Gosto de pensar o cachorro como uma criança que não cresce. Eles aprendem coisas com os anos, a partir da experiência nas ruas ou dos limites que os seus donos estabelecem. Eles compreendem sistemas simples (que se latir perto da cambuca de comida ou de água, os donos vão enchê-la; que se cutucar um humano com a pata, recebe carinho), e geralmente só assim conseguem assimilar o mundo, dialogando com as superfícies táteis (como o cachorro que sofre abuso e estrutura sua defesa generalizando tipos abusadores; White Dog, de Samuel Fuller, nos lembra como isso pode ser instrumentalizado com o cachorro que aprende a odiar negros). Não há diferença entre a tevê, o reflexo do espelho ou o espaço: virtual e concreto são um só. Mas, durante o desbravar espacial, existe sempre algum cheiro de novo escondido em meio ao familiar. O cheiro é o primeiro sentido que se tem dessa nova coisa antes de encostá-la no focinho e metê-la boca adentro ou esfregar-se nela com o corpo. A criança faz a mesma coisa, talvez com a diferença que tende a atrair-se antes pela visão ao invés do olfato. Boa parte das ações não carrega sentido além da possibilidade de sentir, da excitação do próximo sentido primário que o contato direto com coisa ou ser trará. Se é líquido, eu posso beber; se é coisa, deve ter gosto; se cabe na boca, eu posso comer; se a sensação é boa, eu posso continuar. Há uma mistura de ingenuidade com invencibilidade (ou, nesse caso, o desconhecimento de uma vencibilidade) pela ignorância do limite: o pular de uma altura grande demais, ou o morder, mastigar e engolir de algo não-comestível, ou o destroçar de um objeto valioso pelo prazer de senti-lo quebrar.
Nos créditos iniciais de “O Fantasma” (2000), de João Pedro Rodrigues, um Doberman atravessa um corredor para tentar entrar num quarto fechado. Ele bate com a pata na porta e gane por alguns longos segundos. O plano seguinte é dentro do quarto, um detalhe traseiro do nosso protagonista em roupa de látex comendo um cara pelado. A roupa tem uma abertura em zíper na parte da bunda. Vemos apenas nádegas e coxas, além das mãos algemadas do passivo. O terceiro plano da cena é um close, e o protagonista está mascarado atrás do passivo, segurando com força um pano sobre sua boca. Humanos, enquanto seres deuterostomados, temos no processo de multiplicação celular que formará o feto o ânus como primeiro orifício gerado, para apenas depois ser aberto o que virá a ser uma boca. Pois bem, deste protagonista também é apresentado ao mundo antes o cu, e depois a boca. Em “O Fantasma”, o ato de expelir – para que, a princípio, serve o cu – e o ato de comer – para que, a princípio, serve a boca – são muito próximos e se confundem num ciclo vicioso, cumulativo. Talvez uma imagem explícita da penetração pudesse trazer a inversão gráfico-simbólica de um cu que come (nesse caso, come o pau do ativo), mas perderíamos o protagonista como agente do “comer”. E seu apetite voraz é o que move o filme.
Esta primeira cena é entre quatro paredes, num ambiente íntimo e fechado onde nem o cachorro entra. Mas o filme é sobre uma criatura da noite, que ronda as ruas. Já vemos, na cena que se segue, o rosto de Sérgio (Ricardo Meneses), o homem antes vestido de látex, num quintal brincando com um cachorro. Duas mãos femininas tapam seus olhos e o fazem adivinhar quem é. A adivinhação vira um joguete erótico em que Sérgio explora com as mãos o rosto e cabelo da mulher, a fareja para identificá-la. Parece ser apenas uma performance de flerte, uma desculpa para o contato, mas viremos a perceber que assim é como ele (re)conhece tudo no mundo: pelo tópico, pelo que lhe excita de imediato. Ele pega, investiga, usa, descarta, vai embora. A surpresa pode fazê-lo subitamente defensivo. Antes de destampar seus olhos, Fátima (Beatriz Torcato) o beija na boca, e ele se afasta abruptamente, xingando-a e rosnando se ela se aproxima. Então finge-se de morto, ganindo quando ela lhe chuta tentando “acordá-lo”.
Seu comportamento pode não ser tão estranho a priori porque reconhecemos ser ele um homem. Quando o vemos transando com outros de seu tipo em banheiros, vielas e cantos isolados, sabemos que é algo comum em seu sexo. Sabemos que homens tendem a aprender a não repressão de seus desejos, a liberação de seus ímpetos onde necessário for. Se moralmente vistos como sujos, então na sujeira serão liberados. À medida que não nos é estranho que a animalidade desenfreada do protagonista encontre consumação fácil nos lugares comuns de encontros sexuais entre machos, e que facilmente apareça um homem novo a fodê-lo, isso parece nos dizer algo sobre os homens em geral deste filme (ainda que não todos, ao menos a maioria). Sérgio também sente tesão por Fátima, que lhe desejava, mas ele a destrata depois que transam, e mais tarde tenta estuprá-la. Ele faz mais sexo com homens porque é mais fácil encontrar um disposto a transar onde quer que seja e sob qualquer condição, não precisando de mais que um olhar faminto e um lamber de beiços. Homens são acostumados ao ciclo de utilitarismo sexual, ainda que isso os machuque – e o olhar de alguns dos amantes de Sérgio dirigidos a um extracampo sem retorno marcam contraste com a frieza do protagonista.
Sérgio também não vê moral nem poder barrando-lhe o desejo, ele habita e age no mundo sem noção de hierarquia. Quando vê um policial amarrado e amordaçado numa viatura abandonada, masturba-o e o abandona gozado e imobilizado. O policial não resiste; ao contrário, reaparece no filme como uma presença de forte tensão e desejo sexual recíproco, que nunca volta a ser consumado porque sempre surge um colega ou uma sirene convocando-o de volta ao extracampo. Apenas restrito do poder da farda – e mesmo dos seus movimentos -, teve o prazer liberado. Este policial, na verdade, é um escravo; Sérgio, enquanto fera indomável, é anárquico.
Ainda na primeira parte do filme, o protagonista fica obcecado pelo cheiro que sente numa moto na casa onde vai pegar eletrodomésticos quebrados – ele trabalha na limpeza urbana local, o que muito dialoga com seu conforto pelo que é descartado. Sérgio passa a perseguir João (Andre Barbosa), o dono do cheiro: revira seu lixo, masturba-se vestindo uma sunga sua rasgada que achou na lixeira, masturba-se num vestiário lambendo a parede onde sente seu rastro. Invade sua casa, mija em sua cama. É essencial lembrar que Sérgio, apesar de animal, não é criança nem cachorro. Tem corpo, força, gana de homem crescido. Não é um frágil projeto de gente, ou o melhor amigo do homem. Sérgio é um predador, e sua presa é João. Enquanto criatura, não tem noção alguma de valor ou de higiene. Sua afinidade com a “sujeira” moral é exatamente a mesma que com a sujeira física, com o fétido. No último ato, depois de transar novamente com o homem algemado do início (e com a mesma roupa preta), tenta sem êxito raptar seu objeto de desejo usando a violência. Acaba fugindo da polícia no caminhão de lixo, e no lixão é descartado. Come frutos podres, bebe água barrenta. Aqui chego na mistura entre o comer e o expelir comentado na cena de apresentação, pois aqui está o protagonista vestido assim como quando nasceu a nossos olhos: como criatura de látex. Mas, agora, diferentemente, não só está jogado no mundo, como chafurdado na merda pelo mundo expelida. Vive uma extensão hiperbólica de como já vivia: sustentado pelas sobras, pelo que já passou pelo consumo das gentes e dos vermes. Estamos vendo um filme sobre um homem pré-histórico no meio do capitalismo tardio; a única coisa que separa um do outro, afinal, é esconder sua podridão.
A aparência de Ricardo Meneses ticar cada caixinha do padrão de beleza clássico e hegemônico dificilmente é coincidência: é um corpo que desperta o tesão aprendido, e que, no filme, é movido por um tesão inerente, bruto, quase intransitivo. Pode ser até que nos excitemos, que nos toquemos ao longo do filme. Mas o que se faz do nosso tesão quando Sérgio ataca violentamente o rapaz que desejava e o abandona, com mãos, canelas e boca constritas de fita adesiva, na rua? Quando, com a roupa de látex manchada de esgoto seco, come lixo? O corpo trajado de fetiche, radicalmente despido de sua humanidade – e agora também da forma humana -, não hesita. Vaga, fareja, come, fode, no meio da rua ou no meio do lixo. Mas nós sentamos e o observamos. Em enquadramentos estáticos, alongados; planos entregues à contemplação do gesto cru, porém também possíveis eretores do ruminar quando a duração esgota o estímulo direto do gesto. Sérgio não questiona seu desejo, mas nós questionamos o nosso o tempo todo. E, em algum momento, nos dá o estalo: olhamos Apolo, mas vemos um chacal.
O caçador descansa, recostado em uma árvore, na penumbra, pensativo. Em oposição a sua introspecção, no primeiro plano, os cães de postura ansiosa encarnam a agressividade e a fisicalidade do ato de caçar. Em frente aos cães e em uma linha diagonal com o caçador, a gazela morta, por sua vez, também se apoia na árvore, mas de ponta cabeça, com as genitais voltadas para cima, sem nenhuma dignidade, em uma posição bastante artificial.
Na pintura A Pedreira (1857), Gustave Courbet faz da figura do caçador seu autorretrato, literalmente, na reprodução de suas feições, mas também, em certa medida, metaforicamente. Pintando, o pintor-caçador está em contato com a brutalidade; ao terminar, guarda as mãos e descansa na sombra, enquanto a gazela é exposta violentamente sobre a luz.
A Pedreira (Gustave Courbet, 1857)
O Senhor Eugène Pertuiset, caçador de leões ( Manet, 1881)
Ao contrário do caçador de Courbet, o caçador de seu contemporâneo Édouard Manet, O Senhor Eugène Pertuiset, caçador de leões (1881), não representa ele próprio, mas um amigo colecionador e comerciante de arte e de armas. Se em A Pedreira o caçador esconde as mãos, aqui elas seguram a arma em primeiro plano com firmeza, mas também com ternura. Como é de praxe para Manet, os detalhes da mão não são esmiuçados e as pinceladas se fazem visíveis na construção da superfície da pele, as mãos parecem a parte do quadro onde a luz e a sombra são consideradas com mais cuidado. O leão morto ao fundo, assim como o homem que se ajoelha em nossa frente e nos encara diretamente, parecem pertencer a um ambiente onírico, não parecem presos ao chão – até porque a cor azul do fundo nos remete mais a um céu ou a um lago do que a uma floresta.
Caçar uma gazela é simbolicamente muito diferente de caçar um leão: a gazela, apesar de ser um animal de grande porte, é comum à própria fauna francesa, enquanto o leão é um animal exótico que não se encontra naturalmente na Europa do século XIX. Se as cenas de caça, anteriormente a Courbet e Manet, foram um gênero decorativo popular para a aristocracia francesa, é porque o ato estava também enraizado nessa cultura.
Em seu filme A Regra do Jogo (1939) Jean Renoir retrata um grupo de amigos de uma aristocracia decadente, ou de uma burguesia com ares aristocráticos.No filme de Renoir a caça aparece de duas maneiras: para os empregados e para população rural ela é um trabalho ou um meio de sobrevivência, enquanto para os proprietários da terra ela é um esporte. Na caça aristocrática, a caça é feita por homens e mulheres, e os caçadores e caçadoras ficam separados a uma distância segura de suas presas, enquanto os funcionários espantam os pequenos animais, aves e coelhos, para um campo aberto onde eles possam ser atingidos pelos tiros das espingardas.
A caça aqui não tem uma vítima específica, não é esse ou aquele coelho, mas qualquer um: quando um morre outro vira alvo. O final da caça é estipulado não pela conquista de uma presa específica, mas pelo cansaço ou tédio do caçador. Essa multiplicidade de presas é também, para a A Regra do Jogo, uma repetição da estrutura do filme, da multiplicidade de pequenos conflitos que o estruturam.
A filmagem da caça é feita mais próxima dos coelhos do que dos caçadores. Os planos detalhes dos coelhos fugindo dos funcionários e se escondendo entre as folhas, criam uma empatia desconfortável entre o espectador e a presa. Os coelhos e aves correm e voam para todas as direções, mas em um dos planos os funcionários caminham afugentando os coelhos em nossa direção, passando pela câmera e criando um extra-campo atrás de nós. A sensação é como se estivéssemos no meio do “campo de batalha”.
A filmagem dos animais tem um ar documental e o abate deles também é filmado com certa objetividade. A câmera espera o rabinho do coelho parar de se mexer e segue a caída dos pássaros que vão do céu ao chão. Quem recolhe os pequenos cadáveres são os funcionários, e um cão que pega casualmente a sua parcela. A cena de caça no filme é longa, mas o filme segue casualmente sem se abalar por ela. É apenas no final que vemos a caça se repetir, agora entre um marido ciumento e o amante da esposa. Na “caça” entre humanos as personagens também se confundem de presa, e em certo sentido elas também se comportam como coelhos – ou pelo menos no quesito da vida sexual dos coelhos, que é tida como muito ativa. A vítima final acaba sendo, por um acaso completo, André Jurieu, que começa o filme voando e, como os faisões caçados, acaba o filme na terra.
Para Jean Renoir, a caça, a morte, as relações humanas, parecem sempre regidas pela casualidade. Já no caso do último filme de Patricia Mazuy, Boliche Saturno (2022), o tema da caça na cultura francesa é atualizado pela individualidade psíquica e familiar do protagonista, que acompanhamos se tornar um serial killer, como herança da caça de animais selvagens herdada de seu pai. Em uma cena central do filme, os amigos caçadores do falecido pai se encontram no boliche para lembrar as conquistas individuais e a memória do falecido amigo. Nas paredes são projetadas as filmagens amadoras das viagens de caça no continente africano, que incluem animais selvagens dos mais variados.
A caça no filme de Mazuy é uma prática social excêntrica que beira a seita, o culto religioso ou as organizações de extrema direita, e remete não apenas às práticas de caça da aristocracia francesa, mas ao passado colonial do país. De maneira direta, a caça é aqui uma prova de poder e pertencimento em uma sociedade na qual a impotência é regra.
Orixá cujo corpo são frestas entre a pele e a escama, o macho e a fêmea, a água e a terra.
por ser tudo, torna-se o nada para então ser pura cor: é ciclo.
que uma vez se fez cobra para escapar pelo espaço restante entre a certeza e a violência.
O início do filme é ótimo, porque é estranho:
vemos dois corpos abraçados, tremendo, se picando e se juntando.
salto:
Vemos duas figuras com cabelos ´joãozinho´ e roupas esfarrapadas em um carro.
uma vai abrir o portão.
um grito rompe a imagem:
agora elas correm na mata
e tomando banho de rio
enchendo galões d’água.
pulo:
uma porta se abre.
elas entram em uma casa meio largada sem luz e sem água
seriam as duas gatas ´sapatão de sítio´?
Gosto da forma das transições do filme:
Elas funcionam como buracos, que fazem a narrativa ter que saltar de um ponto a outro sem preenchê-los por inteiro.
Quando a narrativa ou a fala não buscam preencher por inteiro uma cena, uma brecha se abre, onde o mistério pode se infiltrar, gerando uma sensação de vertigem no espectador e o forçando a, também, desapegar
e saltar em seus pequenos abismos
meus olhos tentam resistir,
buscando o sentido das coisas
e tentando revelar o laço entre elas
existe uma linha sendo tensionada,
um afeto intenso pulsando entre os corpos
só que na imagem nada se rompe.
desapegue:
tudo aqui são dois, que logo, descobre-se três.
a trama continua crivando pontos soltos
se transmutando a cada certeza.
assistir torna-se um exercício de suspensão.
algo bonito acontece aqui:
O tema central é transmutações e a forma do filme torna-se expressão daquilo que se busca dizer.
me parece um bom caminho: ao invés de traduzir didaticamente ou escancarar, pingar todos os pingos em todos os i´s, ele apenas espelha, incorpora o que procura, torna-se ciclo, corpo-cobra. E esse gesto estende-se a nós, que vemos
e agora escrevendo ergo, também, um espelho.
acompanhamos o mistério do processo
esquecemos aquela vontade do início de tentar entender – fluímos com as imagens, com a dor e o que as pequenas pistas apontam.
até que (qual é o som de uma transformação?)
tudo se apresenta de maneira mais evidente:
a narrativa, a personagem, o corpo
a transmutação se completa
se faz outra
mais uma vez.
Arroboboi!
Quem tem medo do folclore da mulher?
Infantaria, de Laís Santos Araujo
o filme é composto por uma colagem de arquétipos
fusão de uma mitologia nacional com o olhar e projeção do exterior:
a ausência do pai (fantasma do fora de campo)
a mãe forte que dá conta de tudo sozinha
o sonho de ser princesa
o sonho de ser mulher
o principezinho no cavalo branco
a arte carregada e quase artesanal formando uma reprodução do imaginário (e também folclore) de um olhar exterior para o que seria “uma estética do terceiro mundo” ou, em termos mais contemporâneos, um brazil/latin aesthetic como vemos a rodo no Pinterest.
que compõem os inúmeros “tableau devir”[1]do filme
o aborto
a primeira menstruação
a infância (?) – que está sempre em risco aqui (resiste na fábula, na artificialidade, no místico que vez ou outra surge, na imagem posada para ser fotografada, na quase inocência da aniversariante, e se perde em todas as outras).
Pela definição comum “ Por folclore” entendemos as manifestações da cultura popular que caracterizam a identidade social de um povo. O folclore pode ser manifestado tanto de forma coletiva quanto individual e reproduz os costumes e tradições de um povo transmitido de geração para geração”.
INFANTARIA dá a ver o peso da parte do folclore submersa. O folclore que todo corpo-mulher sabe porque está ali, projetado em todo olhar sobre nossas imagens, aquela mitologia que já trazemos no sangue desde a infância e que carrega a violência de todas as nossas que vieram antes.
por que fabular?
e por que não a fábula e a imaginação para dar conta disso tudo?
quais são as imagens possíveis
para essa infância?
Tudo se perde, fortalecendo e recriando as imagens que projetam, revelando os seus avessos.
e o filme se mantém nesse limiar podendo, a qualquer instante, escorregar da defesa ao ataque.
o filme
a tira.
[1] que reproduzem imagens que poderiam ser, sabe aquela imagem que nos dá a sensação de que já foi vista ou que poderia ser um quadro?
No dia seguinte à exibição de Caixa Preta no Cine Tenda durante a 26º Mostra de Cinema de Tiradentes, me reuni num bar no centro de Tiradentes com Bernardo Oliveira e Saskia para conversarmos sobre o média-metragem da dupla e a sessão acachapante da véspera. Saskia se ausentou no começo da conversa, mas logo voltou à mesa para trocar ideias e compartilhar tragos de whisky. Saskia é diretora, montadora e também foi responsável pelo som da obra. Bernardo Oliveira é diretor e produtor.
porJoão Paulo Campos
João Paulo Campos: Ontem (na apresentação do filme no Cine Tenda) vocês mencionaram que o Caixa Preta vem de um projeto mais amplo, chamado Ciranda do Gatilho. Queria que vocês falassem como surgiu o Caixa Preta e comentassem esse outro projeto.
Bernardo Oliveira: Quando foi 2020 o Sesc Santo Amaro me convidou pra fazer uma programação musical durante a pandemia, ou seja, uma programação musical que pudesse ser disponibilizada de forma remota. Eu chamei a Saskia e o (Negro) Leo pra gente fazer uma coisa juntos e obviamente que no momento da conversa, o Leo e a Saskia são pessoas assim muito explosivas de ideias, né? As ideias vão explodindo, vão estourando, espocando de alguma maneira, e aí a gente começou a pensar nessa ideia de ciranda e de gatilho. Ciranda do…vamo fazer uma ciranda do gatilho. Então a gente começou a rir dessa ideia, mas percebeu que podia ser um bom método de trabalho. Eu produziria um pacote de informação, de dados, de imagem, som, entregaria e teria a função de engatilhar a Saskia. E a Saskia a partir desse pacote produziria um outro pacote, que por sua vez entregaria ao Leo e a gente ficaria girando nessa ciranda, engatilhando um ao outro. A ciranda é evidente que era uma roda, certo? Mas o gatilho o que seria? A ideia de que você pode utilizar essa expressão que foi meio que decodificada dentro dessas ideologias identitárias mais norte americanas no sentido de deflagrar uma espécie de desconforto afetivo, desconforto psicológico. A gente gosta muito dessa ideia de um gatilho psicológico mas que não necessariamente vai te levar pra uma situação de ansiedade, de baixa de energia, de baixa de vontade e tal. E aí começamos a entender que o gatilho também poderia ser esse disparador de uma situação, um chamado a situações, contextos, possibilidades não só expressivas mas também de alguma maneira táticas. Eu acho que o Leo… A Saskia nem tanto, mas o Leo é um artista muito ligado com essa ideia… O Leo é esse cara que tem muito mais uma preocupação com a noção de tática do que propriamente com a noção de experimentação formal. Então a gente começou a fazer essa ciranda. Eu preparei um pacote com informações, passei pra Saskia, a Saskia preparou outro, passou pro Leo, e a gente entregou tudo pra Mariana Mansur, que seria a designer do projeto, no sentido de criar um site. A gente gostou muito dessa ideia também de pegar e reunir tudo num site, tá entendendo? Porque o site é uma tecnologia antiga. Quase arcaica (risos). Eu lembro de a gente ficar perseguindo os sites de uma empresa inglesa chamada Hi-res. Um escritório de design avant garde do início do século XXI responsável pelo site do David Bowie, do Amon Tobin, e era um barato navegar naquele site porque era uma experiência nova, e o site ficou uma coisa obsoleta de alguma forma, né? Então a gente se animou com a ideia de fazer um site. A Mariana criou uma página preta com várias pedras, como se fosse um jogo de búzios, como se fosse um jogo de runa, sei lá, alguma coisa assim que você joga a pedra e vê alguma coisa. E você vai clicando nas pedras e vai levando pro conteúdo, só que cara… quando Mariana produziu o site a gente reparou que faltava muito conteúdo. Aí começou a loucura. A gente reparou que esse movimento da ciranda do gatilho precisava ter antes um arquivo. Vamos dizer assim, um manancial aberto de informação que de alguma forma se relacionasse com África e diáspora mas que também tivesse alguns matizes de problematização mesmo, de não pegar uma imagem óbvia e afirmar a potência dessa imagem em toda sua completude; pensar também que existe uma imagem, um som que por causa do tempo mesmo, vai faltando informação, tá entendendo? Vai se esmaecendo, vai apodrecendo, ou então vai se renovando. Então pegar também o movimento dessa matéria. Aí, cara, aí começou a loucura mesmo. A gente fez alguns HDs com mais de 30 tera de material. E fizemos o site. O site teve uma boa visitação, mais de 10 mil pessoas em, sei lá, 3 meses. A gente se empolgou, o Sesc também se empolgou, então vamos fazer a ciranda dois. E a ciranda dois foi mais sinistra, porque é uma página toda preta, com os búzios novamente, vocês podem reparar que no filme mesmo aparecem as pedrinhas. Só que cada vez que você clica numa pedra, o jogo reabre. Às vezes você reabre o jogo, às vezes você vai pra um lugar. Então você clica assim e reabre. Então imagino que pro tipo de velocidade da navegação hoje em dia esse site não foi bem compreendido, mas essa era a intenção mesmo. A pessoa clicava, não acontecia nada, ela passava, né? Mas se ela insistisse um pouquinho ela ia encontrar um disco de duas horas e meia que eu, Saskia e Leo fizemos. Um disco. Tem um disco dentro dessa ciranda dois. Bom, o desdobramento natural disso é fazer um filme, porque a gente tinha muita imagem de arquivo, muita imagem de pedaços de filme, gravações de filme. Bom, o Felipe Hirsch convidou a gente pra fazer uma intervenção no Museu da Língua Portuguesa em São Paulo, dia da língua portuguesa, e aí eu e a Saskia achamos que seria uma boa, o Leo não tava podendo porque ele tava fazendo uma ópera com a Juçara Marçal e com aquele ator maravilhoso, negro, homem, mais velho… o Carlos. Mas a gente tinha os arquivos dele falando, das ideias, e tal. E aí eu comecei a estruturar o filme na cabeça, comecei a mandar muito material pra Saskia, a Saskia já tinha material… Cara, e assim, impressionante porque em 3 dias a Saskia estruturou o filme. Em 3 dias. Muitas das coisas que vocês viram aí ela preparou e pum, foi direto. Eu tive muitas ideias: Caixa Preta, a ideia da Caixa Preta com os áudios, a pastora Ana Lúcia, mas o grosso do filme, a lógica do filme, a própria articulação ela foi criada pela Saskia. Então é isso, a Ciranda do Gatilho tem um site, um disco, e agora tem um filme e a gente tá pensando em fazer outro filme, agora tem outras possibilidades pra Ciranda do Gatilho. A gente também é um grupo de pesquisa, pesquisa não só por informação mas por essas táticas expressivas, acho que o Juliano (Gomes) fala isso num texto para o catálogo do Forumdoc[1]. Ele fala que é um recenseamento de táticas expressivas que já acumulam uma sabedoria popular que é quase que negligenciada. Então vamos dizer, uma mixtape sonora pra sala de cinema. Coloca em jogo a sala de cinema mas ao mesmo tempo tem ali uns elementos que podem causar disjunção. O som alto, por exemplo. As pessoas se incomodam. Tinha gente tampando o ouvido ontem na sessão. O fato de ser média também é um problema. Não sei por que, mas é um problema. É isso.
JPC: Você falou aí duas palavras que me chamaram a atenção, que são arcaico e arquivo. Mas há um trecho do filme em que há todo um certo ensaio discursivo que aponta pro futuro, né? “Eu sou o terceiro milênio…”. Queria que você comentasse um pouco essa relação do arcaico, do arquivo, com essa projeção de futuro, esse choque de tempos que o filme de vocês produz.
BO: É mais um choque de tempos e de uma multiplicação de temporalidades do que propriamente um filme sobre o futuro. Quando eu digo “eu sou o terceiro milênio”, eu falo muitos nomes ali, as pessoas lêem como homenagem, e não são homenagens. São pessoas que estão destacadas nuns pontos muito diferentes da minha experiência com elas, de alguma maneira. Tem amigos, tem pessoas que eu admiro de longe, tem pessoas que de alguma maneira, enfim… Beatriz Nascimento, né? O paradigma do vaso estilhaçado. Você tem uma certa liberdade de poder recompor, você, o afrodiaspórico, o desterritorializado, o desterrado, ele tem uma certa prerrogativa em relação ao seu arquivo psíquico, mental, familial, coletivo. Então, como é que você recompõe o que que produz uma história? Eu acho que no caso do negro norte americano isso é muito mais complicado, os caras não tem Ogum, não tem Xangô, sobrou nada da cosmologia deles, eles tiveram que tirar tudo do zero, e tá lá, tá tudo lá. Tá lá a igreja, tá a roda, tá o transe… de alguma maneira eles recuperam, é um processo de “retrieval information”, recuperar informação. Então é menos um filme projetado para o futuro do que propriamente uma chamada pra pensar essa multitemporalidade possível, onde inclusive o passado pode ser vanguarda, a depender da forma, e vice-versa, o futuro pode ser extremamente retrógrado. Então eu não vejo uma preocupação em relação ao futuro. Sobre o arcaico e o arquivo. Primeiro, o arquivo é qualquer coisa, tudo é arquivo. Até a experiência do tempo presente ela tem de alguma forma uma densidade própria do arquivo. Senão você não teria história do tempo presente, Marc Ferro, esses caras… História do tempo presente lida com a possibilidade de que o próprio presente forneça desde já possibilidades de se ressignificar a experiência, ressignificar a informação. Então acho que é isso, não é bem um filme de futuro, é mais um filme pra explorar essa possibilidade… nem é um filme de vanguarda, não é um filme experimental. É uma grande brincadeira, se fosse um filme experimental, todo funk é experimental, todo bregafunk é experimental. Caixa preta é mais pulso e ritmo do que narrativa.
JPC: Você pensaria numa categoria como cinema ensaio?
BO: Também não, é uma mixtape, pra dormir, pra dançar, pra levantar, às vezes pra deixar tocando. Pra incomodar. Pra fazer coisas que são potências próprias do cinema. Muita gente que assistiu o filme disse que ele seria interessante como uma exposição, uma instalação, uma performance, um teatro. Mas é um filme. A caixa preta. A tela preta. Os efeitos gerativos, pô. O Fábio (Andrade) me mostrou agora um texto do Andrew Uroskie, ele fala de como é que o próprio cinema vai de alguma forma recuperando certas estratégias do museu e vai se formando enquanto espaço de exibição[2]. E de certa maneira eu sinto que a gente tá não negando ou desconstruindo isso, mas dando outras possibilidades. Ó: também é possível que você tenha um desprazer sonoro dentro de uma obra da Janet Cardiff. Certo? É possível que cê tenha desprazer e tensão e dúvida e sensação de perigo diante de uma obra, sei lá, do Herman Nitsch. São possibilidades também a serem exploradas que de alguma forma envolvem essa suposição de que o lugar do espectador é um lugar de uma quietude, de uma ausência de conflito. Hoje é uma coisa que me irrita muito essa ideia de entregar, entregou, deliver. A gente tá completamente americanizado, os termos, essa coisa de entregar. O Caixa Preta não entrega, literalmente, não faz o seu deliver. Eu acho que é um pouco por aí.
JPC: Pensando ainda essa coisa do antiquado. Você me disse antes dessa conversa que o Caixa Preta é um filme do século XX. E aí eu lembrei da ideia de estética das atrações. Essa coisa do mostrar, do apresentar, não representar, mas uma máquina de mostrar, uma caixa de mostrar coisas. E aí eu lembro de um texto do Tom Gunning sobre o cinema das origens e a estética das atrações, o espectador do primeiro cinema, em que ele fala de uma estética do espanto[3]. O Caixa Preta me lembrou isso por parecer estar próximo mais da ação, você falou de tática, do que da representação. Tem uma provocação, e nos leva ao espanto, a gente remexe. As pessoas estavam dançando na sessão, de fato. Eu tava me mexendo, todo mundo tava mexendo. Uma amiga falou que estava querendo ir pra frente dançar, e aí eu te pergunto como você acha que esse filme trabalha essa questão da ação, dessa intervenção na nossa experiência corporal. Porque eu sinto que é um filme que bagunça nossa experiência, pra gente se deslocar de alguma maneira. Vocês tavam pensando nessa coisa de realmente provocar o espectador a deslocamentos – que é dança, no final das contas?
BO: Sim, teve isso. Teve muito a ideia de disjunção, aquelas pessoas no Guanabara se matando e eu cantando uma letra onde o Arlindo e o Nei Lopes descrevem a excelência de uma topologia do sambista. Mente aberta num corpo fechado, contra plágio, seja criativo, tem carteira de trabalhador, você tem ali um modelo de virtude né? E de alguma forma contrastando com as cenas do Guanabara, mas sobre essa questão das atrações que você falou, acho importante frisar isso. Se há uma proximidade do Caixa Preta com o cinema de atrações é muito mais do ponto de vista da sua realização técnica e material do que propriamente da relação com a estética. Saskia é uma montadora nata e nunca ninguém chegou pra ela e falou: você é uma montadora. Embora ela monte. Embora você tenha aí uma juventude toda usando celular como um trabalho de raccord, de corte, as pessoas cortam e cortam muito bem cortado, isso é muito louco. Severino Dadá que não me ouça, mas assim, realmente é muito surpreendente às vezes o resultado que cê vê numa baboseira no Tik Tok. Então assim, eu sinto realmente que tem uma proximidade com esse cinema demiúrgico das atrações, das cavações, como se falava no início do século XX em referência ao que Arlindo Machado chama de pré-cinema, mas é o cinema brasileiro do início do século passado, é o cinema de cavações, ou seja, você vai cavar aspectos que interessam ao espectador. Ou o patrocinador. Geralmente quem tá pagando. Então eu sinto que tem muito mais uma proximidade com a ideia de que você vai usar o equipamento pra experimentar mesmo, explorar aquilo ali. Quando você fala cinema de atrações, eu concordo, mas tô sempre pensando nesse momento que a gente falou “vamo fazer um filme?”. Eu que nunca fiz um filme, Saskia também nunca fez. Já participei, produzi filme, mas fazer um filme, ser responsável pelos cortes, pelo que vai entrar, como vai, tomar conta daquilo tudo, sendo marinheiro de primeira viagem, eu me senti realmente, e ela também, desbravadores, como se a gente tivesse fazendo um negócio totalmente fora da expectativa. A gente não imaginava fazer um filme esse ano. A gente mandou o projeto pro Sesc, o Sesc não aprovou. Então assim, no momento em que a gente decide fazer, o espírito é esse: caralho, a gente tá inventando cinema, vamo que vamo… (pausa, pois Saskia chega ao bar).
Saskia: Olha, eu acho que tudo que eu faço tem uma não consciência consciente, acredito. Porque, eu tava conversando agora, vindo pra cá, com Mariana (Queen Nwabasili) que tá fazendo a curadoria e ela tava falando sobre a relação, a comparação entre fazer música, fazer cinema. Eu acho que eu orquestrei esse filme do mesmo jeito que eu faço os meus arranjos em música, tanto pra trilha quanto pra faixa, quanto pra uma construção poética. Parte pelo mesmo princípio, do improviso consciente. Eu deixo a história se fazer também um pouco. A narrativa vai se construindo um pouco sozinha.
BO: E literalmente, né? Porque foi um negócio que eu tava contando pra ele que você chegou com o filme 80% pronto. Três dias depois do início. Foi um processo meio mediúnico, sei lá, meio acelerado…
S: É, me tranquei no quarto e eu mergulhei nesse filme. Mergulhei. Eu só pensava nisso. Foi a primeira coisa que eu editei com as minhas monitoras maravilhosas, então foi eu descobrindo também a sonoridade daquela potência, nunca tive monitor então aquilo mudou a minha cabeça. Eu acho que eu comecei pelo áudio, eu acho que o filme é uma tradução um pouco do que tava sendo construído na Ciranda Sonora, o movimento dois, Ciranda Sonora (o disco).
BO: A exibição aqui em Tiradentes foi realmente impactante pra mim. Pra mim foi um impacto terrível, no bom sentido, de ver até onde a sonoridade desse filme poderia ir. Um elemento físico do som, da imagem, tudo aquilo, como é que funcionaria numa situação ideal? Eu acho que ontem a gente teve essa experiência aqui e eu acho que o volume sobretudo foi um problema, de certa maneira… mas um problema que a gente optou por isso, a gente optou por esse volume. Por uns momentos eu me senti desconfortável, mas eu acho que o gatilho, ele é um desconforto, que tu não sabe se tu ri, se tu chora, e o som tá físico, a distorção. A diferença pra imagem é que a imagem, a luz, se você bota sombra, se você tapa a luz, você não vê. Se você tapa o olho, você não vê. O som não tem como fugir. O silêncio praticamente não existe. Estar num lugar que tem silêncio total? Tem o som dos teus órgãos, então o silêncio ele não existe, eu gosto de brincar com o poder do som. Ele é abusado, ele entra sem ser convidado. Ele atravessa as paredes. Treme os vidros tudo. Ele corta barreiras. E é legal essa física, uma física que cê não consegue pegar, o som você não pega, ele te pega.
S: Existe essas salas que são super isoladas, que são poucas, mas o que acontece é que você escuta o som dos seus órgãos, da sua respiração. Ou seja, o silêncio não existe, é um imaginário.
JPC: Bernardo falou que esse filme é uma espécie de mixtape e me veio à cabeça que existe alguns filmes, sendo que um dos cineastas mais interessantes dessa tendência é o Lincoln Péricles, que criam montagens à luz do remix. Tanto na imagem como no som. Sobretudo na relação da imagem e som. Queria que vocês comentassem essa ideia da mixtape e do remix. De som e de imagem e da mescla do som e da imagem.
S: Eu gosto da ideia de remix como a ideia do sample. O sample é uma coisa que é criada uma narrativa, aí você recorta ele pra ele se transformar em outra coisa. E eu acho que a gente tá numa saturação de dados infindável da humanidade, então quando você pega esse monte de coisa que tá aí escondida nos meandros da nuvem digital e reutiliza elas você passa a recriar uma narrativa a partir delas: vida continua, como se tirasse um morto de um caixão e botasse ele pra falar de novo. E eu adoro tirar as coisas do contexto e montar contextos, entendeu? Embaralhar tudo e montar uma imagem nova. É meio que infinito, traz uma acronia pra imagem que tá no passado. Você reutiliza ela, bota ela num não-tempo. Passa a ser acrônico. Eu vejo esse filme assim e pra mim ele não parece começar e terminar, parece estar vivendo, acontecendo e reacontecendo. Você sai com uma sensação de que vai vir de novo, de que a Ana Lúcia vai vir te assustar no banheiro, vai vir te assombrar.
BO: E mais do que isso, quando você desenterra, quando você exuma o corpo esse corpo tá modificado, são outros modos de existência. Então acho que uma coisa que o filme traz bem forte é essa sobrevivência dos arquivos. Eu acho que a gente trabalha com dois eixos, o eixo número um é o dessa relação muito direta com a própria condição gerativa do cinema: a caixa preta. Som. Imagem. Luz. Porque a imagem negra nunca deixa de emitir luz. Vai botar um preto assim na tela, se você ligar o projetor, um preto vai iluminar a sala.
S: Inclusive a tela já é branca, né? Esse filme foi feito pra ecrã. As telas pretas. Quando a tela tá preta a tela tá preta, inclusive foi a primeira vez que o filme passou legendado e eu entendi como é a influência da legenda na tela, que no momento dos apagões, dos blackouts, era um momento de tensão onde a pessoa não sabe se ela olha pra tela, se ela fecha o olho, se ela conversa, se ela presta atenção. Ela perde ali a estrutura, o apoio psicológico da imagem ali pra pessoa. E com a legenda daí ela já tem no que se segurar. É como se fosse uma cordinha pra se segurar. E aquela legenda branca, ela já ilumina as pessoas, a sala já fica completamente iluminada.
BO: Mas a gente fez de propósito, né? Tem vários dribles ali da legenda. Que eu não sei se o pessoal reparou, mas é obrigado a ter uma legenda. Aí eu pensei: pô, foda-se. A caixa preta vai ter um outro modo de existência com a legenda e vamo que vamo. Agora, outro eixo, um eixo seria pensar aí nesse sentido do cinema das atrações, dos aspectos gerativos, aspectos geracionais do cinema. Aquilo que é não exatamente função mas suporte do que pode ser o cinema. O cinema só se realiza através de determinado conjunto de suportes. Colocar isso em jogo, certo? Número um. Número dois é essa forma com que a gente trabalha hoje o cinema de arquivo, só que duas pessoas negras trabalhando arquivo eu acho que tem outro sentido. Tanto no sentido da Maria Beatriz Nascimento de se pensar o vaso estilhaçado e a liberdade de reconstituir os pontos, as informações, os dados desse vaso estilhaçado sendo que foi estilhaçado por um processo histórico que se prolonga até os dias de hoje; há um outro aspecto também que eu acho muito bom porque o arquivo da Ciranda do Gatilho é uma espécie de atlas mnemosine da diáspora e da cultura africanas. Se você recupera o Aby Warburg, a ideia de Atlas Mnemosine, o barato justamente é que as misturas, e aí falando de sample, elas são facultadas à pessoa que tá de alguma forma mexendo naquilo ali, então ressoa um pouco a ideia da Maria Beatriz, de vaso estilhaçado. E por fim, a ideia de que esse arquivo tem gradações, são fases, o arquivo é é um ser que tem fases. E essas fases elas vão obedecer aos mais diversos princípios relativos ao modo de existência. Vou dar um exemplo: VHS. A gente assistiu Império do Desejo e Tchau Amor na sequência…
S: E o Corpus Callosum, na sequência.
BO: E o Corpus Callosum, que é Michael Snow. A gente assistiu esses três filmes e fomos reparando como o VHS vai dilatando, ele vai perdendo informação. VHS você perde informação e altera a imagem por essa perda de informação. Mas não dá pra dizer que não é outra imagem. É uma outra imagem. Então tem também um aspecto aí do arquivo que é aparentemente contraditório, às vezes a degeneração leva a uma outra imagem – a uma outra visão. O arquivo digital já tem outras questões, você pode trabalhar com resoluções, você pode trabalhar com sintonia fina dos parâmetros, iluminação… Então a ideia era explorar essa polidimensionalidade do arquivo, dessa ideia de arquivo. E o Arthur Jafa foi uma influência grande nesse aspecto. Eu acho até que a gente foi um pouco mais radical que ele. Aquele filme, por exemplo, das pastoras cantando em VHS, que ele distorce o som das cantoras e o som vai ficando distorcido…
S: Isso foi uma coisa muito interessante, eu agora, terminando de almoçar, tomando meu cafezinho, um cara veio, se apresentou, “Caixa Preta ontem foi muito massa, queria te fazer uma pergunta”. Achei incrível a pergunta. Vou ter que colocar. Ele me perguntou se na última cena da pastora Ana Lúcia o som era uma colagem. Que é o único momento onde o som não é uma colagem. Eu parei pra pensar que é o único momento, na verdade, onde o som não é colado. Mas é aquela colagem que é o Brasil, o Brasil é uma grande colagem. O roteirista do Brasil, ele tava bem louco.
BO: (risos)
S: Ele saiu montando, saiu fazendo o que eu fiz com o Caixa Preta, as coisas vão se sobrepondo, criando outros significados, outra raça, outra espécie. Outro plano. Outro plano.
BO: É uma cantora negra, neopentecostal, numa igreja neopentecostal em Caxias, cantando com músicos negros, em sua maioria ostentando repiques de mão, tantans, instrumentos geralmente associados ao samba. Uma batucada…
S: Um axé inevitável.
BO: Um axé, um axé que vai acelerando, vai acelerando e ela vai puxando aquilo, e aquilo é uma expressão extremamente atravessada pela presença da música negra no Brasil e ao mesmo tempo ela tá gritando: “quebra o alguidar, quebra o alguidar. Tranca rua vai foder com a tua vida”.
S: É um momento onde o gatilho não consegue, você se deixa levar pro axé e você se deixa ser abençoado, queira você sendo apostólico, ateu, agnóstico…
BO: Todo mundo é abençoado e amaldiçoado (risos).
S: Todo mundo é abençoado naquele momento. Geral bateu palma.Dá vontade de se levantar, sabe? É irrefutável, você não precisa pensar sobre ou estudar ela, até entender o que ela tá dizendo. Você se sente libertado no mesmo momento, e o filme é uma preparação pra isso também, né? Vai te botando na caixa, te botando na caixa, daqui a pouco abre.
BO: Tinha gente dançando no final da sessão.
S: (risos).
JPC: Uma pergunta que eu gostaria de fazer tem a ver com a experiência e transe. Porque eu senti que muita gente embarcou na sessão. Parecia um transe coletivo. E aí a Saskia tava falando que ela gosta de fazer essas montagens que inventam uma nova coisa a partir dessa rearticulação. Vocês podem falar dessa relação do transe com o filme?
S: Eu acho que quando eu digo pras pessoas pra elas fazerem a própria sinopse é porque é isso, cada pessoa vai experienciar uma coisa diferente ali, eu não tô dando uma história pra pessoa aprender. A pessoa vai aprender um sentido novo, eu acho que na música eu faço isso, eu tento colocar as pessoas em estados que perpassam a vergonha, passam pela graça, até chegar numa liberdade onde a pessoa pode realmente gritar, entendeu? Às vezes a gente tem uma potência ali dentro que a gente não usa porque a gente tá dentro de códigos. Eu acho que o cérebro humano funciona todo por códigos e comandos. Eu acho também que a arte pode quebrar um pouco isso, em vez de eu te dar um novo código eu vou te limpar, vou limpar a caixa inteira. Vou limpar o código inteiro, limpar a frase, limpar o java. Você Você não tem nem o teclado agora. Que que cê faz? Que que é a palavra antes de cê aprender a palavra? Eu acho que eu tentei fazer isso, tentei fazer o que eu já faço na música, que é botar as pessoas em estado de exagero, sabe? Quando não é mais sobre raiva, sobre desconforto. Sobre textura. Já sai da estética, entendeu? A música tá muito atrelada à imagem hoje. Eu acho que fazer música é mais sobre a imagem do que sobre o som, daí eu fiz o inverso no filme. Fiz um filme que é mais sobre o som do que sobre a imagem. Inclusive as próprias imagens já são um som. Por exemplo, quando eu boto um monte de formiga em espiral com sons de instrumentos que ninguém sabe nomear porque o artista criou os próprios instrumentos, que som é aquele? O que é aquela imagem? O que é aquela textura? O que é aquele movimento? Pra onde você tá indo naquele redemoinho? Quando a gente vai descrever algum sentimento, alguma sensação, a gente já tá preso a uma linguagem. Já tá preso: isto é amor, isto é raiva, isso é desconforto. Acho que esse filme é pra criação de novas palavras.
JPC: Por isso que você pediu pra gente gritar antes da sessão, talvez?
S: Aham, eu fiz isso, né?
JPC: Eu berrei.
S: Você berrou! É dos meus, é dos meus. Pra botar pra fora, pra cuspir. Alguém vai ter que arrotar na mesa, né? Vai ter que arrotar na Santa Ceia.
JPC: (risos)
S: (risos)
JPC: Isso é bom, porque a gente precisa ser desconcertado. Você falou que tentou inverter essa relação entre imagem e som da música para o cinema. E isso tá muito na tua montagem. Porque o filme tem uma cinética, uma contracinética dos arquivos. Vai meio que contra uma montagem preocupada na comunicabilidade dos arquivos, né? Bagunça teu entendimento das imagens e sons.
S: (risos) Quem me conhece sabe que eu não sou de agradar.
JPC: Se nós viéssemos com expectativas bem comportadas da montagem dos arquivos, da compreensão, da explicação, do lançar luz às imagens, você como uma boa surrealista ia frustrar nossas expectativas.
S: (risos) Aham, aham. Pretendo frustrar.
JPC: Eu queria que cê falasse sobre frustrar expectativas.
S: Estou aprendendo a quebrar expectativas. A expectativa é muito difícil de ser quebrada e muito fácil de ser montada novamente. Então no próximo filme eu vou quebrar expectativas de novo, vai ser lindo.
BO: Eu acho que quebra expectativa, que pode até causar desconfortos e tal, mas é um filme também que eu acho bom ser média, acho que tem um tempo bom. Eu acho que tem ali essa pegada mixtape mesmo, é como se você tivesse naquele bode da festa aí daqui a pouco você volta pra festa e é muito mais uma experiência que você vai atravessando do que propriamente um registro que você vai interpretando, entendeu? Não é bem uma interpretação. Muito embora tenha uma narrativa no filme. Pouca gente fala do letreiro do início, é o letreiro mais importante, porque vai falar do código. Fala da impressionante probabilidade de que a gente exista, né? (risos). Começa dizendo isso. Então acho que não é tanto um filme pra você interpretar o sentido do que um filme que você vai passar como se tivesse numa festa, você tivesse num, sei lá, num…
S: Num trem fantasma.
BO: É, numa viagem mesmo. As coisas vão acontecendo.
S: Eu acho que é bastante um trem fantasma porque inclusive era… É exatamente isso, você brinca com todas as sensações ali, isso é divertido pra caramba, sentir é divertido, né? Que o filme teve esse começo, esse princípio. A gente tendo os dois primeiros movimentos da ciranda, a gente queria fazer um trem fantasma. Aí ia ser o nosso primeiro filme, eu acho que isso acabou intrinsecamente entrando na minha forma de montagem.
BO: Caraca, Saskia, tu lembrou agora de uma parada que eu tinha esquecido, o nome do filme ia ser Trem Fantasma.
S: Aham!
JPC: Vocês acham que o Caixa Preta tenta traçar planos, mesmo que provisórios, no caos?
S: Uhum. O filme não termina nem começa.
BO: Sim. A ideia é essa. Tanto é que a gente quer fazer o segundo logo. O tempo todo a gente tava olhando pra um horizonte, vendo alguma coisa sem saber o que que é.
S: Uhum.
BO: Mas vendo. Vendo. Tendo visões.
S: Aquela nébula. Aquele monstro atrás da névoa.
BO: É, é. Tem um negócio lá, tem um negócio lá. Vai fazendo, entendeu?
S: Desbravando esse trilho.
BO: E aí, por exemplo, eu não quero de forma nenhuma baratear a experiência do transe. Tomar muito cuidado com isso. Eu até tenho um texto que eu supostamente tentei induzir ao transe, mas eu não conheço a experiência do transe. Agora, a gente não fala do transe de uma maneira leviana. Nem irônica. A gente não colocou as imagens do mundial, da guerra lá do supermercado Guanabara pra ironizar aquelas pessoas. Não é deboche! E aquela sequência em que eu falo das pessoas, aquilo não é uma homenagem, aquilo ali é o terceiro milênio. E o terceiro milênio vai ter que se ver com toda a história da humanidade e antes dela, por isso que o filme começa com aquela epígrafe. E aí nesse sentido é preciso reconstituir um pouco do que seria essa narrativa do filme, do caos absoluto, completo, para a pastora Ana Lúcia em Caxias, entendeu? A história da Ana Lúcia é curiosa, porque assim que ela apareceu na internet eu publiquei no Facebook dizendo “olha que coisa impressionante e maravilhosa”. O Calbuque, Carlos Albuquerque, jornalista na época que trabalhava n’O Globo, ele viu e também ficou muito impressionado e foi lá em Caxias entrevistar a Ana Lúcia. E fez uma matéria no segundo caderno. A pastora Ana Lúcia tava na capa. E o pastor lá não gostou não. Porque cara, dali ela ia com certeza pro estrelato (risos). Entendeu? Ela realmente foi muito impressionante.
S: A pessoa tenta segurar o axé da pastora Ana Lúcia mas o axé é que nem o som né, ele não pede licença, ele sai entrando em você até você levitar. Eu levito no final desse filme.
JPC: Como assim levitar?
S: Levitando, levitando, porque o filme é movimento, ele é dança, ele vai te jogando pra cá, pra lá, dança lenta, dança rápida e daqui a pouco tá pulando, cê sua durante o filme. E quando chega Ana Lúcia, pra mim é um grande domingo, é um recesso, você relaxa. Eu relaxo com a Ana Lúcia, eu relaxo com esse axé irrefutável, que ninguém consegue segurar, ninguém precisa explicar ou estudar pra sentir. Daí eu me sinto levitada, porque eu acho que ela fecha um ciclo que não existe.
BO: Não, e tem o fato de que ela estaria imbuída desse axé ao lado de irmãos negros tocando percussões negras e ao mesmo tempo gritando em êxtase pra quebrar o alguidar e pra se livrar do exu Tranca Rua. De qualquer maneira, eu não quero facilitar as coisas dizendo que isso é um retrato do Brasil, não é isso.
S: Mas a nomenclatura ela não fecha, não tem como tu dizer que essa palavra ela vai segurar a ideologia inteira do que é uma sensação espiritual, do que é um transe. Você não consegue…
BO:Cê não vai resumir, né. Claro.
S:Cê não pode botar isso resumido numa palavra só, entendeu? Cê tem que recriar uma palavra pra isso. É um axé que vem do…
No dia seguinte à exibição do longa-metragem Vermelho Bruto (2022) na Mostra de Cinema de Tiradentes, me reuni no gramado do Centro Cultural Yves Alves com parte da equipe do filme, que integrou a Mostra Aurora. Uma chuva nos levou para um bar em frente ao Cine Tenda, onde terminamos a conversa tomando umas cervejas. Amanda Devulsky é diretora e montadora do filme, Luisa Marques é montadora e Pedro B. Garcia é diretor assistente e produtor.
Por João Paulo Campos
João Paulo Campos: É o seguinte: o cinema contemporâneo tem usado cada vez mais imagens de arquivos de variadas fontes. Mas os arquivos são plurais. Eu gostaria que vocês falassem um pouco sobre a forma que vocês optaram, ou os caminhos que vocês conseguiram trilhar com os arquivos, sobretudo nessa trama entre arquivo e memória, que eu acho que é algo importante para o filme de vocês.
Amanda Devulsky: Eu acho que a postura que eu proponho quando começo a realizar o filme, de olhar pra esses materiais domésticos, tem a ver com uma trajetória prévia, que aí é uma questão pessoal mesmo, mas que eu acho importante falar porque tudo que envolve esse filme traz muitas questões pessoais e íntimas. Eu cresci em Brasília e sempre senti que essa relação com o espaço do Plano Piloto me afetou muito, de maneiras que talvez eu precise de décadas ainda de reflexão pra entender por completo, sabe? Mas essa questão do espaço vazio e rarefeito entre os pontos, entre os prédios, os monumentos, e esse foco muito grande numa certa ideia espacial, visual, sensorial de representação, de onde não tem nada e onde tem tudo. Eu sinto que isso ficou muito forte nessa experiência de vida mesmo. E aí tem a questão também de que eu sou dessa geração de pessoas que começaram a existir e se enxergarem enquanto pessoas – tô falando, sei lá, dos meus 10, 12 anos de idade – no momento em que a internet começava a ser uma coisa um pouco mais popular. Em especial os protótipos de rede social, de participação nesse universo do digital em que você tem a oportunidade de construir a sua própria imagem. Nesse sentido eu acho que o Brasil foi bem vanguarda em relação a muitos outros países. Eu acho que até no debate do filme na mostra eu citei o Fotolog, o Orkut, mas tinha uma coisa por exemplo, que eu acho que como a gente tá falando de Brasília é importante mencionar. Era um negócio que chamava Agitos BSB. E cara, isso é muito louco, porque (risos)…
Luisa Marques: Agitos BDSM (risos).
AD: Não, Agitos BSB. Cara, isso aqui era o Facebook, e tipo, 2001, 2002. Você tinha um perfil, e eu tenho arquivos disso, porque eu fui atrás naquele internetarchive.org, saca? Que dá pra você encontrar páginas que nem existem mais, mas que existiam, sei lá, em 2003. E aí é meio que uma descrição assim da sua personalidade, você pode deixar mensagem pras outras pessoas, as pessoas podem deixar mensagem pra você, as pessoas podem te dar nota de 0 a 10 e isso era um rolê dentro do mundo do Distrito Federal. Muito antes do Facebook, num nível bem regional, bem específico. E aí esse processo pra mim foi fundamental pra estabelecer mesmo uma relação com a imagem. Antes até duma relação com essa ideia de cinema, do cinemão, do cinema na sala de cinema, enfim, de tudo que depois chegando mais na vida adulta e na universidade começou a se estabelecer. E isso pode ser usado como uma crítica, pode ser visto no sentido negativo. Mas eu não acho que é não (risos). Eu acho que é positivo. Essa relação com o cinema através de uma outra construção, tipo, de uma outra experiência com a câmera e tals. E eu acho que hoje em dia a gente tá vivendo isso de um modo já totalmente generalizado. E você perguntou sobre relação com arquivo…
JPC: Uhum, mas tá fazendo sentido, pode continuar. Fique à vontade.
AD: Eu acho que é isso, o meu interesse ali pra pensar os arquivos vem disso, dessas duas coisas que eu citei. Uma experiência com cinema que se estabelece a partir de dispositivos domésticos e amadores e de uma experiência com a cidade, uma cidade que parece que tá muito evidente o que que é importante e o que que não é, sabe? O que é representação e o que não é, o que é figura e o que não é. O que é central e o que não é. É isso.
LM: O que é arquitetura e o que é, sei lá, algo que se desenvolve ali de uma outra forma, não planejada. O que é cidade e o que não é, o que é urbano e o que não é. Pensando no Plano Piloto, especificamente, Brasília é uma cidade que não é construída mesmo pro plano humano. Como se não fosse uma cidade pra pessoas. É como se fosse uma cidade pra monumentos. E é claro que isso é subvertido o tempo inteiro, mas essa tensão existe.
Pedro B. Garcia: Vocês tavam falando disso, eu fiquei pensando também como o processo do filme, ele é distinto de um certo processo de Brasília. Porque Brasília parte de uma ideia pronta pra depois colocar as pessoas lá. O filme não. O filme eu acho que é uma negação disso. Não sei se negação é muito a palavra, mas acho que ele parte da relação, desse encontro pra construir as imagens, pra construir sua estrutura. Ele não tem uma estrutura pronta, que às vezes é demandada. Isso estranha: não tem uma estrutura pronta. Onde se encaixou essas imagens? Não. A estrutura vem da relação com as imagens e com as pessoas.
LM: É, eu acho que a gente trabalhou principalmente com três tipos de material: material que foi gerado por cybershot pelas protagonistas, o material de arquivo pessoal delas, e entrevistas de áudio, que eles fizeram longamente várias entrevistas. Então todo material gerado depende absolutamente dessas pessoas retratadas no filme. Elas geram essas imagens, esses sons, essas palavras.
AD: Eu não gosto nem de chamar de entrevistas… Porque eu acho que tinha uma questão que era essa: são pequenas agonias que eu tenho às vezes com palavras.
LM: Sim, sim. Sim.
AD: Mas tipo, no sentido de permitir que essa conversa seja guiada por elas mesmo, porque às vezes a ideia de entrevista… talvez seja um preconceito com a ideia de entrevista, mas que esse fio possa ser tecido ali na relação, sabe, não imposto.
LM: Sim. O Pedro e a Amanda tão no projeto há muitos anos, eles têm uma produtora juntos, eu cheguei mesmo só pro processo de montagem.
AD: Só? (risos).
LM: Eu cheguei, sei lá, cês já tinham muita coisa levantada ali. E eu entendi ouvindo essas conversas que realmente era uma relação muito de intimidade que vocês criaram com elas. Então eu sentia que elas se sentiam muito à vontade com vocês, até pelo tom de fala de vocês. Acho que tanto você quanto o Pedro criaram essa relação com elas. Então isso é importante pra essas falas, sem dúvida.
JPC: Será que essa forma de relação com a alteridade pelas imagens de arquivo tem alguma coisa a ver com o gesto da colecionadora? Tem alguma coisa de coleção, assim, nesse processo?
AD: Que que cê acha? (pergunta para Luísa Marques)
LM: Eu acho que não. Eu vi os curtas da Amanda e a gente trabalhou juntas nesse processo, eu acho que eu teria que pensar melhor sobre, mas eu não consigo muito te ver como colecionadora (se referindo a Amanda). Porque eu sinto que você não vai arquivando as imagens, sabe? Eu acho que cê vai se encontrando com elas e usando elas e trabalhando elas e se afetando por elas. Então eu acho que é uma coisa que se movimenta mais do que o ato de colecionar. Tem um encontro ali, e tem uma coisa assim de escavar e tal, mas eu não acho que é exatamente colecionismo.
PBG: É, eu acho que às vezes a ideia de coleção, pelo menos, acho que talvez não fosse isso que cê tava falando (se referindo à João), mas me passa uma ideia de fixidez, sabe?
Ad: Não, mas existe, é. Eu acho que existe isso.
PBG: Eu acho que o processo do filme, seu processo, Amanda, o processo do filme em geral, ele não tava interessado em deixar aquilo estável, né? Tava interessado em olhar pro resíduo, olhar pra passagem de tempo ali naquela imagem, e não tinha essa preocupação de que aquela imagem tem que sair intacta desse processo.
AD: Sim. É, isso é importante.
LM: Eu acho que não tinha também muito a preocupação de catalogação. Porque eu acho que às vezes pra colecionar uma coisa, pra você conseguir dar conta de uma coleção você precisa ter um certo ato de catalogar, pra organizar.
AD: Que a gente precisou fazer, mas que não era como se fosse um passo do método pra chegar num outro lugar. (…) O colecionador é como se fosse um arquivista independente, né? Se a gente tá pensando nas instituições de arquivo privadas e públicas elas têm uma importância, mas nessa rede de preservação o colecionador tem um papel importante também. E ele é uma espécie de curador das imagens. Mas eu de fato não me vejo tanto nesse papel, e aí quando a Luisa fala esse verbo escavar, eu gosto… Mas aí eu tenho ressalva que eu não gosto dessas coisas muito…
PBG: Da profundidade.
AD: Eu não gosto da profundidade, eu gosto do superficial. Eu gosto da superficialidade. Não no sentido pejorativo que as pessoas costumam usar. Nos outros sentidos, que também não vou falar disso agora. Mas uma coisa que me lembrou isso que a gente tava falando é um termo que se chama ativação. Ativação dos arquivos. É um conceito da Giovanna Fossati, que é uma arquivista. É um termo que ficou muito importante nesse rolê dos arquivos. E que ajuda a fazer uma diferenciação também entre o gesto de preservação e o gesto de ativação, porque às vezes não é suficiente você preservar uma coleção de imagens. Tipo assim, cê preserva… Tá, você tem uma cinemateca, você tem um quarto, você tem tipo uma gaveta. E aí você coloca as coisas lá. Tudo bem, elas tão meio que à salvo, mas o tempo continua passando e elas estarem ali fechadas… enfim, isso não dá conta de tudo. E os arquivos precisam de um contexto pra existir, eles precisam de uma ação pra existir, eles precisam de uma relação pra existir de um jeito que honre eles de alguma forma. Existem vários jeitos, não é só um. Então, eu acho que talvez tem a ver com esse termo. Tipo, quais são as formas que a gente tem de ativar os arquivos que existem, pra que eles não fiquem só guardados?
JPC: Quando você fala dessa ativação, tem a ver com movimento? Luisa falou que seu processo com os arquivos tem a ver com uma questão de afetação. Você acha que essa afetação entra aí, nesse nó que você mostrou, quando começou a falar?
AD: Sim, esse conceito de ativação, eu não tenho pretensão de dar conta dele, porque ele é muito amplo e tem muitas pessoas falando sobre como que isso pode acontecer, inclusive institucionalmente, pensando nos arquivos mesmo, nas cinematecas e tal. Mas falando aqui no nosso espaço do filme, eu acho que essa experiência tem a ver com presença, eu gosto dessa palavra. Tem a ver com a experiência de estar presente com as imagens. E isso significa visionamento, mas um visionamento… não só uma vez, significa compreender e sentir o contexto no qual elas passam a existir, e o contexto no qual elas continuam existindo ao longo dos anos. Acho que é importante que seja a partir disso que um trabalho de movimento com elas, talvez mais explícito assim de corte, de montagem, de definição, da estrutura do filme possa ser realizado. Porque se não eu acho que corre o risco de acontecer uma coisa que eu não gosto, e que a gente não gosta, que a gente conversou bastante sobre isso, que é uma instrumentalização dos arquivos. E acho que quando a gente tá falando especialmente sobre arquivos domésticos, arquivos íntimos, arquivos amadores, isso chega ali num problema ético, sabe? E infelizmente isso acontece. Principalmente com filmes órfãos, filmes que não têm dono, que tão num arquivo que ninguém sabe. A gente vê isso no audiovisual de hoje. Você precisa de uma imagem que expresse uma família feliz, sabe? E é isso: um uso totalmente instrumentalizante dos arquivos pra compor um discurso.
LM: Tipo o gettyimages, né? Um banco de imagem.
PBG: Stock images, é.
AD: A famosa… como é que é? Que falaram uma vez pra gente. Imagem de…?
LM: Imagem de cobertura?
AD: É, brigada. Muito tempo atrás, quando a gente tava começando a fazer o filme e tentei explicar um pouco o que que a gente tava fazendo, falaram: “ah, que legal, mas cês vão usar os arquivos como imagem de cobertura?”
LM: (risos)
AD: Que que é isso? (risos)
PBG: (risos)
LM: Pensando nisso tudo que a gente tá falando e também na sua primeira pergunta, eu sinto que, trabalhando com a Amanda, eu senti que ela tava sempre confrontada pelos arquivos, pelas imagens. E nesse sentido eu acho que se afasta um pouco do ato de colecionar. Pra mim o colecionismo soa um pouco como se aquela coleção, aquele arquivo tivesse um lugar de passividade. E eu acho que no caso do Vermelho Bruto, no caso da relação que a Amanda, ou pelo menos o que eu vi a Amanda travando com os arquivos, com as imagens – e eu usei a palavra afetação -, eu acho que existe uma agência dos arquivos e das imagens sobre o processo de trabalho da Amanda, é isso.
AD: Sim.
LM: Nesse sentido que eu acho que colecionismo soa como algo que deixaria aqueles arquivos passivos…
AD: Ou pelo menos hierarquicamente colocados em relação ao colecionador, né?
LM: Eu acho que tem a ver sim com o arquivo estar lá parado e ele poder ser usado…
AD: Sim, o colecionador tá aqui e o arquivo tá aqui…
LM: Então eu vou pegar esse arquivo aqui pra usar pra essa coisa, e eu acho que no seu caso cê se deparou com aqueles arquivos e eles te afetaram de um jeito, tiveram uma agência sob você que te fez fazer esse filme.
JPC: Isso que vocês dizem é fantástico. E me veio o filme todo de novo na cabeça. Você falou uma coisa, Amanda, que me chamou a atenção. O que te interessa é a superfície. Em que sentido? Eu achei isso muito curioso.
AD: A questão da superfície tem uma relação mesmo de querer pensar a imagem não só enquanto uma coisa que faz referência a outra, um índice de uma outra coisa, ou algo que leva a um outro significado, mas pensar imagem enquanto materialidade mesmo, nas suas diversas materialidades. Nesse sentido, a imagem tem esse caráter de superfície, né? E é um caráter de superfície que coloca em jogo alguns desses valores, dessas hierarquias sociais. Que tendem a colocar a valoração a partir da profundidade. E a partir da penetração de algo. Você tem que penetrar em algo, ir fundo em algo. E aí, enfim, dá pra pensar em muitos sentidos, que tem essa coisa mais de pesquisa teórica mas também artística e tudo ao mesmo tempo. Uma coisa de ir fazendo e tudo. E dá pra pensar um valor que não tá na profundidade, que não tá na figura da penetração, que não tá na arma. Que tá no valor que reside mesmo na superficialidade, sabe, e não atrás dela. Não a superficialidade como um véu, a tela não como uma coisa que você tivesse que atravessar ela e ir pra trás dela, mas como tem algo ali naquela própria superfície que tem um valor, e que valor é esse, como é que se relaciona com esse valor.
PGM: Eu queria só complementar uma coisa assim que na verdade eu não sei nem se já falei, mas enfim, ouvindo você falar sobre essa coisa da superfície me faz uma relação com as coisas que eu penso sobre a lógica da representação. A imagem sempre como a representação de algo outro. E aí a gente pensar a imagem pelo que ela é, pela superfície dela, eu acho que isso liberta a imagem pra outras possibilidades…
AD: Pela materialidade.
PGB: Pela materialidade, isso. Pela materialidade. Enfim. Isso liberta a imagem pra outras coisas. Isso escapa daquela pergunta: mas o que essa imagem quer dizer? O que tá por trás? Não é… Tipo, essa imagem…
AD: Ela é.
PGM: Isso. Ela é.
LM: O que ela representa, né? E não… acho que em geral se pergunta isso, o que essa imagem significa, o que ela representa… e na verdade ela pode ser muitas coisas antes disso. Ou também, além disso. Ela pode ser um rasgo, ela pode ser uma poeira que tá ali acumulada. Nesse sentido da materialidade mesmo que eu acho que tem muito a ver com o pensamento de arquivo, como essas imagens de arquivo se comportam com o passar do tempo, como elas são desgastadas, como elas envelhecem, com que cor elas ficam, com que textura elas ficam, como vão desaparecendo. Então acho que o filme tem essa preocupação. E eu acho que o uso que o filme faz das fotos, que são fotos dos arquivos pessoais das personagens, eu acho que o filme tem esse olhar pra essas fotos que é dar esse zoom, esse super zoom, justamente pra não pegar o que aquela foto está representando. Quais são as figuras que tão ali naquela foto, mas qual é a ação do tempo naquelas fotos.
AD: Tipo, não só isso, mas isso também, sabe? Porque as coisas tão ao mesmo tempo, são várias coisas, não é uma coisa simples.
LM: É, ou então um gesto que tá na foto. Às vezes tem um corpo inteiro mas a gente mostra um olho, um dedo, uma mão, um tecido.
AD: Ou o fundo de uma foto. Porque também a memória não funciona nessa lógica que a gente insiste em impor às imagens, essa lógica do representado, da figura, do centro, do que é, do que é informação.
LM: Do que é importante.
AD: E o ruído não importa. A memória é composta, na verdade, da minha posição pelo menos, cês me dizem aí se pra vocês também é assim, a memória é composta justamente desses ruídos do fundo…
LM: Do não figurativo?
AD: Do não figurativo, de uma cor, de uma luz, de uma matéria que se desgasta. Muito mais do que esse significado que tá ali no alto, essa coisa transcendente que não tá relacionada à matéria. E aí também se a gente for pensar na história da filosofia masculinista e pensar também nas teorias feministas diversas que existem hoje, toda essa ideia da transcendência e de que existe uma coisa, essa ideia da materialidade é uma ideia muito cara ao que foi definido historicamente como o que é uma mulher, tipo, é o conceito político-social, que é uma espécie de ficção, porque a ideia da mulher é uma ficção, é uma ilustração, e que tá intimamente relacionada com vários nós atrelados à materialidade. Tanto a ideia da mulher como uma coisa abstrata e poética que tá além do corpo quanto à ideia que acontece às vezes, que tem a ver também com a branquitude, e quanto à ideia da mulher enquanto apenas algo atado à terra e aos processos da natureza. Esses dois lados tem coisas muito complicadas acontecendo. Então acho que falar dessa materialidade da imagem tem tudo a ver com essa questão.
JPC: Você falou da questão dos monumentos na experiência de Brasília, eu pensei na ideia de contra-monumentos e de contra-ataque. Tem alguma coisa de um contra-ataque numa perspectiva marcada pela matriarcalidade na obra?
A: Quando a gente tá falando do filme, a gente tá falando de quatro mulheres específicas com histórias de vida específicas também. E eu acho que isso é importante. Mas pra mim também é importante pensar que existe algo em comum, e eu acho que existe porque as pessoas assistem e se identificam. Conversei com pessoas que contavam ver aspectos de suas próprias mães ou aspectos de suas vidas mesmo não sendo mães elas mesmas, por exemplo. Então existe uma coisa em comum. Mas existe também uma parada muito delas, muito próprias. E aí eu tenho o receio de generalizar isso pra falar da condição da mulher, saca? Embora, por exemplo, quando tô falando isso que eu falei agora da materialidade da imagem, isso é uma questão que eu enxergo, e eu também tô no filme, eu também faço o filme. Então essa é a minha visão também que tá em todo momento em negociação com a visão delas. Mas eu não colocaria como uma questão de matriarcado, ou tipo, de um sistema político. Eu não colocaria dessa forma. O que eu colocaria seria, talvez, nesse sentido que você falou, uma recusa mesmo. Uma recusa aos monumentos (risos). Não sei se isso faz sentido pra vocês.
PBG: Faz sentido. Eu acho que até conecta com as questões de Brasília e as questões do filme. Eu acho que faz uma conexão legal porque fiquei pensando aqui que era isso, a gente tava falando de uma certa recusa à representação, um certo valor da superfície, e aí alguém de vocês falou da altura, do filme estar numa outra escala. Ele não é um filme que tá mostrando o Distrito Federal e Brasília pelo drone da Esplanada. Ele tá tocando, ele é tátil em alguns momentos. E aí eu acho que isso faz sentido se pensar que o filme não é uma representação da mulher do Distrito Federal.
Ad: Não, porque não tem como.
LM: Até porque não existe. Não existe a mulher do Distrito Federal.
AD: A representação em geral tem um aspecto de ilusão, mas nesse sentido mais ainda, né? Não existe, assim.
LM: É… Em vários momentos da montagem a gente discutia sobre usar ou não imagens da Esplanada. Tem uma imagem que você cita no seu texto, João, em que a Fabiana tá filmando do ônibus a Esplanada de noite com uma luz vermelha, então é um negócio meio aterrorizante, estranho, e durante muito tempo a gente ficou na dúvida se a gente usava essa imagem. Porque ela mostrava a Esplanada de um jeito esquisito mas ainda assim era identificável aquele espaço. Então eu acho que isso foi também uma questão pra gente.
AD: Essa questão do centro, né? Porque fica muito marcado quando a gente tá falando de Distrito Federal, Brasília, essa ideia de que ali é o lugar da representação política, da política institucional e acabou. Mas de alguma forma eu sinto que essa cena faz justamente o contrário, eu gosto dela.
O universo imaginativo de “Os animais mais fofos e engraçados do mundo” (Renato Sircilli, 2023) é o baixio das bestas. Estamos num motel barato, espaço em que o protagonista trabalha como camareiro. O mote do curta é interessante: um trabalhador, já idoso e malandro, tem um negócio paralelo que mescla empreendedorismo, loucura e fetiche. É um filme de protocolos rituais num campo limítrofe entre o prazer e o trabalho que, na história elaborada por Sircilli, se imiscuem.
O negócio clandestino é o seguinte: o empregado registra sons das transas que escuta pelos corredores e quartos desocupados do motel em que trabalha. Ele vende os áudios para um senhor, com um extra. Numa cena de sexo fetichista, o camareiro do motel descreve as cenas dos áudios enquanto masturba seu cliente. Em seguida: sexo. O problema é que existe outro protocolo envolvido em “Os animais…”, que diz respeito a padrões de comunicabilidade e agradabilidade que têm contaminado o campo do cinema contemporâneo. É um problema de atitude.
O que acabamos por estranhar nesta fita é sua falta de imaginação diante deste mundo tão maluco. O realizador não conseguiu expressar em termos espaço-temporais o barato que seu argumento nos prometeu.
Em outras palavras, a mise en scène e a montagem linear planificam o que parecia ser um universo caótico e mais interessante do ponto de vista estilístico. É um filme que força a barra na estilização, mas lhe falta estilo. Esse sintoma atravessa as cenas do curta, desde a espacialização do motel até a cena de sexo entre os dois personagens.
Enxergamos o interior do motel, mas não o sentimos. Sua figuração se dá a partir de uma série de planos fixos em ângulos que clarificam de maneira frontal o espaço. A cena da ronda no corredor, por exemplo, nos mostra o protagonista andando com o carrinho de limpeza em direção à câmera. Apesar do movimento do personagem, a cena não se mexe – e isso tem a ver com as variações cromáticas da cena, em particular, e a fatura do curta, no fim das contas. Os ambientes são coloridos com o mesmo tom sépia que puxa uma frieza impessoal típica de certo cinema paulistano – que, obviamente, tem seus exemplos fortes. O controle dos gestos e expressões faz das presenças em cena algo protocolar e bem comportado que parece fora do lugar num espaço marcado por arroubos, segredos e farras.
Fetiche e mistério não encontram ferramentas cinematográficas capazes de os expressarem em “Os animais…”. Diante de um universo nebuloso, Sircilli optou pela clareza classicista. É como se o artista tivesse jogado as luzes de um holofote num nevoeiro. E na arte o que me pega é a névoa
Presumindo as operações da memória como gestos de fabulação e considerando as imagens como regimes de visibilidade que constroem ficções na realidade, o filme O Canto das Amapolas (2023) dirigido por Paula Gaitán é uma espécie de ensaio sonoro e visual que trabalha as operações da memória como rearranjos de signos, imagens e sonoridades. O som de uma conversa em extracampo entre Paula e sua mãe, Dina Moscovici, é o fio condutor de uma narrativa que aposta nos ruídos semânticos – quando o falante e o ouvinte têm interpretações distintas do sentido de certas palavras – e nas vibrações como estratégias de visionamento. A dificuldade em identificar na conversa quem está falando ou a veracidade do que está sendo dito é um instrumento não para conservar uma memória, mas para criá-la a trancos e barrancos, incorporando opiniões contrárias e jogos de palavras que deslocam os temas históricos de seus lugares pré-estabelecidos.
Indo na direção contrária de uma tendência do cinema brasileiro contemporâneo em que a voz em extracampo é usada como um mapa em busca de memórias familiares, Paula não está preocupada com uma elucidação adequada pela fala ou de trabalhar uma poética através de uma voz doce e feminina que apenas comenta o que está sendo mostrado pelas imagens. Em O Canto das Amapolas, na ausência de imagens que localizem o que está sendo dito, algumas palavras acabam se lançando ao vento. A impossibilidade do diálogo torna-se, portanto, uma proposição que lança perguntas ao invés de respondê-las. As palavras ditas possuem uma profunda fluência, são ideias sem filtro. A montagem intuitiva das manifestações sonoras do diálogo entre Paula e sua mãe está mais preocupada em mostrar o que está sendo dito, do que em sugerir um deslocamento poético ao espectador.
Gaitán se desobriga do compromisso de reprodução do real e da busca pela verossimilhança e causalidade para lançar-se à experimentação como ferramenta para engendrar movimento em tempo e espaço e produzir vestígios que se desdobram para além dos limites da tela do cinema. Ao escolher narrar pelas ausências e lacunas que são intrínsecas à própria noção de memória, Gaitán se dedica ao trabalho artesanal de prolongar a vida de sua mãe através do cinema e de reinventar a si mesma enquanto cineasta (ou como a filha que faz filmes), evocando essas duas corporeidades femininas e as confrontando ao mesmo tempo. Paula se filma em um espelho com a câmera na mão, escolhe inserir-se, corpo e voz, naquele universo como personagem da ficção de sua mãe. As imagens e cenas construídas por Paula Gaitán e Rodrigo Levy parecem traçar rastros nessas lacunas. São como tremores oníricos que se deslocam pelo – e através – do inconsciente da artista.
A cena de um cômodo com as janelas abertas e o vento pairando entre as cortinas é um momento que me remete à janela em Ostinato (Paula Gaitán, 2021), em que no espaço onde Arrigo Barnabé cria suas composições há uma janela com um livro posicionado no parapeito. O vento movimenta as páginas do livro e captura o olhar da espectadora. Em ambos os filmes, as janelas são frequentemente revisitadas pela montagem e operam como uma espécie de véu. Em Ostinato, a janela, ao mesmo tempo em que conecta o músico com o mundo exterior, também o distancia. Delimita o território. No O Canto das Amapolas, a janela é usada tanto para estabelecer um limite entre o espaço público e privado, quanto para suscitar a imaginação. À medida que o vento promove movimento dentro daquele espaço, somos convidadas como espectadoras a imaginar o que existe para além daquela janela. Imaginar Berlim para, só assim, conseguir reimaginar Paula ou Dina. Dar lugar e endereço aos fantasmas da memória que circulam pelo ar.
As mulheres que manifestam-se no filme podem, à primeira vista, parecerem deslocadas do primeiro fio condutor narrativo (o campo de batalha que é o diálogo entre Paula e Dina), mas são uma tentativa de dar corpo ao imaginário, construir uma fantasmagoria que se sobressaia à palavra e se mostre na carne. Esses corpos perambulam pelos espaços e suas posições oscilam entre a identificação e o estranhamento. São fragmentos inconclusos, assim como os discursos entoados pela voz. Não indicam nenhuma direção, apenas nos convidam a observar. Pela experiência e pela fruição de visionamento fica a certeza de que o que vimos é uma ficção ativa e fragmentada, sem o compromisso de se fidelizar ao regime representativo. O filme joga com as concordâncias e discordâncias das imagens e sons disponíveis para fabular sobre uma memória que permanece viva, se desdobrando em cada imagem, música, ruído e silêncio escolhido pela realizadora.
Comecei a caminhar no universo do cinema buscando formas de sentir o mundo para além da crise e da morte iminente – superar o inferno pela arte parecia meu desejo. No desespero de viver em ruínas, acabei vendo filmes demais e me tornei crítico de cinema desse jeito: emocionado, desesperado, apaixonado. Digo isso para contar que nessas trilhas jamais encontrei obra brasileira que encontre o sofrimento psíquico com tamanho cuidado e amor – talvez com exceção de Imagens do inconsciente (Leon Hirszman, 1988) – como As linhas da minha mão (2023), documentário de João Dumans vencedor da Mostra Aurora do Festival de Tiradentes deste ano.
O filme de Dumans elabora um retrato de uma artista da performance de Belo Horizonte chamada Viviane de Cassia Ferreira, Vivi, ou Viva. Além de performer, roteirista e “estrela de cinema”, Viviane tem uma experiência no mundo marcada pelo sofrimento psíquico – algo que ainda é um tabu, apesar de fazer parte da vida de cada vez mais pessoas. Mulher cuja câmera de Dumans, que assina também a fotografia do doc, persiste em seguir em uma série de encontros. O filme é estruturado em sete sequências ou atos, cada qual aparentemente autônomo em relação ao outro.
Mas a montagem de Luiz Pretti constrói a argamassa que junta de forma orgânica os blocos de experiência produzidos pela máquina, fazendo do retrato algo mais próximo de uma colcha de retalhos. Tudo se passa como se Dumans, Viva e seus companheiros e companheiras de trabalho estivessem trabalhando num espaço limítrofe entre o plano e o descontrole – as intenções e o caos.
E isso se dá nas escolhas formais da obra. Por exemplo: os planos no rosto da protagonista respeitam a duração não apenas dos seus relatos sobre arte, loucura, passado e sonhos, mas também parecem espreitar o improvável, a indeterminação de suas expressões faciais, as hesitações, as miradas que ela dá para o fora de campo – imagens prementes da fita de Dumans. O que ela olha?
Mas a câmera não registra apenas a face de Viva. O documentarista persegue o movimento do pensamento da performer através da escuta e da câmera próxima ao rosto, mas também procura registrar aspectos da cinética de seu corpo. Presenciamos contações de histórias em meio ao centro de Belo Horizonte, bastidores de performances, conversas com amigos como o Douglas, leituras de Nietzsche com seu primo Leo. A forma errática e libertária de Viva pensar encontra afinidades eletivas com seus gestos, movimentos, caminhadas e, por fim, sua performance que encerra a obra sob a luz negra de um quarto que, devido ao enquadramento oblíquo da cena, só podemos imaginar a completude pela força da especulação. Seu corpo cintila através de pinturas corporais fluorescentes na escuridão.
O filme se aproxima do corpo de Viva através de uma observação que utiliza movimentos de câmera para acompanhar as linhas de seu corpo – pele, cabelos, olhos, boca – mas também as linhas de movimento no espaço: os momentos de repouso ou prostração, mas também as situações de excitação. É um filme cuja mise en scène epidérmica nos lembra obras mineiras do passado recente como Sociedade dos amigos do crime (Dellani Lima, 2009) – longa experimental que Dumans participou como ator.
Para acompanhar uma personagem que caminha no mundo entre a petrificação e a agitação, o documentarista utiliza diferentes operações. Primeiramente, é um filme que só foi possível por um encontro que produziu uma afetação entre as partes – afeto, confiança e, a partir daí, aventura juntos? Outras ferramentas nos levam ao cinema independente norte-americano de outrora em figuras como Jonas Mekas e Shirley Clarke, sobretudo em Portrait of Jason (197): o uso do plano-sequência, os reenquadramentos, zooms, ajustes de foco, isto é, formas de fazer a máquina acompanhar uma figura urbana incendiária – no melhor sentido do termo. A câmera hesita e também brinca, descontrola de leve, se deixa levar numa entrega total ao movimento da vida de sua interlocutora. É um cinema da amizade.
“Estou em movimento… aberrante”, nos diz Vivi. É o movimento de seu pensamento, sua invenção, sua perambulação que o documentarista procura (re)ensaiar em cada sequência. E a trilha sonora entra no jogo não para acompanhar as cenas, mas para criar novos arranjos de imagem e som, driblar um pouco nossos sentidos, produzir um pequeno caos em nossa barriga. É como se o filme se (des)estruturasse por um caos ordenado – um controle descontrolado? A trilha musical faz uma dança com as imagens – dança aberrante. Um equilíbrio instável entre imagem e som.
A montagem de Pretti interrompe nossa fruição dos blocos de encontros com Viva para instaurar um contra-ritmo que nos mostra algo de Viviane que não sabíamos por completo até então: seu ecossistema é urbano. Uma série de fotografias em preto e branco, realizadas pelo artista mineiro Desali em parceria com o próprio Dumans, cria trilhas escuras no meio do filme. Assistimos a uma amálgama de vistas urbanas do baixo centro de Belo Horizonte, zona da bagaceira boêmia da capital mineira. Viva deambula nas ruas, esquinas, bares: bebe e fuma e anda numa espécie de trotoar dissidente. Ela parece caminhar a ermo, notívaga errante, a noturna de Belo Horizonte? Quando o cinema filma bem a cidade, ele encontra sua parte maldita, diria Comolli. Ela veste uma camisa preta escrita: “Só os lokos sabem”.
Podemos dizer que As linhas da minha mão borda uma experiência de encontro entre o cinema e uma personagem urbana que nos mostra faces de sua vida entre a arte e a loucura. Isso acontece por uma observação radical do movimento de seu pensar, criar e caminhar no mundo. Seus relatos sobre os acolhimentos que vivenciou no SUS nos emocionam num tempo de renovação das políticas sociais de saúde e cultura de um país semi-arruinado pelo nazi-fascismo. O filme nos revelou uma presença inesquecível – força do desejo em meio à cidade noturna. Em tempos de reconstrução, é bom lembrar com quais palavras o júri do festival, sob a representação de Cristina Amaral, encerrou o texto de premiação. “Viva o SUS!”. Viva a vida. Viva a Viva.
A última vez que ouvi Deus chorar (Marco Antonio Pereira, 2023), curta-metragem exibido na mostra Foco Minas da 26° Mostra de Cinema de Tiradentes, é uma alegoria sobre um futuro que não chega. Através da vivência de Maria, uma jovem que se descobre grávida e está em constante fabulação sobre o feto que carrega dentro de si, o filme constrói uma mitologia própria e experimental sobre um momento político onde o presente está abandonado e, por causa disso, as pessoas são roubadas de uma perspectiva de futuro. Em uma cena do projeto audiovisual, um cachorro é caçado e a montagem constrói um looping acerca dessa imagem. Um tiro. Outro tiro. Outro tiro. Mais um. E segue assim por alguns minutos, reproduzindo incessantemente a alegoria da morte como delimitação de um ritmo contínuo. Essa cena é uma das mais interessantes do filme, pois é aí que a narrativa abandona a trama comum de Maria para centrar-se no que mais importa: o fato em que algumas coisas acabam, são destruídas, mas a imagem e o cinema permanecem.
A transversalidade do corpo social de Maria como uma mulher jovem do interior não é desenvolvida o suficiente para aprofundar a trama. Na realidade, Maria como personagem me parece ser um obstáculo para o próprio filme, por que sempre que a narrativa é lançada ao incerto, a história de Maria a puxa de volta a um lugar comum. Na cena do parto, quando descobrimos que a personagem dá luz a um natimorto, a preocupação com a plasticidade da imagem, quanto ao enquadramento e figurino dos personagens, tira a força do transtorno que é dar luz a uma nova morte e não a uma nova vida. Além disso, os diálogos reforçam uma preocupação excessiva em lançar-se à poesia. Os diálogos forçados e a crítica cristã – como se Maria tivesse gerado o próprio Deus e ressuscitado no terceiro dia assim como Jesus Cristo – dão à personagem uma importância que ela não tem – ou não deveria ter – e esquecem da proposição inicial que parece ser o ponto de partida para compreender as produções do cinema brasileiro contemporâneo, que precisa sempre reinventar-se a partir do caos, narrar pelos ruídos pela falta de recursos. Sobreviver apesar de tudo.
Sabemos que um dos sintomas do cinema brasileiro vem da comédia. Na cena independente, o buraco é mais embaixo. São poucas as produções voltadas ao gênero, mas ainda temos o privilégio de lembrar dos filmes de, por exemplo, Tavinho Teixeira e Fábio Leal. Um amigo, cineasta que flerta com o riso em seus filmes, brinca comigo em sua produtora ao colocar para tocar a música Complexo de épico do Tom Zé. Ele remixava com sua voz: “todo ‘diretor’ brasileiro é um complexado”. Pois “Cervejas no escuro” (Tiago A. Neves, 2023), um dos destaques da Mostra Aurora deste ano, vai no osso desse problema.
O filme começa no luto. Acompanhamos um plano-sequência que deambula em meio a um funeral. Pessoas conversam no ambiente escuro. Passeamos entre os corpos que se movem com vagar, até toparmos com um caixão. O preâmbulo pode parecer estranho para uma comédia, mas o desenrolar da aventura que “Cervejas…” nos propõe faz tudo fazer sentido. A obra é uma azaração que faz curtir e faz pensar – entre o riso e o “assombro glauberiano que está em todos nós”, como relatou Nivaldo Rodrigues no debate do longa no dia seguinte a sua exibição no Cine Tenda, Tiradentes. Poderia o riso driblar a morte e o terror?
A história mistura as estórias da protagonista com a história da Paraíba. Estamos em Princesa Isabel, pequena cidade nas bordas do estado – fronteira com Pernambuco. Uma mulher idosa, chamada Edna, tem o sonho de reviver suas memórias através da arte. Decide juntar um grupo de produção para fazer um filme baseado na sua vida. A equipe inexperiente é guiada pelo desejo arrebatador da diretora de tocar essa fita. Os coices, intrigas e mal entendidos do processo de filmagem e distribuição do filme são a principal fonte de comicidade do longa, que se desenvolve tal qual uma comédia de situações.
Trata-se de uma obra teatralizada feita com um grupo de atrizes e atores amadores da região, mas parar por aí seria perder a festa de Tiago A. Neves e sua equipe. A força do filme está justamente em sua mise en scène que mistura elementos do circo, teatro de variedades (Vaudeville da Paraíba) e teatro épico brechtiano (cabra da peste).
É um caos ordenado pela direção e montagem de artistas que estão estreando no longa-metragem. A palavra tem poder: uma obra que faz um uso intensivo do verbo como ação ou ato de fala. Performance delirante do hablar? Sinto que as personagens não param de falar e, mesmo assim, não perdem a linha! E há sem dúvidas um uso plural do diálogo, pois eles falam entre si para nos arrancar gargalhadas, mas também dialogam conosco para nos ensinar um pouco da história da Revolta de Princesa.
Essa revolta popular ocorreu em 1930 e culminou na declaração de independência provisória do município de Princesa Isabel em 1930 em reação à eleição de João Pessoa para Presidente do Estado da Paraíba, político responsável por uma série de transformações político-administrativa que enfraqueceram o poder econômico e político de coronéis do sertão. Com a independência, o município passou a se chamar República de Princesa e criou um novo hino, bandeira e um jornal chamado O jornal de Princesa. Tudo terminou como em Canudos: carnificina, tortura, humilhação. Mas em nome da República, não podemos esquecer. E isso está expressado no filme.
Quando a equipe sai em busca de um importante casarão para filmar uma cena, a obra efetua um jogo de cena épico com uso de montagem dialética que vale a pena ser descrito e comentado. Primeiramente, o riso. “Esse é o casarão?!”, pergunta um dos personagens. O corte faz com que a montagem confronte a interrogação com a imagem irônica de uma ruína apodrecida pelo tempo. Muitos risos, mas então o tal “assombro glauberiano” que nos leva ao épico brechtiano. Dentro do casarão abandonado, eles investigam e nos ensinam. Um monólogo didático nos conta mais sobre a revolta, mas a montagem também interrompe a fruição para nos mostrar as marcas de bala em paredes vermelhas – rastros de ódio acompanhado por pipocos na banda sonora. Um choque de humores, o riso vira do avesso por um momento.
Está claro que “Cervejas no escuro” é um grande cozinhado de operações estéticas num caos ordenado que nos faz chegar ao legado de Carlos Reichenbach e Rogério Sganzerla. Sob o signo do caos, a obra de Tiago A. Neves atualiza a comédia popular de Carlos Manga, Oscarito e Grande Otelo numa chave inventiva-cabra-da-peste que quer nos fazer rir e escovar a história criticamente – a contrapelo.
Esta atualização estilística ocorre num contexto de novas tecnologias e, como escreveu Cleber Eduardo recentemente, uma outra cena de autoria cinematográfica no Brasil, que o crítico chamou de “novo cinema autoral brasileiro”. Uma das características centrais dessa renovação do campo cinematigráfico nacional é a entrada, na cena da autoria artística, de sujeitos periféricos: as bordas da metrópole, a aldeia, a negritude, a mulher feminista e toda uma nova geografia da invenção configurada por gente de cabo a rabo do país. Paraibano que vive e trabalha em Diadema, Neves usou a fricção e o dialogismo para transformar a ponta da Paraiba em palco de um teatro que nos lembra do cinema das origens: a estética das atrações, a brincadeira circense, o espectador (in)crédulo descrito por caras como o Tom Gunning. A obra nos convida a participar, brincar e pensar. E é divertido pra caralho. Evoé.
Fungos possuem vários núcleos que se expandem no caos do solo. Vermelho Bruto (2022), filme de Amanda Devulsky, parece se organizar a partir de um gesto de montagem marcado por esta multiplicidade fúngica. Trança de imagens e sons numa experiência cuja origem lembra o crescimento de organismos multicelulares. Universos em expansão que também são sugeridos pelas aparições de imagens do espaço sideral e suas constelações, planetas e galáxias. Um amigo me disse que tomou cogumelos para assistir à sessão no Cine Tenda de Tiradentes. Uma forma acertada de se aventurar com esse filme.
A documentarista elaborou um jogo de filmagem entre quatro mulheres de diferentes trajetórias sociais que, no entanto, tornaram-se mães durante a adolescência, na década que sucedeu a redemocratização do Brasil. Em 2018, seus arquivos domésticos entram numa alquimia com registros de suas vidas atuais em Brasília.
O experimento de Devulsky efetua um choque de temporalidades ao articular cacos do passado de suas interlocutoras no presente – justamente no ano em que Jair Messias Bolsonaro foi eleito, acontecimento que marca o início de um período de ressurgimento do nazi-fascismo no Brasil que, sabemos, nunca foi de fato exterminado pelas forças progressistas. Algo notável na epopeia bordada pela montagem de Amanda Devulsky e Luisa Marques é que, ao realizarem uma entrega radical à concretude dos arquivos a partir de uma práxis de montagem caracterizada por conexões parciais e associações livres, nos mostram contaminações entre memórias pessoais com os caminhos da história social do país num ritmo para se curtir, viajar, pensar. Criar entre os arquivos uma movimentação sensual – de perto e de longe.
Clarice Lispector escreveu que Brasília não é bonita nem feia, pois é a imagem de sua insônia: seu espanto. Uma ficção científica, um delírio: a dupla Lúcio Costa e Oscar Niemeyer teriam erigido, em vez de beleza, seu espanto. E assim deixaram o espanto inexplicado. Vários dos registros colecionados e remixados no filme carregam a marca deste assombro originário da cidade modernista. Uma das protagonistas, empregada doméstica, caminha à noite entre as quadras do Plano Piloto. Ela filma sua perambulação e descreve o que observa. Nos diz que saiu do trabalho tarde e nota que as famílias ricas já estão com as luzes de seus apartamentos acesas. Estão no conforto do ambiente doméstico enquanto ela bate perna entre o trampo e sua casa na periferia do DF. Cada um na sua realidade, diz a mulher. Outra cena mostra, a partir de um movimento horizontal de câmera, uma série de ministérios iluminados por uma luz vermelha. A Esplanada dos Ministérios ganha um aspecto macabro.
Este é um filme também de caminhos e descrições. As mulheres cujos movimentos no tempo e no espaço perseguimos adotam uma postura descritiva com seu entorno. As câmeras assumem uma função investigativa e experimental. A vida se torna, assim, uma interrogação. Observamos recorrentemente a presença do chão, dos caminhos e dos pés das protagonistas que perambulam, filmam, narram suas vidas e desenham pequenas janelas para olhar o Brasil desde sua capital, espaço emblemático por ter sido a suposta alvorada de uma nova nação moderna no passado recente, território tão complexo quanto desigual que o cinema contemporâneo do Distrito Federal, em figuras como Adirley Queirós, Dácia Ibiapina e a própria Devulsky, transformou em posto de observação crítica da República.
Palimpsesto como operação figurativa. Um dos recursos expressivos que caracterizam a tessitura desta obra é a interposição de imagens. Registros caseiros são rasurados recorrentemente com outras imagens, sobretudo retratos das protagonistas que, no entanto, quase nada mostram de suas faces. São fotos de cantos, imagens abstratas.
Confluências e dissonâncias. Há uma relação de dissonância entre as experiências das mulheres que se filmam no que diz respeito, sobretudo, à classe social, território e raça. Mas as coisas encontram confluências na montagem. Os temas vão se amalgamando: maternidade, família, ideologias, militares, democracia, eleições. É um filme polifônico que coloca os fiapos de experiência em diálogo, mas também em tensão.
O vermelho aparece como fantasma. A cor se insinua em diferentes momentos, seja rasurando registros domésticos em borrões ou fades para o vermelho – que, no entanto, nunca se concluem! Outra característica dos fungos é a indeterminação. O vermelho no filme é errante e concreto, simultaneamente. É vermelhidão e nada mais: o chão do DF é vermelho.
Lisergia das imagens. Em vários momentos cogumelos se abrem em desenhos coloridos. Preenchem lacunas entre fragmentos de memórias. Intervalos bonitos que nos fazem deambular o olhar pelo quadro e viajar na escuta do testemunho das protagonistas.
O som faz o espaço. A articulação entre imagens e sons numa pegada atmosférica cria a sensação de um fluxo que nos convida a uma habitação provisória nesta espécie de lugar de memória virtual. O desenho de som traça conexões parciais entre o cinema e a instalação, o filme e o labirinto.
A articulação final da obra é uma das sequências mais bonitas do cinema brasileiro recente. Uma mulher fala e se filma fumando um cigarro a partir de um enquadramento vertical que entorta sua imagem. Ela reenquadra a cena ao filmar o que é uma das características marcantes das paisagens das periferias de Brasília. O horizonte mostra um fiapo reto de luzes da cidade, tal qual um corte amarelo no breu da noite. Essa horizontalidade da paisagem urbana distante do DF é bagunçada pelo ângulo vertical do registro. A cidade se inverte imagéticamente. Ela diz que não quer mais namorar, pois quer ser livre para ir para onde quiser. Relata que uma amiga cobrou seu sumiço. Daí escutamos: “Tô sumida não. Só estou andando por outros caminhos”. Um lampejo de seu sorriso rasga o ecrã e o filme acaba. Tela vermelha, que logo se converte em preto.
Devulsky fez memórias dançarem. A matéria de Vermelho Bruto é, ao fim e ao cabo, a experiência: sangue e chão em movimento.
No início era tela preta. Pode o cinema produzir estados alterados de consciência e corporalidade? Caixa preta busca inventar efeitos no corpo de seu público – cérebro, barriga e pés pisando-pisantes. Tal qual um poderoso psicotrópico, a fita mexe conosco, provoca, brinca, faz dançar e faz pensar. Faz curtir e faz viajar. Abre a mente e fecha o corpo num mundo que cada vez mais se assemelha a uma sucessão de trincheiras. Pois o cinema, em suas melhores performances, nos chama pra dançar sentados no escuro. E é na tela preta que nós mergulhamos, tal qual uma aventura. Quem topou a alucinação tem história pra contar.
A obra de Bernardo Oliveira e Saskia é um filme do século XX: fita que deseja mostrar sem representar. Estética das atrações, choques e confluências. No preâmbulo do média-metragem que estremeceu o Cine Tenda no início da 26 Mostra de Cinema de Tiradentes, lemos uma cartela que nos joga no fluxo das origens. O começo é o caos e, diante dessa premissa, a arte parece buscar traçar planos ou trilhas nessa bagunça originária. Trata-se de uma obra compósita que nos desafia a uma tarefa difícil, mas cada vez mais sedutora: explodir a racionalidade cartesiana através dos rastros expressivos da diáspora africana num mundo pós-colonial. Tentar explicar este filme já configura, de antemão, um grande vacilo. Temos que navegar, dançar, sonhar. “Pode dormir. Quem não dorme não sonha”, disse Bernardo Oliveira ao apresentar a peça.
Já Saskia provocou o público que encheu a tenda de Tiradentes: “grita aí galera!”. Eu lancei um berro e é assim que começamos: Caixa Preta produz uma estética do grito e do remix. É a ação contra a representação. A mão que monta é a mão que narra. Este é, sem dúvidas, um filme de arquivos. Mas parar por aí seria, logo, outro vacilo. O que Saskia e Oliveira fazem com os arquivos é o que importa. Artistas versados no som, eles terminaram por montar um filme como se fosse uma mixtape. Se hoje tudo é arquivo, o que resta é samplear o passado no presente.
O filme da dupla articula um volume pesado de registros em variados formatos numa brisa cheia de bugs e glitches, misturando numa alquimia imagens da internet, áudios de variadas origens, vozes dos outros e de um dos diretores que canta e declama, evoca, chama. Convida a habitar a tela preta: origem dos mundos?
O que encontramos é uma espécie de atlas mnemosyne da pretitude que canta e faz caminhos. Sempre no plural, fazendo da curva e da esquina dos arquivos a nossa morada provisória. É um filme para se curtir como se estivéssemos numa festa. Remix pra dormir, sonhar, beijar, transar, gritar, cozinhar, caminhar, estudar: postergar a morte e o sofrer. Se fôssemos destacar uma sensação que aparece na experiência de assistir Caixa Preta, eu diria: tesão. Mas um tesão pelo som, pela colagem de imagens e áudios, pelo passado e, quem sabe, pelo futuro. O som é físico e faz o corpo vibrar. O cérebro fica doido e o prazer das montagens de coisas aparentemente incongruentes nos mostra o poder da estética do remix, traço caligráfico, com variações estilísticas que não podem ser esquecidas, de certo cinema contemporâneo no Brasil. Uma bomba sensorial que ensaia um constante recomeço para aumentar a frequência do mundo. Caixa Preta faz da errância a forma de sobreviver no mundo da arte e da política. Como cantou Tantão: “volume é drama”.
Falar de sexo envolve tantas vezes falar desse lugar nebuloso que é o desejo de ser, ao mesmo tempo, Sujeito (o que produz os significados, o que deseja e que fode) e Objeto (sobre o qual os significados são projetados, o que é desejado e fodido). Se tudo dá certo, essas posições vão se intercambiando numa transa ou romance. Desejamos, sim, a libertação do corpo e da mente, mas também a prisão da idealização alheia. É uma contradição da qual o capitalismo tardio adora se aproveitar, projetando sobre corpos e pulsões a ilusão – muito bem sustentada pela indústria de massa – de satisfação pelo acúmulo de propriedades e amantes. E nos oferece uma solução que lhe é muito oportuna: quanto mais eu (me) vendo, mais eu consigo obter. É uma dinâmica de consumo (atenção à polissemia da palavra: “aquisição”, “gasto”, mas também “destruição”, “desaparecimento”) recíproco de corpos; quantidade sobre qualidade, status sobre intimidade, e por aí vai. O novo Regra 34, de Julia Murat, apesar de atravessado por esse embate, parece se interessar muito pouco por suas nuances.
Simone (Sol Miranda), nossa protagonista, é uma jovem estudante negra de Direito que acabou de passar no concurso de defensoria pública com o suporte financeiro de seu trabalho noturno como camgirl. Ela gosta do trabalho sexual – ponto que não devemos nunca ignorar -, e, após contato com um vídeo em específico, passa a incorporar a aplicação de dor e sofrimento à sua prática sexual. Se a premissa por si só já é forte, é porque trata do cabeludo cruzamento entre muitas coisas: sexo, política, privado, aparato público, significados históricos do corpo, a autoimagem pornográfica, performance, os extremos da carne, entre outras coisas ainda mais. A separação em tópicos me salvará de uma síncope:
Como posto acima, Simone gosta do trabalho de camgirl. É importante, assim, saber separar o gosto pela performance sexual e o gosto pelo sexo. Obviamente, o estilo de seu trabalho não é o mesmo do da indústria pornográfica tradicional, uma vez que a autonomia envolvida reduz – ou anula – a chance de abuso hierárquico. Não há a chance de um diretor/produtor/ator pressioná-la ou obrigá-la a submeter-se a cenas violentas; no máximo, há a poda da plataforma. Tratar, entretanto, o gosto pela atividade no Chaturbate em equidade ao gosto por fazer sexo é como dizer que o gosto por atuar é o mesmo gosto por viver. O elemento definitivo entre os dois é esse distanciamento ambíguo que abraça algum artifício no objetivo de capturar o olho do outro e que, muitas vezes, cria um olhar externo de si enquanto se vive. Na performance, um corpo torna-se Objeto para que seja Sujeito uma dança, um canto, uma personagem, um texto (no caso da pornografia de Simone, o fetiche alheio). No início, acreditei ser um ar performático geral algo abordado pelo filme. Os diálogos não muito críveis, moldados numa rigidez que contamina a direção de atores, pareciam tratar esteticamente do peso do artificial projetado também sobre a rotina, do âmbito privado infectado pelas falas comuns roteirizadas, pelos vícios comportamentais (a citação por Lucia de uma frase que refere falsamente a Frida Kahlo; quando Lucia e Coyote dançam sozinhos, em planos individuais, antes de se beijarem e atraírem Simone para um ménage: corpos solitários e ensimesmados que “se apresentam” para se encontrar). Mas, à medida que avança o filme, percebemos recair o foco sobre questões de outra chave, e essas ambiguidades que pareciam estar sendo propostas são abandonadas.
O corpo da personagem principal é atravessado pelo antagonismo entre o peso da imaculável/descarnada burocracia legal (expressada, às vezes, pelo posicionamento das pessoas no extremo inferior dos enquadramentos, afogadas pela parede) e a desnuda, penetrável, mutilável pele da vida sexual[1]. O filme aproveita o choque entre esses dois polos pelos cortes bruscos entre as sequências em sala de aula/defensoria e as da intimidade em espaço privado. Mas a complexidade que o cruzamento dessas diferentes existências envolve não parece trazer grandes turbulências ao arco do filme: o mundo privado é um, o laboral/legal é outro. Os dois não se misturam, não se contagiam, não se complicam. Apenas entram em choque por justaposição, como estruturas imanentes de funcionamento. Não existe a chance de Simone abrir uma mensagem ou vídeo safado no trabalho, ou olhar para um colega com malícia no escritório; nem, por exemplo, criar alguma burocracia involuntariamente nas suas práticas sexuais.[2] Coyote (Lucas Andrade), colega da faculdade de direito, é seu amigo colorido, mas, novamente, isso não afeta sua companhia ou presença em sala de aula. Por isso, Simone é quase barroca, com a diferença que sua dualidade libidinal não vira conflito, é apenas um traço “disruptivo” da personagem. As demais desconstruções estão todas em discussões com chefes de trabalho, professores de direito, colegas da universidade e a amiga Lucia (Lorena Comparato). Um filme sobre a proximidade entre o corpo carnal e o institucional, postos como imunes um ao outro e em cheque apenas verbalmente, nunca por ação ou circunstância de cena. Daí a rigidez dos diálogos, não há acaso abalando sua forma cartesiana de tratar os tantos movimentos da premissa. O funcionamento usual das conversas é o seguinte: Simone acha “x”; Lucia acha “y”; nenhuma dá o braço a torcer; uma das duas vai embora. Essa dinâmica se repete em outros casos de conversa, terminando geralmente em silêncio rancoroso. Mas, entre as amigas, a saída no meio da conversa acontece ao menos três vezes (quando Simone tenta atiçar a raiva de Lucia no beijo, quando discutem sobre a possibilidade de redenção de abusadores na varanda de Lucia, quando Lucia confronta Simone após vê-la deprimida e de corpo marcado). Os conflitos são todos verbais – e binários, à medida que nenhum parece ser suportável para as partes envolvidas a ponto de ser resolvido. Quando as coisas não terminam em saída ressentida, terminam em ebriedade e pegação. Ou seja: em abstenção. As questões sociopolíticas e psicossexuais são tratadas, a rigor, pela linearidade dos diálogos entre personagens sem qualquer maturidade emocional.
Eis que o filme escolhe pela irresponsabilidade da protagonista nas suas aventuras pelo BDSM. Entre os conhecedores da prática, é sabido ser o respeito à consensualidade a sua chave central. Ela é o único elemento que separa a aplicação de dor, sofrimento, humilhação e dominância do abuso; que faz com que seja a prática de uma fantasia e não de uma verdadeira violência. O controle precisa ser desejado por quem é controlado, e a confiança entre as duas partes permite esse afloramento. Apenas a firmeza do pacto entre as duas partes garante ao submisso a posição de Sujeito dentro da objetificação voluntária: o respeito ao seu “basta!” (geralmente a famosa “palavra de segurança”), muita conversa para compreensão dos limites, manifestações de carinho no meio ou após a sessão, etc. Se o tom lúdico da prática ficar sequer turvo, pode acontecer o que chamamos de “sub drop”: uma queda hormonal súbita que causa sintomas variados, de insônia e crise depressiva a espirros e tosse. Isso explica o choro copioso de Simone após uma descontrolada sessão de sexo violento com Coyote transmitida online. Existe uma amiga de Simone, Nat (Isabela Mariotto). Ela que lhe manda o vídeo de aplicação de dor, e quem constantemente avisa sobre o cuidado necessário na prática para a autopreservação. A protagonista voluntariamente recusa os conselhos e, por conta disso, entra por livre e espontânea vontade em ciclos de hostilidade sexual sem limite definido, com margem para ser abusiva e abusada. Não se trata do contraditório movimento de encontrar liberação na constrição, ternura no sofrimento, pulsões de vida na dor. O movimento do filme coopta o sexo e a pulsão de morte, estabelecendo uma gradual jornada suicida atravessada pelo consumo do corpo de Simone (virtualmente desde o começo, concretamente com o desfecho). Num filme que mostra ter feito suas pesquisas básicas sobre o BDSM (pois existe uma figura que alerta sobre a prática segura e responsável, e existe uma cena com o “sub drop”), por que – e a quem – interessa que a protagonista renuncie à própria segurança – e, em última instância, a seu lugar de Sujeito nessa jornada – e se ponha no lugar de completa objetificação?
Regra 34 é o primeiro vencedor brasileiro do Leopardo de Ouro em 55 anos, desde Terra em Transe, de Glauber Rocha. Numa mesa redonda da ArtRio do ano passado[5] (um evento de arte e mercado assim como Locarno ou Cannes), o historiador de arte Igor Simões pontuou a predominância massiva de obras figurativas de artistas pretos – todas, naturalmente, envolvendo pessoas e arquétipos pretos pintados. A observação não era uma crítica sobre es pintores, mas sobre a rejeição curatorial de uma arte preta abstrata. Aponta não só uma recusa dos seus potenciais de leitura do mundo, do pensamento e da arte como um todo, mas também a predileção para a exposição e venda do corpo negro (se não mais da sua carne, da sua figura pintada ou esculpida). Uma cutucada ao evento, e aos mecanismos da supremacia branca operantes, aqui, na forma de tendência de mercado. Regra 34 fez a fala de Simões ressoar em minha cabeça, à medida que não se aprofunda no ciclo de consumo que atravessa os corpos filmados, mas, mesmo assim, apresenta corpos que desesperadamente querem ser consumidos. Trata-se de um filme que aborda as contradições desse desejo, ou de um que só raspa a superfície disso como subterfúgio do consumo desses corpos?
[1] Curiosamente, por esse amálgama também é atravessada a figura da atriz, Sol Miranda, candidata a deputada federal pelo PSol em 2020 e pelo PSB em 2022.
[2] Impossível não lembrar de “Seguindo Todos Os Protocolos”, de Fábio Leal, um dos grandes refrescos do cinema brasileiro do ano passado. O conflito entre o movimento erótico e a moralidade política é ponto chave do longa e ele é posto com muito êxito num único corte: um jump cut faz a tela do laptop do protagonista Francisco sair do pornô para um informe de 200 mil mortos por COVID-19; a tragédia coletiva embarreirando o tesão no virtual (aponto, novamente, a polissemia de “virtual”: “do meio eletrônico”, mas também “do espaço mental”, “da potência não realizada”). Decerto, em algum momento, o erotismo ganha enfim lugar material no apartamento de Francisco, mas com as idiossincrasias obsessivas decorrentes de seu medo do contágio: tentar transar com um plástico entre ele e o outro cara, necessariamente usando máscara, etc.
[3] Vale a pena mencionar o excelente texto de Geni Núñez acerca do erotismo no catolicismo, que tem chave na repressão, submissão e controle, e de suas semelhanças e diferenças com a prática BDSM. Disponível em: <instagram.com/p/CmmgVEPPkGF/>.
[4] [SPOILER] Simone, em troca de 20.000 tokens, oferece a um fã do Chaturbate (que afirmou em áudio querer muito vê-la sofrer) ir à sua casa e fazer o que quiser com ela: “A regra é que não tem regras!”. O filme termina num close up da protagonista prestes a abrir a porta sob batidas furiosas. O corte para os créditos se dá nela sorrindo, indicando que está tentada. Retomemos os sentidos de “consumo”: ela foi adquirida, e será potencialmente destruída. A conotação escravista do desfecho é evidente.
[5] Conversas ArtRio: Artista Negro, Galerista Branca. O debate parte de um quadro do pintor cuiabano Gervane de Paula, cujo título dá nome à mesa redonda. Conversa disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=k9ZlGXD2Buk>.
Na superfície, Avatar (2009) não destoa muito dos blockbusters recentes, treze anos depois do seu lançamento original: seja pela onipresença da intervenção digital, pelo uso de 3D, ou pela duração de mais de duas horas. Sob outros aspectos, no entanto, é um objeto estranho no contexto do cinema de franquias.
Com relação à narrativa em torno do filme, temos de um lado a marca autoral de James Cameron, em oposição aos diretores (geralmente) intercambiáveis empregados pela Disney[1], por exemplo. Ao invés de um cronograma de quatro lançamentos anuais, um perfeccionismo que exigiu quatro anos para a produção do primeiro longa e mais de uma década para a entrega da continuação. Seria fácil exagerar e romantizar indevidamente esses contrastes, mas talvez a única sabotagem possível no capitalismo tardio seja justamente algum grau de ineficiência.
Enquanto o público contemporâneo foi gradualmente condicionado a esperar pelo retorno cíclico do já conhecido, de personagens, histórias e cenários familiares, Avatar entregava novas vistas: a topografia insólita, a fauna e flora cujas características se embaralham, uma multiplicidade de cores e fosforescências, a exploração do 3D. Se há uma cena que encapsula essa profusão, é o momento no qual o herói busca se conectar com uma das feras aladas: depois de transporem uma cachoeira, os Na’vi se concentram em um dos cantos do quadro enquanto um novo panorama se descortina do lado oposto. Há movimento e formas estranhas vindo de todas as direções, acompanhados por oscilações da “câmera”. São imagens que seguem inusitadas, talvez por não terem sido canibalizadas até o momento em continuações, prequelas ou spin-offs. Ou talvez por possuírem algo de único e fugidio e que dificulta que sejam engarrafadas em série. Os detratores de Avatar costumam menosprezá-lo justamente por essa suposta falta de “pegada cultural”, como se o citacionismo nerd e decoração de festas de aniversário fossem métricas indiscutíveis de valor.
Outra crítica recorrente é apontar os clichês do roteiro escrito por Cameron, mas em 2022 vários desses elementos genéricos parecem menos usuais, à medida que Hollywood se afasta dos tipos de filmes que fabricou por décadas. Mesmo a postura anti-establishment do enredo, que poderia ser lida como tímida ou inconsistente, se revela mais certeira com alguma boa-vontade.
Uma cratera na memória racial
Logo antes da última briga, o vilão pergunta ao herói: qual a sensação de trair a própria raça? A palavra poderia estar se referindo tanto à espécie (à raça humana) quanto à sua condição de branco. Os dois sentidos cabem no contexto, aplicados a um protagonista que havia rejeitado tanto o antigo corpo quanto o ideário do Destino Manifesto.
Tudo isso está no primeiro plano do enredo, reiteradamente e sem subterfúgios. Vale lembrar, no entanto, que certo grau de anticolonialismo, pró-ambientalismo e simpatia/condescendência pelos povos originários já circulavam havia décadas pelo cinema de Hollywood. A carga polêmica desses temas já estava tão esvaziada a ponto de render tratamentos como o oscarizado Dança com Lobos (Kevin Costner, 1990) e a animação Pocahontas da Disney (Eric Goldberg e Mike Gabriel, 1995) – tantas vezes comparados a Avatar em tom de deboche. Nesse tipo de filme, os genocídios costumam ser retratados como uma História confortavelmente distante, sem comunicação ou comparabilidade com os dias atuais. A produção de Cameron, ambientada mais de cem anos no futuro, talvez pudesse ser lida assim, como simples alegoria do passado, um faroeste revisionista sob uma capa de ficção científica.
Mas há elementos extemporâneos que desafiam essa interpretação. Por exemplo, quando o vilão orienta as suas tropas a destruir a árvore que é o centro da vida material/espiritual dos Na’vi, se vangloriando de que assim criarão “uma cratera na memória racial” dos nativos. Se a retórica dos tempos coloniais e neocoloniais ainda cultivava a farsa da Missão Civilizatória, a fala do coronel reflete um raciocínio que não só reconhece a própria crueldade como a instrumentaliza em nome da eficiência, a exemplo da política de Choque e Pavor (Shock and Awe), em voga durante as duas invasões do Iraque e diretamente citada por outro personagem ao longo do filme.
Boa parte dos soldados que recebem essas ordens de extermínio é negra, detalhe tão tétrico quanto apropriado (uma vez que representam 12% da população dos Estados Unidos, mas 21% das forças armadas da ativa[2]) e evidenciado em mais de um contraplano. Tanto o discurso militar quanto a composição étnica desse exército privatizado ancoram Avatar no presente. Tendo como referentes simultâneos a conquista do Oeste e as guerras do século XXI, Cameron situa a invasão de Pandora em uma História contínua de depredação.
Uma vez reconhecida a carga política de Avatar, também é necessário admitir o óbvio e dizer que a maior bilheteria de todos os tempos possui limitações como discurso anticapitalista ou polêmica racial, narrando uma história de salvador branco que se revela mais índigena do que os próprios indígenas. Cameron também perpetua aqui o mito no qual o anticorpo necessário para enfrentar a brutalidade dos invasores brancos é um invasor branco com uma dose extra de valores progressistas.
Ainda assim, há imagens que articulam uma perturbação genuína, como as dos animais em chamas após o ataque à árvore-ancestral, semelhantes às do holocausto ambiental que se intensificaria a partir de 2020 na Amazônia. Sempre se falou sobre o potencial (e perigo) da ficção como doutrinadora ideológica, mas qual a extensão dessa influência, caso ela se exerça? Como as pessoas que viram e reviram Avatar conciliam a clara mensagem pró-ecológica e seus próprios posicionamentos políticos? Mesmo considerando as várias camadas de desinformação e negacionismo envolvidas, podemos imaginar que pelo menos parte desse enorme público foi capaz de processar as ideias propostas pelo filme e mesmo assim reagiu com indiferença, considerando-as impertinentes ou inaplicáveis à realidade.
(Reassisti Avatar em setembro de 2022, em um multiplex de Brasília, em sessão razoavelmente cheia. Poucos dias depois o candidato derrotado à reeleição para presidente receberia quase 52% dos votos no Distrito Federal. Em 2018, esse percentual havia sido de quase 70%.)
Não é raro que cinéfilos de esquerda consumam filmes com graus variados de conservadorismo, cativados pela narrativa, por interesse estético, histórico, pelas neuroses desse discurso, por masoquismo e, ocasionalmente, identificação – relações que também devem se verificar ao longo de todo o espectro político.
Nunca foram modernos
Em Pandora, os Na’vi estão conectados aos animais e vegetais que os cercam – mas isso acontece pela via de um rabo de cavalo que é simultaneamente penteado e cabo USB. Os seus antepassados seguem vivos na grande árvore, mas isso é aferível graças a impulsos elétricos mensurados pela equipe de cientistas. Avatar habita essa contradição: valida outras perspectivas, na contramão do racionalismo clássico, mas para isso, recorre ao lastro desse mesmo racionalismo. Há sobrenatural e saberes ancestrais, mas como territórios a serem conquistados pela ciência.
Há pelo menos duas formas, que não se excluem mutuamente, de interpretar essa postura. A primeira seria ressaltar a inconsistência, alojada sob a boa intenção. A segunda é avaliar o que acontece com essas descobertas científicas no contexto do enredo, desconsideradas e ridicularizadas assim que se tornam inconvenientes para os interesses econômicos em jogo. Há aqui, mais uma vez, um exemplo do saldo geral de Avatar: para cada elemento simplista, outro momento lúcido e onde cada lugar-comum pode ser tornar vívido graças à inspiração visual e narrativa.
Cena pós-créditos: impressões após assistir Avatar: O Caminho da Água (2022)
Vi o segundo filme pouco depois da conclusão do texto. Seguem minhas impressões sobre como ficaram os temas desenvolvidos acima, à luz do novo episódio:
Há um bom número de repetições em Avatar 2: da estrutura, de situações e personagens (do vilão, inclusive). Se parte disso pode ser atribuído a inércia própria das continuações, em pelo menos um caso enxergo mais uma reiteração pertinente do que falta de originalidade: ainda no prólogo, vemos novamente os animais e a mata incendiada, uma imagem cujo horror se renova a cada vez, dentro ou fora do universo ficcional — e que deve ter continuado a assombrar James Cameron.
Com relação à política, desde o primeiro momento não há qualquer ilusão de convivência pacífica: a invasão humana já começa brutal e encontra como resposta imediata atos de terrorismo. Posição bem mais direta do que o típico deixa-disso centrista predominante no cinema/discurso mainstream.
Na trama original, cada ideia “radical” parecia conviver com outra mais conservadora. Essa dinâmica se repete na nova história, mas o polo menos convencional tende a ser favorecido. Os êxtases da filha adotiva do herói são diagnosticados pelos cientistas como epilepsia, explicação que é desautorizada mais à frente. Jake Sully prioriza a família nuclear em detrimento da tribo e do povo, mas tem algumas de suas convicções postas em cheque ao final da intriga.
Avatar 2 conecta mais uma vez o capitalismo passado e contemporâneo. A caça aos tulkuns combina séculos de pesca às baleias (especialmente a extração de espermacete) em cenas que detalham um processo tão cruel quanto eficiente de chacinar animais pelo lucro. Não por acaso, a eventual desforra contra os soldados e baleeiros será mostrada de forma igualmente clara e cruenta, com certo prazer vingativo.
Há um peso incomum na ação e na violência em cena, especialmente em comparação com a falta de densidade prevalente nas últimas décadas de cinema de entretenimento. Costuma-se atribuir essa falta de gravidade ao uso de CGI, mas Cameron e equipe demonstram que é possível criar um mundo ficcional convincente com ferramentas digitais. Não me parece coincidência que um tal resultado seja obtido por um diretor capaz de articular, em suas imagens, reflexão e revolta genuínas sobre a realidade que nos cerca.
[1] Ironicamente, uma vez que a Disney absorveu a 20th Century Fox em 2019, Avatar também virou mais um ativo do estúdio.