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IMO (2017) – Bruna Schelb Correa

por Pedro Tavares

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Durante o debate sobre Era Uma Vez Brasília durante a 21ª Mostra de Cinema de Tiradentes, o diretor Adirley Queirós afirmou o seu interesse pela negação da fala e a incompreensão. Poucas horas depois veio IMO. Um filme totalmente dedicado ao jogo de compreensão, debruçado no lugar social e o contexto histórico feminino. Surpreende que em um filme com esta proposta encadeie em sua abertura e encerramento seus momentos mais claros a respeito desta proposta. Na mesma mata, por onde os créditos passam está o suposto paraíso de onde Adão extinguirá Eva como um canibal e que oferece espaço para uma assombração.

Dividido em três atos, IMO é simples nos seus códigos – há de entender ou não, mas em algum momento a resposta virá. Mesmo que não seja a resposta desejada. E nestes códigos existem momentos muito interessantes como a opressão de um telefone sucedido por uma voz masculina que também oprime; a mão masculina que inibe o desejo – nem sempre uma maçã é o símbolo do pecado -, ou a obrigatória vaidade (se o olho te faz pecar, arranque-o).

IMO é um filme que sugere a reflexão dos componentes de sua fórmula: a História, o lado social e, entronizadas, como as performances podem potencializar qualquer intenção de discurso ao abolir por completo as palavras – um crescendo que culmina numa cena de jantar onde uma mulher é o banquete. É a ideia de que o mundo agora demanda este arquétipo, talvez o mais passível de uma compreensão não rebelada – mais como um ponto final a uma discussão que se estende nos últimos anos.  Portanto, se o gesto é a forma mais genuína e o corte o caminho mais claro para a formatação deste discurso, IMO também é um filme que invariavelmente está em função da reencarnação de um cinema como uma defesa efusiva e não como um ataque direto – provavelmente a porção mais ativa do cinema brasileiro contemporâneo.

O filme de Bruna Schelb Corrêa é, portanto, mais sobre o exercício de filmar o que se deseja e a lógica de seu valor imagético e como ele chegará aos espectadores, suficientemente vivo para justificar-se silenciosamente. À imagem, sua força e verbo. Em tempos que muito se fala e pouco se ouve, é um filme necessário.

Visto na 21ª Mostra de Cinema de Tiradentes

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NAVIOS DE TERRA (2017) – Simone Cortezão

por Gabriel Papaléo

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Os lugares de trabalho e a relação emocional distante com quem os utiliza. Existe o diálogo forte com a tendência contemporânea da observação de ações cotidianas de trabalho cujo maior força foi o cinema de Lisandro Alonso com La Libertad (2001), e toda a contextualização do navio cargueiro, com suas sombras e mecanismos hostis, confere toda a atmosfera mística palpável que os filmes do argentino tem de melhor.

O rigor formal da diretora Simone Cortezão no scope é contundente e intui todo um mundo ao redor apenas pela sugestão, através do desenho de som que lembra sempre da influência do mar e o isolamento que isso traz, e os planos mais abstratos remetem a filmes como Behemoth (2011) nessa proposição de um ambiente apocalíptico construído apenas de fragmentos de máquinas. 

Navios de Terra torna-se um filme menos interessante, no entanto, quando usa do texto para evidenciar suas metáforas sobre o mercado e o peso do capitalismo na vivência dos que o mantém girando; a postura sisuda dos personagens, os monólogos sobre montanhas e afins, a exacerbação da metáfora numa fala particularmente expositiva – quando o protagonista “confunde” os contêineres à montanha da associação com a jornada infinita do trabalhador no capitalismo, uma historia recorrente durante a narrativa.

O registro da China no ato final, desestabilizado e agressivo com sua textura que remete a do celular, traz novas ideias ao filme justamente por economizar nos diálogos, ao propor um descobrimento aos poucos de um mundo distante em visual, temática e principalmente linguagem. A difusão da narrativa entra em conflito com a concentração inicial, e libera Cortezão para explorar a dimensão mitológica de uma terra estrangeira temporária. Essa intenção vem com reducionismos como do velho asiático sábio no pé da montanha – o que desbalanceia a narrativa – mas mesmo que se perca quando explicita sua vocação ambiciosa no tom Navios de Terra propõe um mundo sempre a instigar.

Visto na 21ª Mostra de Cinema de Tiradentes

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MADRIGAL PARA UM POETA VIVO (2018) – Adriana Barbosa, Bruno Mello Castanho

por Gabriel Papaléo

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Logo no prólogo, Madrigal para um Poeta Vivo relaciona toda a ideia de um homem que encontra a comunhão de sua alma com a natureza, que apenas pelo andar nas pedras de um rio já denota uma intimidade com o ambiente.

Que a fuga do escritor Tico não seja naquele molde de escape da cidade mas sim um refúgio na natureza apenas como lazer momentâneo, já demonstra que o interesse daquele homem não é fugir da realidade dura que tinha no alcoolismo, morando na rua, ou estando num hospital psiquiátrico; o enfrentamento é a bandeira do escritor, sua dor não é glamurizada como ferramenta de trabalho, e ele faz questão de negar os clichês do processo de escrita – o que inclui esse retiro espiritual pra natureza como forma de clarear os pensamentos.

O filme de Adriana Barbosa e Bruno Mello Castanho é muito feliz ao retratar as visões da mídia televisiva sobre Tico, tendendo sempre ao discurso legitimador de uma ideia de mérito na jornada dupla de trabalho como coveiro e escritor, na felicidade fabricada diante das circunstâncias mais adversas do cotidiano difícil do protagonista – e é nessa sinceridade de apresentá-lo focando no processo de escrita, no encantamento do olhar dele para com o mundo, que o filme ancora sua força.

É quando procura uma personalidade imagética diante do relato que a encenação do filme se dissolve. Existe força inegável na jornada do escritor, ainda mais no caráter elegíaco da obra póstuma, mas parece que a câmera baseia toda a estrutura do filme em manter-se na superfície da sedução das palavras de Tico. Tudo é muito singelo nesse retrato carinhoso com a morte do escritor, mas as entrevistas e o tempo dilatado de inúmeras divagações anti-sistema do protagonista expõe uma montagem que esgarça a concisão do curta Ferroada, exibido em Tiradentes ano passado, e que cujo material é praticamente similar ao de Madrigal.

A dissonância vem menos do projeto ser evidentemente uma versão dilatada de Ferroada, e mais pelo olhar de Tico não ter encontrado um paralelo nas imagens que sugere. É muito menos um poema ou um madrigal, e mais um tributo – e como tal se limita quando investe na informação emocional dos depoimentos.

Visto na 21ª Mostra de Cinema de Tiradentes

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INAUDITO (2017) – Gregorio Gananian

Por Pedro Tavares

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Em 2016, Paula Gaitán dirigiu o longa Sutis Interferências, uma espécie de filme No Wave para o músico Arto Lindsay. Uma dissonante versão de Blank Generation (Amos Poe, 1976). Um ano depois, nasce o seu filme complementar: Inaudito investiga as mesmas dissonâncias por caminhos inversos através da figura de Lanny Gordin. O filme apresenta o protagonista através de uma cartela, mostrando sua importância no processo de transformação de músicos como Gal Costa e Gilberto Gil. Em diante, o que se vê é puro encadeamento de signos e sensações.

A Lanny Gordin está a câmera; para nós, sua liberdade – uma liberdade desafinada, mas que o próprio diz apreciar. A Gregório Gananian cabe levar uma reserva de experimentos como forma de ilustrar o estado de espírito de seu protagonista durante a odisseia de Gordin na China (país de nascimento) e Brasil (país de amadurecimento). Surpreende que em Inaudito há um filme de ficção incompleto; uma compilação de momentos e performances que cabem à sugestão de uma antologia sensorial.

Embaraçados, o “filme aberto” e a “ficção” servem mais como uma oferta ao seu objeto de análise que um grande tributo. Lanny, em seu mundo free justifica qualquer tentativa de Gananian de se aproximar deste núcleo que o personagem apresenta – ou diz apresentar – à sua maneira. Sentenças e mais sentenças, uma maneira de dialética a favor do que a câmera busca – ou teima em buscar.

Inaudito não é um filme de progressões; ele vai ao extremo oposto, no princípio de performances monocórdicas e carregado de uma certa nostalgia nas palavras de Lanny Gordin. O que o personagem estima é a liberdade e o que Gananian faz é achar as formas e meios de encontra-la ao recuperar sua história.


Visto na 21ª Mostra de Cinema de Tiradentes

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O AUTOR ATERRORIZADO: SUBYBAYA

Por Bárbara Felice

Subybaya (2017) começa com o som de um VHS sendo rebobinado. Voltar, chamar a atenção pro objeto, pro dispositivo; retomar, restaurar, manipular uma mídia. A questão de gênero é a próxima informação que apresenta a protagonista: uma mulher cisgênero sai de um banheiro masculino. Me engajo e espero por experimentações e revisões do olhar cinematográfico misógino, que ocupa tanto o cinema comprometido com a invenção estética quanto aquele de prioridades industriais.    

É um tom de escracho que paira. A personagem feminina dá ao filme estrutura a partir de um arco de empoderamento de sexo/gênero pautado na exploração de sua sexualidade. Na primeira de muitas cenas de festa, ela emana um desejo hesitante manifesto na tentativa de participar da interação erótica de um casal, mas há um sem-jeito para a situação e ela se retira.

A atriz trabalha o sorriso de ingênua, a direção de arte capricha no look de princesa. Esse arco de empoderamento será pontuado por cartelas com citações de autoras feministas. A primeira é de Simone de Beauvoir, a citação que aponta ser mulher como construção social. A segunda é Virginia Woolf, autora do ensaio Um teto todo seu, sobre a condição da mulher artista. O arco de empoderamento vai progredindo entre encontros ruins e mais festas. E, então, uma citação de Camille Paglia entra pra marcar o aspecto caricaturesco, como se o filme estivesse sendo regido por um autor homem branco babaca (lembro das inflexões cristãs bazanianas nas quais transparecem as relações entre autor e deus/criador). Não posso, contudo, compactuar com o custo simbólico dessa aventura formal. Camille Paglia é colaboracionista, e pareá-la com a tradição feminista é inconsequente. Por mais que o filme seja construído através de vozes heterogêneas e que dentro de tal estrutura não se caiba uma confusão entre o que se é dito e o que se endossa no plano da realidade social, seus procedimentos são irresponsáveis. Ele não consegue ter o rigor discursivo necessário pra tratar do assunto. Se aceito que o arco narrativo baseado na libertação por vias da sexualidade merece ser ironizado, eu me posiciono em um lugar moralista do movimento de mulheres, que com frequência desboca em práticas vexatórias do prazer. Se aceito que não deve ser ironizado, eu repudio que esse arco narrativo seja pontuado pela presença de Camille Paglia, notória por reafirmar papéis de gênero opressores apesar de se autointitular feminista. E mesmo que a piada seja contra o “autor que cita Camille Paglia”, não é lugar de um homem (e aqui não falo de Leo Pyrata, mas Leonardo Gama) fazer esse comentário colateral sobre um conflito interno a um movimento político no qual seu papel deveria ser de escuta e não de posicionamento público a partir de lugares de fala privilegiados, como concursos de financiamento estatal para projetos artísticos. Leonardo Gama parece desconhecer esses meandros do práxis feminista e as consequências desse tipo de posicionamento. Decepção dupla: o tema que me levou à sessão, o feminismo das telas, não será discutido satisfatoriamente, ao mesmo tempo que esfria certo interesse meu pelos arranjos estéticos do filme na evidência da ironia mal conduzida, historicamente irresponsável.

Em seu último terço, Subybaya muda de ritmo: a marcha de espera e atenção à protagonista se transforma em desenrolar ligeiro de ações do filmes formalmente ensimesmados. Ouvimos vozes de mulheres, até então não apresentadas visualmente, enquanto, na imagem, a protagonista lava uma pia de louças (no que parece ser o dia seguinte de outra festa). O movimento do filme é autodestrutivo: as vozes comentam a narrativa, explicitam seus problemas em relação à representação de gênero, criam e performam oralmente suas impressões e até confabulam sobre a reação de espectadoras. O desenvolvimento da personagem avança mais um pouco e chegamos a uma espécie de resolução do conflito no fim do segundo ato. Depois de se livrar de um encontro ruim, a personagem é abordada por um outro homem que lhe oferece um drink. As bebidas chegam na ausência dela e o homem, interpretado pelo próprio Leo Pyrata, quem assina direção roteiro e montagem, mistura sedativo em uma. Ela volta do banheiro transparecendo alguma desconfiança, ele faz, em tom de brincadeira (asquerosa), um jogo de misturar copos para confundi-la. Então, close ups de rostos de mulheres parcamente iluminados começam a entremear o filme em flashes durante essa tentativa de assédio. Os planos abrem, estamos em um cinema, as mulheres conversam sobre a representação e o destino da protagonista no filme outra vez e assim as identificamos como as personagens-espectadoras feministas, até então sem corpo.

A discussão das espectadoras-personagens faz um crescendo de indignação com o próprio filme, até que uma delas se dirige ao primeiro plano da imagem, desenha uma espiral de areia no chão e abre um ritual de bruxaria (o estereótipo raso me faz perguntar se o filme é além de equivocado, também mal-intencionado). A imagem se decompõe, é rearranjada e a mágica as leva da sala de cinema ao universo do filme, onde interferem na situação de assédio da personagem linchando o personagem-autor.

A sequência do linchamento termina com seu plano mais longo: uma mulher negra, a única que não surra o assediador-autor, nos encara de cima pra baixo enquanto respira com raiva. Digo “nos encara” porque, nesse plano, espectador, câmera e personagem partilham o mesmo ponto de vista. Eu, espectadora, mulher na platéia, divido o ponto de vista com um personagem-estuprador, interpretado pelo diretor do filme, na sessão do primeiro longa-metragem sobre problemas da teoria feminista do cinema (o ataque à narrativa de Thriller, da Sally Potter, por exemplo, que Subybaya rouba como processo, não está lá, por acaso) que vejo na Mostra de Tiradentes. Esse filme sobre feminismo e cinema não foi feito para mim, mas para homens. Trata das implicações aos homens nesse processo de diversificação dos sujeitos da cultura. Mais ainda, feito para alguns homens, já que só quem conhece o rosto de Leonardo Gama tem a informação de que existe ali a intencionalidade de um artifício de casting que adiciona significado sobre o problema do autor homem branco heterossexual (com exceção dos espectadores minuciosos que lêem créditos). Subybaya oferece identificação para os que se intimidam diante da intervenção feminista na imagem em movimento, para os que não sabem responder à crise do homem branco heterossexual como único sujeito produtor de cultura possível.

Não consigo ser empática com os sentimentos do agressor, do dono do olhar masculino, do, como indicado nos créditos: diretor estuprador.

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A crise do autor já teve desdobramentos diversos: Roland Barthes mata o autor em 1967 para que o leitor nasça e adquira autonomia no processo literário. Com isso, se afasta da tendência biografista que procura na identidade e narrativa do artista as gêneses causais e de maior legitimidade para as obras de arte. A proposta de Barthes questiona a autoridade, característica essencial do autor, e reconhece no leitor a possibilidade de uma relação ativa com o texto, interface com a qual ele de fato se relaciona no processo de leitura. Michel Foucault, porém, em resposta direta ao ensaio de Barthes, traz pro centro da discussão a ideia de autor como uma função social que posiciona, como consequência, indivíduos hierarquicamente num campo de forças e não depende só de acordos da crítica literária, mas tem consequências práticas em outras instâncias. Barthes, ao fazer nascer o leitor, de fato caminha para ampliação da autonomia no campo cultural de grupos que tinham sua legitimidade de criação e manifestação no espaço público limitadas por não atenderem a determinados atravessamentos de privilégio.

Aparecem, então, outros sujeitos que não só aqueles com acesso aos meios de produção cultural e que, agora, tem autonomia de interpretação limitada somente pelo texto (livro, filme, enfim) em si e não mais por essa entidade impalpável: o autor que está além da obra. Por causa dessa permanência no mundo, Foucault sugere que as viúvas do autor guardem seus lencinhos, pois ele ainda respira. Assim, um nome de autor com uma marca de gênero tal e não tal possui determinada circulação pelos espaços de disputa discursiva; um outro que recorra a uma língua ocidental e não oriental também; a opção por assinar em grupo (ou não assinar) tem presença como informação textual, mas tem, também, essas implicações de privilégio, que não se resolvem isolando a obra do contexto.

Como dito, que seja um homem e não uma mulher a assinar o primeiro longa que vejo em Tiradentes disposto a discutir frontalmente problemas da teoria e crítica feminista do cinema (que, quase completamente sem adesão dos pensadores do cinema brasileiro, se desenvolveu principalmente nos Estados Unidos, Alemanha e Inglaterra) é sim sintoma de algo. Quando, então, colocamos o filme no mundo, algumas perguntas: quais são essas obstruções que impedem o fluxo de uma maior produção de mulheres no cinema brasileiro independente? Quais obstruções seguram esse debate mais específico por parte de mulheres artistas e intelectuais e que se vale, fatalmente, de um caminho já trilhado por teóricas (infelizmente não brasileiras, apesar do crescimento considerável dessa produção na última década )? Quais são as obstruções para as artistas e intelectuais que se ocupam com as hierarquias entre os gêneros expressas no audiovisual?

Mesmo que tradicionalmente seja o autor (aqui com sua qualidade de assediador confessa) quem violenta simbolicamente a representação da figura feminina, o filme opta, na cena da surra, pelo ponto de vista do diretor-estuprador sendo vitimizado (e não uso o termo com ares de inversão à toa) por mulheres. Não é a catarse para a mulher espectadora que o filme busca. Se fosse, veríamos o rosto do agressor cedendo aos socos das feministas; sangue esse de fato catártico e subversivo (quem não precisa da subversão pra manter o próprio sangue correndo, tende a se satisfazer com a subversão formal, inofensiva fora do reino da estética). Male tears do autor que estrebucha ao perder seus privilégios no campo dos discursos, mas que ainda os mantém em sua maior facilidade de acesso tanto à criação artística quanto à discussão mais intelectualizada sobre a estética, o cinema e as políticas de representação.

No vai e volta entre Barthes, Foucault e nos desdobramentos mais recentes dessa problemática, não é toda autoria que perde sua função, mas a autoria de um sujeito específico: do autor masculino, branco e heterossexual que assiste hoje, aterrorizado, a intervenção feminista que ameaça sua autoridade e seus privilégios. E é a esse terror que Subybaya responde.

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AS IMAGENS SÃO CAMPOS DE BATALHA

Por Luisa Marques

Corpos e subjetividades estão em disputa constante. “Your body is a battleground” (1989) é um trabalho da artista americana Barbara Kruger e foi produzido no contexto de protestos em apoio à liberdade reprodutiva da mulher, nos Estados Unidos.  Mas a própria Kruger já sabia que, além dos corpos, outros importantes campos de batalha se impuseram ao longo do século XX: as superfícies das telas e suas imagens tecnicamente reproduzíveis.

Toda imagem é um terreno compartilhado para ação e paixão, uma zona de tráfego entre coisas e intensidades.
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  O que pode uma imagem?

Difícil encontrar resposta precisa. José-Marie Mondzain pergunta se de fato as imagens podem matar – ao que parece concluir que nenhuma imagem, por si só, tem tamanho poder e autonomia. E também que não são os conteúdos das imagens que despertam e propagam a violência, mas os dispositivos imagéticos. Para ela, são as agências humanas e as relações que travamos com as imagens – como, e em função de quê, as organizamos – que reproduzem e disseminam a violência. Sua inclinação humanista quer lembrar que o que dispara o gatilho é a mão.

Mondzain acredita que a imagem por si só não é agente, nem mediadora, e que necessitamos do discurso como intermediário. Uma questão de importância para a filósofa parece ser: o que fazemos com as imagens e como elas podem (ou deveriam) ser mediadas pela linguagem.

Sem necessariamente entrar em conflito direto com as ideias de Mondzain a respeito das imagens e sua relação com a violência, o controle e a sujeição, podemos ir em busca de abordagens um pouco mais delirantes, produtoras de estranhamentos. Gostaria de trazer pra jogo algumas obras, ensaios, especulações, piadas e provocações da artista e escritora alemã Hito Steyerl. A seguir, a descrição de um pequeno vídeo seu, chamado Strike:

Começa com uma tela vazia. A palavra STRIKE surge, em letras capitais brancas, contra um fundo preto. Então uma mulher aparece, vestida de preto. Ela se aproxima de um monitor LCD desligado e atinge sua superfície uma vez com um cinzel, deixando uma teia de fraturas de várias cores pela tela, antes que tudo retorne, em fade-out, para o preto. Tudo acontece em menos de 30 segundos. E então começa de novo.

A palavra “STRIKE”, inscrita na tela de plasma, pode referir-se à greve de trabalhadores – uma primeira impressão faria intuir. Pode referir-se especificamente à greve dos trabalhadores da arte, por exemplo. Mas também pode referir-se à greve de nossos corpos contra os dispositivos de imagem. Para que não sejamos localizados, sugados ou explorados pelas telas, podemos nos armar, mascarar e disfarçar.

Por outro lado, a greve também pode ser das próprias imagens: nesse caso elas se recusam a existir do modo que queremos que existam. A essa altura, devem  estar cansadas de serem tão requisitadas. Elas querem ter o direito de errar. Querem poder dormir ou chiar. Elas têm se contorcido e distorcido quando as forçamos a ocuparem o espaço total da tela – só porque gastamos todo o nosso salário com um aparelho de televisão “o mais HD possível” (se é que isso é possível). Não adianta avançarmos com martelinhos e cinzéis: elas revidarão com glitchs de desenhos complexos, drop frames rebeldes ou, quem sabe, com emojis de foice e martelo, gifs de batatas cheias de prego, pedradas de píxel.

“A palavra ‘strike’ – seja usada no sentido de bater em algo, seja no de recusar-se a trabalhar como forma de protesto organizado – implica colisão, ruptura, resistência.” Escreve a crítica de arte Amelia Groom, que prossegue: “no momento em que a palavra [strike] reaparece na tela à nossa frente, deve ser lida na forma imperativa do verbo – provocando-nos, enquanto corpos frente a este espaço de representação, a intervir nela.” Bata, atinja, ataque, reaja, entre em greve, – a tela diz –, que de meu lado reagirei também.

Groom observa: quando Steyerl aparece na tela à qual assistimos (instalada na exposição) e atinge a tela mostrada no vídeo, pretende chamar atenção para a materialidade – e vulnerabilidade – do aparato de visualização. A intenção de Steyerl é expor o que está por trás das construções imagéticas, ou “para além do conteúdo pictórico das imagens.” São as condições materiais das imagens que determinam o que pode ou não ser visualizado – e de que formas.

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    Imagens do mundo

    Longe de serem opostos em um abismo intransponível, imagem e mundo são, em muitos casos, apenas versões um do outro.

Diz-se que a primeira fotografia do planeta em que vivemos, vista do espaço, foi captada em 1946. A imagem teria sido feita por uma câmera de cinema acoplada a um foguete, lançado das areias do Novo México por um grupo de militares e cientistas americanos. Na ocasião, a câmera voadora afastou-se velozmente do chão e a 65 milhas perdeu impulso, entrando em estado de tontura e rodando descontroladamente até cair de volta à Terra, em poucos minutos. Depois do choque, a câmera estava totalmente destruída, mas o filme, que havia sido devidamente protegido, estava intacto. Quando as imagens foram projetadas, via-se apenas grãos de prata e tons de cinza. Aquela era a imagem do mundo.

Na ocasião, o foguete lançado era um dos muitos foguetes alemães V-2 capturados pelos americanos ao final da Segunda Guerra Mundial. Desde o fim da disputa, os V-2 passaram a ser usados para experimentos científicos no deserto do sul dos Estados Unidos, com fins de estudos de “temperatura, pressão, campos magnéticos e outras características físicas da inexplorada atmosfera.” Os experimentos prosseguiram pelos próximos 4 anos.

Já em 1947 podia-se ver imagens da Terra a mais de 100 milhas espaço acima; devido à maior altura e recuo atingidos pelos foguetes, foi possível ter imagens mais amplas e montar os frames de modo a construir uma visão mais panorâmica do planeta. Aos poucos, as imagens parciais da Terra foram sendo divulgadas em jornais e revistas americanos. Clyde Holliday, engenheiro que desenvolvera a câmera lançada, já previa o futuro destinado à tecnologia. São suas as seguintes palavras, publicadas na National Geographic em 1950:

Os resultados destes testes apontam para um tempo em que as câmeras serão montadas em mísseis teleguiados para explorar territórios inimigos em guerras, mapear regiões inacessíveis da terra em tempos de paz, e mesmo fotografar formações de nuvens, frentes de tempestades e áreas encobertas de um continente inteiro em apenas algumas horas. (…) Toda a área de superfície do globo poderá ser mapeada desta forma.

Vista da Terra de uma câmera acoplada a um V-2 #13, lançado em outubro de 1946.

O mundo inteiro

Até fins da década de 60, apenas imagens parciais da Terra haviam sido vistas. Stewart Brand, um biólogo hippie-eco-ativista da contracultura com interesse em LSD e Cibernética (além de ex-paraquedista do exército americano), começou uma campanha curiosa em 1965, na Califórnia. Ele produziu bottons com a seguinte frase inscrita: “Por que ainda não vimos uma fotografia da Terra inteira?” (Why haven’t we seen a photograph of the whole Earth yet?), e os distribuiu pelas ruas de São Francisco e em universidades da Califórnia a 25 centavos cada. Brand discursava sobre como a imagem inteira do planeta poderia criar uma nova consciência ambiental, gerada pelos sentimentos de pertencimento e unidade que a suposta integridade do globo terrestre despertaria.

Naquela época, nos Estados Unidos, havia a crença de que a NASA já tinha fotos da Terra inteira, mas que por algum motivo não as liberava ao público. Se não era o caso, acreditava-se que, no mínimo, já havia condições tecnológicas para fazer esse tipo de foto, e algumas pessoas como Brand não entendiam por que a NASA não se empenhava em produzi-las. Se foi sua campanha que surtiu efeito, não sabemos. Mas o que se conta é que em 10 de novembro de 1967 um satélite ATS posicionado 22.300 milhas acima do Brasil capturou a primeira fotografia colorida da Terra inteira. A imagem foi transmitida por sinais de rádio em 2.400 linhas separadas, até sua formação completa, que foi vista poucos dias depois. Era, finalmente, a “imagem do mundo inteiro”. Mas sabemos que era apenas uma imagem oficial de uma face do planeta produzida por uma instituição norte-americana de pesquisa científica (e que, sem dúvida, servia e serve a jogos geopolíticos complexos). A história dessa fotografia diz muito sobre a consciência em torno do que as imagens podem fazer. E também diz muito sobre o que significa ter propriedade dos meios que vão produzir e distribuir imagens do mundo para o mundo. Assim são criadas narrativas de realidades. Mas uma imagem pode dar conta de um corpo inteiro em três dimensões? Ou nas superfícies que olhamos há sempre algo que ficou de fora?

    Fora da imagem

O termo imagem (originalmente baseado em imitação) significa, em sua primeira acepção, algo visualmente semelhante a um objeto ou pessoa real; no próprio ato de especificar a semelhança, tal termo distingue e estabelece um tipo de experiência visual que não é a experiência de um objeto ou pessoa real. Neste sentido, especificamente negativo – no sentido de que a fotografia de um cavalo não é o próprio cavalo – a fotografia é uma imagem. (…) Uma pintura não é, fundamentalmente, algo semelhante ou a imagem de um cavalo; ela é algo semelhante a um conceito mental, o qual pode parecer um cavalo ou pode, como no caso da pintura abstrata, não carregar nenhuma relação visível com um objeto real. A fotografia, entretanto, é um processo pelo qual um objeto cria sua própria imagem pela ação da luz sobre o material sensível.

São palavras de Maya Deren citadas por Ismail Xavier em O discurso cinematográfico: a opacidade e a transparência (1977). Trata-se de uma discussão já clássica em torno do caráter indicial da imagem fotográfica: “um signo que se refere ao objeto que (…) denota em virtude de ter sido realmente afetado por este objeto”. O debate, no meio cinematográfico, já tinha sido apontado por André Bazin.

No ensaio “A ontologia da imagem fotográfica” (1945), Bazin escreve sobre a natureza indicial da fotografia: eram imagens que sempre remetiam, necessariamente, a algo que tivesse acontecido ou existido previamente. A fotografia possibilitava a “criação de um universo ideal à imagem do real”. Um duplo. Bazin também acreditava numa condição de “objetividade essencial” que dava à imagem fotográfica poder de credibilidade. “Tanto é que o conjunto de lentes que constitui o olho fotográfico, em substituição ao olho humano, denomina-se precisamente “objetiva”.” As condições técnicas que então possibilitavam a fotografia proporcionavam a criação de imagens a partir de referentes bem definidos, de modo que não tínhamos por que duvidar que o objeto representado tivesse, em algum momento, existido. Somos tomados pela ilusão do realismo da imagem fotográfica, que é aumentada pelo cinema e pela relação que ele estabelece com o tempo e a ilusão de movimento.

Outra característica própria à imagem fotográfica é que se forma a partir de um campo de visão retangular captado pela lente. Somos lembrados que o quadro cinematográfico é um recorte da realidade. Mas Xavier nos aponta o que Noël Burch já escrevera sobre o campo de visão em seu Práxis do cinema (1969): que o retângulo da imagem também define o que está fora dele – todo um espaço que existe e se estende para além do campo imediato do que se vê. Se existe o espaço que a tela contém – “inscrito no interior do enquadramento” –, também há o espaço deixado de fora da tela – “exterior ao enquadramento”. Nesse sentido, o que o enquadramento recorta também define o que é deixado de fora da imagem. Burch escreve sobre esses dois espaços: o que foi enquadrado é facilmente definível pelo campo de visão; já o espaço fora da tela mostra-se um pouco mais complexo, dividindo-se em “seis segmentos”.

O que está fora da tela é definido primeiro – e mais diretamente – pelas quatro bordas do quadro: direita, esquerda, superior e inferior. Um pouco menos óbvio é o espaço por trás da lente da câmera, que pode ser complexificado em um limiar entre o diegético (aquilo que faz parte da realidade do filme enquanto universo e narrativa próprios) e a quebra da quarta parede, que revela a ilusão de realidade. O sexto segmento evidencia ainda mais essa quebra da ilusão: diz respeito ao que está por trás dos cenários ou de um de seus elementos: “tem-se-lhe acesso saindo por uma porta, contornando o ângulo de uma rua, escondendo-se atrás de um pilar… ou atrás de uma outra personagem. Em extremo limite esse segmento de espaço encontra-se atrás do horizonte.”

Em geral, no cinema, o espaço fora da tela pode ser intuído pelo espectador através de entradas e saídas de corpos (objetos ou personagens) ou pelo olhar de um personagem para uma direção que não seja englobada pela tela. Outro caso que indica o espaço fora da tela é o exemplo do fragmento, quando “o enquadramento recorta uma porção limitada” de um corpo ou objeto. A parte visível denota a presença de todo o objeto ou corpo, mesmo que seu restante esteja fora do campo de visão. Tanto a parte visível indica uma continuação daquele corpo, quanto também indica a existência de um espaço contíguo o qual não vemos, mas podemos intuir, deduzir ou imaginar. Ainda há os exemplos em que o espaço fora da tela é sugerido por sons que vêm de fontes que não vemos, ou seja, de fontes sonoras extracampo. Esses espaços extracampo podem ser eventualmente alcançados através do movimento contínuo da câmera, que revela novos campos de visão e reforça a característica centrífuga do cinema e sua tendência à expansão.  O espaço que antes estava fora do recorte passa a ser capturado: visível – passível de ser visto – e visado – alvo de foco e atenção.

É natural, portanto, pensar a representação pictórica (por exemplo, a fotográfica) enquanto uma atividade que implica visibilidade. O que é escolhido para ser “representado” – aquilo que é tornado visível através do enquadramento recortado pela lente da câmera – torna-se visado. Essa condição, apesar de dar destaque e importância ao objeto representado, também o expõe à observação e à vulnerabilidade – portanto à possível análise, classificação e captura – frente a um observador que em algum nível controla a imagem. Mas será que a posição desse observador por trás da câmera – aparentemente impassível – é mesmo tão estável?

Sabemos que, com o advento da imagem digital, essas relações se complicam. A difusão das imagens digitalmente construídas (de animações básicas a CGI, passando por after effects), enquanto entretenimento de massa, mostra-nos que as discussões há muito tiveram que ser redirecionadas. Sem dúvida, a relação estabelecida entre as imagens digitais e seus supostos referentes torna-se cada vez mais complexa ou mesmo inexistente. Muitas delas não são fotografias, uma vez que não são produzidas através das lentes de câmeras. Mas, nesta abordagem, podemos ainda nos ater a algo que é chamado de fotografia e que, ao mesmo tempo, vem redefinindo os paradigmas dessa natureza imagética.

Hito Steyerl, How Not to be Seen. A Fucking Didactic Educational .Mov File, 2013

Em seu vídeo How Not to be Seen. A Fucking Didactic Educational .Mov File (2013) que nos instrui, em sete lições, sobre como não ser vistosHito Steyerl afirma que uma das maneiras de tornar-se invisível – de desaparecer – é tirando uma foto. Quando alguém tira uma fotografia, fazendo a ação de segurar a câmera na altura do olho, acaba por esconder o próprio rosto atrás do aparelho. Dessa forma, pode tornar-se (parcialmente) invisível para quem está à sua frente – ao mesmo tempo em que a capacidade de visão direcionada ao objeto é aumentada pelo poder de alcance, zoom e foco da lente.

Mas essa situação vem mudando nos últimos anos, já que as câmeras fotográficas embutidas em smartphones têm criado novas realidades e ontologias fotográficas. Uma primeira constatação é que atualmente a grande maioria das lentes nos smartphones são reversíveis, como Hito Steyerl nos lembra em entrevista. Não é que não percebamos esse dado cotidianamente, quando fotografamos com nossos telefones, mas às vezes esquecemos o que isso implica. A artista sugere que as novas lentes acabaram com o fora-de-campo, ou com boa parte desse espaço antes inapreensível. O que antes era uma extensão dada à imaginação e às possibilidades de fuga da captura, agora é apenas um contracampo que pode ser acessado imediatamente, ao toque de um dedo: escolho apontar para o outro ou para mim. As câmeras agora têm olhos nas costas.

Atualmente, não é absurdo afirmar que alguém que fotografa pelas lentes de um smartphone está sendo tão analisado quanto o objeto fotografado – e não é só pela qualidade reversível das lentes. Registrar uma imagem hoje implica documentar para a rede, em tempo real, tanto a sua realidade em volta quanto a sua subjetividade. Ao tirar uma foto, você expõe em que local está, quando e com quem, por exemplo. Você registra suas preferências e, assim, seu comportamento pode ser processado e usado para os mais diversos fins. Você está tão exposto quanto o alvo da “objetiva”. Como Steyerl sugere, essas mudanças trazidas pelas novas tecnologias fotográficas – suas lentes e softwares – fazem cair por água abaixo boa parte das teorias tradicionais da fotografia e do cinema (pelo menos enquanto teoria da imagem contemporânea). O lugar do sujeito que observa e representa um objeto exposto à lente torna-se muito mais complexo. Agora, aquele que enquadra também pode ser enquadrado e as condições que implicam visibilidade e invisibilidade criam novas e múltiplas nuances.

Além a reversibilidade da câmera dos smartphones, existem outros fatores envolvidos nessa nova ontologia fotográfica. Boa parte dessa mudança de paradigma está relacionada à “inteligência” das novas câmeras, que vêm sendo desenvolvidas com base no que tem sido chamado de fotografia computacional, que “conecta tecnologias de controle em robótica, reconhecimento de objeto e aprendizado de máquinas.” Existe um novo padrão na formação dessas imagens computacionais, no que concerne à diferenciação entre informação e ruído.

Em seu texto “Proxy Politics”, Hito Steyerl questiona a natureza das imagens fotográficas captadas por smartphones, que são a grande maioria das fotografias que circulam hoje em dia nas redes sociais e em boa parte da comunicação de internet. Ela pergunta: no que consistem essas imagens, tão recorrentes em nossos meios e determinantes das nossas relações? Para responder, menciona uma conversa que teve com um desenvolvedor de câmeras e softwares para smartphones: ele explica como a tecnologia empregada nas câmeras atuais mudou em relação à fotografia tradicional. As lentes pequenas e precárias dos dias de hoje, adaptadas para caberem nos telefones, são insuficientes e acabam captando muito ruído. Aparentemente, mesmo as câmeras de smartphones que prometem imagens de altíssima resolução têm esse problema. O que acontece com a fotografia final, portanto, é fruto de um algoritmo desenvolvido para limpar o ruído da imagem. Esse algoritmo, basicamente, é o que separa a informação do ruído.

Segundo a narrativa de Steyerl, vinda de seu interlocutor “especialista”, o que acontece com essas câmeras contemporâneas é o seguinte: seu sistema escaneia todas as fotos armazenadas no telefone, inclusive as que estão nos aplicativos de redes sociais. A partir daí, todas as imagens existentes no aparelho, ou aquelas que se associam ao usuário do aparelho via redes sociais, são analisadas. As imagens, então, são comparadas. Um algoritmo, a partir dessa base de dados, passa a prever, ou melhor, “completar” o que falta das próximas imagens que serão fotografadas. O que antes era ruído ou falta de informação passa a ser suprimido e digitalmente substituído por informação aleatória com base nas imagens precedentes, ou seja: com base na memória armazenada na máquina.

De fato, a imagem, enquanto informação, passa a ter sua composição baseada em fatores matemáticos, em cálculos sobre um repertório existente. Esse repertório é o universo de possibilidades e suas combinações são baseadas em probabilidades. O algoritmo é desenvolvido para “adivinhar”, a partir das mensagens transmitidas anteriormente, quais imagens devem ser produzidas, como elas devem ser completadas. As decisões de quais imagens “novas” serão criadas acabam sendo apostas pouco arriscadas, porque são tentativas de emulação do que já foi visto. Nesse sentido, a eliminação dos ruídos é compensada com pouca informação (se pensarmos que informação é novidade, surpresa). Os dados estão lá para serem comparados, cruzados e interpretados pela máquina. “A câmera se torna um projetor social, mais do que um gravador. Mostra a superposição daquilo que ela acha que você quer somado àquilo que os outros pensam que você deve comprar ou ser.”

Mas Hito Steyerl atenta para um detalhe importante: nem tudo está mapeado e exposto – ainda existem espaços inatingidos. Em especial, ela nos lembra de um pequeno espaço que permanece opaco e inacessível à maioria das pessoas – um extracampo geralmente ignorado. Trata-se do espaço dentro da câmera, “onde algumas operações desconhecidas acontecem em formas de ‘embelezamento’ e algoritmos de censura.” É nesse espaço programado que o invisível opera as possibilidades do visível. A caixa preta se atualiza, mas não se distancia muito da filosofia especulativa de Vilém Flusser em suas análises da imagem técnica: as imagens fotográficas que produzimos são programadas por aparelhos, que por sua vez são baseados em informações programadas por programadores, que por sua vez são programados por maiores instâncias dos contextos econômico-social e político-cultural: “[a]s fotografias são realizadas de algumas das potencialidades inscritas no aparelho.” É um sistema “jamais penetrado totalmente e pode chamar-se caixa preta. (…) Pelo domínio do input e do output, o fotógrafo domina o aparelho, mas pela ignorância dos processos no interior da caixa, é por ele dominado.”

    Verticalidade e (in)visibilidade

A invisibilidade é uma tela que às vezes funciona de ambos os lados – mas nem sempre. Ela funciona em favor de quem quer que esteja controlando a tela.

Gostaria de trazer de volta a imagem da Terra “inteira” vista do espaço. Podemos pensar também, como foi esboçado há pouco, no que é deixado fora da tela – ou fora dessa imagem da superfície da Terra. Uma vez que essas ideias foram convocadas, gostaria de suspendê-las brevemente. Enquanto elas permanecem suspensas, podemos trazer uma discussão proposta por Hito Steyerl em “In Free Fall: A Thought Experiment on Vertical Perspective” (2011).

Trata-se de um ensaio escrito e abre com a seguinte imagem mental: a queda livre. Lê-se nas primeiras linhas: “Imagine que você está caindo. Mas não há chão”. Na ocasião, a falta de chão sugerida por Hito Steyerl faz referência ao pensamento de alguns filósofos contemporâneos que apontam para a falta de um terreno fixo e comum na contemporaneidade; a falta de um solo estável e consensual de onde possam partir discussões metafísicas. Mas se estivermos mesmo caindo, como a artista alemã propõe que imaginemos, não estamos caindo em direção a um solo fixo. A falta de chão implica queda livre que jamais alcança um fim – é o que Steyerl sugere. E depois pergunta: mas por que não percebemos a queda?

Não percebemos que estamos caindo porque o movimento é sempre relativo a um referente, a um objeto fixo que nos faça perceber o deslocamento de nossos corpos. Na queda livre o senso de direção se perde, assim como a relação estável com o horizonte: a possibilidade de um horizonte se desmancha frente a nossos olhos. Desorientados, nossa sensação de equilíbrio é chacoalhada e as perspectivas se contorcem e multiplicam: “surgem novos tipos de visualidade.”

Há também outras mudanças em nossa percepção quando estamos caindo:   perde-se a consciência dos limites e contornos do próprio corpo. Aparentemente, não se percebe mais a separação entre o seu corpo e os outros em volta – a impressão de integridade e unidade de um corpo e as noções de identidade e subjetividade são abaladas. Nas palavras de Steyerl: “Pilotos têm relatado que a queda livre pode desencadear uma sensação de confusão entre o ‘eu’ [self] e o avião. Ao cair, as pessoas podem sentir-se como sendo coisas, enquanto as coisas podem sentir que são pessoas.” Essa desorientação total dos sentidos que causa embaralhamentos e mudanças na percepção, portanto, é o que acontece quando há perda de um horizonte estável.

Desse ponto do texto, Steyerl esboça um breve histórico do horizonte e da perspectiva linear: lembra-nos, como vem sendo amplamente discutido na teoria da arte, do caráter construído do ponto de vista único e estável frente a um ponto de fuga em horizonte fixo. Como é sabido, esse é o modelo no qual a percepção moderna do espaço e o senso de orientação do sujeito moderno se deram. A perspectiva linear, paradigma ótico definidor da modernidade, decorre justamente dessa construção que forja a estabilidade de um único observador e o coloca no centro da imagem – em última instância, no centro do mundo. Steyerl nos lembra o óbvio: o observador em questão é muito específico – aquele (homem branco e europeu) dominante que expande seu território e impõe sua cultura:

Nem é preciso dizer que essa reinvenção do sujeito, do tempo e do espaço foi um conjunto de ferramentas adicionais para permitir a dominação ocidental e o domínio de seus conceitos – bem como para redefinir padrões de representação, tempo e espaço.

Não bastasse servir de instrumento para conquista, sujeição e hegemonia, como Steyerl nos aponta, a perspectiva linear ainda baseia-se em uma série de negações, como podemos observar no exemplo da curvatura da Terra: “[Na perspectiva linear o] horizonte é concebido como uma linha plana abstrata sobre a qual os pontos em qualquer plano horizontal convergem.” Evocando o historiador da arte Erwin Panofsky, a artista também nos lembra que a perspectiva linear considera sempre um espectador monocular e imóvel enquanto regra; jamais contempla a possibilidade de um olhar em movimento.

Mas Steyerl chama atenção para o declínio dessa perspectiva ao considerar que o paradigma visual dominante está mudando. Para ela, a transição de paradigma já podia ser notada em algumas pinturas do século XIX, como o exemplo de dois quadros do inglês William Turner, The Slave Ship (1840) e Rain, Steam and Speed – Great Western Railway (1844). Nessas pinturas, os horizontes se contorcem, dissolvem, são perturbados e questionados pelo olhar e pelo gesto do pintor que, segundo consta, prendeu-se ao mastro do navio em movimento e pôs parte do corpo para fora da janela do trem a fim de observar e pintar. O ponto de vista se desloca: põe-se instável, em mobilidade. Ainda que não tenha negado a existência de um horizonte, Turner atentou para sua condição mutante – eventualmente borrada e inapreensível.

Com o século XX, as atualizações de apreensão do tempo e do espaço prosseguem, e o cinema é fundamental para a operação e o entendimento dessas mudanças de paradigma perceptivo. Muito devido à montagem, que altera a suposta linearidade do tempo e remonta os espaços – produzindo novas (não) linearidades e geografias criativas –, o cinema amplia as possibilidades da perspectiva espaço-temporal.

Além do cinema, Steyerl menciona uma série de condições da modernidade e de sua relação com a técnica que passam a influenciar não só os modos de produzir e ver imagens do mundo, como também modificam as percepções do meio. A física quântica, a teoria da relatividade, a invenção da aviação, a publicidade e a “reorganização da percepção” operada pelas duas grandes guerras são alguns dos exemplos que tiveram forte influência nessa mudança de paradigmas espaço-temporais. Sem dúvida, a própria exploração do espaço sideral foi também um fator decisivo na transição que tirou o espectador de uma suposta terra firme, de um ponto de vista estável, colocando-o em uma posição que possibilita a visão de cima para baixo: próximo ao olho de Deus – ou dos mortos, como sugere o filósofo camaronês Achile Mbembe.

Não é difícil associar esse novo ponto de vista, que traz consigo uma nova imagem do mundo, às experiências com câmeras acopladas em foguetes, mencionadas no início do capítulo. O que também se pode notar é que, por mais que fossem experimentos de teor “científico”, estavam diretamente atrelados à atividade militar e só existiram por conta de resquícios da guerra – os tais foguetes alemães apreendidos. Quando a “corrida espacial” começou – e com ela, suas imagens feitas dos foguetes e satélites – também estava associada a uma guerra, mesmo que, supostamente, fria. Mas como demonstram Paul Virilio em Guerra e cinema (1984), Friedrich Kittler em Mídias ópticas (1999) e Harun Farocki no filme Imagens do mundo e inscrições da guerra (1989), as técnicas de imagem estão ligadas às técnicas de armas e táticas de guerra e exploração desde muito antes.

Alguns exemplos mais atuais relacionando imagem, verticalidade e militarização podem ser brevemente citados: o teórico alemão Thomas Elsaesser associa as construções de imagens da cultura e do entretenimento e os paradigmas de percepção espacial contemporâneos a um complexo que mistura entretenimento (por exemplo, o cinema 3D), vigilância e militarização – o que ele chama de military-surveillance-entertainment complex:

(…) as imagens estereoscópicas e os filmes em 3D fazem parte do novo paradigma, que está transformando nossa sociedade de informação em uma sociedade de controle e nossa cultura visual em uma cultura de vigilância. A indústria cinematográfica, a sociedade civil e o setor militar estão todos unidos neste paradigma de vigilância que, como parte de um processo histórico, busca substituir a “visão monocular”, a maneira de ver que definiu o pensamento e a ação ocidentais nos últimos 500 anos. É este meio de ver que deu origem a uma vasta gama de inovações como a pintura de painel, a marinha colonial e a filosofia cartesiana, bem como a todo o conceito de projetar ideias, riscos, oportunidades e cursos de ação no futuro. Os simuladores de voo e outros tipos de tecnologia militar fazem parte de um novo esforço para introduzir o 3D enquanto padrão de percepção – mas o desenvolvimento vai ainda mais longe para incluir a vigilância. Isso engloba todo um catálogo de movimentos e comportamentos, que estão intrinsecamente ligados ao monitoramento, condução e observação de processos em andamento, e que delegam ou terceirizam o que foi uma vez referido como introspecção, autoconsciência e responsabilidade pessoal.

Já o arquiteto e teórico israelense Eyal Weizman aborda a verticalização na arquitetura  política da guerra, mais especificamente no conflito Israel-Palestina. Se antes o poder geopolítico era distribuído em superfícies planas como mapas – com fronteiras mais simples e bem definidas –, atualmente, com a perspectiva verticalizada, novas complicações se dão. Weizman demonstra que desde 1967, quando Israel ocupou a Faixa de Gaza, vem sendo desenvolvido naquela área um grande projeto israelense de planejamento estratégico, territorial e arquitetônico – com tecnologias de vigilância, técnicas e armas de guerra – que envolve o que ele chama de “ocupação dos céus”.

Se antes havia a suposição de um terreno estável onde o observador se fixava para criar imagens, hoje, ainda que essa suposição se mantenha, observa-se esse terreno de cima para baixo, com maior distanciamento. Para Steyerl, “(…) esse chão virtual cria uma perspectiva de visão geral e vigilância para um espectador distante e superior que flutua com segurança lá em cima”. Essa é a nova forma de ver através das telas com a qual nos acostumamos: vemos as imagens de cima e acreditamos abarcar uma totalidade, com tons de superioridade. O que acontece agora é uma falsa ilusão de controle e orientação a partir de uma suposta totalidade apreendida, que muitas vezes está ao alcance de nossos dedos – que aproximam, selecionam, aumentam e giram os espaços-imagens como objetos leves em nossas mãos. Em outros casos, os dedos não agem diretamente na superfície da imagem, mas acionam ou programam disparos que afetam violentamente outras vidas.

Atualmente, nesse “military-surveillance-entertainment complex“, os super-heróis voadores e exploradores da ficção juntam-se aos operadores de drones, os telecomandos e os dispositivos robóticos que acionam a realidade da guerra. A sombra desse corpo que paira acima – agora descolado de seu operador – não denota apenas a verticalidade, mas também a assimetria de combate e a vigilância. Comandados à distância, os drones rompem com uma antiga ética bilateral de combate – pois projetam “poder” sem projetar vulnerabilidade. Como escreve Grégoire Chamayou em seu Teoria do drone (2015), “A visão aqui é uma visada: não serve para representar objetos, mas para agir sobre eles, para apontá-los. A função do olho é a da arma.”

Flusser dizia que “existe um caráter de vodu em cada imagem”. E podemos dizer que ainda hoje esse caráter persiste. Como Chamayou observa (2015), atualmente as imagens transmitidas por drones são alvo de cliques que têm o poder de ferir ou matar. O cursor, em forma de seta (ou flecha), é o que aponta as imagens substitutas do inimigo, o que remete à antiga prática de alfinetar imagens de cera ou bonecos de alguém que se queria atingir:

As metáforas da localização do alvo em uso no vocabulário dos operadores [de drones] apresentam ressonâncias perturbadoras em relação a essa prática arcaica: to pinpoint (alfinetar), to nail (pregar)… O que era uma prática mágica converteu-se em procedimento de alta tecnologia.

Hito Steyerl, How Not to be Seen. A Fucking Didactic Educational .Mov File, 2013

 

    Mundo de imagens

A tirania da lente fotográfica, amaldiçoada pela promessa de sua relação indicial com a realidade, deu lugar a representações hiper-reais – não do espaço como ele é, mas do espaço como podemos fazê-lo – para melhor ou pior. Não há necessidade de renderings caros; uma simples colagem em chroma-key produz perspectivas cubistas impossíveis e concatenações implausíveis de tempos e espaços.

Imagens não são representações, mas formas de armas biológicas que devem ser desenvolvidas e implantadas com base em um conhecimento da ecologia global da informação.

 

A realidade vive em e consiste de imagens – pelo menos atualmente – é o que afirma Hito Steyerl em conferência performática proferida em 2013, parte de um colóquio intitulado The Photographic Universe | Photography and Political Agency? Segundo a artista, isso acontece porque as imagens começaram a atravessar as telas e a se materializar na realidade. Mas elas não cruzaram as telas sem sofrerem transformações; essas imagens se modificaram profundamente, machucaram-se, estão danificadas. Por isso, para Steyerl, “a realidade em que vivemos consiste nos escombros das imagens”. Como a autora já argumentou em textos, performances e entrevistas, muitas das imagens atuais não são mais representações objetivas ou subjetivas da realidade, de condições preexistentes. Elas próprias são coisas: nódulos de energia e matéria que migram por diferentes suportes, proliferam-se, moldam e afetam pessoas, paisagens, sistemas sociais e políticos.

Essas imagens, que há algum tempo vêm atravessando as telas, são associadas, pela artista, aos processos de transição democrática na política latino-americana dos anos de 1980 – bem como em países do leste europeu depois do ano simbólico de 1989. Esses países deveriam implementar democracia e livre mercado, ou seja, transformar-se no que uma civilização ocidental era ou acreditava ser; as nações dos (então) “Segundo Mundo” e “Terceiro Mundo” precisariam incorporar uma noção bem específica de liberdade – precisariam “adaptar-se a essa imagem” da democracia ocidental. Steyerl elucubra sobre esses processos de transição, que para ela implicaram

(…) um processo de transformação contínua, que em teoria faria qualquer lugar por fim assemelhar-se ao ego ideal de uma nação ocidental padrão. Como resultado, regiões inteiras foram sujeitas a renovações radicais. Na prática, a transição geralmente significava expropriação desenfreada acompanhada de uma diminuição radical da expectativa de vida. Na transição, um futuro neoliberal brilhante marchou para fora das telas e foi percebido como falta de cuidados médicos acompanhada de falência pessoal, enquanto os bancos ocidentais e as companhias de seguros não só privatizavam as pensões, como também as reinvestiam em coleções de arte contemporânea.

Um exemplo que encarna essa noção de transição em forma de evento – o qual a própria Steyerl menciona em sua conferência – pode ser visto no filme Videogramas de uma Revolução (1992), de Harun Farocki e Andrei Ujică, feito integralmente a partir de imagens de arquivo, found footages captados na ocasião da deposição do então ditador da Romênia, Ceaușescu, em 1989.

O que Steyerl desenvolve na conferência, que diz respeito a uma certa condição das imagens nos dias de hoje, parte em boa medida do filme de Farocki e Ujică, sem dúvida. Antes, porém – mesmo que possivelmente via Farocki – remete ao que Vilém Flusser argumenta em uma palestra de 1990: que as imagens são catalisadoras de eventos. A abordagem de Flusser é o que propulsiona a realização de Videogramas de uma revolução e, consequentemente, influencia a perspectiva de Hito Steyerl a respeito da agência das imagens nas últimas décadas.

Em dezembro de 1989, uma série de protestos ocorreu nas cidades romenas de Timisoara e Bucareste. Depois de alguns dias de tumultos, enquanto Ceaușescu dava um pronunciamento público, alguns manifestantes que lutavam para derrubar o ditador não tomaram a praça, o palanque, nem um prédio do governo; mas invadiram o estúdio da televisão estatal. Uma vez tomado o estúdio de TV, eles invadiram, através das telas, as casas das pessoas que assistiam ao pronunciamento ao vivo. A transmissão oficial, portanto, foi interrompida pelos manifestantes que ocuparam o estúdio e deu lugar a palavras de ordem como: “Somos vitoriosos! A TV está conosco!” Na ocasião, o teatro de operações para a derrubada do poder não foi um campo de batalha, mas o estúdio da emissora estatal e as telas de TV nas casas da população. Para Flusser, esse evento foi decisivo porque evidenciou as importantes mudanças que se davam nas relações entre política e imagem – demonstrou perfeitamente a influência que as imagens já exerciam sobre a vida social e política naquele ponto. Na visão de Flusser, uma nova situação na cultura da imagem se daria a partir dali.

Videogramas
Videogramas de uma Revolução (1992), de Harun Farocki e Andrei Ujică

O crítico de cinema André Brasil faz uma descrição eficiente do momento em que o estúdio da emissora é invadido, como se vê em Videogramas… No texto que contempla o filme, há uma boa evocação de imagens mentais que ajudam a transmitir a sensação de turbulência: a estabilidade da tela é violentada por um tremor físico manifestado na materialidade da imagem – e na falta de imagem – transmitida pela câmera.

A imagem da TV estremece, não simplesmente devido a uma falha técnica, mas porque é todo o espaço em torno que treme. Revoltada, uma multidão invade o local e começa a tomar as ruas e os prédios. O ditador pede calma. Como último recurso, a televisão corta a imagem para um fundo vermelho. O áudio continua, com uma voz que pede tranquilidade à população. Há ali uma defasagem entre o áudio que segue e a imagem que foi cortada. Essa defasagem materializada pela cena midiática mostra outra mais importante: o que a cena explicita é o momento preciso em que a história fissura, fende, o momento de passagem entre as imagens de um mundo que, agora, se transforma em outro e que, por isso, demanda novas imagens. Este é um momento político no sentido forte e exige uma visibilidade diferente, uma outra cena.

    Os eventos rolaram em direção à imagem

Diferente do que José-Marie Mondzain sugere, Hito Steyerl acredita que as imagens podem agir como intermediárias, mediadoras. E a ação sobre elas pode desencadear situações irreversíveis. Nessas circunstâncias, elas não mais representam objetos, mas mediam operações no mundo.  Em um contexto diferente de Flusser – que na ocasião de sua fala discursa sob impacto principalmente do vídeo e da televisão – Hito Steyerl, em seu texto “Too Much World”, discute a imagem digital na era da internet como meio de comunicação de massa, em circustâncias nas quais as imagens se proliferam de formas nunca antes vistas: “O mapa não apenas se torna igual ao mundo, mas o excede.”

De todo modo, as perspectivas se tocam: Flusser acredita que, quando as imagens se tornam muito fortes e influentes, passamos a usar nossas experiências no mundo para que elas nos orientem nas imagens. Dá-se a mesma reversão entre mapa e território: a imagem se torna a realidade concreta e o mundo passa a ser apenas um pretexto. Flusser prossegue: “Essa reversão entre o mundo da experiência e o da imaginação é chamado pelos profetas de idolatria”, uma forma de paganismo. Isso explica por que Platão quisesse proibir a arte e as imagens na República.

Já no início dos anos 90, Flusser afirmava que o propósito de tudo era, àquele momento, existir para ser fotografado, filmado, capturado em vídeo (algo que Warhol já pressentira, à sua maneira). Certa vez, a artista pernambucana Bárbara Wagner, em uma observação colocada da plateia de uma conferência, mencionou como os dançarinos e dançarinas populares de frevo do Recife haviam mudado sua forma de dançar nas últimas décadas. Uma dança que costumava ser tão tridimensional e expansiva nos seus movimentos rotatórios para todos os lados (braços e pernas fazendo setas, lanças para todos os sentidos) passou a ser, à medida que a câmera da televisão se postava para registrar o evento, cada vez mais bidimensional e chapada, de superfície. Ora, os dançarinos não queriam abrir mão de suas frontalidades em relação à câmera. Assim, não era só a câmera que transformava os corpos em sinais digitais e superfícies (imagens), mas a própria ideia daqueles corpos se pensando como imagens já mudava seus movimentos e suas vontades de existência, já fazia deles um pouco mais planos, frontais, superficiais – ou no mínimo menos expansivos. Trata-se de um exemplo claro e simples de como, de fato, as imagens podem ser pensadas como ativadoras e modificadoras de realidades. Os bailarinos de frevo colaram suas frontalidades à lente da câmera, se colaram às imagens. Os eventos “rolaram em direção à imagem”. Eles seguem acontecendo um após o outro, cada vez mais rápidos, querendo ser tomados por imagens. O que aconteceu na Romênia, portanto, em 1989, não foi um evento registrado por imagens, mas imagens que detonaram um evento.

    As imagens caminharam através das telas   

Mas se as imagens começam a vazar através das telas e a invadir a matéria de sujeitos e objetos, a principal consequência, bastante negligenciada, é que a realidade agora é amplamente composta de imagens; ou melhor, de coisas, constelações e processos antes evidentes como imagens.

Como já foi dito, Hito Steyerl toma os processos de transição democrática na política como marcos que deflagram também a transição das imagens das telas para a realidade. A alemã acredita que as imagens passaram a habitar coisas, pessoas, paisagens e ambientes inteiros. Elas nos cercam. São parte do meio. Não são apenas representações ou projeções, são principalmente objetos em três dimensões, às vezes em forma de corpos humanos: em seu texto “A Thing Like You and Me” (2010), a artista vai mais longe em sua especulação e sugere que além de vivermos entre imagens, nós mesmos – os seres humanos – nos tornamos imagem.

Já na conferência performática realizada no colóquio The Photographic Universe, em Nova Iorque (2013), Steyerl busca “provar” essa condição atual do mundo – de um meio constituído por imagens – através de um exemplo que demonstra como a ficção geopolítica mencionada no capítulo anterior pode controlar os graus de opacidade e transparência das imagens (sua capacidade de ser vista). Um bom exemplo – do qual a artista lança mão – para entendermos por que vivemos entre imagens é a camuflagem militar. A camuflagem é a arte de misturar-se ao meio; ela nos ensina que precisamos conhecer muito bem o ambiente em que vivemos se quisermos nos adaptar a ele. Hito Steyerl, portanto, chama atenção para a importância da camuflagem: a incapacidade de adaptação ao meio pode ser letal.

Em sua apresentação, Steyerl faz uso de uma série de imagens de slides digitais projetadas sobre uma tela ao fundo. Essas projeções servem para fins de ilustração – geralmente literal – da fala. Uma das primeiras fotos mostra um uniforme com estampa de camuflagem pixelada, desenvolvido pela Marinha americana (pioneira no desenvolvimento desse tipo de camuflagem). Mas por que motivo camuflar-se com roupas estampadas por píxeis?

Conferencia New School

Conferencia New School 2Slides usados por Steyerl na conferência performática

Se soldados se camuflam como píxeis para sobreviver, isso significa que o mundo em torno deles consiste em píxeis. Muito da realidade, portanto, está nas imagens moribundas que vagueiam pela superfície: algumas falharam, outras são constelações e operações “congeladas” em imagens que se transformam ao cruzarem as telas. Elas se reproduzem nos mais diferentes meios, fundem-se umas às outras, formam aglomerações, criam vida própria e afetam outras formas de vida. Também são afetadas: cortadas, coladas ou comprimidas. Perdem resolução, foco e definição. Diminuem: ficam mais leves e ágeis. Espalham-se como vírus, duplicam-se como genes, em forma de memes. Metamorfoseiam-se e camuflam-se, mudando de cor e de sentido. São “traduzidas, mal compreendidas, comprimidas, encodadas, deformadas”.

Ao constatar essa situação, Steyerl propõe que façamos uso de atributos e ferramentas que possam atuar efetivamente sobre esse novo meio imagético, que sejam mesmo capazes de interferir sobre a atual “paisagem midiática” em que estamos imersos. Algumas das possibilidades mais potentes que se abrem nesse contexto são a montagem e a pós-produção (de forma mais abrangente), que neste contexto não remetem à noção do pastiche pós-moderno. Nesse sentido as seguintes palavras de Nicolas Bourriaud, por mais que façam referência específica à criação artística, aplicam-se bem à proposta sugerida por Steyerl:

[Na palavra pós-produção], o prefixo “pós” não indica nenhuma negação, nenhuma superação, mas designa uma zona de atividades, uma atitude. Os procedimentos aqui tratados não consistem em produzir imagens de imagens (…) nem lamentar que tudo “já foi feito”, e sim em inventar protocolos de uso para os modos de representação e as estruturas formais existentes. Trata-se de tomar todos os códigos da cultura, todas as formas concretas da vida cotidiana, todas as obras do patrimônio mundial, e colocá-las em funcionamento. Aprender a usar as formas (…) é, em primeiro lugar, saber tomar posse delas e habitá-las.”

Hito Steyerl acredita que não é mais possível compreender nosso tempo e espaço presentes sem também entender as técnicas produtoras e pós-produtoras de imagem (“cinema, fotografia, modelagem em 3D, animação ou outras formas de imagem em movimento ou estática”). Ela sugere que “[o] mundo está imbuído do estilhaço de antigas imagens, bem como de imagens editadas, photoshopadas, remendadas a partir dos spams e da sucata.”

As imagens atravessaram as telas. Como nos ensinou Flusser, tornaram-se gatilhos e catalisadoras de eventos. A atual camuflagem militar, ao incorporar padrões digitais às estampas, demontra que o mundo atualmente também é feito de imagens. Para sobreviver neste mundo, precisamos nos mesclar ao meio: precisamos nos transmutar em píxeis se quisermos nos adaptar, mas também podemos nos tornar ruído – e cortar a transmissão dos sinais vigentes.

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DO SUBTEXTO AO PÓS-HORROR – A CINEFILIA VERSUS O CINEMA DE GÊNERO

Por Bernardo Moraes Chacur

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Devemos deixar o cinema morrer ou já seria um avanço matar a cinefilia, tal como a conhecemos e praticamos? Caso estejamos diante de uma crise, ela se concentra na indústria cinematográfica ou se instala igualmente em nossa cultura de valorização? Nas próximas linhas, tentaremos refletir sobre essa questão a partir das relações variáveis entre essa cultura e os filmes de gênero. Mas convém evitar o discurso decadentista: discussões semelhantes circulam, no mínimo, desde a década de 50.

O cinema foi, desde o começo, um empreendimento comercial. Como tal, incorporou-se aos gêneros populares entre o fim do século XIX e começo do XX: melodrama, faroeste, terror, ficção científica. Os dois últimos tinham o apelo adicional do ilusionismo permitido pela nova tecnologia: a combinação entre realismo fotográfico a capacidade para trucagens, que atraiu diretores como Murnau, Lang e Dreyer. Como resultado, obras como Nosferatu (1922), Metropolis (1927) e Vampyr (1930) não puderam ser negligenciadas nas discussões sobre um cânone daquelas primeiras décadas. A contradição entre arte, comércio e entretenimento não era, portanto, absoluta.

A ânsia por respeitabilidade surgiu igualmente cedo. Adaptação de um best-seller, O Nascimento de uma Nação (Griffith, 1915) pretendia-se reconstituição de guerra e panorama histórico-social (elementos que ainda hoje angariam indicações ao Oscar). Protótipo do prestige picture, pôde cobrar ingressos a preços exorbitantes e ser exibido na Casa Branca. De acordo com essa mentalidade, a arte deve exceder o ‘simples entretenimento’, abordando Temas Importantes, de preferência. Para atender a essa expectativa, o “cinema de qualidade” não pode ser sutil: a obra relevante precisa se anunciar claramente como tal.

O principal produto oferecido pela Hollywood clássica, no entanto, era o entretenimento. A produção média dos estúdios equilibrava-se entre imperativos comerciais, o moralismo sintetizado no código Hayes e a paranoia ideológica que culminou no macarthismo. Apesar desse cerceamento, artistas conseguiam abordar, de forma implícita, assuntos inaceitáveis em discussões abertas. Gêneros que não eram levados a sério, como o horror, a ficção científica e os women pictures, eram espaços privilegiados para essa subversão.

No caso do terror, com sua ênfase no poder da sugestão e atmosfera de incerteza, havia um reforço mútuo entre convenções de gênero e a criação de um subtexto, com ambos os aspectos se beneficiando dos mesmos recursos expressivos. Em várias instâncias, não há chaves de interpretação inequívocas: Vampiros de Almas (Siegel, 1956) é uma parábola sobre o medo da infiltração comunista ou sobre a homogeneização da sociedade? Essa ambiguidade não constitui um defeito. Demonstra, pelo contrário, a força da arte e da linguagem, capazes de renovar seus significados ao longo do tempo, extrapolando contextos e intenções de origem (termo, aliás, de aplicabilidade discutível).

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Não devemos esquecer tampouco que o filme dirigido por Siegel é primeiramente um suspense bem urdido e uma trama sobre monstros vegetais do espaço. Se valorizarmos as obras de arte somente em função de uma suposta dimensão alegórica, cairemos na mesma armadilha que criticamos acima, quando falávamos dos prestige pictures: se interessar mais pelo tema do que pela própria obra. As tensões mais interessantes costumam estar justamente na articulação entre narrativa, estilo e como ambos são mobilizados para expressar algo sobre o mundo.

Os sentidos de um filme não precisam se limitar às intenções declaradas pelo marketing dos estúdios. A crítica francesa do pós-guerra apontou superficialismo na tradição de qualidade e densidade insuspeita no cinema de entretenimento, rompendo com a inércia que condicionava cada interpretação a uma hierarquia de prestígio. O processo se repetiu várias vezes, com um gradual deslocamento de ênfase. Antes, defendia-se George Romero destacando o comentário social contido em suas cenas de canibalismo. Com o tempo, consolida-se um lugar-comum de que a profundidade do terror é obtida apesar de seus componentes genéricos. O que nos leva ao rótulo do Pós-Horror.

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Torna-se necessário, neste ponto, evitar alguns clichês, lembrando que:

  1. O terror nem sempre é mal recebido pela crítica e reabilitado a posteriori. Vide a boa acolhida das produções de Val Lewton, como Sangue de Pantera (Torneur, 1942), A Morta-Viva (Halperin, 1943) e tantos outros exemplos em décadas subsequentes;
  2. O subtexto não é intrinsecamente superior à articulação clara de uma mensagem;
  3. A aderência ou afastamento das convenções de um gênero não definem, por si só, o mérito da obra.

As três questões são bem demonstradas em Corra! (Peele, 2017), que traz uma temática racial em primeiríssimo plano, não segue à risca uma cartilha de horror e foi incluído em diversas listas de melhores do ano (1º colocado na enquete da Sight & Sound, 4º lugar na lista da Cahiers du Cinéma) – e que nem por isso deixa de ser um filme contundente.

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O gênero em busca de transcendência também não é novidade. Já em 1955, André Bazin falava de metawesterns (sur-westerns, no original), aos quais atribuía as seguintes características:

Digamos que o “metawestern” é um western que teria vergonha de ser apenas ele próprio e procuraria justificar sua existência por um interesse suplementar: de ordem estética, sociológica, moral, psicológica, política, erótica…, em suma, por algum valor extrínseco ao gênero e que supostamente o enriqueceria”.

BAZIN, André. Evolução do Western. In O Cinema – Ensaios (Brasiliense, 1991)

Como o próprio Bazin admite no artigo, essa separação não era absoluta. Faroestes tradicionais já continham traços autoreflexivos e vários dos exemplos utilizados – como O Preço de um Homem (Mann, 53) e Johnny Guitar (Ray, 54) hoje fazem parte do cânone do western, sem necessidade de prefixos. Dessa forma, os antecedentes sugerem que os gêneros sempre foram dinâmicos e capazes de incorporar complexidade estilística e temática, seja em iterações clássicas ou revisionistas.

Uma opinião bem diferente é expressada em matéria publicada pelo Guardian em julho de 2017: ‘How post-horror movies are taking over cinema’, escrita por Steve Rose e compartilhada quase 18 mil vezes. De acordo com o texto, o pós-horror se posicionaria contra um mercado composto de “variações de temas bem-estabelecidos: possessões sobrenaturais, casas assombradas, psicopatas, zumbis”. Rose não fornece qualquer exemplo relativo a esse mercado, mas menciona em linhas anteriores dois sucessos da Blumhouse – Corra! (já citado) e Fragmentado (Shyamalan, 2017) – ao elencar a rentabilidade desse tipo de filme.

Como alternativa a esse terror comercial, o autor oferece alguns títulos da A24 Films, como Ao Cair da Noite (Shults, 2017) e A Ghost Story (Lowery, 2017). São escolhas reveladoras: o último é um drama com elementos sobrenaturais enquanto o primeiro é um acúmulo pretensamente evocativo de silêncios, má-iluminação e conflitos mal esboçados. O filme de Shults demonstra vividamente que o problema não reside na ambição de transcender um gênero, mas na crença de que essa pretensão é garantia de qualidade.

As virtudes que Rose credita ao subgênero sempre estiveram presentes no Horror, como atestam os pesadelos políticos, existenciais e cósmicos conjurados por autores como Lucio Fulci (O Estranho Segredo do Bosque dos Sonhos, 1972), Larry Cohen (Foi Deus quem Mandou, 1976) e John Carpenter (O Enigma de Outro Mundo, 1982). A retórica do Pós-Horror propõe desconsiderar o poder subversivo desse cinema, privilegiando, em seu lugar, as noções mais restritas e antiquadas de respeitabilidade.

Ainda assim, parte expressiva da crítica e da cinefilia insiste nesses velhíssimos preconceitos, depreciando as convenções do terror sem jamais questionar os seus próprios clichês. Ignorando deliberadamente o passado, são como fantasmas à espera de um plot twist: mortos, sem saber, desde o início da trama.

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O Massacre da Serra Elétrica 2 (Hooper, 1986) acompanha o empreendimento da família Sawyer uma década mais tarde: com ganhos de escala e profissionalismo, servindo carne humana para um público ávido pelo tradicionalismo sulista e que ignora convenientemente a proveniência daquele alimento, bem como o sofrimento necessário para a sua obtenção.

O esconderijo do clã é um parque de diversões abandonado chamado Texas Battle Land, onde a montanha de ossos acumulada pelos assassinos deposita-se sobre a pilha histórica de cadáveres. A final girl salva-se arrancando uma arma das mãos cadavéricas das gerações anteriores (parafraseando Charlton Heston em discurso pró-NRA, from cold, dead hands) e repetindo o mesmo gesto de Leatherface no final do filme de 74, manifestação de um ciclo de violência sem perspectiva de término.

Execrada por uns, celebrada por outros (como a maior parte da filmografia de Hooper), é uma obra com vários potenciais de significação, alguns ainda mais pertinentes em 2017 do que na ocasião de seu lançamento. Visualmente vibrante, deliberadamente excessiva, é uma excelente demonstração da riqueza a ser encontrada no cinema de gênero ao longo de toda sua história, mesmo em suas encarnações menos prestigiadas – e sem necessidade de rótulos ou prefixos.

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Agradecimentos a Guilherme Gaspar, Juliana Fausto, Marcus Martins e Pedro Lovallo.

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CURAR O REAL PELO MÍSTICO – OS FILMES DE SERGIO SILVA E JOÃO MARCOS ALMEIDA

Por Arthur Tuoto

 

A sobrevivência do cinema está hoje na capacidade do jogo que ele pode criar no interior de um sentimento geral de saturação em relação às imagens.”

Serge Daney

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Os curtas-metragens de Sergio Silva e João Marcos de Almeida não são meros trabalhos de reverência. É claro que existe, aqui, uma veneração que é implícita a uma lógica de invocação de certos imaginários cinematográficos, mas toda a assimilação entre a iconografia e o suporte acontece muito mais através de uma dinâmica performativa, uma lógica de desconstrução que busca no procedimento a sua sublimação pessoal (um pós-maneirismo bastante consciente do seu lugar), do que uma simples dialética de piscadelas. Apropria-se a historiografia fílmica brasileira e internacional não como mero objeto referencial, mas elemento de relocalização, inventário pessoal que tem nessa autoevidência um arsenal de cura, de reintegração entre sujeito e cultura. A cinefilia não busca uma definição exata de seus fantasmas, mas encontra na atemporalidade de seus mitos uma possibilidade libertária de jogo.

Jogo daneyniano, necromancia sugestiva ou simplesmente afirmação da vida (afinal, os personagens doentes curam-se justamente através de uma conclusão celebrativa), o cinema aqui é um meio – trivial e mítico na mesma medida – e não um fim. Os filmes se dão em um movimento assumidamente iconoclasta que se utiliza da dimensão cinematográfica numa ordem maleável de tirá-la de um lugar e colocá-la em outro, embaralhar as peças, misturar os referentes, bagunçar as bases de sustentação. Desorientar, mesclar, jogar. A poesia está no ato desse ritual, na sua vocação bruta, consequentemente impura e, naturalmente, na sua poderosa mística.

A vida do fósforo não é bolinho, gatinho (2014)

Não é por acaso que o mundo em que se passam Febre (2017), Minha única terra é na lua (2017) e A vida do fósforo não é bolinho, gatinho (2014) soam como uma dimensão para desencarnados. Tanto em sua abordagem espacial e dramática – um anti-naturalismo muito frontal e incisivo – como na maneira como os personagens se portam e se deslocam, é possível perceber um estado de limbo. Um transe que se relaciona constantemente com uma ambiguidade, uma contaminação. São filmes onde ninguém está muito vivo e nem muito morto. Os cenários são esse lugar de passagem, palco que funciona mais como a frágil ligação entre mundos do que espaço principal de um acontecimento. Um lugar de encontro que nunca se limita a uma contextualização específica, que parece constantemente aberto, disponível para entidades de todos os tempos e círculos.

Essa fissura no espaço-tempo que os trabalhos promovem concebe uma artificialização muito característica de seus ambientes. O âmbito doméstico mais comum se transforma em uma dimensão anacrônica, uma zona de sonho. Quando o estoniano Robert se hospeda no apartamento de Marcos, em A vida do fósforo não é bolinho, gatinho (2014), acontece uma desestabilização emocional que infecta todos os entornos daquele universo. A paixão-doença do personagem se comporta como um disparador fantástico que evidencia o lugar do lúdico a partir de uma perspectiva melancólica e saudosista. O espaço da casa vira um espaço de desolação: miragens neon tropicais de um quarto fechado e escuro. O personagem é constantemente acometido de uma solidão incurável, da saudade de uma felicidade que quiça algum dia existiu. O apartamento é muito mais um dispositivo fantástico que media esses encontros incomunicáveis, do que um espaço de consumação amorosa propriamente. Existe um tom mítico, um ensejo para grandes acontecimentos, inclusive para embates de ordem transtemporais, mas o que se fundamente, no final das contas, é essa banalidade dolorida: a efemeridade de um amor platônico, a inevitável distância entre os afetos, a morte de um ídolo pop.

A vida do fósforo não é bolinho, gatinho (2014) não celebra uma iconografia, mas constrói sua dimensão a partir do que é transitório. Uma ida ao cinema, uma música cantarolada, um maço de Hollywood. O cinema entra como procedimento libertário que é ativo nessa dissolução, que não está interessado em reerguer os mesmos monumentos, mas em se colocar em lugares muito pouco cinematográficos. A pobreza do cenário, a caricaturização das luzes e toda a abordagem bruta que o filme articula gera um tom muito desolador que se autoconfigura nesse sua natureza anti-fílmica. Afinal, qual a melhor maneira de evidenciar o cinema se não negá-lo? Godard e Sganzerla, definitivamente dos maiores cineastas que entenderam esse jogo, são evocados aqui não a partir de uma mera referência, de um elemento influenciador evidente, mas tem seu vigor desconstrutivo encarnado na própria funcionalidade do curta.

Os três curtas, aliás, compartilham dessa vocação de um encontro que nunca é consumado, que pode até ir às vias de fato sexual, mas que tendem, inevitavelmente, a isolar o seu protagonista em uma busca pessoal solitária. Em Febre (2017), único curta dos três em que Sergio e João compartilham a direção, já que nos outros a colaboração acontece em diferentes camadas de diálogos diretos ou indiretos (sempre esotéricos), isso é ainda mais evidente. Após retornar ao Brasil depois de um período no exterior, Marcos procura uma reconciliação com o país, com as pessoas e, de diferentes maneiras, com um imaginário cultural que ao mesmo tempo que soa distante, é constantemente implícito em sua formação. O filme é o mesmo. O personagem tem o mesmo nome, sua irmã é interpretada pela mesma atriz (Gilda Nomacce), ele sofre da mesma Febre. Até a figura do ídolo pop volta em uma uma relação de espelhamento sugestivo (a morte de um lá: Michael Jackson, o fim simbólico de outro aqui: Kim Gordon e Sonic Youth). Nessa espécie de continuação espiritual do curta anterior, apesar de Marcos ter tido um outro fim, ele procura pela mesma coisa. Uma constante vontade de se exceder, fugir dos mesmos lugares, ainda que preservando antigos afetos e saudades.

Febre (2017)

O filme soa como um embate entre uma alienação que quer se preservar (a ideia mítica do país, as referências motivadoras de um ideal libertário de arte) e essa vontade de extrapolar os mesmo lugares. Uma identidade que se reafirma e que também se descontenta. A angústia desses mesmos amores (os boys, os cineastas, as frutas tropicais) e, em uma mesma medida, a liberdade do desapego. Toda a busca por uma catarse que dê conta dessa revolução pessoal é encenada através de uma relação ainda mais processual com o cinema. Se em A vida do fósforo não é bolinho, gatinho (2014) o procedimento ficava mais evidente por meio de um maneirismo bruto, aqui o cinema literalmente expõe seus mecanismos. Marcos e Marcelo, em certo momento quando o primeiro vela pelo sono do outro, na cama ao som de Dolores Duran, são literalmente acoplados a uma pan circular da câmera. O plano gira sobre o próprio eixo, integrando os personagens a esse movimento, para depois abandoná-los e continuar seu deslocamento, revelando tripés de luz, fresneis e outros elementos do set. Ao fim a sequência reencontra os dois personagens, agora difusos, refletidos em uma vidraça. O procedimento não é mera referência, mas engole os protagonistas a partir de uma lógica que não segue mais as leis da física, que se desestabiliza em prol da figura da câmera, se rearranja em reverência ao suporte.

Outra vez, o cinema se desconstrói a partir de uma alusão muito pessoal (a câmera de regras próprias, a cartilha afetiva geradora de princípios formais muito particulares), e ao mesmo tempo absolutamente universal. Afinal, o que de mais clássico existe do que um plano circular registrando um casal de amantes? Os três curtas parecem seguir uma progressão muito sofitiscada e ousada nessas recomposições que se fundamentam numa transparência de processos, que são bastante autoconscientes de seus procedimentos, mas nunca domesticáveis dentro de uma perspectiva puramente metalinguística. O risco é sempre iminente, o limite entre o filme (a alusão universal) e o anti-filme (a iconoclastia de seus autores) é de um equilíbrio rigoroso, o que gera uma vitalidade muito característica.

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Minha única terra é na lua (2017)

Minha única terra é na lua (2017) é, por enquanto, o ápice desse encadeamento entre uma dimensão pessoal de seu autor – o curta é dirigido unicamente por Sergio Silva – e esse jogo cinematográfico que sublima, que cura ou tenta curar essa doença, essa febre, essa efemeridade anacrônica de não pertencimento que perpassa todas as obras. O filme é uma entrevista com Sergio, que é interpretado por Gilda Nomacce, mas que de tempos em tempos é encenado pelo próprio diretor Sergio Silva. O trabalho rejeita as alegorias anteriores e se foca em uma relação muito direta a partir desse dispositivo do confessionário em que o personagem/autor responde 36 perguntas que vão do aparentemente banal a uma exposição mais profunda de seus anseios. Configura-se uma espécie de curto-circuito tríptico a partir daquele que talvez seja o elemento dialético mais essencial do cinema: o plano e contraplano. Uma espécie de conjuração cinematográfica que, através de um alinhamento de referentes pessoais, se articula numa terapia mística. O alter ego não existe mais: Marcos é substituído por Sergio, mesmo Gilda, atriz que sempre interpretava a irmã, é parte do mesmo microcosmo individual.

O curta não precisa mais buscar referentes externos, mas se vale das questões do seu diretor dentro de uma ambiguidade que é característica dele próprio como sujeito. O jogo agora parte de uma só via. O exorcismo é, finalmente, praticado em primeira pessoa. O autor se desnuda dos maneirismos, da caracterização anti-naturalista e da artificialização espacial (que até existe nas primeiras cenas do filme, mas que se potencializa justamente na oposição realista e hesitante da não interpretação de Sergio), para dar lugar ao que de mais simples e essencial o cinema resguarda: uma conversa a dois. O que dentro da ação performática funciona muito mais como um monólogo, já que as perguntas partem de um lado só, mas a maneira como o filme se apropria da dinâmica da conversa, do bate e volta que motiva uma continuidade, gera um tom muito íntimo, uma aproximação doméstica (literalmente, já que pelo que tudo indica estamos na mesa de uma cozinha) que harmoniza ainda mais a proposta. Minha única terra é na lua (2017) abriga, sem a mediação característica dos filmes anteriores, o mote medular desse cinema: a reencenação mística como uma sentença de cura. O cinema-ritual que era praticado até aqui idealiza nessa abordagem objetiva uma ontologia própria. Um modo de estar no mundo que é desimpedido, pleno em sua irresolução e em suas crenças: os signos, os astros, o cinema.

Sergio Silva e João Marcos de Almeida confrontam a historiografia cinematográfica com mistério e adoração. Um jogo que constantemente se relaciona com um ocultismo particular, um remodelar esotérico de ícones que encontra um sentido muito novo – e inegavelmente contemporâneo – a partir de uma história universal da linguagem e do tempo em constante reescrita. O passado e a nostalgia podem soar como emblemas marcantes, mas a subversão dessas maneiras, o procedimento desses hábitos é, sem dúvida, coisa grandiosa que pertence ao futuro.

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TITANIC (1997) – UM IDEAL NEOCLÁSSICO VINTE ANOS DEPOIS

Por Arthur Tuoto

Memória espectral, o cinema é um luto magnífico, um trabalho de luto magnificado. E ele está pronto a se deixar impressionar por todas as memórias enlutadas, isto é, pelos momentos trágicos ou épicos da história. São então esses enlutamentos sucessivos, ligados à história e ao cinema, que, hoje, ‘fazem caminhar’ as personagens mais interessantes. Os corpos enxertados desses fantasmas são a matéria mesma das intrigas do cinema.

Jacques Derrida em entrevista para a Cahiers du Cinéma (abril de 2001).

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Vinte anos atrás, James Cameron fez da morte um renascimento. A partir da recriação milionária de uma tragédia, o cineasta norte-americano concebeu não apenas um dos maiores filme-eventos da história, mas relocalizou a própria historiografia daquele cinema. Uma perspectiva clássica que se focava na fundação de uma iconografia própria, que rejeitava a simples reverência ou reciclagem como atributos histriônicos e autoconscientes de uma narrativa novelesca, mas partia em busca de uma reconquista pelo que é efetivamente inocente.

Jean-Marc Lalanne, em texto sobre Titanic para a Cahiers du Cinéma em 1998, afirma que a obra de Cameron representa um ponto de inflexão do cinema americano, uma transição do seu maneirismo para um sonho neoclássico. Distante das visões apocalípticas ou irônicas de diretores como Oliver Stone e Irmãos Coen, abordagens que direta e indiretamente marcaram o imaginário estadunidente noventista e, definitivamente, longe de qualquer caricaturização oitentista, Cameron procurou, nesse luto glorificado, ressuscitar uma grandiosidade atemporal, uma primazia do contar que tem na universalidade arquetípica do amor e da morte uma perspectiva narrativa que se completa.

Perdemos essa ingenuidade? É possível encontrar, hoje, um drama fabuloso tão grandioso e referencialmente autêntico – mesmo libertário em seu jogo historiográfico – como foi Titanic em 1997? Ao mesmo tempo que o trabalho parte de uma perspectiva artesanal muito comovente nessa restituição de um sonho clássico, é evidente que ele funda essa mediação sobre uma base bastante cara ao seu autor: a tecnologia. E não estamos falando apenas da tecnologia que permitiu a reconstrução virtual do navio e de sua tragédia grandiosa, mas em como a obra assume a artificialidade como um mote dramático. O cenário idílico é recriado, da sua luz falsa alaranjada – uma filiação muito pouco solar – a assépticidade dos ambientes de um navio novo em folha. Nas externas o que brota é essa luz inautêntica – mais ilusória ainda na icônica cena do casal protagonista na ponta do navio – e nas internas, a reprodução ideal e intocável de tudo, dos objetos aos ambientes. Cameron assume aquele espaço como um estúdio magnificado. O tempo não passou aqui. É tudo novo e fresco, conservado numa ordem de simulacro, de virtual não apenas na dimensão do efeito especial, mas sintético em todos os seus entornos imaginativos. O navio é um estúdio de cinema, um sonho clássico naufragado que o diretor tenta recriar.

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Nem por isso Titanic é um obra nostálgica. Mais do que uma reverência, o que se procura é uma continuidade, uma leveza que nos aponte para aquilo que já sabemos que vai acontecer. Amor e morte se complementam a partir dessa fantasmagoria, desse espectro cinematográfico que ronda o filme, mas que nunca é exatamente incisivo em sua orientação. Uma sutileza que se reflete na maneira como Cameron leva a história, já que estamos diante de uma obra grandiloquente, mas também muito leve. Até a morte aqui é convidativa, imersa numa perspectiva de sonho, de pesadelo distante onde somos espectadores protegidos. É evidente que a construção tensional existe, mas o fim é guiado por uma delicadeza, um aconchego, uma tragédia contemplativa produzida para ser acolhida numa cadeira almofadada de cinema. O fato real é muito mais mote de fantasia, de cenário disparador de efeitos lúdicos (ainda que frontais), do que contextualização crua dos eventos. O cinema testemunha, mas remodela, recompõe a realidade a partir do mote novelesco e sedutor.

Existe um senso de imersão tecnicista, que Cameron potencializou ainda mais em Avatar (2009) com o elemento 3D, que resguarda o filme nessa elegância imperativa. O diretor parte de um arsenal técnico muito pesado justamente para nos guiar com mãos leves. As panorâmicas externas em CGI, o deslizar da steadycam, os corpos despencando em ângulos primorosos, tudo reitera um ponto de vista onipresente que testemunha aquela situação com a devida distância, com o devido balançar harmônico das ondas.Titanic é uma fábula em que autoria e aparato se unem, acima de tudo, em benefício de uma experiência de espectador. É como se tudo fosse matematicamente programado para ser o mais eficientemente assimilado, do tempo de cada olhar a iminência dramática das cenas, em uma perspectiva ao mesmo tempo hábil, afável e devastadora.

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A autoria é equilibrada por essa visão tecnológica, contemporânea em suas relações com o suporte e a imagem, mas absolutamente aberta a demandas populares, articulando-se numa dimensão que ao mesmo tempo que nunca isola a visão de seu autor, compreende a eficiência do seu produto, integra-se ao seu meio e a engrenagem mercadológica dele. Seria James Cameron o mesmo anti-autor – o artesão freelancer – que David Fincher é nos dias de hoje? Dois diretores em que o estilo fala mais sobre a exigência entretiva do que sobre uma visão individualizada do trabalho, onde a tecnologia funciona, constantemente, em prol dessa reivindicação, dessa fruição do clássico que encontra a solicitação astuta contemporânea. E se Fincher rejeita a ingenuidade – é inegável que vivemos a era das narrativas cínicas -, se ele refunda o clássico com uma acidez que é característica dos nossos tempos, o cineasta, atualmente, é um dos que melhor concilia esse abraço a evolução dos suportes – a assimilação tecnológica como mote dramático atemporal – com uma ideia de produto cinematográfico, de entregar não apenas um filme, mas um trabalho que cumpra seus desígnios industriais na cultura que pertence.

Não que Avatar (2009) não tenha dado uma continuidade digna a esse sonho neoclássico, já que ele até o deslumbra ainda mais – tanto no sentido do tecnologia como um acontecimento (o primeiro grande filme em 3d), como dessa sentença inocente do romance – mas um só filme não pode dar conta de um panorama tão extenso. É claro que existem constantes tentativas de retomar esse ideal, mas diferente de Fincher, diretores como James Gray, Christopher Nolan e Paul Thomas Anderson (para ficarmos numa tríade clássica contemporânea de intenções bastante específicas entre si) estão muito mais empenhados em uma visão individualizada e isolada, em construir a sua própria ideia de clássico partindo de uma inflexão autoral muito incisiva, do que em se integrar a uma demanda. Não é por menos que os três diretores compartilham de um gosto por uma produção grandiosa, mas que conserve a tecnologia em um campo muito mais limitado, prezando por um realismo, efeitos práticos e até uma vontade em perpetuar o suporte da película.

GAROTA EXEMPLARGarota Exemplar (2014) – David Fincher

Cameron e Fincher compartilham de uma iconoclastia quase maquiavélica. São homens que acreditam que para perpetuar alguns mitos é preciso abrir certas concessões. Não existe a romantização do processo (tão cara para Gray), mas a assimilação de uma evolução pragmática inevitável da linguagem, de uma eficiência pela fraude. O que é Titanic se não um grande circo tecnológico encenado na impessoalidade de um estúdio? A renovação vem pelas vias de suas próprias mentiras. E em Titanic, literalmente, do seu próprio ideal de morte. Ao magnificar esse luto, Cameron transforma a memória espectral de uma tragédia e de um cinema em disposição irreverente, em uma luta não pelo que é novo, mas pelo que sempre pertenceu ao presente.

Vinte anos depois, o cenário é deveras menos inocente do que o diretor de 1997 previu, mas sua base motriz tecnológica caminha a todo vapor. Para além de Fincher, cineastas como irmãs Wachowski, Steven Soderbergh, Johnnie To e Robert Zemeckis, apostam constantemente na tecnologia como catalisadora do clássico – talvez não tão empenhados em uma lógica industrial como Fincher, mas até certo ponto tradicionais em seus propósitos. Um elemento agregador de forças que ao mesmo tempo que reitera um dinamismo plástico  – até mesmo uma nova concepção de plano cinematográfico – viabiliza um controle obsessivo por cada detalhe posto em tela. O ideal de hoje é um ideal de domínio, de controle pelos processos. Um equilíbrio entre as novidades que motivam novas mediações espaciais e velhos preceitos que mantém viva a disposição de uma boa história a ser contada.

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RENASCIMENTO EM TEXTURAS E LUZES

Por Gabriel Papaléo

Testemunhando o pictórico no fim do mundo de uma natureza que vive e morre sob os próprios termos. Os vestígios e registros daquilo que acaba e vive em igual medida. Assume o ponto de vista totalmente difuso de sugerir olhares múltiplos de uma coruja, de um cavalo abandonado por quem nunca vemos, das sombras que sobem as montanhas, de um fotógrafo privilegiado diante da terra alienígena que está diante dos nossos olhos. Salta dessas diferentes percepções para afirmar uma impossibilidade de assimilação do todo, de momentos que deixam lacunas, de preenchimentos de intuição mais fortes que informações visuais. O digital como ferramenta impressionista de fragmentação e reorganização da imagem, texturas diversas que se confundem para com o zoom preciso esclarecer. Constroi seu mundo através de neblinas e reflexos, de um som de extracampo que dá conta de todas as transformações simultâneas que remetem tanto a uma origem da Terra como de fragmentos de um reinício. Das ficções-científicas especulativas mais conscientes do potencial apavorante do lugar que localiza sua narrativa.

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Enquanto visão de mundo cinematográfico, um manifesto pelo potencial destruidor do digital. As chamas da floresta ou os raios no céu são consequências naturais do perigo sentido ao longo da narrativa – surpreendentemente modulada para um conceito aparentemente difuso – mas são elementos de violência imagética menos incômodos que a presença do ruído, do grão digital que se move lentamente, que forma abstrações através de paisagens deformadas lentamente. O poder do tempo em destruir uma imagem para renovar o mundo que secretamente observamos. Sleep has her House, com a ambição de imersão num estado de transe, vive num curioso e pouco habitado lugar de incerteza sobre a projeção cinematográfica nos tempos de transformação e morte do cinema: tem suas fundações estéticas nos signos de uma cinema tanto de horror quanto de ficção-científica de um assombro com o desconhecido que se impõe bem dentro da experiência da tela escura, com a projeção em tela enorme; mas constroi o pensamento através justamente de uma questão imaterial da imagem, da maleabilidade do quadro e da textura, de um cinema essencialmente digital que não enxerga na superfície da película uma âncora de presença física no mundo. Sua exibição parece enxergar como irrevogáveis tanto as ferramentas de exibição digital num computador quanto na experiência da tela escura tão sagradas em cinematografias como de Tacida Dean, Peter Tscherkassky e Paul Thomas Anderson.

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Uma progressão notável na filmografia do Barley, como se culminasse diversas ideias dos mundos criados e destruídos pelo galês nos seus filmes anteriores. Alia com harmonia sua vocação para olhar impressionista que vira expressionista de paisagens com seus curtas mais focados na abstração de texturas que o aproximava a Brakhage, como o Irresolute (2015). Aqui, o pictórico das texturas se configura dentro de uma ação de horror de espaço como mais um elemento cênico, seja na figura de um céu alaranjado que deixa o mundo respirar por um momento, seja na cicatriz deixada no ambiente pela correnteza implacável numa das fusões ambiciosas do filme. A beleza e perigo do natural, ficção-científica e horror como visões complementares de mundo, as duas faces da curiosidade, tentando adentrar um lugar não pensado para a sua presença, que progride lentamente até o fim apocalíptico que parece que esteve ali desde o princípio.

Foi uma das sessões mais inacreditáveis da minha vida. Sei que acaba muito confessional nisso daqui que vejo como diário emocional do que tive com o filme, mas sinceramente saí catatônico. Não sei se conseguirei ver novamente numa tela grande, mas tenho certeza que não me esquecerei do que tivemos ali.

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O ACASO QUE REGE O MUNDO – O CINEMA DIGITAL DE JOHNNIE TO E MICHAEL MANN

Por Gabriel Papaléo

Em certo momento de Warriors – Os Selvagens da Noite (1979, dir. Walter Hill), todas as gangues se reúnem para um debate numa praça, um amontoado de pessoas ocupando um lugar através da desobediência civil para esclarecer questões éticas de suas vivências enquanto sociedade. O uso da locação no cinema de gênero como forma estrutural de construir mundos através de recortes de lugares reais, especialmente em produções de baixo orçamento, indicam muito uma devolução das imagens ao mundo ao redor, uma forma de abandonar o estúdio para ressignificar o que é cotidiano. Essa prática é velha, transformada em manifesto já nos tempos de Nouvelle Vague, e no limite esteticamente um estúdio pode reproduzir a vivência das ruas de qualquer cidade com rigor imagético devido, mas esse peso simbólico não perde força: levar essa ação às ruas devolve a consequência pras ações que ali enxergamos. Existe algo forte em ver o lugar onde se vive representado em tela, e em acompanhar rostos desconhecidos em um mundo paralelo ocuparem esse ambiente alterado em prol da ação. Filmes como Los Angeles Plays Itself (2003, dir. Thom Anderson) e mesmo Vancouver never Plays Itself (2015, dir. Tony Zhou e Taylor Ramos), o video-ensaio do Every Frame a Painting sobre a falta de representação de sua cidade como ela mesma nas telas, constróem nessa ideia de imaginários cinematográficos a identidade cultural da cidade – e até no que isso tem de opressor.

É da escritora americana Jane Jacobs uma frase que exemplifica o contato humano na cidade como modelo social de resistência: “Modesto, sem propósito e aleatório como possa parecer, o contato com o outro nas ruas é a pequena mudança que faz crescer a qualidade de vida pública”. Nos olhares perdidos da cidade, lugares e pessoas são ressignificados. Historias contidas naquelas pessoas se suspendem todos os dias no caos da rotina da cidade, onde a pressa suprime o contato além do visual, e o cotidiano passa a se formar pelo desencontro. A cidade é representada como ambiente de encontros, ocupada pela ação, caótica pelas consequências. Estar na cidade é uma ideia cívica, um poder de ocupação que transforma um ambiente de trânsito em um lugar de convivência, de identidade cultural. Inserir a ação do filme de gênero na cidade é um manifesto porque traz o peso historico de um lugar habitado, composto ao longo de gerações, detentor de jornadas múltiplas que não temos acesso mas sentimos enquanto observadores.

Nesse sentido, o papel do indivíduo que busca a manutenção de uma certa ordem urbana costuma ser o protagonista eleito tanto por To quanto por Mann. A obsessão pelo controle de encenação dos dois diretores se reflete na própria dramaturgia dos filmes, com seus personagens extremamente eficientes na busca pela volta à normalidade. Em Fogo Contra Fogo e em PTU, dois dos melhores filmes dos diretores, essa compreensão dos personagens em tentar moldar o mundo é expressada na forma que a encenação apropria a cidade na estrutura de travelogue como forma de ocupação, mas sob estéticas diferentes. A Los Angeles de Mann é de locações realistas, luzes naturais, com o mitológico sendo construído com elementos cotidianos, e as luzes revelando a solidão dos protagonistas; a Hong Kong de To trabalha com locações cuja estilização é de um trabalho de marcação de luz muito preciso, de um potencial mitológico de sombras planejadas que ocultam as mentiras da conspiração policial do filme, a ponto de criar uma cidade quase imaginária. Ambos no entanto se aproximam em estética através da materialidade da película, que é responsável pelo palpável das luzes em ambos os filmes, pela forma de estilização dos sentimentos dos personagens através do ambiente – na cidade fantasma de To, na cidade inflada de personagens e espaços de Mann. E quando os diretores migram para o digital, a estética de registro da visão de mundo muda radicalmente – o que era palpável se torna frágil, em escalas diferentes e um tanto complementares.

A difusão das luzes e suas fragilidades.

Em 2004, Colateral inicia o cinema digital na filmografia de Michael Mann, e com ele a configuração visual da cidade muda. Desde o processo cotidiano dos taxistas no início, o detalhe nas mãos nos motores de carro e as conversas dos passageiros triviais no banco de trás de Max, a dimensão que mais importa ao filme é do registro mosaico de uma cidade em movimento. Os lugares populosos, cheios de trânsito e luzes, com o céu no crepúsculo que se despede da rotina dos habitantes de Los Angeles para então cair a noite, e o ambiente então a se esvaziar. Agora não há mais sombras, não há mais esconderijos estilizados; tudo é iluminado, exposto, a cidade luminosa que nunca dorme graças a captação do digital. Mais da metade de Colateral se passa em becos obscuros, em ruas sem trânsito, sempre vigiadas pelas torres iluminadas que têm uma presença imponente no fundo dos quadros mesmo sendo impessoais, monumentos abandonados testemunhas tão impotentes na ação quanto nós espectadores. A cidade de milhões de habitantes pensada em volta do trabalho e do movimento constante, como o matador vivido por Tom Cruise frisa com frequência, palco para a eficiência máxima de suas ações violentas enxergadas por ele apenas como trabalho e cujas consequências são inevitáveis num registro pictórico que carece das sombras de PTU ou Fogo contra Fogo. As sombras só surgem no final, e nunca absolutas, confundem mais que esclarecem.

Colateral

Como os personagens ultra-eficientes de Mann, existe também em Vincent uma vocação anárquica no combate às instituições – uma contradição sempre interessante nos protagonistas do diretor. Bate de frente com o chefe abusivo de Max, sempre tenta trazer a dimensão enorme da cidade como algo opressor – e mesmo assim trabalha pela ideia de controle, da ordem, uma visão niilista que assimila o impessoal como parte do mundo. Talvez por entender o acaso como agente que o personagem simpatize com o trabalhador comum, com quem está sozinho a vagar numa Los Angeles hostil.

Que a maioria dos obstáculos narrativos do limitado roteiro de Colateral sejam em volta do acaso – a queda do corpo no carro, a chamada de última hora dos policiais, a dimensão pessoal do confronto final, a falta de luz no metrô no clímax – só torna uma decisão arrojada a escolha de Mann em associar a impessoalidade da cidade a um movimento de sorte. É como se a ordem social invisível que regesse Los Angeles fosse menos uma questão de ordem e mais de como lidar com a falta de controle, o improviso como sobrevivência. Vincent tenta a todo momento manter-se no plano, mas é na base do improviso que a progressão dos acontecimentos se dá – como o jazz no clube da cena do terceiro assassinato. E é pelo improviso que ele cai, quando a aleatoriedade da cidade ajuda Max, o taxista nativo de LA que só consegue agir quando as luzes caem completamente, que anda pelas quadras da cidade com a dimensão de fuga para um lugar paradisíaco mas que está destinado a começar seu dia no metrô como qualquer habitante dali que percebe que não está no controle de sua rotina.

Colateral

Não por acaso Colateral termina no metrô onde começa Fogo contra Fogo; é o seu oposto, afinal. Se lá a alteridade entre oponentes era pela impossibilidade da fuga no aeroporto, aqui é pela impessoalidade do cotidiano. O fardo é ficar na cidade de luzes, onde o homem comum só vence o assassino eficiente ao atirar pelas sombras, no escuro que não está ali para ameaçar ou criar a potência mitológica de uma imagem, e sim por acaso.

Quem vence o confronto é essa aleatoriedade, a competência das pessoas que agem para controlá-la não é páreo para o implacável da cidade digital. É notável o tempo que Mann usa nos filmes para demonstrar o processo de trabalho de seus personagens, porque é aí que entendemos a dimensão trágica das ações que devem provocar e combater, e se percebe que não é suficiente colocar quem é mais apto para o trabalho se a base do confronto, da violência que paira aqueles lugares, acaba arrasando tudo. São personagens frequentemente registrados fora de foco, ofuscados pelas luzes e a fumaça das fábricas, que vivem pela manutenção de uma ordem que se prova falida, e esses são filmes românticos nas perdas pessoais porque não existe contato humano que sobreviva a obsessão de conter o caos, registrado em um digital que só lembra do quanto o ambiente pictórico pode ruir a qualquer momento – e a câmera de Mann está lá para testemunhar o preço que se paga por tentar controlar um mundo frágil.

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O digital limpo, a fragilidade no ambiente físico.
Já Johnnie To, que começou a explorar o digital com Don’t Go Breaking my Heart (2014), sai dos ambientes urbanos que costuma construir as sequências de ação de seus filmes de crime e vai para dentro do estúdio mostrar a fragilidade do digital. Nos seus dois últimos filmes, Escritório e Três, o diretor lança mão de uma luz de estúdio que revela a falta de materialidade do ambiente, e concebe toda a estrutura narrativa de obsessão dos personagens em volta dessa nova perspectiva de mundo que ele atribui ao uso do digital.

Em Escritório, a historia transcorre toda dentro de um estúdio que visivelmente emula um galpão, com armações de metal expondo as paredes, as luzes todas artificiais, e uma arquitetura de cidade visivelmente planejada na artificialidade do utilitarismo. Não é por acidente que o visual aproxima tanto de Playtime, outro filme de encenação planejada com detalhismo para expor o humor que existe nessa ilusão de controle, de motor perfeito que rege a geografia de uma sociedade. No filme, todas as relações de poder geram uma melancolia em alguma medida – seja na figura do chefe de Chow Yun-Fat, seja no ato final de retirada da personagem vivida por Sylvia Chang – por conta justamente de uma irrealidade material da cidade que não se comenta, não se torna metalinguagem, e é apenas vista ao redor e sentida pelos personagens. Os quadros de To frequentemente mostram dezenas de funcionários enfileirados, perdidos num coletivo não de pertencimento, mas de obrigação social. A alegoria musical e a encenação marcada exibem todo um esquema dos mecanismos de ação daquela cidade de estúdio, esculpida sob a ideia capitalista do progresso puro, e por isso tão irreal em suas matrizes.

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Em Três, a relação é tão radical quanto: o hospital onde quase toda a ação do filme transcorre é feito de corredores iluminados de forma chapada, tudo sempre às claras, sempre revelando a natureza falsa daqueles cenários que escondem as conspirações que são descobertas à medida que os personagens obcecados pelo controle progridem na investigação. A câmera de To passeia pelo hospital em diferentes frentes de ação (o policial de Suet Lam na espera, o policial de Louis Koo lidando com a corrupção, a doutora de Zhao Wei mediando a relação dos criminosos com os policiais) como forma de idealizar aquele amálgama de sociedades distintas em convívio, para construir uma tensão gradativa que vai corroendo essas noções de civilidade aos poucos, mostrando que mesmo num ambiente neutro como o hospital elas são conflituosas.

A mudança mais frontal de Escritório em comparação a Três, no entanto, é na forma que o caos do terceiro ato se configura; a maior violência contra aqueles personagens corporativistas é o rearranjo de suas posições, um fim de relações mediadas pelos contratos, que acabam consumidas porque no arranjo capitalista as mudanças não são físicas no ambiente, mas no crivo social. No hospital de Três, a ordem é uma questão palpável – o silêncio é a regra, a calma uma forma de exercer a civilidade ali dentro – e a subversão disso, quando as coisas realmente saem do controle, é exercida através do tiroteio, do confronto através da violência física – o plano-sequência do clímax sendo a síntese disso, uma câmera lenta que evidencia uma organização meticulosa de um caos absoluto.

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Se os adeus em Escritório são cerimoniosos nos seus gestos, em Três são visivelmente destrutivos. O que aproxima os dois filmes é o registro digital dessas luzes, desses ambientes falsos colocados numa perspectiva de ordem/controle vs. caos/reorganização. Enquanto espectadores intuímos as dissonâncias nos ambientes através da luz marcada e dos limites frágeis das placas de metal do galpão de Escritório e das paredes divisórias do hospital de Três – e o choque é maior por conta da assimilação dessa mesma afirmação nunca ser discutida pelos personagens. A conspiração é textual como em muitos filmes de To (Breaking News, Drug War, Vingança, A Missão, e o próprio PTU), mas é na desconfiança do registro daqueles ambientes que frequentamos que o diretor organiza novas formas de alteridade com os personagens que acompanhamos, como nós tão reféns de estrutura programadas socialmente, do preço que pagam pela manutenção do poder.

Seja no estúdio estilo Playtime (1967, dir. Jacques Tati) em Escritório, ou no hospital de novela de Três, em diferentes vias, sob o digital de fragilidade pictórica ou de revelação da falsidade de uma luz marcada no ambiente, o cinema de To e Mann trabalha nesses filmes de crime a ideia de uma sociedade do capitalismo como ambiente obsessivo falso. O controle é apenas um dispositivo ilusório cujo interesse é apenas dos poderosos, sejam de corporações criminosas legais ou ilegais – e cabe ao indivíduo se impor diante da ordem para sobreviver a esse acaso. É o trem em Colateral, transitório e implacável, palco de um mundo que vê o indivíduo como indiferente, ou sala de operações que é destruída a bala em Três, ambiente social seguro fragilizado em segundos. O jazz e o inesperado.

A luz digital é aqui, portanto, um sinônimo de fragilidade da compreensão de ordem no mundo dos personagens. Um lugar de instabilidades, como os prédios idênticos em metrópoles diferentes de Hacker (2015, dir. Michael Mann), os corpos disformes nos pixels da boate que Crockett e Tubbs entram em Miami Vice, ou a baixa definição das multidões refletidas nos vidros do táxi em Colateral. Os rostos são superfícies vivendo num mundo prestes a ruir como a imagem digital que os capta. Não por acaso, o que afina os finais desses filmes é a imposição do caos, de perdas emocionais. Não existe controle formal como antes em um mundo de multiplicação de imagens por dispositivos mais acessíveis, e, querendo ou não afirmar preceitos antigos do formalismo cinematográfico, deve-se levar em conta que a imagem enquanto registro (e especialmente percepção) mudou.

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DIALETIZAR SEM ESPERANÇA DE SÍNTESE – DA LINGUAGEM À FENOMOLOGIA

Por Diogo Serafim

Dialetizar sem esperança de síntese

Era preciso deixar a morte insistir na imagem. Abrir a imagem ao sistema da morte. (…) entre a artimanha e o risco, entre a operação dialética e o sintoma de uma rasgadura, entre uma figuração sempre firmada e uma desfiguração que sempre se interpõe (…) existe um lugar, um ritmo da imagem no qual a própria imagem busca algo como o seu desabamento. Então estamos diante da imagem como diante de um limite escancarado, um lugar que se desconjunta. O fascínio aí se exaspera, se inverte.

Georges Didi-Huberman, Devant l’Image

O não-saber desnuda. Essa proposição é o ponto culminante, mas deve ser entendida assim: desnuda, portanto eu vejo o que o saber ocultava até então, mas se eu vejo eu sei. De fato, eu sei, mas o que eu soube, o não-saber desnuda novamente.

Geoges Bataille, L’expérience Intérieure

Reside na alma um ímpeto ascético que se estabelece no desejo de querer superar o que vemos e o que nos olha. Ir além do que nos é apresentado. Se o cinema é a transposição de um estado de espírito para um fluxo de imagens, no que consiste, propriamente, o ato de assistir a um filme? É o fenômeno da ilusão da experiência e, como fenômeno, não se apresenta necessariamente como um código a ser destrinchado, e sim muitas vezes como um mistério a ser sentido, fundamentalmente consolidado como expressão e não como discurso. Consiste no evento ultrapassando o significado, podendo até se apresentar como frustração, mas uma frustração bastante específica que jamais se resigna, que sempre instiga e impacta.

Devemos buscar uma fenomenologia da imagem que se apresente para nós como abstração plena da realidade, sem buscar necessariamente uma significação determinada pela razão, mas uma absorção sensível transcendental e arrebatadora capaz de elucidar todos os seus predicamentos. É como Glauber Rocha afirma: “para mim cinema é imagem e som, o resto pouco importa. É o drama existindo na dinâmica visual, diferente do drama literário, contado. A câmera não é narradora de fatos, mas instrumento de criação. O cinema deixou de ser romance para ser poesia, e quando você escreve uma poesia, um conto ou faz um filme, não faz mais que materializar um sonho, materializar um produto do inconsciente que não é controlado pela razão”. Ali reside toda a força da expressão, a inelutável modalidade do visível¹ que se manifesta tanto como fisicalidade como abstração. Aqui valem os escritos de Merleau-Ponty: “todo visível é talhado no tangível, todo ser tátil prometido de certo modo à visibilidade, e que há invasão, encavalgamento, não apenas entre o tocado e quem toca, mas também entre o tangível e o visível que está incrustado nele”.

Isso não significa necessariamente uma recusa à hermenêutica. A fenomenologia pode se apresentar ou aliada a uma abordagem mais fechada, baseada nos códigos estabelecidos pela linguagem fílmica, ou como uma interpretação mais subjetiva e amorfa, que se apresenta a mim não por meio de predicados definidos, e sim como lembrança, afeto, enlevo². A experiência do cinema não como análise determinística de um sistema fechado, e sim como um sistema pessoal, amplo e imprevisível, um processo dialético que nunca chega a uma síntese, mas sempre se descontrói, se reconstrói, desaba e ergue-se novamente.

A morte do cinema como o paradigma maior da imagem, a morte como um arcabouço das imagens, onde a sua política se sente, não se explica. Um ato extremista de fé, tematizar a morte como rasgadura e projetá-la simultaneamente como meio de recoser todas as rasgaduras, de compensar todas as perdas. Maneira de incluir dialeticamente a sua própria negação, fazendo da morte um rito de passagem, uma mediação rumo à ausência de toda morte3.Permitir a morte da comunicação para o nascimento da experiência. O filme vive em mim, eu entendo não porque me foi dito, mas porque senti na pele o fenômeno.

O cinema nascendo do trauma, do momento em que permito perder-me a mim mesmo. A obra como uma construção absoluta que se apresenta a mim como recordação da minha própria experiência sensível, onde confronto a minha existência com a imagem que me observa de volta.

Devemos fechar os olhos para ver quando o ato de ver nos remete, nos abre a um vazio que nos olha, nos concerne e, em certo sentido, nos constitui.

Feche os olhos e veja

A imagem dela entrara na sua alma para sempre, e palavra alguma teria quebrado o sagrado silêncio do seu arroubo. Seus olhos o tinham chamado e sua alma saltara a tal apelo. Viver, errar, cair, triunfar, recriar a vida para além da vida!

James Joyce, A Portrait Of The Artist As a Young Man

O cinema sempre esteve em algum grau subordinado a uma manifestação natural. Ora, filma-se o que se vê. Isso não está necessariamente associado ao quão manipulada foi a mise-en-scène ou a dramaturgia, e sim à simples ontologia plena da matéria que nos é apresentada. Lisandro Alonso se abre em seu filme A Liberdade (2001) para essa ontologia, aqui transposta como rotina, como movimento, como contemplação. Logo nos é apresentada a solidão do lenhador Misael conforme ele vai realizando suas tarefas diárias. Não cabe aqui definir significado às atitudes do nosso protagonista – basta dizermos por exemplo que quando, após terminar seu almoço e pôr-se repentinamente a observar o horizonte com o olhar moroso, Misael vai até sua barraca, deita-se em sua cama e descansa com o mesmo olhar desolador e enigmático, olhando para além da câmera, como que para mim. E eu também me senti sozinho.

Alonso logo em sequência já me reconforta: desliza sua câmera da escuridão vazia da barraca (do eu) até a imensidão holística da natureza. As árvores, os pássaros, a terra, o céu. E eu me senti parte daquilo. Quando Misael lava suas mãos, eu lavo as minhas, quando ele seca seu rosto, eu seco o meu. Quando Misael liga para Juan e pergunta de Micaela e Roxana, sentindo saudade das mulheres de sua vida, eu me lembro e também me dói. Eu também sinto saudades.

A sequência mais comentada do filme costuma ser a final, na qual Misael olha para a câmera, conversando com a equipe técnica do filme, das mais impactantes quebras de quarta parede na história do cinema. É quando Alonso se mostra na realidade como um fabulista de olhar retratista, é quando percebo que aquele universo no qual me adentrei tão absolutamente, que me entreguei, a personagem a qual acompanhei tão diligentemente não passa daquilo: uma personagem. Uma imagem. E isso torna todo o turbilhão de sentimentos que veio antes ainda mais devastador e presente. Quando a representação tem a força de fenômeno. O cinema faz isso: reconcilia a soberania do Eu com o infinito do Outro. Porque a narrativa do Outro reside em mim. E ali se dá a nossa própria narrativa.

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A Liberdade (2001) – Lisandro Alonso

O filme ‘tabula rasa’ (1989), de Peter Tscherkassky, é um filme seminal no sentido em que a morte do cinema é aqui a morte da ilusão do controle. Pode funcionar muito bem como defesa dos estudos de Metz também – porém o que realmente me interessa aqui não é o discurso simbólico do cineasta, e sim como ele é constantemente abstraído de sentido pela câmera e no fim se reapresenta na figura do corpo feminino. Apresenta-se não como linguagem, mas como expressão. Eu não posso categorizar no que consiste o imaginário do autor, mas posso reorientá-lo a meus termos, o meu inconsciente sendo o discurso do Outro, o meu desejo sendo o desejo do Outro. Empregando conceitos da psicanálise lacaniana, Tscherkassky tenta aqui desestruturar e simultaneamente reconciliar o real, o simbólico e o imaginário, desfazendo e refazendo constantemente este nó borromeano, sistematicamente rompendo com cada um destes conceitos para dissociá-los e associá-los em seguida. O objeto de desejo que quando finalmente se apresenta ao alcance de minhas mãos, desaparece, se esconde, continuamente foge do meu controle. Quando a ilusão do cinema desfalece e o que resta é apenas a constatação de que tudo não passou de abstração. Mas a dor permanece. A imagem dela resiste na minha lembrança. Mesmo que sempre se deteriorando, cada vez mais distante. O filme consiste em uma luta contra o esquecimento, o corpo da moça constantemente me sendo negado em sua totalidade até que ela desaparece de vez da minha memória. É a consolidação da frase final do conto O Aleph, de Jorge Luis Borges: “A nossa mente é porosa para o esquecimento, eu mesmo vou falseando e perdendo, sob a trágica erosão dos anos, os traços dela”.

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Tabula rasa (1989) – Peter Tscherkassky

    Nos dois exemplos de filmes acima a minha experiência se deu basicamente em um processo de identificação, com o protagonista de A Liberdade e em seguida com o autor (Tscherkassky) e sua expressividade. A identificação no cinema geralmente se dá nessa alternância constante entre o Eu e o Outro em uma experiência lacaniana/lévinasiana de experienciar o amor e a alteridade.

Contanto, no filme Não é Um Filme Caseiro (2014), propõe-se não propriamente uma experiência por identificação, mas uma experiência de aniquilação do Eu. O filme não precisa necessariamente me abarcar como uma figura ativa de identificação com Chantal, sua irmã ou sua mãe (por mais que haja tal empatia), mas sim como uma entidade que é naturalmente invasora naquele meio5. A identificação se dá com a matéria fílmica, com a análise das possibilidades políticas de um exercício tão extremo. O que há para dizer? Vale a pena discursar sobre o que o filme propõe acerca do papel da tecnologia nas relações humanas atualmente, sem dúvida. Sobre como a árvore presa ao chão, resistindo os fortes ventos, serve como analogia à mãe da diretora e a ela própria. E podemos tentar compreender o que Chantal quis dizer com “por isso que ela é assim” quando a funcionária da casa a pergunta sobre sua mãe. O que ela quis dizer com assim?

Eu sei, eu compreendo perfeitamente, mas não me atrevo a explicar. A linguagem não abarca. Não me atrevo sequer a pensar excessivamente sobre o tema por saber que adentrei um campo hermenêutico muito maior do que eu – o do holocausto, o da perenidade do trauma, onde a compreensão não se dá por linguagem, e sim por alteridade. Quando a face do Outro me assola, me aniquila, pois ela representa ali o maior dos atos políticos.

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Não é Um Filme Caseiro (2014) – Chantal Akerman

    Seria interessante também comentar sobre a obra recente de um dos mais geniais diretores do século XX: Jean-Marie Straub. Após a morte de sua esposa Danièle Huillet, espetacular diretora e sua companheira em praticamente toda a sua filmografia, surgiu um aspecto muito particular e recorrente em seus filmes desde a tragédia a qual ele foi submetido. Reside nas imagens de filmes como O Joelho de Artemide (2012) e Diálogo de Sombras (2013) um desespero latente escondido na aparente serenidade das imagens. Reside sobretudo uma avidez desesperada em recuperar a imagem da esposa falecida, uma luta impossível contra a impermanência do sonho, a necessidade de recuperá-lo pela abstração do cinema.

    A morte do cinema é a morte deste como meio de comunicação direta, como manipulação, a morte de um discurso materialista hierárquico e o nascimento do meu protagonismo como espectador. O que eu depreendo está de acordo com o que floresce em mim, não com o que me foi imposto. Devo orientar os misteriosos frêmitos de beleza que ecoam em mim, sem esperança de síntese, onde eu transcendo o espectro e finalmente me uno com o holismo intangível do Outro. Quando o fenômeno transcende o discurso. E finalmente o cinema pode acabar se tornando algo como a cena final do filme de Edward Yang Mahjong (1996), quando em um caos capitalista de cores, movimento e anonimato, sem nenhum nexo causal plausível, duas pessoas possam se encontrar e, em um ato de fé, se apaixonar.

  1. James Joyce, “Ulysses”.
  2. Aqui talvez valha uma análise mais cuidadosa acerca da constituição neurológica do que chamamos de sentimento e razão e como essas faculdades se associam, temas brilhantemente trabalhados por António Damásio em seu livro “O Erro de Descartes”.
  3. Georges Didi Huberman, “Devant l’image”.
  4. Georges Didi-Huberman, “Ce que nous voyons, ce qui nous regarde”.
  5. Percebe-se aqui o que poderia gerar um dos maiores problemas estruturais nessa teoria fenomenológica do cinema: estar preso a um filme, estar à mercê de seus valores políticos e uma necessidade de buscar empatia nas figuras das personagens, nas quais deveria supostamente me espelhar/admirar/personificar enquanto espectador. Ora, isso não é necessário, posso fazer uso da fenomenologia da matéria para criticá-la epistemologicamente, uma crítica aliada à essa apropriação sensível da apresentação em questão. Eu não estou à mercê de nada, a matéria está ali para me fazer repensar minhas convicções, para me apresentar novos conceitos e possibilidades sensíveis, claro, mas seus predicamentos também podem ser recusados ou reorientados por mim.
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COSMOLOGIA COTIDIANA: O CINEMA DE HONG SANG-SOO

Por Pedro Lovallo

Alguns artistas são acusados de jamais abandonarem a sua zona de conforto, insistindo nos mesmos temas e padrões estéticos. Que Hong Sang-soo seja visto por muitos como um diretor de filmes iguais não é surpresa, e isso certamente diz muito sobre o seu trabalho. Esse reducionismo, porém, deixa de captar o que o torna tão único: o coreano é um cineasta de acúmulos: seja de elementos retomados e ressignificados ao longo de sua filmografia, seja a partir de gestos, frases e imagens que rimam dentro de uma mesma obra, obedecendo a um sistema muito particular.

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Seus filmes recorrem a estruturas dípticas e trípticas, reconstituem eventos, os embaralham cronologicamente como um bolo de cartas. No universo do diretor, os elementos se acumulam num grande filme de várias horas, mas cada obra é também um mundo fechado em si mesmo, onde uma ação aparentemente banal pode ser recontextualizada mais à frente e situações idênticas podem ser reencenadas com personagens diferentes ou modificações sutis. Nesse universo as coincidências de fato acontecem e o cotidiano pode se converter em realismo fantástico: contradições poderiam ser explicadas por uma viagem no tempo, nunca mostrada ou sequer sugerida (como o final de A Câmera de Claire, 2017); encontros e desencontros parecem orquestrados por uma força superior (o cineasta, certamente) e figuras secundárias e sem diálogos podem ganhar uma importância quase mística (como o limpador de vidros no quarto de hotel em Na Praia à Noite Sozinha, 2017). Não se limitando a contar histórias, Hong mobiliza o mecanismo narrativo em prol de um jogo de reconfigurações. Embora o sul-coreano seja frequentemente comparado a outros diretores de tendência verborrágica, talvez seja mais interessante propor uma ligação mais improvável: entre Hong e David Lynch.

A lógica do jogo do diretor não necessita de explicações. Hong não está interessado em refletir sobre a metafísica que move as engrenagens de seus filmes, mas em assumi-la quase ontologicamente enquanto agente catalisador de sua encenação. Sob esse aspecto, suas repetições assemelham-se às estruturas lynchianas de obras como Cidade dos Sonhos (2001) ou Império dos Sonhos (2006). Hong não é propriamente um cineasta do onírico, mas a forma como ressignifica a banalidade cotidiana tem um quê de sonho; ou pelo menos busca captar a excentricidade inerente ao dispositivo de narração. Tanto ele quanto Lynch se aproveitam da força motriz das estruturas ficcionais: o sul-coreano embaralha a trama para operar a partir dessa confusão, enquanto o criador de Twin Peaks busca no embate entre sonho e realidade a criação de sua atmosfera. Não se trata, em nenhum dos casos, de construir um quebra-cabeças a ser desvendado segundo uma chave narrativa inequívoca; mas de estabelecer uma organização que possibilite o funcionamento desses universos. A trama emaranhada não é um truque simplista pedindo para ser desmascarado, mas a lógica possibilitadora da livre encenação das ideias de ambos os diretores.

É um universo que se expande a cada novo trabalho, habitado por pessoas bebendo, conversando e transando – e no qual muitos dizem não enxergar nada além de trivialidades, como se a vida não se resumisse em grande parte a isso. É um cinema que se dedica às pequenas coisas – conversas despretensiosas, flertes desengonçados e mesmo incômodos, o constrangimento do silêncio que impera no meio do diálogo – sem exaltá-las, mas trazendo-as ao primeiro plano, buscando a maneira ideal de representar o cotidiano em toda a sua complexidade banal.

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Seus longos planos funcionam como ilhas, separados por elipses. Cada cena possui autonomia, sem deixar de se comunicar, no entanto, com o restante do filme. A unidade (filmografia) é composta por unidades (filmes) formadas por outras unidades (planos) e cada qual constitui um universo. Quando os personagens desandam a falar, Hong não recorre ao plano/contraplano, mas a uma câmera que desbrava o ambiente, buscando com movimentos laterais ou zooms a expressão dos atores ou algum objeto cênico. A câmera pode flutuar pelo local por minutos a fio, observando a resolução de um conflito, mas em ritmo variável: de forma deliberada e detalhista, captando diversas nuances da cena (como no diálogo final de Na Praia à Noite Sozinha); ou de forma mais dinâmica, respondendo a momentos de maior intensidade (como na discussão entre patrão, funcionária e amante em O Dia Depois, 2017). Após o próximo corte, outros takes podem ter menor duração: uma mudança de ambiente, um personagem caminhando, até que outro plano venha para ficar, encontrando gradualmente as próprias possibilidades, captando novos detalhes. Um mesmo enquadramento pode adquirir novos significados – a exemplo de O Dia Em Que Ele Chegar (2011), que explora variações das mesmas situações, alternando personagens e diálogos, ressaltando a diferença entre um momento e outro.

Hong opera de modo aparentemente simples, é um virtuoso que evita chamar atenção para si; o plano-sequência é sua identidade, não um movimento autocongratulatório e gratuito. Não por acaso, gestos mínimos tornam-se fundamentais e vem daí a importância da presença física e da expressão corporal de seus atores. É o que torna Kim Min-hee uma atriz perfeita para seus filmes, capaz de tornar pequenos momentos de espontaneidade (um sutil cerrar de olhos, balançar a cabeça levemente para trás ao sorrir constrangida, os gestos embriagados em Certo Agora, Errado Antes, 2015) pequenos milagres a serem captados pela câmera, eternizados em sua pura graciosidade. O cinema de Hong Sang-soo é uma máquina de assimilar gestos e nuances, à espera não apenas da consumação de sua vigorosa encenação, mas também da espontaneidade de seus intérpretes.

Discussões sobre a morte do cinema inevitavelmente desembocam na reflexão sobre o papel do autor. Seja na iconoclastia de cineastas que encontram sua forma de trabalhar na desconstrução formal e narrativa, seja na revisita a elementos clássicos em um projeto estético calcado na reverência a um cinema de outrora ou mesmo em obras que se apoiem na relação digital x película; não parece existir uma categoria que abarque completamente um cineasta de estilo e procedimentos tão particulares como os de Hong Sang-soo.

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O sul-coreano encontrou em elementos básicos da linguagem cinematográfica – o plano-sequência ou o zoom, por exemplo – sua maneira de construir uma marca autoral facilmente reconhecível sem recorrer a uma hiperestilização agressiva. Enquanto se beneficia das facilidades do digital, a máquina cosmológica que é o cinema de Hong Sang-soo busca na praticidade de certos recursos tradicionais uma maneira de reinventar estruturas clássicas e, portanto, construir sua própria linguagem. Mesmo simples escolhas estéticas podem ser vistas sob o viés da desconstrução formal – pensemos em como os movimentos de câmera e zooms substituem o corte –, reafirmando seu cinema como uma arte de reorganização de elementos em prol da construção de uma lógica associativa muito cara à sua cosmologia particular.

Enquanto alguns enxergam apenas um cineasta em sua zona de conforto, Hong Sang-soo continua a reinventar sua própria maneira de dar forma ao cotidiano. E continuamos acompanhando esse fluxo de acúmulos com a certeza de encontrar novas velhas sensações a cada filme.

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EDITORIAL: COMO ENGANAR A MORTE

Por Arthur Tuoto

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Quando André Bazin afirmou que “o cinema ainda não foi inventado”, o crítico francês sentenciava no horizonte de um ideal realista inalcançável a impossibilidade do seu próprio objeto. Ao mesmo tempo que o cinema progride cada vez mais em relação a uma mediação  espacial realista (o som, a cor, o 3d), ele invariavelmente descaracteriza o seu suporte (a tv, o vídeo, o virtual). Ou talvez, inversamente, se configura com mais expressividade dentro de sua própria natureza heterogenia. O cinema morreu ou está simplesmente nascendo em uma perspectiva híbrida que é de sua estima propriedade?

A especificidade, ela sim, está morta. A saturação – de suportes, de linguagens, de jogos entre os mais variados elementos – estabelece uma relação antagônica que se alimenta das próprias crenças. Se por um lado a iconoclastia e a hibridização dão o tom de uma infindável dimensão de obras que tem na desconstrução o seu mote de morte, de reestruturação urgente, de relocalização obsessiva, por outro “o classicismo pertence ao futuro”. Em uma mesma medida que Godard usa a tecnologia – a maior evidência dessa progressão em perspectiva ao mito baziniano – para desvirginar o cinema de seus suportes, livrá-lo de um estado intocável e situá-lo numa dimensão que é doméstica e libertária, que é subversiva pelos próprios meios, James Cameron tem nesses mesmos avanços a oportunidade perfeita para reiterar a universalidade do clássico, o ideal blockbuster anti-doméstico que encontra no gigantismo de uma dramaticidade ancestral a sua comoção atemporal. Godard e Cameron são mitos que se completam dentro da unidade de duas trajetórias opostas que buscam a mesma coisa: enganar a morte.

O cinema articula, em plena e constante jornada, antigas e novas eras tecnicistas que se depositam ao longo de um século e pouco. Perdemos a especificidade, mas ganhamos uma ontologia tão variada que mal cabe em si. Uma maleabilidade de universos que, hoje, produz a sua própria realidade, concebe a sua própria experiência imersiva que tem na descaracterização variada do seu suporte uma reinvenção imprescindível.

Existem aqueles que buscam um retorno, um resgate clássico que, diferente de Cameron, encontram em um purismo das velhas formas uma relação artesanal com o seu objeto. O caso é que a busca idealista não deixa de ser a mesma: ainda se salva pela aparência. Seja Griffith, Godard ou um estatuário egípcio, nossa natureza de eternizar é uma natureza do engano, de fraudar o tempo e forjar a vida pela imagem. Essa falsa polarização (a tecnologia e o artesanal)  busca justamente atender a variações de um mesmo mito inalcançável. A invenção do cinema está na sua constante reinvenção, na sua assimilação divergente. O que buscamos, com essa edição da Multiplot, é pensar e repensar os limites dessa falsa morte. Um fim que pode até ser concreto em relação a uma perspectiva tecnicista (os suportes, os meios), mas que encontra na utopia da sua própria impossibilidade (a sentença baziniana) um incessante itinerário de recomeços.

Enfim, não é precisa tomar um lado quando todos os mestres buscam o mesmo santo graal. Entre rituais de reverência, destruição de ícones e conversas com os mortos, fraudar a tragédia desse fim tem se tornado nossa maior especialidade. Reconhecemos a iminência dessa sorte de recomeços e por isso mesmo nosso trabalho aqui é o de evidenciar – celebrar – uma paisagem radical. A renovação tanto a partir de uma intervenção direta do que é estabelecido, como de um retorno reverente, de um resgate do passado que sempre pertenceu ao futuro (o clássico, outra vez). Entre vencedores e vencidos, deixar o cinema morrer é deixar essa transformação acontecer.  Uma operação que tem na dimensão histórica não apenas a apreensão simbólica do fim dessas eras, mas a perspectiva próspera de uma constante reescrita.

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NOTAS SOBRE O NOVO ESPECTADOR

Por Jean-Louis Comolli

(Cahiers Du Cinéma – Abril de 1966)

Traduzido por Felipe Leal

Um dos objetos da filmografia tanto quanto da ciência é o de alcançar um conhecimento científico das qualidades (acuidade, penetração, finura) da visão de um filme. Para fazê-lo, não há outro caminho que não o da submissão da existência mesma destas qualidades (coisas abstratas) às condições (que imaginamos como sendo as mais tangíveis) desta visão.

Mas se, para a maioria, esses fatores materiais são eles mesmos suscetíveis a todas as variações e adaptações (nada de mais frágil, no fundo, do que as normas técnicas), há pelo menos um que encontramos sempre e constantemente, ao ponto de assemelhar-se à uma necessidade, uma condição indispensável à toda visão, e até mesmo, ademais, ao ponto de se passar por algo natural, por ordem normativa, ontológica: é a obscuridade da sala. Eu gostaria que houvesse um número de razões técnicas para justificar e impor a visão dos filmes em salas escuras: talvez, de fato, a luz do ecrã sofresse com a luz do dia. Mas não chego a crer que, até aqui, a escuridão tenha sido regra absoluta, que motivos ópticos tenham sido suficientes para fazer do escuro o hábitat natural do cinema. Com efeito, todos os outros espetáculos – teatro, circo, ópera, concertos – se acomodam, em graus diferentes, à meia-luz (quanto isto não se faz, ao exemplo do teatro antigo, em plena luz solar). O cinema sozinho, nascido, entretanto, nas relativas penumbras dos cafés, se desenvolveu e se constituiu rigorosamente às lacunas do dia, não sofrendo de outra luz que não aquela que ele mesmo projeta. Os sociólogos e psicólogos já o remarcaram suficientemente: a escuridão da sala tem outras funções e outros efeitos que ultrapassam a facilitação de uma melhor visão do filme… se ela é feita de imperativos técnicos, ela é o lugar de fenômenos de outro modo complexos, que colocam em jogo, através e para além do filme e sua visão, dentro do espectador e através dele, o homem e a sociedade – ou seja: de uma certa maneira, a função sociológica e psicológica do cinema.

Aqui, um parêntese: que fique bem entendido que o cinema, se é arte, é também linguagem, sistema de signos que, por si sós metáforas mais ou menos amplas, significam. E precisamente aquilo que é mais marcante nele – como na literatura, ligada às palavras, linguagem das linguagens; expressão, portanto, mas talvez, nele, mais absolutamente que nela, na medida em que a imagem retorna mais brutalmente ao mundo como espírito do que as palavras, instrumentos do espírito enquanto mundo – o notável é que a arte a ele se encontra tão ligada, confundida com a vida: as imagens ao mundo, a beleza à significação. Não é, portanto, vão, considerar o cinema sobretudo sob o ângulo de suas significações e funções (fica subentendido que ambos só se elaboram e se distinguem por e através da escritura de cada cineasta – nós o chamamos de “mise-en-scène”), ou seja, mais sob o ângulo de suas formas e questões formais que aqui se colocam que sob aquele de seus temas (os temas, ao menos, que as obras propõem).

A sala escura é, então, o teatro dos mitos, ao mesmo tempo suscitados e suscitantes daqueles que a tela carrega. Nós conhecemos suficientemente os fenômenos de fascinação, de transferência, de êxtase, as projeções dos espectadores que entram em transe junto com o filme. E o cinema que nós chamamos de cinema de entretenimento (até o dia de hoje, o mais óbvio do cinema, qualquer que seja seu valor estético) não faz mais que responder a essas necessidades, que as entreter. Fazendo assim, ele continua a entreter, como também torna mais indispensável ainda, se é possível, a escuridão da ambiência. Há, portanto, entre o cinema de entretenimento e a sala escura um contrato firme e antigo, permanentemente reconduzido, um sendo para o outro, e reciprocamente, o meio de sobrevivência. E teríamos vergonha de decidir qual dos dois mais contribuiu para manutenção das convenções sobre as quais o outro se funda. Porque, nisto que chamamos de produção corrente, se é verdade que ali encontramos constantes, estereótipos, histórias, morais e personagens convencionais, se essas convenções passam mesmo aos olhos de um sem-número de espectadores como leis imutáveis, a escuridão da sala, nisto, guarda quase que inteiramente a pesada culpa. Há um condicionamento da sombra, que joga às claras, como um reflexo, dentro do espectador que entra numa sala, pendente, vê o desejo, formas por ele já reconhecidas, esquemas experimentados, de todo uma parafernália perfeitamente homologada.

Em primeiro lugar, e talvez o mais importante, o sentimento de sair do mundo dos vivos; de adentrar, numa escuridão próxima àquela do confessionário ou dos aposentos de dormir, as bordas costeiras dos sonhos. A sombra das salas incita o espectador a não considerar o cinema senão como uma maquinaria engenhosa de sonhos, mas estes, aqui, infelizmente, quase sempre os mais vulgares e fúteis; quer dizer, como se por uma negação do vivo, por uma colocação do mundo entre parênteses (mesmo se se trata de um mundo também ele grosseiro e fútil). Quaisquer que sejam para o espectador as vantagens medicinais (catarse, encarnação de frustrações, etc.) que resultem dessa utilização “negante” ou “sublimante” do cinema, ele conduz invariavelmente a um equilíbrio, a uma estabilização das necessidades e ofertas, das perguntas e respostas – as mesmas curas (posto que suas evidências estão dadas) trazidas às mesmas mazelas renascendo das mesmas e tantas feridas falsas – equilíbrio, ou talvez melhor dizendo: anulação dos efeitos às causas, estagnação total. Tal é o esquema de funcionamento da indústria cinematográfica, quando ela marcha em pleno rendimento. E se o cinema não fosse nada além dessa indústria de leis simples – dito de outro modo: se ele não tinha grandes cineastas, artistas para driblar o jogo e falsear as cartas, para desestabilizar tudo aquilo que a osmose produtor-consumidor tem de tranqüilizante para um e para o outro (tratando as convenções à maneira avessa, desapontando as ilusões primárias pela intervenção de ilusões outras), não há dúvidas de que ele se desenrolaria em circuito fechado, que repetiria ad infinitum as mesmas fórmulas (porque elas produzem os mesmos efeitos), recomeçando invariavelmente as mesmas séries, como um velho vira-lata cujos truques valeram-lhe a fama.

Em todo caso, o cinema hollywoodiano (os filmes B como “ambiciosos”, mas sempre excetuando-se os filmes de Hawks, Hitchcock, Lang, Ford, Fuller, DeMille, Sternberg, Preminger, Ray, Mankiewicz, etc., brevemente colocando os autores lado a lado porque também foram os seus esforços os de margear Hollywood, traí-la), o cinema hollywoodiano tem apresentado durante mais de 30 anos o protótipo do circuito fechado (onde a oferta e a demanda parecem perfeitas uma para a outra): uma era de ouro não do cinema, mas da indústria, era de ouro real, posto que suas necessidades são imediatamente satisfeitas, tal como um parêntese no Tempo, que se exclui da História, que permanece uma zona de sombra na história do cinema ela mesma, o volante de sua evolução. E compreendemos melhor, agora, que os nostálgicos do cinema americano assim o são, no fundo, não pela era de ouro de uma arte – todo período da arte sendo uma tragédia e se inscrevendo, desta maneira, não somente na história das artes, mas na dos homens –, mas protetores da nostalgia, como um paraíso perdido, desse estado que é de qualquer maneira pré-natal, dessas relações de ordem fetal entre o espectador-filho e a indústria-mãe: isto que os partidários absolutos do cinema americano amam no cinema não é, nem jamais foi, as belezas, as audácias ou novas formas que dispensassem os grandes franco-atiradores de Hollywood; foi, ao contrário, e ainda o é, tristemente, uma satisfação automática e despreocupada de seus desejos (se podemos chamar esses impulsos de desejos).

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Que não reiteremos à exaustão a grandeza do cinema americano, se isso que podemos chamar de ‘sua grandeza’ é a perpetuação de um estado e de rapports larvais, em que todo o perigo é banido, todo acidente impossível, breve; se é esta colocação do cinema e do espectador enquanto excluídos do mundo e excêntricos ao tempo. Não há grandeza alguma nesse mecanismo perfeito. Eu vejo a força do cinema americano mais concentrada em cineastas que são irredutíveis e que, longe de se satisfazerem sem complexos desta maravilhosa bolsa sem flutuações, tentaram (penso no Lang de Fúria (1936) e Suplício de Uma Alma (1956); no Ford de As Vinhas da Ira (1940), A Longa Viagem de Volta (1940) e Legião Invencível (1949)) deter as engrenagens por dentro. E este é um fato tão considerável que pode ser bem o sucesso de seus filmes, o espectador ali sempre tratado como adulto e como homem, e não uma besta que não cessa de delirar acordada.

O único progresso que conheceu o cinema em circuito fechado que se exclui ele mesmo do movimento das formas cinematográficas é um progresso ainda de tipo industrial, feito de excessos visando o aumento da demanda e do consumo por exagero publicitário das necessidades e pela inflação das seduções (é o caso das superproduções, esforço último de ampliar um mercado supersaturado e bocejando de êxtase). Quanto às inovações estéticas, ousadias e invenções estilísticas, elas são bem entendidamente o feito desses rebeldes do sistema que foram em maiores e menores graus de consciência os autores; e eles se fizeram não para as salas escuras, mas, cada vez, precisamente, contra elas.

Tanto a existência quanto a novidade ampla disso que podemos chamar de “mal-entendido” não têm, elas, nada de surpreendente. Entrando no cinema, o espectador é de imediato prisioneiro da sala escura: condicionado a ela para receber certas impressões, para esperar certas séries bem tipificadas de emoções, ele deve galgar num verdadeiro esforço de resistência, empreender a decolagem, apreciar o menor filme de autor, filme que, por definição, não se conforma às normas fixadas pela tradição da sala escura. Uma vez no escuro, é preciso que o espectador permaneça acordado para compreender qualquer coisa no filme que se recuse a considerá-lo como um vigilante adormecido. (O condicionamento, o hábito, exercem, aqui, um grande papel: o espectador médio, por menos que tenha freqüentado as salas escuras, só terá curiosamente retido, de suas experiências ao estado de semi-adormecido, isso que nelas foi pura repetição, uma identidade, um conformismo: sua cultura cinematográfica apaga o extraordinário e só retém os clichês, as convenções, que passam então aos seus olhos como tendências naturais do cinema, tudo aquilo que o contraria passando, a contragolpe, por monstruoso ou por falho; e nós sabemos também que as crianças “mergulham” com rapidez nas narrativas mais complexas e menos taxadas, não se assustam diante das mais febris e breves elipses, manifestam uma abertura de espírito que uma longa prática do cinema como “diversão” tem, por efeito, de nunca encerrar.

É por isto que, sem dúvidas, o cinema de autor se limita a ser tolerado, e ainda de muito mau humor, pelo espectador. É que há um hiato entre a condição do espectador na sala escura e a condição de receptividade ou de participação lúcida que o exige todo o filme que não é de “consumação”. Por quê? Ou o filme constituiu o prolongamento natural da sala obscura, anti-câmara dos sonhos, e então o espectador, estando excluído do mundo, nega os outros e se nega a si mesmo tanto quanto o outro; ele está sozinho, segue o fio confortável e doce de um sonho que o envolve como num casulo; o mundo que ele tem sob os olhos desfila suas figuras com a bonança de um sonho; há uma hipnose, uma simpatia que tanto a infração às formas prévias quanto aos temas prometidos estilhaçaria dolorosamente – ou isto, ou bem o filme se vê, apesar e além da sala escura, prolongamento e comentário do mundo de fora; então o espectador está perdido: por um lado, ele permanece sujeito ao condicionamento da sala e se torna carregado, por ela, em direção à satisfação de suas expectativas – que o filme não pode oferecer –; por outro, ele se vê confrontado pelo filme ele mesmo (indivíduo) e os outros, incansavelmente transportado das imagens para o mundo, processo de retenção da consciência que a sala escura, por sua vez, contraria.

Podemos, então, adiantar que há uma antinomia entre o cinema responsável (que de Griffith a Renoir e de Lang a Godard nós pensamos ser o cinema moderno) e o lugar de seu exercício. O mal-entendido nasce de que o cinema moderno (que é uma afronta do mundo enquanto arte: ver Godard) deve sempre passar pelo escuro das salas. É necessário ao cinema moderno salas às claras, que não absorvem ou aniquilam, como o faz a escuridão à clareza vinda da tela; que a façam irradiar ao contrário, que coloquem um a face do outro, bem como a igualdade do personagem e do espectador, saídos todos os dois das sombras.

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O que caracteriza o cinema moderno é precisamente o fato de que o herói do filme é o espectador; que o filme constitui, para o espectador, a aprendizagem de seu papel ingrato e central. Como compreender um cinema que nos coloca em cena se não podemos saber onde estamos e quem somos? O cinéma-vérité, a enquete filmada, o testemunho, a entrevista, tudo isto em que os grandes cineastas do passado foram precursores e que teve tantas influências, diretamente ou não, nos de hoje, é a mais afiada ilustração desta necessidade de clareza, desse ato de consciência, necessário hoje ao novo cinema tanto quanto ao novo espectador. O intenso uso, por parte da televisão, dos métodos do cinéma-vérité não é acidental: o pequeno quadro é o único (se) que abre com freqüência à “sala clara”; ademais, rever na televisão grandes mestres do cinema o confirma: se não somos maníacos pela sala obscura e se não nos higienizamos ao ponto de recriar mais ou menos suficientemente as condições de visão obscura na sala de cinema; se, portanto, nós revemos estes filmes numa semi-clareza propícia à atenção, creio que os assistiríamos de outras e melhores maneiras que em sala, sobre um plano de confiança e igualdade como o são as receitas que não sustentam mais a ilusão e as belezas que não carregam mais sentido.

Pensando bem, esta sala clara é também um sonho: mas não mais o sonho de um cinema que foge: o sonho de um cinema que participaria da vida e seria, enfim, verdadeiramente nossa reflexão sobre ela (é nesse sentido que nós podemos, hoje, “viver um filme”). Como disse meu precursor Mourlet falando de seu Brigitte e Brigitte (1966): “é um filme onde entramos para reencontrar a realidade, e do qual saímos para perder o retiro e adentrar na ficção da rua”. Ninguém duvida que por muito tempo, então, o cinema novo (e, como tal, entende-se: o cinema que nos importa) suscitará esse novo espectador que virá julgar o mundo e se conhecer a ele mesmo, posto que em sua verdade o ecrã manifestará todos os dois. Este novo espectador, retomando as palavras de Sternberg, não deixará de demandar para si “mais luz”.

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