atuação é um dos grandes trunfos do filme). O mérito do diretor está em utilizar o mundo de um chefe do crime, capaz de tratar com a mesma naturalidade seus negócios e uma panela de goulash no fogo, para compreender alguém que vive a violência como profissão. Descobrimos também que a violência, além de ser ação natural, é uma experiência pessoal, particular a cada indivíduo, mesmo em um grupo regido por normas de condutas que não permitem exceções (a instabilidade emocional de Kiril, personagem de Vincent Cassel, por exemplo, contrasta com a tranquilidade de Nikolai, o motorista de Viggo). Encontramos a assinatura de Cronenberg, cineasta legitimo do cinema de autor, especialmente na representação visual de como essa naturalidade é experimentada por aqueles que habitam o mundo da máfia. Cronenberg é o diretor que vai contra a corrente do discurso condenatório de todo e qualquer tipo de violência, interessado em investigar o que a gera. A eleição dos gêneros de horror, suspense, drama, que marcam sua filmografia, são apenas um meio para realizar a anatomia de uma das mais cruas emoções humanas. Senhores do crime é um ensaio sobre a proposição de que “cada pecado deixa uma marca” (frase do pôster de divulgação da produção). Sejam elas visíveis como as tatuagens de batismo de um grupo mafioso, ou daquelas que não se confessa nem às páginas de um diário. Quem não as carrega, que atire a primeira pedra. (Fernanda Canofre)

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Além das Nuvens (Michelangelo Antonioni & Wim Wenders, 1995)

Por Fernando Mendonça

“Quando se copia um quadro de um grande artista, existe uma chance de repetir aí o ato desse artista e talvez de reencontrar, mesmo por acaso, o movimento exato.”

Uma revisão crítica de Além das Nuvens pode encontrar como ponto de partida um interminável número de questionamentos e opiniões presentes no filme e distribuídos entre suas quatro breves histórias, todas elas interligadas junto ao processo criativo vivido pelo personagem-cineasta de John Malkovich, alter ego explícito do próprio Antonioni; decidimos aqui um olhar mais atento apenas a um entreato destes enredos, independente de qualquer vinculação narrativa com as referidas histórias.

A frase acima citada faz parte de um diálogo que Marcello Mastroianni trava com Jeanne Moreau enquanto pinta uma paisagem da natureza. A aparição do casal em cena pode ser quase considerada figurante, sem nenhuma contextualização de personagem, sem retorno ou sequer menção no decorrer do filme em questão, ignorando apresentações, explicações ou qualquer tentativa de iluminação simbólica. Fugaz como um pensamento é sua participação, mas tão profunda como o mesmo é sua importância. Na verdade, a reflexão mencionada se dá após uma irônica observação feita por Moreau, quando esta indaga o porquê de a sociedade precisar de cópias das coisas, não apenas no caso da pintura, mas referindo-se a todo o leque de objetos de consumo em circulação. Ao abordar a ideia da cópia como um princípio do ato criativo, Mastroianni problematiza uma linha de pensamento que pode nos conduzir a compreensão de não apenas os objetos de consumo serem capazes de aprisionar a sociedade, mas de o objeto da arte em si, ser igualmente um aprisionador do artista, por seu enfoque tão modernamente capitalista, massificador.

Mas as intenções de Antonioni com esta seqüência parecem ir muito além de uma crítica ao sistema econômico vigente no mundo globalizado. O quadro que Mastroianni pinta não é produto comercial. Sua última frase já diz: “…Eu compreendo ser engraçado senhora, não vou vender de qualquer jeito…” Ele é mais. Transcende as necessidades financeiras e a realidade da natureza tendo como principal significado e objetivo proporcionar a satisfação de seu criador. Criador que é homem, que é essência. Criador que é Deus. É notável a necessidade do artista aí exposta. Encontrar o movimento do artista original, criador da vida natural e sensível, é o objetivo confessado por Mastroianni para o gênio repetido, possuidor do não mais exclusivo dom, que já pode ser encontrado num simples pintor a copiar o quadro da vida.

Imediatamente após esse diálogo-reflexão retornamos ao personagem de John Malkovich e sua significação relativamente direta com a voz de Antonioni. Agora, ele se encontra no saguão de um hotel, vagando entre um cômodo e outro como sem nada para fazer. Admira uma pintura de paisagem que sugestivamente poderia ter sido feita por Mastroianni, até que se depara com um quadro que retrata um homem triste. Tenta imitar a posição do homem do quadro e acaba chamando a atenção de uma senhora que estava lendo, sentada. Ela o ajuda em seu objetivo, o de imitar o homem do quadro, com recomendações que direcionam: “…o outro braço por baixo… incline a cabeça pra direita… um pouco mais triste… assim.” A senhora é novamente Jeanne Moreau.

‘É’Jeanne Moreau, pois a essência do personagem para a narrativa total de Além das Nuvens é tão insignificante como aquele encarnado por Mastroianni, não possuindo dependência com os enredos (estes filmes de gaveta), nome ou funcionalidade na trama. Dessa forma, por Moreau e Mastroianni terem sido importantes atores na carreira de Antonioni, eles revestem essa obra com seus corpos e nomes, pois o mito que se tornaram os constitui personagens fictícios, ampliando e intensificando a introspecção o filme propõe. Como Mastroianni alcançou um diálogo sublime por sua simplicidade, Moreau representa em aproximados trinta segundos de cena um dos papéis metafísicos mais questionadores do cinema de Antonioni.

Ora, se o simulacro já é a cópia da cópia, ou seja, aquele quadro do homem triste que Malkovich observa, do que pode ser chamado o ato de cópia que Malkovich executa? O quadro é o terceiro nível do mundo platônico, mas em que nível se encaixa a imitação de Malkovich? A intensidade dessas indagações aumenta quando Jeanne Moreau entra em cena e se desvencilha do mundo em que estava, o da leitura (arte), para conduzir Malkovich ao mais próximo da verdade copiada. Qual o papel de Moreau?  Artista? Certamente não. A impossibilidade na contagem dos níveis platônicos torna-se mais perceptível se for levado em conta que todo este círculo de imitações é exposto no universo diegético do filme de Antonioni, produto, em si, já pertencente a um nível distanciado da verdade. Mas onde está a verdade?

O percurso pelas histórias do filme é marcado por um elo muito tênue, por vezes não compreendido. Mas não entender a inexistente explicação para esse conjunto de ficções é sentir a sombra da urgência criativa. De um processo que, em Além das Nuvens, não se consuma. O alter ego de Antonioni não realiza nenhum filme, apenas se deixa consumir pela necessidade que antecede a criação, necessidade de um gesto, de um simples movimento que sempre insiste em fugir. Se nos perguntamos em dado momento ‘qual o papel de Moreau?’ sem encontrar resposta, é porque talvez ele esteja em nós. Cabe a nós completar o que se iniciou em arte. É de nós que o movimento sai e é para nós que ele retorna, resultando dessa troca o cinema enquanto intermediário entre a verdade e a vida.

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O martírio de Werner Herzog

Por Fernando Mendonça

“Um velho caminha sobre a ponte, sem se notar observado. Vai devagarinho e com dificuldade, sempre descansando depois de uns poucos passos hesitantes. É a morte que caminha com ele.” O registro feito por Werner Herzog no domingo, dia 01.12.1974, serve de contraponto ao excêntrico método de observação empreendido por ele naqueles dias, durante sua caminhada de Munique a Paris. Muito mais do que um exercício voyeur, com esta experiência Herzog colocou-se a si mesmo como ponto a ser observado, primeiramente pela sua própria consciência — pois nada como uma dolorosa caminhada para despertar os sentidos até o limite —, e posteriormente por todos que aceitassem a aventura de ler Caminhando no Gelo, publicação do diário que o cineasta escreveu durante os vinte e dois dias de jornada que percorreu para encontrar sua amiga Lotte Eisner, à beira da morte.

A motivação do sacrifício, este inominável ato de fé empreendido por Herzog, foi a enfermidade de Eisner, historiadora do cinema expressionista alemão que representava toda uma geração estética já perdida. Entusiasta do novo cinema, ela fora uma das primeiras a perceber Herzog, desde Sinais de Vida (1968), como um dos responsáveis pelo renascimento da linguagem em sua nação, convidada para narrar Fata Morgana (1971) e daí por diante sempre próxima do diretor num declarado vínculo afetivo, que se intensifica após sua doença. Ao descobrir o estado terminal da amiga, Herzog encarou tal finitude como um reflexo a ser sofrido pelo próprio cinema, ou seja, por sua própria existência. Vê-la morrer seria enterrar toda uma perspectiva de arte, toda uma herança imperiosa para os que então resgatavam o movimento dentro de novos e necessários valores. Daí a promessa, o propósito espiritual de, como num martírio, lançar-se a uma jornada expiatória pela sobrevivência de Eisner.

Importava sofrer, compartilhar a dor de habitar um corpo finito, experimentar a proximidade da morte, como na visão daquele velho, observado no início de dezembro. Toda sua trajetória, anotada diariamente em páginas que levariam mais de quatro anos para se decidirem publicáveis, identifica um Herzog agora inserido corporalmente no universo a que sempre condicionou os personagens de seus filmes. Foi como se reinventar, colocar-se nos roteiros do destino e assim verificar a mortalidade que permanece nos ossos, nas formas do mundo, mas que numa natural resistência insistimos em ignorar. Assim como em seu cinema já foram identificados seres e tipos do excesso, movidos por ações concebidas na grandeza de seus meios (Deleuze), aqui Herzog espelha toda uma condição base de suas criações, fazendo de si mesmo um contraste do impossível, daquilo que não parece provável ou, em termos ficcionais, sustenta-se apenas pelo que poderia ser verdade. “…tomar uma condução? Antes levar a insensatez, se é insensatez, até as últimas consequências”, é a meta do Herzog homem, ser que abandona as câmeras e, com papéis e caneta, propõe um dos mais inusitados exercícios criativos de sua vida.

Não custamos a crer nos insanos atos de Herzog porque todos eles tornam-se palpáveis através das palavras. Sua escrita, tão moderna quanto seu cinema, embrenha-se pelo monólogo interior, pelo jogo de repetições e inflexões que terminam por acentuar o caráter imaginativo de seus intoleráveis dias. Não é de espantar a força poética da linguagem; tendo a literatura e a história como formação acadêmica, Herzog sabia com o que estava lidando, por mais que suas pretensões fossem outras e todas dependessem de uma mediação cinematográfica para credibilidade (“Só acreditaria nisso tudo se fosse um filme”). Diante do que ele vive em Caminhando no Gelo, acreditar não é mais um ponto de partida, mas sim uma consequência de tudo que o atravessa.

Impossível descrer num corpo com “princípio de bolhas nos dois calcanhares”, em que as “coxas soltam vapor como um cavalo”, em que “a dor sobe da virilha, a cada passo” e “a saliva fica pegajosa, grossa e branca como a neve”. Esta percepção em estado bruto, este lamento que emana de cada articulação e parte do corpo são o que impedem Herzog (e também o conduzem) ao enlouquecer. Ele sabe que precisa continuar em frente, como num filme que urge ser finalizado, um projeto que não pode ser abandonado. Por isso sua resistência em permanecer humano, em não se desgarrar das formas que o contornam — por diversas vezes ele se vê obrigado a “verificar no espelho se ainda tinha aparência humana”. É assim que a referência a alguns filmes torna-se uma espécie de âncora, de porto futuro a se chegar, garantia de um amanhã.

Misturados a lembranças do passado, Coração de Cristal (1976) e Stroszek (1977), seus próximos projetos com o cinema, são citados como fantasmas vistos por olhos não mais confiáveis, pois enganados pela própria sombra (“Minha sombra me espreitava… agachou-se e rodeou minhas pernas”). Daí a constatação de o próprio Herzog não se encontrar mais na pura realidade ou na extrema ficção. Seus dias e noites, cada movimento de seu corpo, tudo aquilo que apreende dos espaços percorridos, das variações climáticas que o assolam, são projeções de um ato que não poderia se distanciar do literário, do anseio que a letra moderna assume ao confrontar-se com um mundo fragmentado, habitação da morte. Daí ser o esfacelamento de seu livro, todo demarcado e dividido pelas datas entre 23.11 e 14.12.1974, um convite a uma temporalidade própria, particular de sua experiência pessoal, devaneio da cronologia.

Dando continuidade a um projeto nascido desde o séx. XIX — em específico, desde que Strindberg propôs o registro de “uma folha que cai” como o “nível mais real da realidade” —, Herzog ilumina com este diário todos os mundos que seu cinema ainda formará. São as folhas que caem, os animais que cruzam, são os declives da terra, as águas que fluem, fragmentos de cenas dispersas em sua filmografia; universos que não passam, como ele diz, de “bocejos do vazio”. Abandonar-se sozinho numa caminhada, encontrar em tudo a vastidão do nada, foi a maneira mais dolorosa de prosseguir o que iniciara desde seu primeiro contato com as regiões desérticas da Terra: “O tempo que passei no deserto é parte de uma busca que para mim ainda não terminou.” Assim, o sacrifício ofertado pela vida de Eisner, também alcança o milagre desejado por Herzog para si, de continuar sua busca sem a interrupção do êxtase. Pois não há como evitar a associação de seu gesto peregrino ao caráter estático diretamente evocado por tantos de seus filmes.

Movimento de religiosidade, é curioso ler as confissões de Herzog (o que daria um belo subtítulo para seu livro) e saber que, no meio da paixão, da via crúcis solitariamente empreendida, ele não pôde evitar um breve desvio no caminho para visitar a casa onde nasceu Joana D’Arc, em Domrémy. Como numa identificação possível somente aos mártires, aos que especialmente foram tocados pelo que não se pode descrever, este breve episódio de Caminhando no Gelo concentra a fé que Herzog não professou, tudo o que ele calou do registro literário — pois o material publicado foi suprimido de algumas passagens muito íntimas, segundo sua própria nota. Entre D’Arc e Eisner, uma estreita ponte de esperança, uma provação a ser inscrita por dedos quase congelados, permanentemente movidos pela confiança no amanhã, no que o sol traria em seus futuros nascimentos.

Se a dilacerante experiência literária de Herzog pode guardar elos com o que outro expoente alemão faria a partir de mais um cinema à beira da morte (Wim Wenders e seu Nick’s Movie), a sua singularidade se dá pela confirmação do milagre. Após a visita do amigo, Lotte Eisner aguardará mais uma década antes de seu último suspiro. E por mais que a sua sobrevivência não decorra cientificamente do voto feito por Herzog, hoje sabemos que toda aquela experiência serviu para pelo menos uma manifestação do impossível, registrada na última frase do livro: “há alguns dias aprendi a voar”. Muito difícil encerrar Caminhando no Gelo e deixar-se levar pela inocência de uma figura de linguagem. Não duvidamos: Herzog voou.

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Meu Filho, Olha o Que Fizeste! (Werner Herzog, 2009)

Por Fernando Mendonça

Não adiantou o nome de David Lynch na produção, não adiantou o rebuliço causado com a sessão surpresa em Veneza, Meu Filho, Olha o Que Fizeste! é filme sombreado por um tipo de maldição que acompanha desde as primeiras inspirações; mal que se apresenta, invariavelmente, nas grandes obras incompreendidas pelo tempo. Enorme tolice acusar um trabalho como este de restrito aos iniciados em Herzog, seu diretor, se na verdade é título que não exige mais do que sensibilidade, filme que pede a chance de identificar não apenas um evidente processo rumo a insanidade, mas de encontrar nos caminhos da loucura um reflexo de tormentos que assolam o homem desde tempos ancestrais.

Projetado na mente de Herzog em 1995, a partir de um crime verídico, o roteiro de Meu Filho… esperou mais de uma década para encontrar qualquer chance de concretização. É possível imaginar o temor de investidores diante de um simplório enredo policial, situado em terras americanas, que precisasse contar com cenas no coração do Peru, especificamente no Rio Urubamba. E por mais que reconheçamos ser esta necessidade uma espécie de fetiche para o autor de Aguirre (1972) e Fitzcarraldo (1982), filmes que contaram com a mesma locação, o estranhamento imposto pelo roteiro na relação dos espaços é pedra angular da dramaturgia aqui implicada.

É por causa do que nosso protagonista (Michael Shannon, numa interpretação que beira o expressionismo) experimenta na distinta região, do que ele vive tão profundamente a ponto de afirmar que naquele local conseguiu ouvir a voz de Deus[1], que toda a motivação de Meu Filho… será revelada e justificada. Há no contato de seu corpo com o ambiente natural — as pedras, as águas, o verde, a terra, elementos onipresentes em Herzog — uma espécie de invocação que não pode ser compartilhada ou filmada, mas que sombriamente habita toda a projeção do longa metragem. Vem deste embate das naturezas o desejo do crime, a inócua justificativa do personagem para o assassinato cometido contra a própria mãe, ato que também não nos é dado o ver. E é no matricídio que os anseios culminam, nesse instinto de eliminação que, de fato, acompanha a carreira do diretor desde seus primeiros gestos com as câmeras.

Muito adequada a explícita referência ao Orestes, interpretado pelo mesmo ator numa peça dentro do filme, jogo de espelhos, acentuação no caráter labiríntico da loucura, desta diluição/desintegração interior que o jovem filho atravessa. Mais do que um exercício de mise en scène, o que vemos nas belas sequências negras, literalmente mergulhadas em escuridão, do teatro, é um complexo desenvolvimento de mise en abyme, como raras vezes Herzog terá tão claramente explorado. Apropriar-se da tragédia grega, como ele aqui o faz, instaura um abismo que nos permite uma compreensão não só das angústias sofridas por suas personas — emoções e reações míticas, originadas num estado primitivo do humano e que para sempre serão universais —, mas que também ilumina um aspecto de seu trabalho enquanto filmografia, enquanto conjunto de filmes que orientam-se sob uma espécie de ‘política do trágico’.

É bem verdade que as preocupações de Herzog no cinema, especialmente estas que encontram no mundo físico um contraste para o realce do sublime, são constantemente motivadas dentro de um princípio muito próximo ao da tragédia: exploração subjetiva de indivíduos que agem no mundo e se transformam independente de sua vontade. Se Meu Filho… estampa direta e frontalmente tal especularidade, o faz não de maneira leviana, como para truncar gratuitamente a estrutura do enredo; pelo contrário, encontra aí uma iluminação de questões que até aqui (em sua carreira) poderiam estar carentes de embasamento. É porque Herzog assume o trágico que seus filmes permanecem cristalizados, enigmas que não se rompem ao mero desfecho ou clímax, e nesse sentido, Meu Filho… torna-se exemplo máximo de uma concepção muito particular dentro da narrativa contemporânea.

Do longo trem que divide a tela ao meio, logo nos créditos de abertura, aos efeitos de algumas cenas que mais parecem fotografias, dada a imobilidade e pose dos atores, Meu Filho… é filme que desarticula não só uma lógica de Hollywood — a exemplo do que bem faz seu irmão, Vício Frenético (2009) —,  mas reorienta todo um procedimento do olhar no cinema de gênero. Por mais que se fale dele ou se tente explicá-lo, eis um filme que sempre manterá o surpreendente das formas, equilibrado numa fina teia de significados, pois concentrado em seus efeitos. Filme que atesta Herzog como um alguém sempre disposto a se enfrentar, seja voltando às águas de um rio, seja colocando seu trabalho diante do espelho, afinal, assim como as águas nunca são as mesmas, também um espelho jamais reflete uma mesma imagem de si.

 


[1] A voz de Deus que também ouvimos já no título original do filme: My Son My Son, What Have Ye Done, como em resposta ao célebre questionamento de Cristo ao morrer: Eli Eli, Lama Sabactani (Deus meu, Por que me Desamparaste?). Título que resgata na sonoridade e rima a retórica bíblica, como se Herzog desse voz ao Deus que se calou e matou seu filho, espelhando-o agora num homem que rejeita o ventre, que aniquila a presença materna como única hipótese de sobrevivência e redenção.

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Sinos do Abismo (Werner Herzog, 1993)

Por Fernando Mendonça

No primeiro plano do filme Sinos do Abismo, vemos dois homens rastejando sobre um lago de gelo, peregrinos siberianos que acreditam no mito da cidade perdida de Kitezh, um lugar colocado por Deus no fundo das águas como livramento contra o ataque de mongóis e que, ainda hoje, ecoa o soar dos sinos de sua igreja. A cena, apresentada de maneira direta e sem intermediações, dá a ver somente a presença dos corpos, a composição do espaço e a forte impressão de um anseio metafísico. O suficiente para instaurar no espectador toda a premissa do que a hora seguinte trará. O que a cena não diz (pois o filme só revelará adiante) é a explicação para o movimento dos peregrinos; ainda desconhecemos o mito, as crenças locais, ainda não ouvimos os sinos. O que o filme não diz (pois Herzog só o revelará em entrevistas) é que os dois homens filmados são, na verdade, bêbados contratados para interpretar aquilo que o diretor lhes pede; simulacros de uma realidade que, para se materializar em cinema, silenciaram a encenação natural do mundo, instaurando a sua, tão fiel e factual como qualquer outra.

Conhecer as circunstâncias de uma filmagem, a rigor, não altera o material resultante dela, mas neste caso específico, encontramos uma disposição muito típica de Werner Herzog, realizador que sempre se equilibrou entre a ficcionalização dos fatos e a documentação das ficções. Manipular a cena muitas vezes é a única forma de encontrar nela a verdade, daí não podermos negar serem os bêbados daquelas imagens verdadeiros peregrinos, homens de fé. O que a ‘atuação’ deles proporciona é uma confirmação das evidências que todos os demais elementos da imagem revelam: existe o mito, existe o lago, existe algo que não podemos ver sob a camada de gelo. Se Herzog foi obrigado a forjar uma situação — durante as filmagens a equipe não encontrou um peregrino real, pois o inverno estava muito rigoroso —, não quer dizer que ele tenha incorrido numa falsificação do mundo que ora documentava. Como denota o subtítulo do filme, Fé e Superstição na Rússia, Herzog recorreu inclusive nos procedimentos técnicos a uma credibilidade que não deixa de ser objeto de toda encenação fílmica: é preciso crer para ver.

Verdadeiro catálogo do imaginário místico e religioso da Rússia e da Sibéria após a dissolução da União Soviética, Sinos do Abismo contextualiza eventos originados nas mais diversas raízes da cultura popular russa. Herzog se aproxima de nômades, curandeiros, exorcistas, gurus esotéricos e toda uma casta de seres que orientam suas vidas a partir de convicções espirituais. Não pretende a análise, o julgamento daquilo que elenca, mas sim a captura de um estado emotivo particular à nação e ao povo que enfoca. Fugindo da concepção etnográfica previsível ao que abraça por tema, Herzog declarou que preferia ver o seu filme sendo recebido e experimentado como num poema de Hölderlin, associação pertinente não só pela lógica da montagem que ele trabalha (uma lógica de poesia, de sensações e sinestesias), mas adequada pela própria referência ao poeta lírico alemão, homem que de fato acreditava nos deuses e compreendia a estética como uma via de acesso entre o homem e o divino, um contato de identidade entre os espíritos.

Aquilo que encontramos inicialmente na imagem dos peregrinos sobre o gelo e veremos repetir-se inúmeras vezes no decorrer do filme — homens e mulheres que rastejam, engatinham, anciãos que curvam-se à gravidade para tocar nas águas, na terra e sua vegetação —, também pode representar mais uma dimensão do que conecta o homem à natureza dentro do imaginário primeiro de Herzog. A integração entre a humanidade e o mundo físico que a cerca, constante temática do diretor, é concebida em Sinos do Abismo como numa perspectiva cósmica, ontológica. Os indivíduos que atravessam a tela, a imensidão de tomadas que contrastam o horizonte e fazem dos corpos, pontos no espaço, o enquadramento de árvores que verticalizam a imagem e conectam o chão aos céus, são todos elementos de um olhar que também confessa sua maneira de crer. O que Herzog alcança com seu filme não é somente um painel de credos e práticas, sua compilação dá forma e contorno a uma busca que é do homem e consequentemente de seus meios de expressão, no caso, do próprio cinema. Concretizar o impossível, dar a ver o invisível, anseios de Herzog a cada filme, cena ou plano realizados, necessidades da alma.

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Giovanna D’Arco (Werner Herzog, 1989)

Por Fernando Mendonça

Pouco se comenta da relação que Werner Herzog nutre com a ópera dentro de sua carreira. Desde 1986, ele iniciou uma espécie de jornada paralela àquela mantida com o cinema, envolvendo-se na realização de inúmeros operísticos (o mais recente, de 2008, já conta seu 26º trabalho), que, apesar de não estarem relacionados diretamente com sua perspectiva no audiovisual, contribuem para uma compreensão dos valores por ele mantidos em seus interesses estéticos.

Como ele mesmo declara, a ópera é um universo em si, um mundo completo, um cosmos transformado pela música. Estes mesmos princípios, de maneira evidente, também estão presentes nos filmes que Herzog dirigiu, de exemplos mais óbvios como Fitzcarraldo (1982) a praticamente qualquer um de seus títulos, cada um deles dotado de cosmogonia autônoma. Se uma das características do cinema de Herzog é determinada proximidade – ou anseio por ela – ao conceito de obra de arte total, aquele mesmo de Goethe e dos românticos, nada mais natural que ele venha ser motivado pela experiência criativa na qual se funda o caráter da ópera, das manifestações humanas a que mais longe foi (e o tempo é passado porque o cinema surgiu) na direção de originar novos universos.

Se Herzog faz questão de acentuar a diferença entre os meios de uma e outra arte, comparando cinema e ópera a cães e gatos que nunca serão apaziguados, é porque cada uma tem a sua especificidade diante do mundo, não importa a semelhança coletiva de representação que as compõe. Segundo ele, a ópera se destaca por trabalhar as emoções de forma extremamente concentrada, num rigor quase matemático; e assim, se as emoções fluem de maneira diferente nela, obrigatoriamente o tempo também precisa ser alterado em sua dimensão. É por transformar o mundo em música que a ópera libera os fatos de sua veracidade a um nível ainda mais profundo, onde tudo se torna repentinamente possível, onde a abstração surge como o mais fidedigno reflexo da realidade.

É curioso que, dentre tantos trabalhos do diretor nesse viés de representação, o único que tenha vencido o caráter efêmero da performance (justamente pelo registro em audiovisual) seja Giovanna D’Arco, variação de uma personagem (Joanna D’Arc) já íntima do meio cinematográfico, presente no imaginário de cineastas muito admirados por Herzog. A produção televisiva que ele aqui co-dirige, sétima ópera de Giuseppe Verdi com libreto de Temistocle Solera (catastrófico, segundo o próprio Herzog) seria mais uma vez encenada sob o seu olhar no ano de 2001, o que indica tratar-se de um trabalho significativo para sua sensibilidade.

Que não se espere de um filme assim a liberdade típica do Herzog cineasta. Compreender seu ponto de vista sobre a relação cinema e ópera é fundamental para perceber que, ainda distante do mero registro, seu trabalho com a câmera submete-se a uma liberdade anterior, que emana do palco, das vozes, dos instrumentos (magistralmente regidos por Riccardo Chailly). Ao mesmo tempo em que Giovanna D’Arco pereniza-se em imagens de um distinto rigor – desde o primeiro plano, sobre os lustres do Teatro Comunale di Bologna, fica evidente um olhar que foge ao ordinário, que procura no contraste de luz e sombra uma motivação que justifique o audiovisual -, em nenhum instante Herzog pretende ofuscar as qualidades intrínsecas ao domínio que obedece.

Se em outros momentos veremos Herzog refletindo a ópera pelo seu avesso, como no exemplo de Die Verwandlung der Welt in Musik (1996), espécie de making off introdutório para uma série de transmissões operísticas da TV alemã, em Giovanna D’Arco temos apenas uma experiência de espelho, reflexo de um movimento cênico que é tratado com a reverência devida. Apenas um registro de humildade. Um ‘apenas’ que é tudo.

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Onde Sonham as Formigas Verdes (Werner Herzog, 1984)

Por Fernando Mendonça

Onde Sonham as Formigas Verdes é, sem margem de dúvida, o trabalho mais improvável a ser realizado por alguém que acabara de conceber a enormidade cinematográfica que fora Fitzcarraldo (1982). Como um profundo respiro após a exaustão, Werner Herzog retoma aqui um ponto de vista mais discreto do mundo, sem romper com o rigoroso ritmo da jornada anterior, mas investindo numa concepção intimista de narrativa, em que desloca a ambição que antes contaminara as noções elementares do ato fílmico para transferi-la a uma preocupação temática que não se retrai diante da ética e daquilo que seu novo enredo apregoa. Pois também há o lirismo da mensagem, a urgência do que não se pode calar.

 A premissa ecológica agora em questão — talvez aquela que norteie toda a carreira de Herzog —, parte de um acontecimento que o próprio diretor presenciou durante sua estadia na Austrália: a resistência de grupos aborígenes contra a exploração industrial de territórios nativos, ou seja, o desejo de seres que lutam por seu tempo no espaço. Para o filme, no intuito de não tornar muito evidente a relação com os recentes fatos verídicos, foram alteradas algumas variáveis da realidade (o nome da indústria e o produto por ela explorado, no caso do filme, o urânio) e acrescentadas boas doses de invenção, a exemplo do que justifica o empenho dos aborígenes em proteger tão zelosamente aquele pedaço de terra: a crença de que o terreno é lar de uma espécie sagrada de insetos, as formigas verdes. Do recurso imaginativo elaborado por Herzog — que fratura o aspecto documental do roteiro —, irrompe aquilo que eleva seu filme a um patamar além do mero discurso ambiental; confirmam-se nas formigas verdes os anseios de um mundo perdido no tempo, de uma humanidade que já não se lembra das coisas que mais importam, do que não se quantifica ou substitui.

As formigas sonhadas por Herzog, como explica o personagem de um maluco pesquisador que só ganha forma para delimitar verdades mais poéticas do que científicas, são de um nicho especial, que, ao afetar o campo magnético da Terra, modifica paisagens completas. E mais: são formigas que também sonham e rememoram os tempos passados, anteriores ao início do mundo. Assim, o que os guardiões da terra tentam proteger é um estado de memória não compreendido pela lógica do capital, daí ser todo o processo de comunicação entre eles e os homens brancos um percurso desintegrado e impossível de completar. O senso de preservação, mais do que relacionado a aspectos geográficos, procura mesmo o anular das fronteiras, um restabelecimento dos homens com seu meio, seu habitat.

No julgamento encenado para discutir o direito de posse das terras, Herzog insere um dos personagens mais impactantes de seu cinema: um aborígene ancião que fora considerado mudo pelos autos do processo porque a sua língua não é compreendida por nenhum outro ser humano. Último descendente de sua tribo, e, portanto, do dialeto perdido, eis um homem que sobrevive morto para a sociedade, que carrega no corpo uma fantasmagoria muito propícia as imagens que Herzog ordena para representar o caos. Pois se há uma impressão que fica diante de Onde Sonham as Formigas Verdes, ela está essencialmente relacionada ao colapso do mundo, ao caráter apocalíptico já multifacetado por inúmeros momentos na carreira do cineasta.

Não é por acaso que a primeira imagem do presente filme seja a de um redemoinho; e que, próximo ao final do mesmo, repita-se a atmosfera de destruição. O importante, é que nenhuma destas cenas permita a menor sombra de catástrofe, pelo contrário, instaurem uma beleza apaziguadora, restauradora de um equilíbrio sensorial. São, de fato, a moldura que define todo o caminho intermediário da narrativa, confirmando ser este filme um sopro de interlúdio para Herzog. É muito possível considerar Onde Sonham as Formigas Verdes como um movimento filho do que fora iniciado desde Fata Morgana (1971) — a destacar-se o travelling lateral de abertura sobre o deserto, em acompanhamento aos créditos, como um reflexo das longas durações daquela obra-prima —, assim como um movimento pai de Lições da Escuridão (1992) — pois nas perfurações pela busca de urânio todo um presságio do que a exploração petrolífera futuramente fará. Em todos estes casos, é a intromissão de uma dimensão ficcional o que liberta os estados de crise apresentados. Seja num travelling, numa narração em off, ou na ilusão das formigas verdes, há sempre um caminho para que a ficção se estabeleça, para que o cinema se cumpra. É nele que as formigas sonham.

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