Festival de Brasília: Mostra Competitiva de curtas – Parte 2

Por Kênia Freitas
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As melhores noites de Veroni (2017), Ulisses Arthur

Tentei (2017), de Laís Melo

Esses dois curtas trazem o corpo feminino como temática e como forma de exploração material do filme. As protagonistas femininas em ambos colocam as relações de afeto e poder que perpassam as vidas das mulheres em evidência. Em As melhores noites de Veroni, de Ulisses Arthur, esse corpo – o corpo da protagonista Veroni – está em impasse: de um lado a clausura de um apartamento apertado, da vida familiar e de um relacionamento em crise com o marido caminhoneiro quase sempre ausente; de outro, as aulas de canto e a performance na noite. O curta de apartamento, usa desse espaço limitado para aumentar o efeito de aproximação com Veroni e o seu cotidiano trivial. Interessa, assim, menos a resolução das incertezas da personagem ou a imposição bem delineada de um conflito narrativo e mais um aproximar afetivo desse corpo feminino e dos seus deslocamentos.

Em Tentei, de Laís Melo, os procedimentos iniciais de entrada no filme são semelhantes: o espaço íntimo de um quarto, vemos inicialmente um casal (homem e mulher) na cama e  acompanhamos os gestos mínimos e silenciosos dessa mulher que se arruma para sair de casa. O procedimento então se altera completamente, estamos no espaço impessoal de uma repartição pública, que descobriremos ser uma delegacia policial. O filme orquestra então de forma engenhosa um plano e contraplano entre Glória (a mulher que vimos sair de casa) e o funcionário público que a atende. Embora ambos ocupem a mesma sala, cada um dos personagens existe em uma pulsação de vida diferente. O atendente segue protocolarmente os procedimentos para registrar a denúncia de abuso e estupro marital de Glória, o seu discurso conforma-se no registro institucional. Glória pouco consegue expressar-se pelas palavras, o seu discurso é aquele que não consegue ser formulado de forma adequada ao protocolo. Plano e contraplano colocam o espectador entre duas imagens que não poderão se encontrar de fato na tela. Por fim, diante da impossibilidade, na sequência final do curta, a esse corpo que não consegue produzir discurso sobre a violência que sofre, o que resta é voltar-se contra si e também contra a câmera, contra a sua transformação em imagem.

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Peripatético (2017), de Jéssica Queiroz

Nada (2017), de Gabriel Martins

Chico (2016), dos Irmãos Carvalho

Peripatético, Nada e Chico trazem para a tela os corpos e questões da juventude negra, uma juventude que nos filmes negocia entre a própria possibilidade de existir no mundo e os desejos que atravessam uma existência mais plena (menos precária e com significado). Nada, de Gabriel Martins, mergulha na crise existencial da Bia. A jovem de família de classe média e as portas de prestar vestibular, manifesta o seu desejo profundo de não fazer nada: de não escolher uma profissão e não entrar na máquina de moer pessoas da vida adulta.  Equilibrando as diversas reações  (da família, da escola e da amiga) diante do desejo de Bia, o curta tem as suas melhores cenas quando entrega-se plenamente as formas de apreensão do mundo por Bia – no travelling de abertura com o deslizar da câmera nas ruas acompanhado pela trilha musical, na cena em que Bia canta rap no quarto e a câmera entra na coreografia com ela, nos corredores da escola quando a banda sonora do filme fica nos fones de ouvido da jovem em detrimento aos sons do mundo exterior. No fim, após a fuga da garota, o filme devolve aos espectadores um lugar do julgamento ou da absolvição com um “valeu a pena?” que não será respondido.

Chico, dos irmãos Carvalho, nos desloca para uma narrativa de futuro: estamos em 2029, em um regime de exceção em que jovens negros e pobres podem ser presos preventivamente pelos crimes que supostamente irão cometer. Chico é um desses jovens, carregando nos tornozelos a marca desse destino. Embora futurístico, é difícil classificar o filme como uma distopia estando este tão próximo das representações e das discussões sociais do nosso presente (a redução da maioridade penal e o encarceramento em massa, para falar dos temas mais óbvios). As escolhas da direção de arte e da encenação são fundamentais também no sentido de inscrever esse futuro como um registro familiar do nosso presente. Na encenação, temos um registro naturalista dos acontecimentos, sobretudo nas relações familiares afetivas e francas entre avó, mãe e filho. Os elementos futurísticos inseridos para marcar cenograficamente esse futuro são sutis (como a tornozeleira prateada de Chico) reforçando essa relação direta com o presente. Então, de fato o deslocamento maior do filme vem não de sua temporalidade, mas da sua resolução pelo cruelmente e amorosamente mágico na cena final.

Peripatético de Jéssica Queiroz acompanha os amigos Simone, Thiana e Michel. Simone quer arranjar um emprego, Thiana estuda para passar no vestibular e Michel está tranquilo jogando videogame. A narrativa pulsa no ritmo da correria de Simone, é preciso deslocar-se pela cidade, usar sapatos e passar por inúmeras entrevistas que não dão certo. Situando-a para além da sua vizinhança e núcleo de amigos, o filme apresenta também uma série de outros candidatos a vagas de emprego (de idade, raça e classe social diversos). Abrindo a subjetividades diversas a busca da personagem. No entanto, a narrativa divertida e de influências pop é bruscamente interrompida pela realidade histórica. As imagens televisivas nos situam então em 2006 no dia em que o protesto de uma facção criminosa e a reação policial contra a periferia da cidade rasgaram São Paulo (e no filme a vida de Michel). O curta se depara assim com um paradoxo de existência semelhante ao dos seus jovens personagens: o desejo de ser e pulsar em um ritmo, e as demandas concretas de precisar existir em outro registro.

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Carneiro de Ouro (2017), Dácia Ibiapina

O filme de Dácia Ibiapina começa por nos apresentar o personagem de Dedé Monteiro, um realizador do Sertão do Piauí que produz cinema popular com poucos recursos, contando histórias fantásticas e de aventura, com muito efeitos especiais inusitados. De início, o documentário trabalha em um registro padrão de entrevista com o personagem e algumas imagens do seu processo de produção. Mas o grande movimento do filme de Dácia Ibiapina é quando este permite-se o gesto de fazer ready made com o cinema de Dedé Monteiro. O curta então perde-se (no melhor dos sentidos da criação livre) nas imagens do cinema do cinema de Dedé e torna-se ele próprio esse cinema popular escrachado de efeitos especiais absurdos e cativantes. Mais do que um filme dentro de outro filme; trata-se de um cinema (o francamente popular) dentro de outro cinema (o do registro documental legitimado por festivais e crítica). Sendo um belo gesto de crença e amor às imagens do cinema.

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Festival de Brasília: Era Uma Vez Brasília

Por Kênia Freitas

O que fazer do Era uma vez Brasília de Adirley Queirós? O filme é o sucessor evidente de Branco Sai, Preto Fica (2014) na proposta de mesclar o documentário e a ficção cientítica a partir das histórias de vida dos personagens reais da Ceilândia/DF. No entanto, Era uma vez Brasília substitui o provocativo “da nossa memória fabulamos nóis mesmos” do antecessor por algo como: “o futuro distópico já está sendo e somos nós”.

Temos assim, a partir das histórias reais de Wellington (preso por invadir um lote para construir uma casa), do Marquim da Tropa (personagem também de Branco Sai…, que levou um tiro após uma violenta batida policial e ficou paraplégico) e de Andreia (uma ex-presidiária em liberdade condicional) a ficcionalização de uma distopia que coincide também com o cenário macropolítico nacional. Nessa trama de sci-fi, Wellington será WA4, preso em 1959 por fazer um lotamento ilegal e mandando para o futuro com a missão de assassinar o presidente Juscelino Kubitschek. Sua nave perde-se no tempo e espaço e cai na Ceilândia de 2016. Nesse presente distópico, entrecortado pela narrativa real do golpe parlamentar que impediu a presidenta Dilma Roussef, WA4, Andreia e Marquim encontram-se para formar um exército.

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A forma de condução dessa narrativa porém é a da diluição da trama. Os fragmentos que nos situam e explicam o enredo estão entrecortados pelo vagar ou paralização dos corpos e das paisagens de Brasília, Ceilândia e Samambaia. Há uma escolha deliberada pela não fruição narrativa tradicional. Uma opção de negação do prazer diagético do espectador. Mais do que contato ou crença, o que Era uma vez Brasília oferece ao espectador é a frustração. Frustração dos corpos inertes, que contemplam paisagens sombrias que se repetem (a passarela, o metrô, a esplanada). Corpos despontecializados até mesmo quando em deslocamento pelo metrô ou pela nave espacial, em um vagar que não chega a lugar algum. Corpos que atiram contra o congresso e não provocam estrago algum ao poder estruturado. Temos assim, não mais a história dos que se vingam (como em Branco Sai…), mas apenas dos que não morrem.

Essa condução narrativa é imposta, longe de qualquer negociação ou jogo que perpassam os longas anteriores de Adirley Queirós. Como em uma instalação de arte contemporânea, esses corpos desolados e solitários pousam para a plasticidade da câmera e ocupam a tela em planos longos e lentos. Mas diferente da fruição dessas instalações no espaço do museu, o dispositivo cinema obriga aos espectadores permanecerem diante do filme sem respiro. Dispositivo de frustração espectatorial ampliado na exibição do filme em Brasília pelo contato direto com os curtas que abriram a sessão. Chico (dos Irmãos Carvalho) e Carneiro de ouro (de Dácia Ibiapina) são filmes que apostam no poder e na crença de novas narrativas – a do cinema negro e de favela, no caso do primeiro, e a do cinema popular, no segundo.

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Nesse dispositivo de frustração, Era uma vez Brasília aprisiona os espectadores assim como as cidades-prisões do filme aprisionam os personagens. Nesse sombrio luto de 2013, o sol não irá nascer, as balas não atingirão o seu destino, o ruído incessante não dimunuirá. Nessa distopia do presente, no último plano do filme os personagens encaram o espectador e nos jogam na pergunta que abre esse texto: o que, afinal, fazer dessas imagens e desse filme? Um encerramento que parece resumir a sua carta de intenções: Bem-vindo ao Brasil 2017: não há saída!

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Festival de Brasília: Café com Canela

Por Kênia Freitas

Sankofa = “Não é tabu voltar atrás e buscar o que esqueceu”

Provérbio tradicional Akan da África Ocidental (Gana, Togo e Costa do Marfim)

“Ao produzir e dirigir seus filmes, diretoras negras brasileiras têm edificado um modo de fazer cinema cuja referência é a história e a cultura dos povos negros. Seus trabalhos e suas práticas fílmicas constroem uma cinematografia fora da estereotipia, revelam visões de mundo, incentivando, assim, leituras afetivas, políticas e geográficas sedimentadas no desenvolvimento humano, na corporeidade como possibilidade de ressignificar conceitos de amor, afetos e identidade”.

Edileuza Souza da Penha

 

Dirigido por Ary Rosa e Glenda Nicácio, “Café com canela” nos joga  de início em duas imagens festivas de famílias negras. A primeira, codificada pelas dimensões mais quadradas e pelas interferências na transmissão da imagem, simula o registro videográfico amador da festa de aniversário de uma criança, Paulinho. Na intermitência desse registro encontramos a figura de Margarida, anfitriã e mãe do aniversariante. Margarida e Paulo (o seu marido) registram-se em momento de euforia. Essa simulação da imagem amadora finge organizar o transcorrer do acontecimento, ao mesmo tempo em que o reconfigura pela presença da câmera. Nesses registros do passado, o filme nos apresenta também a personagem de Violeta, menina de idade próxima a Paulinho, chamada por Margarida a compor o núcleo de proximidade familiar no momento do parabéns. A bateria da filmadora acaba e o registro interrompe-se bruscamente no auge da celebração.

A segunda imagem de festa familiar nos coloca em outro fluxo de registro, o do tempo contemporâneo do transcorrer do filme: o quadro amplia-se, as imagens estão nítidas e sem interferência. Estamos em um churrasco na casa de Violeta (agora uma jovem adulta, casada e com dois filhos). Além da sua família, estão presentes poucos amigos próximos: Cidão (a melhor amiga de Violeta), Ivan (o vizinho amigo que acaba de perder o marido, Adolfo) e Margarida (que nos informam, não está mais com Paulo).

É entre essas duas imagens de celebração familiar que a narrativa do filme transcorrerá, situando a segunda imagem de encontro festivo, a do churrasco, como o lugar de chegada, o restabelecimento de uma comunidade como núcleo familiar recomposto entre os personagens presentes. Na colagem dessas duas imagens o filme entrega já no seu começo o seu arco narrativo completo: do aniversário de Paulinho ao churrasco anos mais tarde. Café com canela propõe assim aos seus espectadores um pacto narrativo não teleológico, visto que início e fim estão desde sempre dados. No lugar, o pacto proposto é o de uma circularidade temporal, no qual as diferentes temporalidades (o passado da festa infantil, a atualidade do churrasco e o futuro daqueles personagens) estão em permanente contato e em retroalimentação. Pacto esse que é selado também no bloco inicial de apresentação do filme, no momento em que a sua câmera encara frontalmente os moradores de Cachoeira (cidade do Recôncavo Baiano na qual o filme foi gravado) e estes encaram a câmera de volta. Esse olhar implica e convida diretamente aos espectadores ao percurso narrativo circular do filme de forma não omissa.

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Esse percurso entre a imagem inicial e final já dadas, será o do reencontro e da recomposição dos afetos entre Violeta e Margarida. Encontro que não se dá apenas pelos corpos em presença das duas mulheres negras, mas também dos espaços em que esses dois corpos habitam e no qual se movimentam. Para Margarida esse espaço é o do enclausuramento de sua casa. Após a morte de Paulinho, ainda criança, ela enluta-se e se isola no lar vazio (sem o filho morto e posteriormente sem o marido que também parte, na impossibilidade de permanecer). A casa reflete e é refletida no tormento psicológico de Margarida: as paredes sangram, movem-se para confiná-la, mofam. O tempo nessa casa é o que não transcorre mais, apenas repete-se. Nessa estagnação de vida, os gestos possíveis são os da repetição cotidiana: acender o cigarro, frequentar o café, ir da mesa até o sofá, cobrir e descobrir o espelho, ir a porta do quarto do filho e nunca abri-la. Para Violeta, o espaço habitado é o da fluidez pela cidade, percorrer as ruas com a sua bicicleta vendendo coxinhas e encontrando as pessoas. Movimento contínuo de vida que transcorre ligeiro entre os filhos que vieram cedo demais, o dia a dia de correria compartilhado com o marido, o trabalho, os cuidados com a avó.

É nesse rompante do fluxo permanente que Violeta reencontra Margarida. Encontro que é a princípio violento, ainda que afetuoso. Como retribuição de um gesto de acolhimento no passado da sua então professora Margarida (no momento em que a menina tornou-se órfã dos país), Violeta não aceita aquele isolamento autoimposto. Os espaços e a pulsação das protagonistas chocam-se: as recusas insistentes da professora são respondidos pelos não menos insistentes chamados a vida: “Mas tem que respirar” da jovem. Resultando, por fim, em um primeiro movimento de aproximação de embate e vão. Se os gestos de contato, dessa vez mais sutis, de Violeta prosseguem – com as rosas deixadas em frente a porta de Margarida – é a morte (da avó de Violeta) quem religa as duas imagens (fechando o ciclo temporal e possibilitando enfim que os ritmos das protagonistas entrem em sintonia).

Esse desenvolvimento circular, a partir dos pontos iniciais e finais dados de começo e do transcorrer narrativo como percurso afetivo a ser compartilhado, dá ao filme a sua liberdade de criação. Tendo o espectador não como refém do suspense narrativo, mas como cúmplice do seu desdobrar. Inventividade que transparece em cenas como a inusitada e divertida subjetiva do cachorro, logo após a morte de Adolfo, ou como na conversa entre Violeta e Margarida sobre o que pode o cinema (que termina mais uma vez em uma interpelação direta aos espectadores do filme). Circularidade que nos faz pensar em modos de narrativas ancestrais negras e no provérbio akan Sankofa “Não é tabu voltar atrás e buscar o que esqueceu”. Um retorno ao passado que não é só possível, como é necessário para tornar-se cura. Retorno nos gestos singelos como os de finalmente ultrapassar as portas do quarto do filho morto e de saída para ganhar a rua. Retornos necessários para que a vida finalmente contamine a estagnação e torne-se dança. E necessários também para que o presente possa ser acessado, vivido, e algum futuro imaginado. Esse retorno ao passado (e as primeiras imagens do filme) que não será jamais individual, mas coletivo e compartilhado por Margarida e Violeta, e pela cumplicidade afetiva dos espectadores.

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Eu Não Sou Seu Negro: encontros e confrontos pelo cinema

Por Kênia Freitas

No documentário “Eu Não Sou Seu Negro” (I Am Not Your Negro, 2016) o diretor Raoul Peck aponta como motivação inicial para o projeto um livro jamais terminado pelo escritor negro norte-americano James Baldwin. No livro inacabado “Remember This House”, Baldwin pretendia contar as histórias de Medgar Evers, Malcolm X e Martin Luther King Jr – todos os três expoentes negros das lutas pelos Direitos Civis americanos, todos os três amigos de Baldwin e todos os três assassinados. Se o livro é a justificativa inicial, o filme de Peck reserva a sua construção a montagem de outras narrativas, narrativas que se sobrepõem em camadas de imagens diversas. A operação do filme torna-se a de fazer essas imagens (do cinema, da televisão, das fotografias e do imaginário) deslizarem umas sobre as outras – encontrando-se e, quase sempre, entrando em confronto.

Em um primeiro movimento diante dessas múltiplas camadas de imagens e gestos de encontros promovidos pelo diretor, podemos destacar o encontro da figura de James Baldwin (falecido em 1987) com o espectador atual do filme de Peck. Esse encontro se dá tanto pelas reminiscências de imagens (nos textos do escritor usados para construção do roteiro e pela utilização recorrente ao longo do filme do material de arquivos de entrevistas de Baldwin), quanto pela atualização dessa presença do escritor e a sua  aproximação com o presente histórico (com a narração de Samuel L. Jackson que assume o discurso em primeira pessoa dos textos de Baldwin na voz over do filme; o contraponto constante das imagens do presente, sobretudo a partir de registros do movimento Black Lives Matter inseridos no filme; e na escolha de finalizar o filme com “The Black de Berry”, interpretada por Kendrick Lamar, de trilha sonora).

Operação de presentificação que se declara já desde a abertura do documentário quando em uma entrevista no Dick Cavett Show em 1968, Baldwin aponta a pergunta de “o  que vai acontecer com esse país? ” como a indagação necessária de ser feita pela sociedade dos EUA naquele momento diante do debate racial. A resposta na narrativa do filme de Peck é colar a pergunta fotografias de protestos do Black Lives Matter e da agressiva repressão policial ao movimento. Nesse gesto de montagem fica declarada a intenção do diretor de, por e com Baldwin, pensar o presente da discussão racial nos EUA.

Nesse sentido, Peck serve-se de forma inventiva das prerrogativas do documentário de montagem, de fazer encontrar imagens de origens e sentidos diversos, colocá-las lado a lado, muitas vezes em confronto. Dessas imagens permanecem os resíduos de suas origens, ao que se soma novos significados tanto pelas palavras de Baldwin, quanto pelo ordenamento de Peck. No processo, reconhecemos os gestos do documentário moderno (cinema verdade, cinema vivido, cinema direto) de promover o encontro no cinema (dentro dos filmes, por suas narrativas e pelas relações entre personagens e cineastas). Assim, é o encontro Peck e Baldwin (e das imagens aos quais estes recorrem) que move a construção e tensões do discurso do filme.

Além dessa relação, também percebemos um mergulho da narrativa no que Serge Daney chamou em “A rampa (Bis)” de um terceiro regime da imagem cinematográfica (depois do clássico e do moderno). Um regime das imagens que deslizam umas sobre as outras, em que atrás de uma imagem só é possível ao espectador descobrir a existência de outras imagens. É nesse jogo em que Peck aposta ao fazer encontrar as suas múltiplas imagens de arquivo em torno de Baldwin. Atrás de cada entrevista de Baldwin, de cada imagem histórica do movimento negro dos anos 1960, há sempre outra imagem. O encontro possível com estas imagens que deslizam depende de um espectador que também não cesse de se deslocar entre elas.

Essa montagem torna possível que o filme promova incessantemente também o deslocamento entre temporalidades diversas: da atualidade do Black Lives Matter, a infância e juventude de Baldwin, a sua atuação como intelectual negro e testemunha no movimento dos Direitos Civis nos EUA. É possível assim no mesmo bloco e construindo uma única linha de raciocínio que o filme passe de uma entrevista de Baldwin falando sobre Malcom X para as imagens em Ferguson, Missouri, em 2014, retornando em seguida a Baldwin. Um movimento semelhante ocorre quando Baldwin fala sobre a sua experiência de crescer um menino negro nos EUA e lidar com morte constantes de meninos e meninas negras da sua geração, e Peck lança imagens dos jovens negros assassinados recentemente pela polícia: Tamir Rice, Darius Simmons, Trayvon Martin, Aiyana Stanley-Jones, Christopher McCray, Cameron Tillman, Amir Brooks.

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Esse gesto de encontro e deslizamento por imagens múltiplas não se dá apenas pela navegação livre das temporalidades distintas. Se o que a montagem constitui nessas aproximações de imagens do movimento dos direitos civis e do Black Lives Matter é o fato de que a exclusão e o racismo contra os negros perpetuam-se quase inalterados pelas décadas que se seguem, a montagem de Peck e as palavras de Baldwin apontam também para outro fator: o de que debater esse racismo não é um problema dos negros americanos, mas de toda a sociedade. E toda a sociedade nesse caso refere-se sobretudo a maioria branca. E nesse ponto, o documentário parte para a materialização desse racismo não apenas pelas imagens dos corpos negros, mas também pelos discursos e imagens dos corpos brancos racistas. Iniciando assim um segundo movimento em que podemos perceber as operações de construção da narrativa do filme pela montagem e encontro de imagens múltiplas.

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Se as fotografias e os registros fotográficos de pessoas brancas manifestando o seu preconceito racial são um dos alicerces para a materialização do racismo, outro pilar da narrativa é a relação que Baldwin e Peck estabelecem com o cinema clássico dos EUA e a sua formação de imaginário nacional. Os filmes integram a relação de Baldwin com os EUA e com o racismo desde a sua infância. Falando sobre a sua própria constituição como espectador de cinema, o escritor aponta a sua incapacidade de se identificar ou reconhecer com os personagens negros desse cinema dos grandes estúdios. Personagens negros caricatos, que não se assemelhavam as mulheres e homens negros que o cercavam e personagens que não podiam assumir o lugar do herói. Os negros estavam, em geral, fora de lugar no cinema. E para Baldwin essa ausência e deslocamento de negras e negros nos filmes, era também uma forma de supressão de realidade para negras e negros fora das telas.

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Peck aposta em seu filme cada vez mais no confronto entre essas imagens da experiência branca americana e as da experiência negra. Uma das sínteses do processo é a entrevista de Baldwin no Dick Cavett Show. Se há uma tensão declarada entre o escritor negro e outro convidado do programa, um professor de filosofia branco de Yale, é na postura desconcertada do próprio Dick Cavett durante todos os trechos da entrevista utilizadas pelo filme, que percebemos quão irreconciliáveis são as experiências. A presença de Baldwin é assertiva e intensa, Cavett permanece envergonhado, desconfortável.

Se nessa escolha de entrevista o confronto das experiências é ainda sutil, o final do filme é marcado pela montagem de planos e contra planos em embate declarados entre as imagens das experiências brancas e negras. Assim, imediatamente após as imagens da juventude branca dos anos 1950 cantando e dançando em “Um Pijama para Dois” (G. Abbott, S. Donen, 1957), Peck joga os espectadores para cenas de um policial branco atirando em manifestantes negros nos dias atuais.

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A operação de confronto na montagem prossegue nessa última parte do filme, que coloca em sequência: as imagens amadoras do espancamento de Rodney King pela polícia de Los Angeles, em 1991, e as cenas românticas do casal branco dançando em “Amor na Tarde” (B. Wilder, 1957). E também a junção do close no rosto sonhador de Doris Day em “Volta meu amor”, (D. Mann, 1961) seguido da fotografia de uma mulher negra enforcada.

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Baldwin sumariza os dois níveis de experiência ao invocar a inocência grotesca da própria Doris Day e de Gary Cooper em seus filmes em oposição ao tom e ao rosto de Ray Charles em suas performances musicais. Imagens que Peck coloca lado a lado em seu filme, e que, no entanto, ainda não permanecem estranhas umas às outras.

Mas é essa tentativa de encontro, ou ao menos esse confronto, que Peck não cessará de produzir na montagem do seu documentário. Encontro das reivindicações do passado e do presente dos negros norte-americanos. Encontro dos dois níveis de experiência da sociedade dos EUA, a branca e a negra. Encontro no documentário pelas imagens do cinema, da televisão, dos registros históricos. Encontro de imagens que se contrapõem e deslizam umas sobre as outras. E nesse sentido, o que a montagem de Peck parece querer nos dizer é que atrás de cada imagem do cinema clássico branco dos EUA estão as imagens do massacre aos nativos americanos e a repressão e os assassinatos da população negra.

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Love Crimes (Lizzie Borden, 1992)

Por Kênia Freitas

Lizzie Borden took an axe
And gave her father forty whacks,
When she saw what she had done,
She gave her mother forty-one

Reza a lenda que aos sete anos a então batizada Linda Elizabeth Borden ouviu os versos acima sobre o famoso duplo homicídio cometido por Lizzie Borden em 1892, que matou a machadada o pai e a madrasta. Linda, em um ato de rebelião infantil, passou a adotar o mesmo nome que a homicida: Lizzie Borden – nome com o qual a diretora assinou todos os seus filmes. Histórias bonitinhas da infância à parte, há de fato algo de seco, cortante e direto que perpassa a parte da curta obra da cineasta.

Em Born in Flames (1983), a narrativa situa-se em futuro distópico pós-revolução socialista, atravessado no desenrolar da trama pela contra-revolução feminista (com as mulheres queer e negras no comando). A sinopse é de ficção-científica, mas a forma de filmar é a de um falso documentário. O filme é composto assim de supostas reportagens e programas de televisão, dos discursos das protagonistas em suas estações de rádio, das filmagens das reuniões ativistas e uma série de colagens de outras imagens. Apesar da variedade dos fragmentos, é fácil observar que há uma frontalidade de discurso e de imagens: as locutoras falam diretamente para os seus ouvintes (que tornam-se pela montagem o próprio espectador), enquanto olham para a câmera (para o espectador). As simulações de programas de TV reproduzem a mesma lógica, na qual os corpos e discursos estão postos frontalmente chamando a interlocução direta de quem assiste. Há assim algo de direto que perpassa a construção da narrativa do filme. Não a câmera oculta convencional do cinema de ficção, mas a construção de uma série de imagens que falam diretamente a quem assiste (simulando formas de narrar tanto da TV, quanto do documentário).

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Em Working Girls (1986), o segundo filme de Lizzie Borden, a diretora segue filmando os corpos femininos de forma próxima – dessa vez mostrando um dia de trabalho de prostitutas de classe média alta em um apartamento em Manhattan. Diferente de Born in Flames, o filme não carrega nas colagens e na diversidade das formas de registro, Borden aposta em uma narrativa ficcional mais convencional – com uma câmera que raramente desgruda de sua protagonista, a fotógrafa, lésbica, casada e garota de programa, Molly. Se o registro narrativo pouco difere de um cinema de apartamento e de baixo orçamento típico, a secura e a frontalidade do cinema da cineasta mostram-se sobretudo na forma em que essa filma as cenas de sexo. Sexo, como mostrado no filme, é trabalho, e como tal obedece um protocolo de gestos e rituais: a troca de lençóis, a combinação de preços e práticas, a entrega das toalhas, o recebimento do dinheiro, a entrega do preservativo, o contato entre os corpos e o orgasmo masculino. Os clientes e os seus sub plots mudam, a forma mecânica de repetir todo o ritual a cada encontro, não. A maneira de filmar o sexo no filme é assim deserotizada o máximo possível. Para isso, Borden não foge dos corpos nus e dos atos sexuais, mas os filma de forma direta, bem de perto como gestos de trabalho, como mecânicas de repetição.

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Esses dois filmes feitos de forma independente por Borden atingiram consideráveis repercussões e premiações da crítica. E até hoje ambos, sobretudo Born in flames, figuram em festivais e mostras de cinema feminista/autoral/independente. Menos conhecido e prestigiado, foi o seu próximo longa-metragem, Love Crimes (1992), o último (até o momento) feito por Borden e o primeiro e único da diretora feito em grande estúdio (no caso, a Miramax).

Como ideia o projeto desse filme poderia ser considerado uma das manifestações do que posteriormente veio a ser chamado vulgar auteurism – pelo menos, se formos pensar o termo pela conjugação autoria do(a) cineasta em um cinema de gênero/grande estúdio (como outros textos desse dossiê debatem, as acepções para o termo são múltiplas e em construção). Voltando ao Love Crimes, a proposta era que a diretora assumisse a direção de um trhiller psicológico e erótico. O interesse do estúdio era o de fazer um filme que não fugisse das características do gênero, tão em voga no início dos anos 1990. Temos assim uma história típica do trhiller erótico: crimes com motivação sexual, uma investigação policial em que o(a) detetive e o(a) criminoso(o) se envolvem, e um tanto de cenas de nudez e softporn – nada mais vulgar (ainda mais na época). Caberia a Borden encaixar o seu cinema (seco, cortante e direto) dentro dessas margens. Não deixa de ser curiosa a ideia de convidar uma diretora feminista para filmar um gênero no qual as mulheres são (quase sempre) mais objetos do que personagens. E ainda mais, uma cineasta cujo último filme encenava o sexo como um movimento de corpos deserotizados para filmar um gênero em que a erotização do sexo e a objetificação do corpo feminino (sobretudo o corpo feminino branco) são premissas básicas.

Não é de espantar então que a execução do projeto tenha sido conflituosa. E se não nos interessa aqui entrar nas disputas entre Borden e o estúdio, o fato é que Love Crimes tornou-se um filme partido: entre o cinema de gênero e o autoral – sem muita conciliação possível dentro da obra. Fragmentação que pode ser vista até nas duas versões em que o filme existe atualmente: a primeira lançada nos cinemas com corte final do estúdio e a segunda lançada posteriormente em VHS com re-inserção de cenas caras a Borden.

Love Crimes (seguiremos falando aqui da versão em VHS), começa por embaralhar os papéis mais clássicos dos filmes noir/trhiller: com a mulher como a investigadora (a promotora Dana Greenway) e o homem como o criminoso investigado (o falso fotógrafo e golpista David Hanover). Essa não chega a ser uma inversão inovadora nas narrativas do tipo nos anos 1990. O que torna essa dinâmica invertida mais interessante são as ambiguidades nas relações entre olhar/ser observado e dominar/ser dominado que o filme tenta manter. A começar pela protagonista com uma postura e visual masculinizados – a promotora mulher que consegue assim se impor em um ambiente de trabalho machista (como quase todas as interações da personagem com os colegas de trabalho ressaltam). Então, mais do que reforçar a crítica feminista de cinema, que desde o seminal  “Prazer visual e cinema narrativo” de Laura Mulvey denúncia a construção narrativa clássica a partir da identificação do homem (espectador-personagem-diretor) no comando do olhar, cabendo a mulher ser o objeto olhado, Borden cria dobras de olhares. Dana Greenway não encaixa-se nas definições de heroína convencional e nem de feminilidade padrões. Dentro do seu próprio ambiente, a promotora é um desvio – um corpo estranho. E é esse corpo em desvio que terá a primazia do olhar como investigadora, o olhar da protagonista que conduz a trama. Não o feminino como pólo oposto ao masculino, mas o feminino, na figura da promotora, como algo fora da polarização convencional.

Sobretudo no primeiro terço do filme, o espaço de trabalho feminino volta a ser um ambiente de interesse para Borden. Dessa vez, não trata-se de um bordel em um apartamento de luxo em Manhattan (como em Working Gilrs), mas sim de um departamento de justiça do governo. De qualquer forma, nessa primeira parte, interessa a diretora filmar a dinâmica dos personagens no trabalho – focando na tensão declarada entre a protagonista e os colegas de trabalho homens (que a menosprezam). E também destacando a relação entre Dana Greenway e a sua colega de trabalho e melhor amiga, a policial negra Maria Johnson – a detetive é o contraponto de feminilidade ao estilo da promotora.

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Outro desestabilizador das dinâmicas de poder (olhar/ser observado e dominar/ser dominado) é o fato de Hanover atrair e seduzir suas vítimas a partir do pretexto de fotografá-las. Isso faz com que o personagem masculino (mesmo caçado pela investigadora) não deixe de impor a sua forma de olhar sobre as suas vítimas. A promotora, por sua vez, tenta vigiar e antecipar as ações do criminoso, que observa através dos seus atos e das suas fotografias. A ambiguidade das relações entre homem e mulher seguem na tipificação dos crimes cometidos por Hanover. Sim: ele engana as mulheres que encontra na rua fingindo ser um fotógrafo famoso. Sob esse pretexto o criminoso é convidado para a casa da vítima, onde começa uma sessão de fotos inocente. Até que a câmera fotográfica transforma-se uma arma de intimidação de Hanover sobre sua modelo. Sobretudo por meio do disparador do flash: cada foto é acompanhado pelo barulho do clique que marca um passo a frente do fotografo em direção à mulher. Os cliques, o barulho e os passos tornam-se cada vez mais rápidos, até chegarem a um ritmo frenético em que o agressor encurrala a presa contra o seu corpo.

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Após o breve e intenso momento de pavor, capturado pela câmera, o fotógrafo consola a mulher atacada e essa mulher consente em uma relação sexual com ele (após o trauma). Ao descobrirem que não se tratava do verdadeiro fotógrafo famoso, as vítimas procuram a polícia – mas acabam retirando as queixas convencidas de que o encontro não foi um abuso. A investigação só persiste e avança pois passa a ser uma obsessão pessoal de Greenway, que decide se fazer de isca para prender Hanover.

E então, no encontro entre Greenway e Hanover, o filme chega a sua ambivalência mais bizarra, quando os dois personagens passam dias trancados em uma cabana isolada. A princípio a promotora é prisioneira (pega por Hanover enquanto o seguia), com o passar do tempo ela torna-se também vítima fotografada e amante. Certo que a atração entre detetive e criminoso(a) são plots típicos do gênero. Mas a relação entre a promotora e o fotógrafo não se dá nos termos comuns de uma paixão e de um desejo avassaladores, e sim de uma perversão inevitável. Existe toda uma subtrama, mostrada por meio de flashbacks da infância de Greenway, que narram um trauma antigo da promotora. De forma que, na cabana, a vítima e o agressor formem um elo dos desajustados – reforçando a ideia da promotora como uma protagonista do desvio dos pólos padrões de gênero.

Em algum momento, Greenway finalmente consegue recobrar o controle sobre si e a situação – retomando o procedimento policial protocolar, levando Hanover sob custódia. De qualquer forma, restam como provas encontradas pela detetive Maria Johnson as polaroides tiradas pelo fotógrafo – que retratam um momento de tranquilidade da promotora na banheira.

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Mais uma vez a fotografia é tratada no filme como evidência da verdade e como um forma de imposição de olhar (que implica um poder). Por causa da imagem, mesmo capturado, Hanover ainda tem poder sobre Greenway. É por essa foto que a promotora se conecta a todas as vítimas anteriores do criminoso. E, no fim, resta a policial e a promotora esconderem a prova fotográfica, como uma forma de reequilibrar as relações de poder ou, de ao menos, colocarem a justiça acima da verdade.

Assim, são constantes no filme as operações que mantém ambiguidade e complexidade no desenrolar da temática e da trama, como a constante disputa entre protagonista e antagonista pela primazia do olhar/dominar e não ser olhado/dominado; uma protagonista mulher que foge da polarização convencional masculino/feminino; e crimes sexuais que forçam a discussão entre o consentimento e manipulação, por exemplo.  Nessas operações é possível vislumbrar um pouco do feminismo de Borden. No entanto, na sua forma de ser filmado, Love Crimes quase nada emula do estilo seco, cortante e direto da cineasta. Sim, os corpos femininos continuam a ser o maior interesse da sua câmera. Mas há agora um distanciamento, uma composição de planos que segue mais a lógica da narrativa ficcional convencional do que da presença corporal intensificada dos seus primeiros filmes. Em sua defesa, pode-se argumentar que dessa vez o machado estava na mão do estúdio.

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The Uprising (Peter Snowdon, 2013)

Por Kênia Freitas

“It is no use to sneer and cry, ‘why these revolutions?’
No use for the sailor to scorn the cyclone and cry,
‘why should it approach my ship?’

The gale has originated in times past, in remote regions.
Cold mist and hot air have been struggling long before
the great rupture of equilibrium – the gale – was born.

So it is with social gales also.
Centuries of injustice, ages of oppression and misery,
ages of disdain of the subject and poor, have prepared the storm.”

Pyotr Kropotkin, 1886

The Uprising é um filme feito completamente a partir de imagens das Revoluções Árabes postadas no Youtube. Através da pesquisa desse imenso material, o diretor Peter Snowdon combina as muitas tomadas subjetivas de manifestantes da Tunísia, do Egito, de Bahrain, da Líbia, da Síria e do Iêmen e constrói uma narrativa própria de uma revolução pan-árabe. Não há dessa forma o objetivo de contextualizar ou recontar cronologicamente as revoluções de cada um desses países, mas sim de, a partir da edição desse material, imaginar uma revolução que só existirá na tela. Como explicita o crédito inicial do filme: “A revolução que esse filme imagina é baseada em uma série de revoluções reais”. Assim, o filme se divide em sete blocos, cada um representando um dia a menos em uma contagem regressiva até o presente. O final do filme marca assim um “hoje” da insurreição que não veremos.

O prólogo do filme começa com imagens de uma rua deserta, com poucas casas ao redor. No céu vemos nuvens carregadas e alguns relâmpagos no horizonte. Ouvimos a respiração da pessoa que faz a gravação, essa se torna mais pesada dando a impressão de que o cinegrafista corre. Em seguida ouvimos a sua voz tentando fazer contato com alguém. O som está abafado e é difícil identificar o que está sendo dito. Por cima da sua voz, começamos a ouvir sons que falam sobre as manifestações. Na imagem, o enquadramento mostra um tornado se aproximando no céu.

Entramos assim no primeiro bloco, “Sete dias atrás”, com cenas que marcam o início da insurreição. Temos, então, vídeos variados com discursivos inflamados de manifestantes, convocações para protestos, marchas cheias e entusiasmadas. São imagens do primeiro momento de ressonância da multidão: quando ela descobre a alegria de estar junta tomando as ruas e desabafa as suas reivindicações e indignações acumuladas. Após a explosão, o segundo bloco vai ser caracterizado pelas imagens de confrontos entre a multidão e as forças do governo: a polícia e o exército. São imagens internsas pela força dos corpos sendo atingidos, pelo sangue derramado e as vidas perdidas. Mas ressoam também pela insistência da multidão no combate, mesmo em momentos em que ela está lutando desarmada contra tiros de verdade.

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No bloco seguinte, “5 dias atrás”, o filme começa com imagens de calma, como se fosse o dia seguinte de uma batalha violenta. Temos a entrevista de um homem e a sua filha, dentro de casa, contando os eventos dos dias anteriores. Também, imagens de outro homem dirigindo o seu carro e mostrando o local, agora vazio, onde um companheiro foi atingido pela polícia. E os meninos que brincam, nas ruas tranquilas, com um lança foguete usado em confronto. Mas, ao final do dia, os conflitos e os tiros recomeçam: a multidão volta para lutar a sua batalha.

O dia seguinte, a quatro dias do fim, já começa com imagens da multidão em protesto. As pessoas estão nas ruas, conversando, cantando, marchando e permanecem, até que finalmente podem explodir e comemorar a derrubada do governo. Após essa primeira vitória, vemos cenas da multidão invadindo a casa do antigo presidente (uma mansão suntuosa com piscina, academia, mesquita). Mas esse é também o dia de se ocupar da cidade conquistada: varrê-la, limpá-la, pintar as grades desgastadas. Dona da cidade, a multidão liberta os presos políticos. Outro grupo invade a sede da Secretaria de Segurança agora abandonada e procura documentos contra os manifestantes. Enquanto isso, um ex-prisioneiro político reencena a tortura sofrida pela polícia. E, em uma rua vazia a noite, um homem grita de felicidade. Os vizinhos gritam para comemorar com ele. Mas um policial aparece e contém o momento de alegria com novas ameaças.

Após a euforia, dois dias atrás, a multidão volta às ruas para protestar. A manifestação está sendo rigorosamente vigiada por helicópteros e muitos policiais. Voltam a ocorrer repressões violentas do exército à multidão nas ruas. E essa precisa, mais uma vez, cuidar dos seus feridos e enterrar os seus mortos. E é com imagens do velório de um manifestante que o dia anterior ao final começa. Nesse bloco, a multidão é convocada por uma manifestante a voltar às ruas no dia seguinte. A narração emocionante em voz over traduz o momento do filme e da sua revolução por vir. Enquanto ouvimos essa narração, o filme mostra imagens de manifestantes se preparando para protestar, eles estão com os rostos cobertos correndo com paus e pedras na mão. A narração se encerra e a multidão continua a sua luta tomando as ruas. Chegamos assim finalmente, no “Hoje”. Voltamos a ver brevemente o tornado do inicio do filme, enquanto ouvimos as vozes ressonantes da multidão nas ruas. Por fim, temos antes dos créditos finais um poema de Pyotr Kropotkin, que usamos como epígrafe dessa sessão.

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A montagem do filme é como um grande fluxo de imagens-acontecimentos, um transe de imagens emergênciais de origens e ressonâncias diversas. Essas imagens são todas feitas em meio aos protestos ou seus desdobramentos diretos, sendo dessa forma muitas vezes tremidas e com uma resolução ruim. Assim, em muitos momentos, essas são mais uma presença corporal de quem filma do que imagens figurativas ou explicativas.

Um dos problemas dessa montagem é a de que: como singularidades isoladas os seus vídeos são um material potente; mas, ao compô-los em uma narrativa única, essa ressonância não nos afeta da mesma forma no corpo fílmico resultante. The Uprising constrói a sua narrativa a partir de diversas imagens de manifestantes anônimos. Esses vídeos, em geral, feitos de forma amadora com a câmera na mão carregam a presença dos manifestantes que os produzem – tanto pelo ponto de vista subjetivo e a narração em primeira pessoa, quanto pelas marcas corporais dos realizadores que perpassam nas imagens: a respiração pesada e o tremor das imagens, em momentos de deslocamento, ou mesmo as sombras dos corpos refletidas para dentro do plano. Mas, se em cada vídeo individualmente esse produtor amador das imagens funciona como um ponto de identificação, o mesmo não acontece com o resultado final do filme. Ao colocar de forma sucessiva todas essas perspectivas, as narrações com vozes variadas, os tons e afecções diversos, o filme dilui esse produtor de imagens em uma multiplicidade de olhares – assim como o ponto de apoio narrativo do espectador. Não há uma identificação convencional possível com um sujeito ou personagem.

Mais do que pela história que costura as imagens de arquivo, a força do filme reside no valor de documento do seu material. Portanto, podemos dizer que The Uprising é um filme de montagem carregado de resíduo do seu material de arquivo. Partindo das imagens emergênciais das revoluções, o filme vai usar um efeito de quase ficcionalização, criando a sua própria revolução por vir. Essa revolução do filme não segue os limites territoriais dos países de origem das imagens, a cronologia dos eventos de suas insurgências e os contextos políticos de cada local. Assim, uma convocação de protesto na Tunísia pode ser seguida pela multidão nas ruas no Egito ou a repressão violenta no Iêmen pode ser contada no dia seguinte pela experiência semelhante de um manifestante na Síria.

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Por causa dessa desterritorialização das imagens o filme afasta-se de um sentido meramente documental dos acontecimentos. O resíduo, mais do que um efeito colateral indesejável da montagem, é um elemento fundamental para a potência do filme. Mais do que um filme sobre as Revoluções Árabes, The Uprising é um filme sobre as imagens emergenciais dessas insurgências que circularam na internet e foram ressonantes tanto para os envolvidos diretamente nos acontecimentos, quanto para quem os vivia como espectador. A partir do filme, essas imagens-acontecimentos passaram a possuir mais um canal de circulação e atualizam suas potências de afetarem os espectadores.

Da mesma forma, ao fixar o seu ponto final como um presente (o hoje) da revolução que não veremos nas imagens, ou seja, um presente que permanece irrealizável, a revolução imaginária do filme torna-se uma espécie de acontecimento puro. Essa pan-revolução arábe das imagens é um eterno devir fílmico. Trata-se, assim de um filme que não se situa no passado histórico, mas na projeção de um futuro da revolução a partir de suas próprias imagens.

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Branco Sai Preto Fica (Adirley Queirós, 2014)

Por Kênia Freitas

I

A forma em si, as convenções da narrativa em termos de como lidar com a subjetividade, o foco em alguém que está em desacordo como o aparato de poder da sociedade e cuja profunda experiência é a de deslocamento cultural, alienação e estranhamento. A maioria dos contos de ficção científica lidam com como o indivíduo irá lutar contra essa sociedade e circunstância de deslocamento e de alienação e isso praticamente resume a experiência massiva da população negra na pós-escravidão do século XX.
Greg Tate

As populações negras do continente americano são as descendentes diretas de alienígenas sequestrados, levados de uma cultura para outra. Os seus antepassados, separados dos seus territórios originais, foram abduzidos como escravos para o Novo Mundo. Na(s) América(s), passaram por um processo constante de apagamento das raízes – separados de parentes ou de pessoas da mesma comunidade, impossibilitados de falarem as próprias línguas, com os corpos encarcerados impedidos de seguirem as suas tradições culturais. Ao longo dos séculos, os descendentes dos aliens, já despossuídos da própria narrativa, foram incorporados como o órgão estranho dessa nova sociedade híbrida: contidos e rechaçados pelo corpo social – caçados e assassinados pela polícia e cerceados pelas grades de novas prisões.

A comparação do processo de diáspora da população africana para o continente americano com a construção de uma narrativa de ficção científica extraterrestre não deixa de ser brutal, potente e, ao mesmo tempo, curiosa – visto que tão poucos negros e negras protagonizam (como criadores e/ou personagens) o universo das fantasias futurísticas. Essa ideia é ponto a partir do qual Mark Dery cunha o termo afrofuturismo para tratar das criações artísticas que por meio da ficção científica inventam outros futuros para as populações negras atuais. Kudwo Eshun resume o techo que abre esse texto em uma frase: “A existência negra e a ficção científica são uma e a mesma”. Acessar ao universo narrativo das obras afroturistas é lidar concomitantemente com a sua dupla natureza: a da criação artística que une a discussão racial ao universo do sci-fi e a da própria experiência da população negra como uma ficção absurda do cotidiano. Se mais do que previsões ou premonições do futuro, as narrativas de ficção científicas são formas especulativas de pensar o presente, essa distinção é crucial para pensarmos Branco Sai Preto Fica como uma exploração afrofuturista do dia a dia da população negra brasileira.

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II

A razão histórica para termos sido tão empobrecidos em termos de imagens futuras é porque, até muito recentemente, como uma população nós fomos sistematicamente proibidos de qualquer imagem do nosso passado. Eu não tenho ideia de onde, na África, meus antepassados negros vieram porque, quando eles chegavam ao mercado de escravos de Nova Orleans, os registros desse tipo de coisa eram sistematicamente destruídos. Se eles falassem a sua própria língua, eles apanhavam ou eram mortos. (…) Quando, de fato, nós dizemos que a história desse país foi fundado na escravidão, nós devemos lembrar que queremos dizer, especificamente, que ela foi fundado na destruição sistemática, consciente e massiva dos reminiscências culturais africanas. Que algum ritmo musical tenha perdurado, é bastante impressionante, quando você estuda os esforços da maquinaria branca de importação de escravos em eliminá-los.
Samuel R. Delany

Dimas Cravalanças é um viajante do tempo, vindo diretamente de 2073. A sua missão é a de coletar provas no passado sobre a ação repressiva da polícia no Baile Black do Quarentão, na Ceilândia, Distrito Federal. O crime do Estado brasileiro aconteceu em 1986, mas Dimas foi enviado para quase 30 anos depois do incidente, caindo com o seu container-máquina do tempo nos dias atuais, de 2014 ou 2015. A construção das suas provas passa pelo encontro com Marquim e Sartana. O primeiro, levou um tiro durante a invasão policial; e o segundo, foi pisado pela cavalaria da polícia ao tentar sair do local.

Se esses eventos traumáticos do passado são o ponto de apoio da porção verídica da narrativa (com as suas fotos, os seus recortes de jornal e até, por fim, o tesmunho talking head das vítimas), o presente – o tempo em que habitam Marquim e Sartana, para onde Dimas é enviado para coletar evidências e no qual a narrativa transcorre – é uma versão aproximada e distópica da capital brasileira e do seu entorno. A Polícia do Bem Estar Social marca o controle e a vigilância que atravessam esse presente: os habitantes das cidades satélites só podem entrar em Brasília portando um passaporte, enquanto toques de recolher e patrulhas com viaturas e helicópteros marcam as noites na periferia. Ou seja, um presente próximo no qual os códigos de segregação social são explícitos e não mais apenas introjetados nas relações sociais. Preto e branco vem marcados em letras garrafais ao lado das fotos e nomes dos passaportes, nesse presente que implantou de forma institucional o racismo que a polícia de 1986 também não escondia decretando ao entrar no baile: Branco sai, preto fica!. Um presente no qual os corpos de Marquim e Sartana seguem o seu pós-trauma de segregação, encarceramento à margem, dentro das casas, no porão, no terraço. Como Sartana diz: a amputação do corpo ressoa na amputação da própria cidade para ele.

Ao praticamente cair nesse presente, Dimas perde dinheiro, equipamentos e até a identidade – tanto o documento, quanto a noção de si (relatando a confusão provocada pelo deslocamento). O contato do viajante com o futuro se dá de forma truncada – mensagens parecem não chegar, Dimas é considerado como desintegrado no espaço/tempo, ainda faltam as provas e um partido conservador acaba de assumir o poder, colocando em risco também a situação no tempo vindouro. A missão por muito parece fadada ao fracasso, e Dimas condenado a habitar um não espaço/temporal, dos sem propósito – vagando a esmo por terrenos e campos abandonados.

Se lhe resta algo, se há algum vínculo do viajante com os personagens do presente, esse está na música. A soul e a black music parecem ser necessárias para fazer a máquina do tempo funcionar e fazer as mensagens serem entregues e recebidas intertemporalmente. A música em Branco Sai Preto Fica permanece como a reminiscência impressionante da qual fala Samuel R. Delany. O elo que resta apesar de todos os esforços sistemáticos de apagamento. Esforços que estouraram como os tiros da polícia no baile do Quarentão, tentando apagar passinhos ensaiados, visuais e estilos, relações de amizade e de namoro daquela comunidade. Combatendo na porrada a subjetividade coletiva forjada naquele espaço, evitando a possibilidade de outra narrativa da juventude da Ceilândia.

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III

O efeito não é o de questionar a realidade da escravidão, mas de torná-la não familiar por meio de um ziguezaguear temporal que redireciona as suas implicações pela ficção social do pós-guerra, pela fantasia cultural e pela ficção científica moderna, todas alternativas que começam a parecer maneiras elaboradas de dissimular e admitir o trauma.
Kodwo Eshun

Branco sai Preto Fica é um filme de um duplo trauma: o da escravidão e o do ataque policial no Quarentão. Traumas sempre ao mesmo tempo individuais e coletivos e correlacionados: no Brasil a população negra e pobre segue em grandes quantidades ou cárcere nas penitenciárias ou assassinada pelos novos carrascos, a polícia. Marquim e Sartana sobreviveram a tentativa do Estado de apagá-los, mas os seus corpos apenas em partes.

Assim o filme surge como um fragmento narrativo de uma memória coletiva e das memórias individuais que nunca irão compor um discurso totalizante – pois existe desde a sua mais longíqua origem como um fragmento, como uma reminiscência de uma/milhões de história(s) apagada(s). Sua própria materialidade corporal é também fragmento de pedaços que ficaram – no chão da quadra? No chão do hospital? – no passado. Um pouco como os pedaços e os restos de próteses encontrados e recuperados por Sartana, em Branco Sai Preto Fica existem mais elementos do que possibilidade de montá-los na mesma narrativa. Como e por que Dimas aparece nos desenhos de Sartana? Como o viajante finalmente consegue os depoimentos das vítimas? Quando Marquim e Sartana se reencontram? Os encaixes são imperfeitos e os furos são consistentes.

Mas eis uma história fragmentada de uma história que só pode ser fragmentada, para que sua imperfeição possa abarcar os seus corpos amputados e protéticos, a dança do jumento e a jovem guarda, os planos de reparação do passado no futuro simultâneos aos de destruição do presente. O fragmento tira os conectivos de oposição entre os elementos díspares, não gera teses (antíteses ou sínteses). O fragmento são todas as histórias, todas os restos, os pedaços, as narrativas que não foram apagadas. A história da diáspora africana é feita de apagamentos: desde o início da África para as Américas (a ancestralidade perdida), passando pela escravidão (os documentos queimados) até a atualidade (o genocídio da juventude negra e pobre). Então, incorporar o não narrado, os buracos que se formaram em anos de borracha, faz parte da empreitada afrofuturista de criar outras possibilidades históricas.

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IV

A noção de afrofuturismo dá origem a uma antinomia perturbadora: pode uma comunidade cujo passado foi deliberadamente apagado, e cujas energias foram subsequentemente consumidas pela busca por traços legíveis da história, imaginar futuros possíveis?
Mark Dery

O filme termina, como tantas ficções científicas, em um paradoxo temporal: o da impossibilidade do presente, que ao implodir-se como única linha de fuga viável,carrega junto consigo o passado e o futuro. A explosão catártica de Brasília pela bomba musical construída por Marquim e Sartana e observada do alto pela cabeça gigante voadora de Dimas leva a narrativa a um ponto de incompossibilidades infinitas. Tudo foi pelos ares. Marquim e Sartana conseguiram escapar em 12 minutos. Dimas desmaterializou-se como um ser gigante ao ocupar o céu do apocalipse. Dimas permaneceu nos escombros disparando tiros inexistentes em inimigos invisíveis. As famílias de Marquim e Sartana, e de outros atacados pelo Estado no Quarentão, foram ressarcidas no futuro, graças as provas de Dimas. O futuro não existe mais.

Seria possível ao mesmo tempo explodir o presente que amputa e garantir um futuro com mais justiça para a população negra e pobre? Nesse dilema e no seu paradoxo dos tempos, Branco Sai Preto Fica mostra-se acima de tudo um afrofuturismo com raízes profundas nas questões do seu presente – de dentro e de fora do filme.

*Citações livremente traduzidas de:
DERY, Mark. Black to the future: interviews with Samuel R. Delany, Greg Tate, and Tricia Rose.
ESHUN, Kodwo. Futher considerations on afrofuturism.

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O Enamorado (Pierre Étaix, 1963)

Por Kênia Freitas

Le Soupirant é o primeiro longa-metragem de Pierre Étaix. Já palhaço, músico, desenhista, o artista vinha da experiência de trabalhar com Jacques Tati em Meu Tio assumindo várias responsabilidades no set de filmagem – de criador de gags a assistente de diretor, tendo feito também o storyboard do filme. Logo em seguida, Étaix e Jean-Claude Carrière iniciam a sua amizade e parceria, que marcará grande parte da jornada do artista no cinema. Antes desse longa, os dois escrevem e dirigem coletivamente em 1962 os curtas: Heureux anniversaire e Rupture. De certa forma, tanto os curtas quanto Le Soupirant são laboratórios para Étaix desenvolver o seu personagem cinematográfico – que com variações nesse percurso, vai se definindo ao longo dos filmes para atingir o seu momento ápice de engenhosidade em seu segundo e mais aclamado longa-metragem, Yoyo (1965).

Assim, em Le Soupirant, o protagonista Pierre (interpretado por Étaix) é um jovem sonhador e um pouco deslocado em relação ao mundo e as pessoas. Filho único de uma família rica, Pierre causa preocupação aos seus país pelo seu isolamento e sua falta de interesse em casar-se e começar a sua própria família. Com a cabeça na lua e nas estrelas, o rapaz apaixonado por astrologia recebe um ultimato de seu pai para que finalmente vá procurar uma companheira. Visto que ele não tem a menor ideia de como abordar romanticamente (ou de qualquer outra forma) uma mulher, a partir desse plot o filme se dedica a essa caçada desajeitada desenvolvendo as mais diversas gags em cima das fracassadas tentativas do personagem.

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Se por um lado, nesse filme fica evidente a influência do cinema de Tati, sobretudo no uso marcado do som sublinhando cada ação, principalmente as mais cômicas. Por outro, na economia dos diálagos e na expressividade dos gestos, Étaix presta também a sua homenagem aos grandes da comédia no cinema mudo: Buster Keaton, Harry Langdon, Laurel & Hardy.

Nesse sentido, os primeiros filmes de Étaix se situam nesse limiar entre o cinema clássico e o moderno. Do clássico burlesco, os filmes preservam o sistema sensório motor, em que cada ação desencadeia uma reação. Para o efeito da comédia, há sempre um desencontro na resposta: a reação nunca é exatamente a que se esperava, algo sempre dá ligeiramente errado. É o que acontece por exemplo quando o personagem observa a interação entre outros homens e as mulheres e tenta imitá-los em investidas que invariavelmente são mal sucedidas das mais diversas e engraçadas formas.

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Mas essa a fórmula do burlesco clássico só funciona até certo ponto nos filmes de Étaix. Visto que no decorrer desses desencontros, dessa incapacidade do personagem em executar ou imitar ações simples, dessa falta de jeito, as situações e as gags se encaminham para uma destruição. Pierre está sempre quebrando algum objeto, colocando fogo em alguma coisa, levando ao limite as suas reações. É desse sistema que vai se destruindo a medida que vai dissipando sua energia inicial que está o maior trunfo de humor do cineasta – e a sua contemporaneidade com seu tempo. Pois, se de forma geral esse desencontro sempre fez parte da construção de gags e do burlesco, no cinema de Étaix esse descompasso vem de um deslocamento do personagem principal com os outros e com a sociedade moderna.

Nesse sentido, nada mais sintomático do que a fulminante paixão de Pierre por Stella, cantora vedete da moda que ele conhece pela televisão, cartazes, em performance no palco. O interesse do rapaz se desfaz imediatamente na primeira interação não mediada dele com a Stella. No final, já estamos certos do desenlace feliz do personagem com Ilka, a estudante estrangeira (que não fala francês) hospedada na casa da família. Mas até o happy ending de Pierre é ligeiramente atrasado e estranho. Ainda que, sempre encantador.

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Django Livre (Quentin Tarantino, 2012)

Por Kênia Freitas

I’m not real. I’m just like you. You don’t exist, in this society. If you did, your people wouldn’t be seeking equal rights. You’re not real; if you were, you’d have some status among the nations of this world. So we’re both myths. I do not come to you as reality. I come to you as myth, because that’s what black people are: myths”.
Sun Ra em Space is the Place

On the hundred-and-fiftieth anniversary of the Emancipation Proclamation, it’s worth recalling that slavery was made unsustainable largely through the efforts of those who were enslaved. The record is replete with enslaved blacks—even so-called house slaves—who poisoned slaveholders, destroyed crops, “accidentally” burned down buildings, and ran away in such large numbers their lost labor crippled the Confederate economy. The primary sin of “Django Unchained” is not the desire to create an alternative history. It’s in the idea that an enslaved black man willing to kill in order to protect those he loves could constitute one”. Jelani Cobb, The New Yorker, 2013

“Eu não venho até vocês como realidade. Eu venho como mito, porque é isso que as pessoas negras são: mitos”. É com este discurso que Sun Ra se apresenta à juventude negra no filme Space is the Place, de John Coney (1974). O filme, um misto de auto encenação, blaxpoitation e ficção científica, narra a trajetória do viajante interplanetário Sun Ra e sua arkestra na tentativa de resgatar os negros norte-americanos de sua condição marginalizada no planeta Terra. Artista impar da música americana, o jazzista encarna – nesse caso, tanto no filme como na vida performática – a criação do seu próprio mito e da sua autofabulação como potência criativa e libertária. E, desde então, reforça o questionamento de qual o lugar do herói negro no cinema americano.

Se o cinema clássico narrativo tem seu marco inicial justamente com O Nascimento de Uma Nação, filmado por D.W. Griffith em 1915, um filme que enaltece a ação da Ku Klux Klan e em que os personagens negros caricaturados são representados por atores brancos com o rosto pintado, vai ser necessário quase meio século para que houvessem consideráveis conquistas na representação negra no cinema hollywoodiano. Os anos 1960 trazem o grande apogeu das lutas pelos direitos iguais entre brancos e negros nos EUA e a década seguinte representa a guinada significativa da representação, com o cinema de blaxpoitation se firmando como extremamente popular.

Eis que, quase um século depois de Griffith fundar a nação e 40 anos depois de Sun Ra querer fugir com todo mundo para o espaço, temos o Django Livre de Quentin Tarantino. Fossemos falar de um filme de outro diretor, talvez não fosse necessário um prólogo tão extenso, mas em se tratando de Tarantino não há como fugir das influências, citações, homenagens e dobras das imagens. O Django de Tarantino tem Sun Ra e Griffith; Jackie Brown e Coronel Hans Landa; Shaft e o homem sem nome – não necessariamente apenas estes ou nesses pares.

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Assim temos Django (Jamie Foxx), um escravo que será liberto pelo caçador de recompensas alemão Dr. King Schultz (Christoph Waltz), após ajudar esse em uma das suas missões. Da empreitada nasce uma parceria, na qual Django se compromete – já como homem livre – a trabalhar ao lado de Schultz como caçador de recompensas por alguns meses, em troca do ajuda deste para procurar e resgatar sua esposa Broomhilda (Kerry Washington), ainda escrava. A jornada dos dois vai findar em “Candyland” uma famosa plantação do aficionado por mandingo Calvin Candie (Leonardo DiCaprio), por quem Broomhilda foi comprada.

Com essa trama Tarantino constrói um filme que tem dois movimentos principais: 1) a autofabricação de Django como um herói, com a ajuda do Dr. Schultz e 2) o resgate de Broomhilda. Com essa estrutura, o diretor/roteirista responde então a pergunta sobre o lugar do herói negro como um local inexistente a priori, que é preciso criar dentro das imagens e da narrativa.

E aqui existe uma diferença de referencial que ressalta as maiores falhas do filme e, ao mesmo tempo, potencializa o que o filme tem de instigante. Esse desencontro é o de pensar o filme a partir da História como uma imagem (nesse caso, a história dos negros nos EUA) ou da História dos negros, dos personagens negros, no cinema dos EUA.

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Como subversão histórica no cinema, o filme se mostra politicamente como um dos mais fracos do diretor – principalmente porque em momento algum consegue coletivizar a catarse do espectador diante das imagens com a dos personagens. Se em A Prova de Morte, as mulheres em equipe conseguem inverter o jogo da opressão e se tornam caçadores do seu perseguidor e em Bastardos Inglórios, os planos de Shosanna e do tenente Aldo Raine culminam no mesmo cenário explosivo, Django seguirá o herói individualista lutando pela sua causa pessoal. Ainda que como linha de fuga ou o homem em um milhão, a trajetória do escravo armado em resgate da sua heroína não estremece a estrutura histórica na qual Tarantino planta o seu filme. Nesse sentido, Django se aproxima mais da noiva de Kill Bill I e II, do que de qualquer outro personagem do diretor.

Nesse ponto, para além das críticas sobre o racismo do filme na utilização – excessiva? provocadora? – da palavra “nigger”, esse é minimamente simplificador em relação a representação da escravidão. Ao mesmo tempo em que Tarantino não abre mão de mostrar as violências diversas as quais os negros eram submetidos; os seus personagens negros, com exceção de Django e Broomhilda, não parecem questionar/revoltar-se com a própria condição – mesmo quando por alguma ação involuntária dos protagonista esses conseguem algum possibilidade de fuga ou sublevação, a reação maior é a de apatia. Assim, quando o referencial do filme é a História da escravidão, este com seu herói autocentrado não faz muito mais do que perpetuar a ideia de que não haviam conflitos permanentes. A subversão histórica do filme mais do que isso, com sua imagem de escravidão normalizada, acaba por apagar a ação dos escravos heróis que lutaram pela sua liberdade e pelas de outros – alguns inclusive usando armas. E de que como esses heróis negros americanos só puderam existir a partir da luta pelo coletivo, e não do mito do self-made man. Retomando a citação de Jelani Cobb que abre esse texto: “O pecado primordial de Django Livre não é o desejo de criar uma história alternativa. É a ideia de que um escravo negro disposto a matar para proteger aqueles que ama poderia constituir uma”. Como subversão ou reescrita da História, Django Livre torna-se uma nova/outra história conservadora.

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Há, no entanto, uma outra possibilidade de entrada no filme: a de Django Livre tendo como referencial não mais a História afroamericana, mas essa no/pelo cinema. E, nesse sentido, tendo como o desafio essencial a reinvenção do herói negro nas telas. Ou seja, a fundação de um novo mito – que Tarantino tentará construir entre o western spaghetti e o cinema de blaxpoitation. E cada uma das duas partes da trama vai corresponder um desses gêneros: a construção do herói como homem sem nome do faroeste spaghetti e o resgate da mocinha pelo herói já consolidado e com cada vez mais senso de humor do blaxpoitation. É como se Tarantino fizesse surgir de uma narrativa tradicional branca, um filme do gênero consolidado pelo cinema negro. Nessa estrutura o self-made man individualista não só faz sentido, como é necessário. E cenas como a emboscada cômica da Ku klux klan aos protagonistas ganham o peso de uma necessidade de refazer nas imagens o nascimento do cinema americano – dessa vez como pura farsa.

Podemos dizer assim que Django é um personagem que se faz durante o filme, enquanto o filme em si migra de registro. Cabe aqui, ainda, a crítica à narrativa como uma forma nuançada de “fantasia branca de resgate” em que Schultz, o branco civilizador, vai ensinar Django a se tornar um herói – emprestado ao ex-escravo inclusive a mitologia alemã da mocinha a ser resgatada das montanhas pelo destemido cavalheiro. Desde a primeira ação conjunta entre os dois, na caça dos irmãos Brittle, o alemão sugere que Django encarne um personagem (o vallet) e aconselha: “uma vez no personagem, você não pode sair dele”. Mas, talvez, o maior legado de Schultz para Django não seja o da mitologia ou a da profissão, mas o modus operandi do falsário e a lição de que homens como ele (um estrangeiro de ideias libertárias) e Django (um escravo liberto caçador de recompensas) só podem sobreviver naquela sociedade por um processo incessante de reinvenção e autofabulação de si.

De Django escravo liberto pouco saberemos. Vemos deslizar por sua pele como as roupas extravagantes que passa a utilizar, uma sucessão de personagens. Assim, na segunda parte da trama, na execução do plano para libertar Broomhilda, Django novamente se faz passar por algo que ele não é – o mais baixo na sua escala de consideração: um capataz negro. Porém desse personagem não vemos Django se desfazer até a chacina final. Em determinado momento, Schutz questiona Django sobre a sua agressividade excessiva na interpretação do algoz, ao que Django retruca que esse é o seu mundo e que ele está no controle das ações. Passagem do filme que marca que se o alemão era o explorador bem intencionado em sua missão de resgate, Django é o pupilo que está disposto a superar o mestre em seu próprio jogo. Ainda assim, é preciso que o mestre morra para que o pupilo complete a sua transmutação: de homem sem nome a vingador bem humorado de blaxpoitation.

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Filmografia Comentada – David Cronenberg

Aproveitamos o lançamento de Cosmópolis no Brasil, adiado tantas vezes pela distribuidora nacional que ainda conseguimos nos antecipar a ele apesar do atraso de dois meses na atualização, para novamente nos reunirmos em um artigo coletivo sobre a obra de um cineasta (como fizemos com Nicholas Ray, à época da comemoração do seu centenário). O resultado é este passeio pela filmografia completa do canadense David Cronenberg, em que analisamos desde Stereo, sua estreia no cinema em 1969, até Senhores do Crime, lançado em 2006 — Um Método Perigoso e Cosmópolis, seus dois filmes mais recentes, possuem críticas à parte no site, que podem ser acessadas na home page.

Stereo (1969)

Ângulos, sombras, vozes, arquiteturas, sexos, futuros, solidões… A densa matéria que dá forma a Stereo, trabalho profético de um cinema, de uma ciência e filosofia, de um tempo humano ainda não encerrado, não esconde a relação obsessiva de David Cronenberg para com certos temas e procedimentos. Dos mais notáveis exercícios de estreia já vistos numa tela, esta primeira obra guarda paralelos com absolutamente todos os filmes a serem assinados pelo autor a partir de então. Impossível esgotar as interseções, os ecos e repetições dispersos pela filmografia em jogo. Por isso um inusitado interesse junto aos elementos que aqui ganham único tom: o preto e branco, o áudio em off, o frescor que emana da montagem principiante, por mais rígida que ela seja. Escapamos dos limites de orçamento abrindo um horizonte de encenação como raras vezes veremos no Cronenberg subsequente, mérito de um destemor típico dos primeiros passos, estes que são dados sob a incerteza de talvez serem os últimos. Stereo não poupa uma só convicção, abala toda uma estrutura lógica a partir de racionalidade própria, de confiança somente naquilo que tem em mãos: o movimento que extrai dos corpos e que origina a partir deles. Deste novo mundo aqui traçado, em que a carne e o desejo são confrontados pela insuficiência do toque, emana uma dolorosa esperança de um porvir que extinga a intransigência de opostos. Não se trata de utopia, mas de possíveis que não se excluem, de um cinema que aliança as distâncias — morais, estéticas, políticas — para favorecer uma harmonia perdida e fazer dela mais do que mera ficção. (Fernando Mendonça)

Crimes do Futuro (1970)

Filme independente filmado, escrito e dirigido por Cronenberg, o segundo de sua carreira. Neste seguimos Adrian Tripod, ex-diretor de uma clínica dermatológica, na procura pelo seu mentor, Antoine Rouge. O sumiço de Rouge está ligado de forma enigmática a uma doença infecciosa provocada por produtos cosméticos – infecção que parece ter sido a culpada pelo extermínio da população feminina sexualmente desenvolvida. Nesse mundo pós-apocaliptico, temos a vitória das instituições (que se mantém com toda a sua pompa burocrática e protocolar) sobre os indivíduos (que vagam errantes, morrem ou adoecem sem grandes explicações). Os homens seguem cumprindo procedimentos científicos e perpetuando racionalizações acadêmicas, ainda que essas atividades não pareçam ter qualquer efeito transformador sobre a realidade, além do descritivo. Para piorar, os únicos grupos que demonstram algum interesse em revitalizar a existência da espécie humana são círculos obscuros de conspiração de pedófilos, que objetivam criar por meio de outra forma de sexualidade uma espécie substituta para a humanidade. Dito assim, o filme soa muito mais repugnante do que ele de fato é. Mas, assim como seus homens indiferentes da pós-catástrofe, é na frieza das imagens e na anti-fruição narrativa em que o diretor se fia. Os contatos humanos são estranhos, o ambiente é hostil e esses seres sorumbáticos perambulam através de uma arquitetura opressora. O roteiro quase surrealista se arrasta  pelo vagar ilógico das ações. A narração em voz over e a intervenção de ruídos diversos e pouco agradáveis (o som do filme é todo indireto e de pós-produção) só aumentam o distanciamento do espectador. Se o filme beira o insuportável, resta o consolo de que ele foi construído para isso. (Kênia Freitas)

Calafrios (1975)


Como obra de seu período inicial, Calafrios ainda é um pouco imatura frente a outros filmes de Cronenberg; daí sua aparência “trash”, seu inegável flerte com a estética barata de produções de low budget, algumas imperfeições que a tornam única dentro da carreira de seu realizador e também como peça profética: tanto para o cinema, pois antecipa Alien e seus monstros de infiltração gosmenta, como para a discussão de grandes chagas (não apenas físicas) contemporâneas, como a ganância extrema que faz cientistas criarem em laboratório ameaças para a vida humana, visando à glória de ser reconhecido na luta contra o perigo artificialmente fabricado. Não é um pouco o que dizem ter havido com a AIDS? Aí Calafrios deixa de ser tão futilmente fantasioso (como se a imaginação fosse por si algo vulgar, descartável) se o consideramos nesse contexto, e de qualquer modo o terror sempre presente nunca se faz ridículo ou fora do tom, pois Cronenberg sabe como segurá-lo na sua cadência, que faz todo o sentido ao se impor no cotidiano das personagens. Ao se manifestarem de maneira explícita, os Calafrios percorrem também a espinha de seu público. E de repente talvez percebamos que a questão moral proposta por Cronenberg não se esgota no extermínio das criaturas macabras vistas neste filme, mas numa mudança de postura e mentalidade. (Filipe Chamy)

Enraivecida na Fúria do Sexo (1977)

Imprevista atualização de mítica vampiresca, Rabid é o filme que conecta uma primeira fase de Cronenberg — de poucos recursos, quase artesanal — ao estilo que caracteriza todo o restante de sua carreira. Da dialética Corpo X Ciência, eis um reflexo exponencial dos traumas que este conflito moderno origina dentro daqueles que se submetem, ou são submetidos, a modificações de sua natureza para sobrevivência. É para não morrer que a protagonista suga a vida e o sangue (e o sexo) de todos que se aproximam; para continuar em seu corpo que, incontrolável e inconscientemente, ela espalha uma peste, a Raiva do título original, entre a população local. Os princípios de uma antropofagia espelhados pelo próprio cinema, pelo referencial de gênero em que Cronenberg adentra e pelo que ele lega e compartilha com autores de seu tempo (Romero, Craven, Rollin), cinemas feitos com os restos da humanidade. Neste corpo neutralizado a que se restringe o contorno da mulher atriz (Marilyn Chambers, advinda do mundo pornô e por isso com a única experiência legítima ao universo de Rabid, um filme a que só importam os resquícios dos corpos e de suas ações mecânicas), Cronenberg encontra a carnalidade devida e necessária ao seu projeto de imagem; é o que sua última cena confirma, no caminhão de lixo que tritura o cadáver esquecido, que se afasta dentro de uma rotina apocalíptica sem o menor pudor ou impressão nostálgica. Constatação de um tempo em que já não cabe a saudade, de um espaço que não alivia a mortalidade do mundo. Em Rabid um cinema que volta ao pó, que se rende ao finito, uma lembrança de que já não importa a ficção se tudo é frágil, ilusório, enfermo. (Fernando Mendonça)

Fast Company (1979)

Fast Company carrega o velho e bom discurso bufão de liberdade “hit the road” anos 70, concepção residual da semifalida contracultura sessentista e da agonizante transição, no cinema, do douradíssimo Monument Valley pralgum triste pedaço de asfalto entre o Novo México e a Louisiana — radiografia translúcida do jovem cinema americano tirada por um filme B de Alberta, Canadá. Embora pareça estranho ver um carsploitation entre filmes de horror na filmografia de Cronenberg, Fast Company guarda, ainda que sob as ressalvas de uma produção precária, indícios da mise-en-scène minimalista vista mais claramente a partir da década seguinte. A câmera é erradia e os cortes são rudes (especialmente naquele campo-contracampo frenético das cenas de corrida), mas acabam sempre por recompor a cadência de um outro cinema. No macro, Cronenberg é mesmo afeito ao escândalo, ao absurdo; mas na minutiae dos seus filmes sempre se instalou aquele olhar kafkiano que narra o desconcerto como banal, que faz da loucura a mais anêmica trivialidade. Para além do filme em si, que não despertaria mesmo um interesse genuíno (nem dentro do seu sub-gênero), há este semiclassicismo prematuro em Fast Company, de adotar a insurgência lisérgica exportada pela Nova Hollywood com preceitos do cinema clássico guardados no bolso. (Luis Henrique Boaventura)

Filhos do Medo (1979)

 

Nem o espectador nem os personagens que circundam Nola Cavendish — o médico trambiqueiro cujo tratamento se revela mais eficiente do que deveria; o marido que vai de um lado a outro em busca de uma explicação para os eventos cada vez mais inexplicáveis que ocorrem à sua volta — sabem, até as cenas finais de Os Filhos do Medo, se ela tem consciência ou não da existência de sua “ninhada” e de como as atitudes dos “filhos” refletem seus estados emocionais. A revelação é adiada por Cronenberg pelo maior tempo possível; a narrativa nos despista inúmeras vezes, empurrando Nola para uma posição de vítima indefesa de Oliver Reed; e tudo isso carrega a hora da reviravolta de expectativa, porque, embora sejamos levados a pensar que temos uma noção bastante boa do que está de fato acontecendo, o filme toma o cuidado de não nos deixar cristalizar uma certeza nunca. Assim, o momento em que Frank entra naquela quarto é valorizado, e é logo depois que estaremos diante da (apenas) segunda irrupção explícita, em todo o filme, do horror cronenberguiano como tomou forma na primeira fase da carreira do diretor, o das anomalias e deformações corporais; o que pode parecer estranho num filme com temática tão convidativa à imagem frontal do corpo padecendo de um mal físico ou psicológico que Cronenberg cultivou durante toda a sua carreira. Os Filhos do Medo tem essa postura porque aqui não importa tanto a mutação particular que vemos, mas sim o fato de que Nola não só a aceita como a celebra: e a mise en scène é sua cúmplice nesse aspecto, na forma como esconde de nossa vista, pela sua elegância, pela cadência da narrativa, muito mais próxima de um suspense clássico que um Scanners, a verdadeira natureza dos eventos. Nos filmes anteriores não existia olhar simpático algum para o que acontecia; mas de Os Filhos do Medo em diante a câmera de Cronenberg sempre enquadrará a anomalia (física ou mental) num misto de horror e fascinação. (Robson Galluci)

Scanners — Sua Mente Pode Destruir (1981)

 

Uma ficção-científica de terror, Scanners, com seu clima pesado, não deixa de trazer algumas questões caras ao cinema de Cronenberg: tecnologia e coerção social controlando e moldando os corpos dos indivíduos, que resistem como podem. No filme, um grupo de pessoas adquiriu a capacidade de ler e controlar mentes, devido a um experimento científico malsucedido. Com o fracasso das experiências, esses scanners (leitores de mentes) tornaram-se páreas na sociedade, incapazes de adaptarem essa aptidão a uma vida ordinária. A situação só muda quando um scanner decide reunir todos esses enjeitados em um plano de dominar o mundo. E apenas um outro scanner será capaz de acabar com essa revolução violenta. É essa guerra telecinética que filma Cronenberg. Se pela temática poderíamos supor uma abordagem mais psicológica, o que interessa ao diretor é o embate físico desses corpos. Os olhos se esbugalham, as veias saltam, o rosto se deforma. Como de costume no seu cinema, é essa metamorfose corporal que interessa a Cronenberg: o que se passa na tela como uma pele. O poder mental dos scanners se materializa como a carne e o sangue nas imagens, às vezes tão densos que as cabeças até explodem. (Kênia Freitas)

Videodrome — A Síndrome do Vídeo (1983)

Mcluhan apontou a tecnologia eletrônica – e posteriormente cibernética – emergente no século XX como uma extensão do corpo humano, o faz dela, deste ponto de vista, um tema natural para o cinema de Cronenebrg. Desde então diversos filmes se aproveitaram da ideia de diluição entre a realidade física e a ilusão virtual para a composição de uma única entidade-mundo – o próprio Cronenberg realizaria anos mais tarde nova investida no tema com eXistenZ -, nenhum deles com a precisão assustadora e visionária de Videodrome. Ao participar de algumas exibições de filmes snuffs – antes mesmo do termo ser cunhado para classificar os vídeos que reproduzem violência física e mortes não encenadas, reais – o personagem de James Woods passa a sofrer alucinações e é de seu ponto de vista distorcido e insano que acompanharemos tudo o que se desenrola na história, sem jamais sabermos quais elementos são reais dentro do conceito de “realidade” proposto para o filme e quais são meras intervenções de seus delírios. O dispositivo central parte de uma forte inversão: enquanto os limites morais da encenação são postos em xeque nos filmes-dentro-do-filme, com a reprodução de mortes reais em vídeo, a vida do personagem é sugada por um imaginário de gênero através do qual é transformada em uma grande ficção, com direito a cenas de ação, perseguição, sexo, assassinato e gore, elementos básicos do códice das ficções oitentistas – e também dos filmes canadenses do cineasta, que faria com Videodrome sua estreia em solo estadunidense. Desta dicotomia nascem momentos emblemáticos como o abdômen de Woods abrindo-se para ser transformado em um vídeo-cassete humano, ou a televisão o engolindo, ou a arma que ele porta se integrando ao seu corpo, fundindo assim máquina e homem em um mesmo ser – imagens que não poderiam refletir com maior precisão sobre nossos tempos. A tecnologia, embora à serviço da civilização do homem, também pode ser sua ruína. Long live the new flesh, diz Cronenberg, e salve-se quem, nesta intempérie de estímulos artificiais, conseguir se manter imune à insanidade. (Daniel Dalpizzolo)

A Hora da Zona Morta (1983)

A sintonia que o original literário de Dead Zone nutre para com o universo de Cronenberg é facilmente identificável pela relação de forças polarizada em torno do corpo humano, da dimensão que escapa à ciência e expande o horizonte de atuação dos entes racionais no mundo em que vivem. Abordagem de um vigoroso romance de Stephen King, este filme converge alguns aspectos que complementam o imaginário de Cronenberg no que tange o seu habitual alargamento dos limites físicos, no caso, uma demolição das barreiras que a mente encontra para exercer poder num domínio exterior à pele, sem a necessidade de qualquer contato com seus agentes de percepção. O protagonista encarnado por Christopher Walken, vítima de um acidente que libera em seu cérebro uma paranormalidade fundamentada na visão de dores e medos sofridos em espaços-tempo descontínuos ao de sua presença, concentra problemas característicos aos tipos que se multiplicam na filmografia do diretor: angústias de pessoas que se encontram num estado de diferença, que se fundem numa alteridade não compreendida e, por isso, são impedidos de uma comunicação social e afetiva com aqueles que já não conseguem enxergar neles mais do que uma memória latente, uma impressão perdida do passado. Apesar de tudo, o foco acentuado por Cronenberg sobre a interrompida vida amorosa/familiar de seu personagem — de um romantismo frustrado como só veríamos novamente em Marcas da Violência — ecoa uma impotência compartilhada pelo próprio resultado final de A Hora da Zona Morta, filme um tanto quanto envelhecido e formalmente dissonante dentro do cinema que ele desenvolveu no século passado. Talvez por isso, seu trabalho que melhor esboce os caminhos que ele trilharia nestes anos mais recentes, maduros o suficiente para assumir um classicismo indiscreto, confrontador. (Fernando Mendonça)

A Mosca (1986)

Precedido por uma reputação cheia de meias verdades, A mosca é tido na conta de refilmagem, de festim “gore” e de ficção-científica absurda e descerebrada. Mas na superfície tudo é raso, e é difícil subestimar este filme de David Cronenberg após assistir a ele com um mínimo de atenção. A Mosca não é um remake caça-níqueis, é uma outra versão do mesmo texto literário (não lembrando em nada o filme de 1958, aliás); também não se refestela nunca na gosma e na sujeira e no podre como uma maneira de chamar a atenção ou estilizar maneirismos estúpidos: é uma jornada de destruição, e claro que na putrefação física os detritos e chagas são abundantes; o rótulo de ficção científica — empregada aqui, pela ala detratora, como atributo pejorativo — também parece inadequado, sendo A Mosca um filme essencialmente romântico e dramático, uma saga de ambição e desespero, incrivelmente trágico, com uma moral encerrada no fundo de sua percepção da megalomania humana, com a eterna vontade que temos de usar a ciência para superar a natureza, sermos um pouco criaturas divinais. A Mosca está portanto longe do oportunismo, do amadorismo e do conservadorismo. É uma obra madura disfarçada sob a aparência de tolo entretenimento, e aí Cronenberg acerta na mosca. (Filipe Chamy)

Gêmeos — Mórbida Semelhança (1988)

Se as deformidades e transformações do corpo eram o leitmotiv da obra de Cronenberg até A Mosca, em Gêmeos — Mórbida Semelhança adentramos numa operação que desfacela esta regra e, por sua necessidade de encenação (fazer de um mesmo corpo, em tela, dois), concede à misè en scène do diretor um status cirúrgico — não sem propósito, é um filme que aproxima a ciência e a arte com certa frequência. Pois a consciência única dividida pelos gêmeos interpretados por Jeremy Irons permite a Cronenberg fazer uso de instrumentos próprios ao cinema (o corte, a angulação da câmera, o campo/contracampo) para nos cercar com um jogo de espelhos, partindo substancialmente de um mesmo e imutável corpo. Enquanto em Shivers, Rabid ou A Mosca as anomalias do corpo eram observadas frontalmente pela câmera, em Gêmeos essa mutação é originada justamente por ela, através de seus truques mais fundamentais, para dar à luz a ilusão da arte — e a arte não fora sempre, em sua gênese, uma grande ilusão? O corpo de Irons vela em si toda transgressão imagética deste filme de narrativa cristalina (como dito com frequência, o princípio do que se convencionou chamar de segunda fase da carreira de Cronenberg, dedicada ao estudo da mente humana e seus desvios), alternando personalidades a cada plano para fundir personagens que vivem alimentando-se uns dos outros — não apenas Bev e Elliot, mas todas as combinações geradas entre eles nas transformações físicas e verbais de Irons, que sustentam uma danação estimulada mutuamente e enlaçada à incompletude da outra metade, entregue a nós sempre com o retardo de um corte. Quando enquadrados frontalmente e imóveis num mesmo plano, com o rigor de uma pintura degenerada, Cronenberg reconduz o espectador à mórbida realidade da vida para lembrar que Bev e Shaw, ao final, não são nada além de matéria morta e inanimada; apenas mais um truque do cinema. Apagam-se as luzes e a ilusão tem fim. (Daniel Dalpizzolo)

Mistérios e Paixões (1991)

 

Cineastas do naipe de canadense David Cronenberg, com tantas obras-primas no currículo, não permitem que se possa aferir ou apontar com certeza absoluta qual trabalho que fizeram seria o melhor de todos. Mas, no caso, posso dizer que meu preferido dentre todos os que ele realizou é este Naked Lunch (o crítico norte-americano Jonathan Rosenbaum é outro que, salvo engano, o têm como favorito, mas curiosamente nunca foi um filme muito querido entre a crítica brasileira). Temos aqui um escritor frustrado que trabalha num emprego de merda, para quem não conhece, trata-se da história de Bill Lee (Peter Weller, de Robocop), um escritor junkie que trabalha como exterminador de baratas para poder pagar as contas. Porém, ele começa a correr grandes riscos de perder o emprego, ao ser acusado de desperdício do seu estoque de inseticida. O que acontece é que sua esposa, Joan (Judy Davis), esgota o material ingerindo-o como uma droga qualquer. Incentivado pela esposa, ele, que também já foi viciado, volta a usar da droga, o que faz com que dialogue com insetos falantes, que o incumbem de matar a mulher, o que ele acaba fazendo acidentalmente. Bill foge para um lugar estranho por onde é levado por suas alucinações, a Interzone, onde, munido de uma máquina de escrever que briga e se transforma em insetos gigantes, ele redige “relatórios” em que narra a seus “superiores” (os insetos) a vida dos nativos dos lugares, entre os quais, outros escritores obcecados por drogas, literatura e homossexualismo. Na verdade, Bill e esses outros escritores são agentes disfarçados que tentam descobrir o gerenciador local no tráfico de lacraias pretas brasileiras gigantes, que dão origem a uma droga de efeito ainda superior as demais. Não é preciso dizer que esse enredo de acontecimentos inacreditáveis e inenarráveis formam um universo surreal cheio de bizarrices, um delírio visual em que se sobressaem os insetos gigantes que mais parecem crustáceos, verdadeiras criaturas que se assemelham às que costumam povoar filmes de terror, mas que aqui fazem parte das “viagens” perpetradas pela mente psicodélica dos personagens quando sob efeito dos alucinógenos. O romance original do escritor beat William Burroughs foi publicado em 1959, e, desde sua estréia, considerado escandaloso. Muitos o julgavam intransponível para o cinema, até David Cronenberg encarar o desafio de levá-lo para as telas e filmá-lo na Inglaterra, Canadá e Japão, em 1991. De fato, a tarefa de transformar esse argumento em filme sem resvalar na mediocridade parecia ser uma tarefa das mais difíceis. Cronenberg superou todas as barreiras da transposição e criou um filme extraordinário. Ainda não li o romance, mas embora digam que Cronenberg tenha atenuado bastante o livro original, pode-se dizer que o canadense nunca levou suas bizarrices até as últimas consequências que nem em Naked Lunch. Em tempo: alguém tem dúvida de que William Burroughs, em seus delírios, escreveu esse livro na sublime companhia espiritual de Franz Kafka? Entre metamorfoses e mutações, a arte se recicla e se renova. Contar uma história dessas sem que o resultado se torne uma bobagem muito grande é mesmo coisa de gênio. (Vlademir Lazo)

M. Butterfly (1993)

M. Butterfly é um filme sobre a superfície da imagem. A ficção do corpo. O corpo é a peça-chave da filosofia misantropa cronenbergueana. O corpo que se transmuta, que se torna oculto, que resiste, disposto a domar a lógica das pulsões à sua volta, seja as violentas ou sexuais. Para quem ainda não viu o filme do diretor canadense, não se trata de uma adaptação da ópera Madame Butterfly, de Giacomo Puccini, mas da relação de Rene Gallimard, o personagem de Jeremy Irons, com uma interprete do papel-título em uma montagem da famosa ópera. A obsessão do primeiro pela imagem de Butterfly, cuja efígie é a materialização dos seus desejos, uma representação de algo próximo de um sonho (ou de um pesadelo), faz com que Gallimard persiga o seu adorado objeto de veneração por todos os lugares. Um grau de encantamento do qual não se quer acordar. Ao mesmo tempo, uma ambígua relação do exótico mundo da cultura chinesa com as perversões da burguesia ocidental (como define a personagem-título), que conduz a jogos políticos e a um intenso romance. Mas a trama aqui já não é mais apenas o que parece, ela revela-se um emaranhado de expressões faciais, de olhares, de gestos, de medos, de desejos, de frustrações, de expectativas. E o próprio Jeremy Irons, que nos acostumamos a ver vestido de modo impecável, com sua postura absolutamente contida e equilibrada, seus movimentos medidos, as palavras utilizadas de forma exata, com toda sua etiqueta aristocrática sendo posta em prática de forma exemplar, ao final não será mais o mesmo, depois de ser amado por uma mulher perfeita e após a visão de damas esbeltas com cheosan e quimonos, que morrem pelo amor de indignos demônios estrangeiros. Um filme sobre aparências, os enganos e a transitoriedade, as falsas percepções e certezas de um personagem inserido dentro de outra noção da realidade, como em tantas outras obras de David Cronenberg. (Vlademir Lazo)

Crash — Estranhos Prazeres (1996)

Antes que um filme sobre perversões sexuais, Crash é uma narrativa sobre valores contemporâneos: é consideravelmente moderna a percepção de que afinal nos mecanizamos cada vez mais, e este filme de Cronenberg trata dessa nova condição com impressionante exposição — os corpos, os movimentos, as penetrações na carne (e da carne) são retratados com brutal transparência, quase um sentido físico extra-tela, uma força mesmo aterrorizante. Mas não tanto quanto a que impulsiona as personagens do longa, que procuram nas cicatrizes, nos hematomas, colisões, sangue e feridas toda sorte de compensação por sua deficiência sentimental; quando as batidas de carros as excitam, é como se as máquinas lhes fossem armaduras com as quais resolvem finalmente entregar-se à luta, ou ao prazer. É portanto uma forma de decepção íntima que as anima a terem o gozo com a dor, pois na alegria é que elas sofrem mais. Então quando dois corpos se abraçam e se penetram, a cópula é antes uma exibição fria de poder e domínio que um ato humano de envolvimento. Se visto apressadamente, Crash parecerá a descrição de uma simples jornada de autodestruição inconsequente e fútil. Mas ainda que talvez seja também isso, há algo de mais profundo e tocante. E tocar nesse nervo doloroso é tarefa cumprida com êxito por Cronenberg, que, como tentam suas criaturas, é incansável manipulador de corpos e mentes. (Filipe Chamy)

eXistenZ (1999)

No final dos anos 90, Cronenberg já abandonara havia muito as mutações e deformações físicas extremas da primeira fase de sua carreira em favor de um universo em que a mente é a origem das atribulações do indivíduo, mas é apenas em eXistenZ que esse ponto de vista se concretiza da maneira mais radical até então. Antes, o personagem cronenberguiano via-se delimitado (em como percebia a si mesmo e se colocava no mundo) pelo seu próprio corpo, e só podia sair de sua passividade, com resultados violentos, via intervenções externas — parasitas, deformações, experimentos científicos malsucedidos —, mais tarde colocadas sob um frágil controle: o homem maquina sua própria mutação. Em eXistenZ, porém, isso tudo desaparece, porque o fora não existe mais. Tudo está no jogo, tudo está na mente. Suspeita-se até mesmo do próprio corpo, talvez apenas outra ficção, como toda a (aparência de) realidade que circunda os personagens. Certos elementos típicos da primeira fase dão as caras, como a bioporta na espinha e o gamepad, porém mais como despiste ou referência irônica ao universo mental do diretor, e preenchendo o papel de alívio cômico mais de uma vez; e deve-se destacar como, fora a própria bioporta, todas as mutações que vemos — o console orgânico vivo, os anfíbios mutantes — não são causadas nos próprios personagens, e sim na realidade/ficção mental pela qual se deslocam. Daqui em diante, o fantástico e a ficção-científica começarão a sumir do cinema de Cronenberg, conforme essa realidade que é criada e deformada obedecendo aos impulsos da mente passa a assumir formas cada vez mais “realistas” (delírios esquizofrênicos, mentiras contadas deliberadamente); e, embora eXistenZ adote uma postura de completa negação de que sequer haja um fora, nos filmes seguintes o mundo externo voltará a dar sinais de vida, apenas para ser ferozmente repelido. Porque a única coisa que pode sacudir os personagens da nova fase de Cronenberg de sua passividade é a mesma que tanto afligiu os anteriores: um assalto inesperado da realidade física. Em retrospecto, diante da situação dos protagonistas de eXistenZ quando o filme acaba, Seth Brundle não terminou, no final das contas, tão mal. (Robson Galluci)

Spider — Desafie Sua Mente (2002)

“Se o hábito faz o monge, quanto menos monge, mas hábito se faz necessário.”
Essa foi a primeira frase sobre Spider que me fez ligá-lo prontamente ao protagonista solitário de O Perfume, de Patrick Suskind. Ambos os personagens manejam com engenho algumas das faculdades mais humanas, ao passo que são absurdamente deficientes em serem propriamente humanos, e é isso que melhor os define. Em Suskind, um perfumista sofre por ter vindo ao mundo sem cheiro próprio. Em Spider, um homem esgota suas últimas forças, num tremendo esforço de memória, para reconstrução de um quebra-cabeça, até chegar a quem escondeu a peça que falta. Na minha trajetória com Cronenberg, Spider parece o monstro mais contido. Aliás, tudo ao redor serve apenas para ilustrar a contrição do personagem, em verdade, certo desmerecimento por tudo que pareça acessório em relação à sua obsessão dramática pela morte da mãe. Sempre me ocorre pensar que os ambientes entre cinza e tons pastéis denotem a falta de sangue (como signo de vida) nestas histórias de personagens que impregnam a cor do filme com a profundidade de suas questões. No jogo de substituição das personagens femininas, confesso, minha atenção perturbada se viu esfregar o olhos. Sofro ao pensar naquele personagem-aranha absorto na criação de sua própria rede mantendo assim as perspectivas turvas ao levantar a atenção de seu projeto. É fácil perder o fio da meada.. Aliás, para Spider não existe fora: tudo que importa/existe está de alguma forma abarcado por algum dos nós que ele foi deixando pelo caminho. Engraçado perceber a dor do protagonista ao não poder sair à rua com um mega novelo, e amarrar a cidade inteira. Acaba contentado em expor seus fluxos no quartinho apertado do sanatório. Complexo de Édipo? Na verdade a obsessão de Spider passa tanto pela morte da mãe, como pela criação da narrativa à qual precisará dar um final. Um homem perturbado que se isola na solidão da paranóia, criando intrincadas relações neurais, teias, para resolução do quebra cabeças. Aquilo que se esconde, ou aquilo que escondemos de nós mesmos? Quem nunca viu esse filme? (Geo Abreu)

Marcas da Violência (2005)

Marcas da Violência profana as escrituras e retifica o mito do assassínio original em página nova, onde Abel mata Caim, ganha o perdão no lugar do exílio e funda sobre seu corpo o edifício da sagrada família, misturando no mesmo barro o sangue inocente com o maligno. Porque há um mal atávico que sopra do Mediterrâneo no ouvido dos homens e contra o qual não vale a composição dos velhos testamentos, por isto Marcas da Violência é menos sobre a história das fundações e as fundações da História do que sobre o papel do perdão na manutenção do mundo; um perdão não ao indivíduo, mas à natureza e seu mistério, interregno rudimentar geradouro do bem e do mal, do pai e do assassino. Como quando Tom, aos pés do seu matador, é salvo por um tiro do filho. Sem saber o que esperar, se a reprimenda do pai ou dois tapas nas costas, ele permanece quieto, assustado, dando conta ainda do estranho quadro que lhe assalta os olhos (três corpos em torno do pai baleado), estes olhos prematuros jamais expostos a um certo mundo que rosna e espreita aos portões da cidadezinha. Tom levanta-se, tira das mãos adolescentes do filho a espingarda e o absolve com um abraço, gesto redentor do patriarca que tem o rosto manchado de sangue. Não importa que seus prodígios se extraviem, a violência acaba sempre por encontrar um caminho de volta, e é natural que se proceda no seio da família a esta esquize elementar: entre o filho puro e o corrompido, entre o pai e o estranho. Daí a beleza da composição de gestos na cena final. Restaurar a casa que tomba sem esquecer que em nossa pedra angular foi imolada uma criança. (Luis Henrique Boaventura)

Senhores do Crime (2007)

O início de Senhores do Crime parece saído de uma história de Dostoiévski. Em quatro minutos de filme, Cronenberg apresenta duas mortes. A primeira, um assassinato praticado por alguém que experimenta pela primeira vez a sensação de matar. A segunda, de uma adolescente grávida que busca socorro em uma farmácia, com o que parece ser uma hemorragia. Levada ao hospital, ela não resiste e morre um minuto antes do nascimento da filha. Ao encontrar o diário da garota, em meio a seus pertences, a enfermeira responsável pelo parto decide ir atrás da família para entregar o bebê. Através do diário, as histórias das duas mortes e da parteira se ligam a uma família russa mafiosa, que usa um restaurante de fachada para seus negócios. Falar mais que isso sobre a trama é estragar a experiência que o filme proporciona, antecipando as viradas de roteiro. Apesar de mergulhar no mundo da máfia russa, apresentando o código de tatuagens e rituais de aceitação, Cronenberg não faz um filme interessado em depor sobre o sistema (mesmo tendo detalhes cuidadosos na representação, como o uso de facas no lugar de armas de fogo, obedecendo aos códigos da Vory v Zakone, e o sotaque impecável de Viggo Mortensen – cuja atuação é um dos grandes trunfos do filme). O mérito do diretor está em utilizar o mundo de um chefe do crime, capaz de tratar com a mesma naturalidade seus negócios e uma panela de goulash no fogo, para compreender alguém que vive a violência como profissão. Descobrimos também que a violência, além de ser ação natural, é uma experiência pessoal, particular a cada indivíduo, mesmo em um grupo regido por normas de condutas que não permitem exceções (a instabilidade emocional de Kiril, personagem de Vincent Cassel, por exemplo, contrasta com a tranquilidade de Nikolai, o motorista de Viggo). Encontramos a assinatura de Cronenberg, cineasta legitimo do cinema de autor, especialmente na representação visual de como essa naturalidade é experimentada por aqueles que habitam o mundo da máfia. Cronenberg é o diretor que vai contra a corrente do discurso condenatório de todo e qualquer tipo de violência, interessado em investigar o que a gera. A eleição dos gêneros de horror, suspense, drama, que marcam sua filmografia, são apenas um meio para realizar a anatomia de uma das mais cruas emoções humanas. Senhores do crime é um ensaio sobre a proposição de que “cada pecado deixa uma marca” (frase do pôster de divulgação da produção). Sejam elas visíveis como as tatuagens de batismo de um grupo mafioso, ou daquelas que não se confessa nem às páginas de um diário. Quem não as carrega, que atire a primeira pedra. (Fernanda Canofre)

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As Hiper Mulheres (Carlos Fausto, Leonardo Sette, Takumã Kuikuro, 2011)

Por Kênia Freitas e Geo Abreu

Se podemos pensar o documentário como um campo é justamente porque ele não cessa de fazer uma dobra dentro do universo cinematográfico como um todo. Meta-cinema por natureza — sem necessariamente cair no terreno da metalinguagem e da autorreferencialidade. E é nesse sentido que podemos pensar a experiência de assistir As Hiper Mulheres.

De partida, o filme já se coloca no terreno do entre: o longa-metragem produzido pelo projeto Vídeo nas Aldeias é uma co-realização entre diretores indígenas e não indígenas. Temos curto-circuitada, assim, a relação de quem filma com quem é filmado, e também o próprio local do espectador diante do filme. Na primeira instância, percebemos um filme híbrido, que mistura momentos de pura observação silenciosa — em que impressiona a transparência e a entrega dos corpos filmados —, com outros em que a presença da câmera se faz sentir pela performance dos corpos diante dela.

Essa dubiedade (proximidade/distanciamento) na construção da narrativa vai refletir diretamente na experiência espectatorial do filme: quem fala? Sobre o que? E para quem? Não há pressa em responder estas questões. Cabe ao espectador procurar posicionar-se diante das imagens a que assiste, caberá à sua relação exterior/interior/intermediária captar as nuances da narrativa. O local do “outro” – fetiche do documentário e da etnografia – não é um ponto de referência. Esse deslocamento se dá não por uma auto-etnografia e sim pela experiência partilhada, pela indiscernebilidade dos sujeitos, objetos e estratégias narrativas como princípio.

É assim, aos poucos, que nos enrendamos a trama do filme. Ele inicia-se com o pedido de um tio ao seu sobrinho para que realize o Jamurikumalu, maior ritual feminino do Alto Xingu (MT). O velho justifica o seu pedido pela possibilidade próxima da morte da esposa idosa, uma das poucas mulheres do grupo que sabe os cantos do ritual. Para complicar a missão, a outra mulher que conhece as canções encontra-se gravemente doente. Assim, enquanto acompanhamos os preparativos e ensaios para o evento, inquietamo-nos também com a sua própria possibilidade de realização.

Nesse sentido, ainda que As Hiper Mulheres seja um filme essencialmente sobre os corpos de seus personagens — da sua transfiguração, da passagem do cotidiano para o ritual -, é pela oralidade das narrativas e na sua transmissão geracional que começamos a adentrar a sua cosmologia. Até porque memória e experiência se confundem, nesse caso. Assim, vemos o ensinamento dos cantos que se dá pela audição e repetição constante por parte dos aprendizes: porque é necessário não decorar, mas incorporar a melodia — é preciso acordar de madrugada pensando naquele ritmo, como explica uma das anciãs. Como uma coreografia, ou um ritmo, é necessário que as palavras tornem-se experiência em ato. Os cantos e o próprio ritual só existem como ação, constantemente rememorados, transmitidos e reinventados como fabulação ou, até mesmo, como farsa — como entrega um dos entrevistados ao falar sobre apresentações fabricadas para branco ver.

Mito Música Tradução

Hiper-, “posição superior, excesso”, do indo-europeu *uper-, “sobre”, usado como intensificação de super: representa, modernamente, um nível quantificador acima.

É via imaginário pop, com seus heróis a três por quatro, que termos como ‘super’ ou ‘mega’ se veem autorizados para uso comum. De acordo com isso, esses prefixos costumam indicar uma condição sobrehumana, caracterizada por forças imensuráveis e condutas morais ilibadas, acompanhando assim ações muito nobres e heróicas, como é de se supor.

No caso das mulheres Kuikuro, a hipercisação de sua condição feminina não vem acompanhada por nenhum poder sobrenatural, ainda que seja possível ouvir dos homens da aldeia, sentados na platéia do Jamurikumalu, que sentenciam estarem diante de espíritos vestidos de hiper mulheres. Em pleno trabalho comunicativo, ativado através do adornamento do corpo e da cadência dos cantos, o transe as empodera de algo muito distante, delas e de nós: o contato com os antigos; a busca do equilíbrio entre vida e morte; a celebração de uma vida inteira em comunidade que agora pede licença pra se retirar.

À medida que nos aproximamos do cotidiano da aldeia, a representação das primeiras cenas dá lugar à naturalização das relações. Seja entre pais e filhos, irmãs, esposas e maridos, o que vemos é uma liberdade muito familiar. Do pai que diz que a filha canta mal à esposa que diz ao marido que mesmo doente precisará cuidar do bebê porque ela foi chamada a cantar pela presumida morte da anciã; e isso é coisa que não se nega. A naturalidade nos apresenta também outra maneira de lidar com a morte. A própria senhora pela qual a comunidade se mobiliza, ao perceber que está esquecendo as canções, se põe consciente da sua situação iminente. Sob a observação, ela segue com seus delays, ao passo em que todos se conscientizam com doçura e galhardia de que a festa se faz urgente e necessária.

Aqui é possível um link com a carta-documentário exibida em abertura à sessão de As Hiper Mulheres na programação da Rio+20: A Carta Kĩsêdjê para a Rio+20 conta basicamente com depoimentos femininos sobre a atuação desordenada dos ‘brancos’ sobre o Rio Xingu, ecossistema de extremo signifcado para a tribo. Ao término de desabafos acalorados, uma simples constatação toma forma de desafio: ao dizer aos brancos que tudo bem que eles queiram destruir tudo que tocam, a mulher Kisêdjê lança um “morramos todos juntos então!”. Ou seja, destruam tudo, mas cuidem de lidar com suas paranóias sobre a morte, pois nós já encontramos um caminho lúdico e comunal para lidar com isso. See you in another life, brother!

O corpo

A tradução do termo kuikuro, que se aproxima da ideia de hiper mulheres, não pode ser contestado aqui por pura inabilidade, por falta de conhecimento sobre o idioma. Assim também a legendagem nos aproxima daquele universo, preocupando-se em marcar alguns limites, mantendo saudáveis lacunas em detrimento de explicações fáceis. Os cantos não são traduzidos ipsi leteris, sem com isso prejudicar o entendimento do ritual, que é muito mais corporal do que linguístico, ainda que o corpo inscreva o ato comunicativo dichavando pra nós um espectro da linguagem que é uma das principais incógnitas filosóficas atuais: o corpo inscrevendo a teoria e a prática ao mesmo tempo.

Corpo transformado e transfigurado das mulheres heroínas: com colares coloridos, tornozeleira ritmadas, e pinturas sobre rostos, coxas, barrigas. Na recriação do mito original como ritual, não é mais preciso buscar os superpoderes aumentando o clitóris com a mordida de formigas. Em uma fila interminável de mulheres de diversas idades cantando e dançando, a tranformação se atualiza como pura potência dos corpos.

Assim, a hiperforça dessas mulheres pode ser assinalada em suas posturas corporais, demonstradas em seu modo de navegação pela tribo e arredores, na assertividade sexual, e no bom humor envolvendo questões muito mal trabalhadas entre nós, os tais brancos. No episódio em que as mulheres se lançam sobre os homens, que dormem plácidos em suas redes, ou na contação do mito fundador do Jamurikumalu em que alguns homens se esquivam dos detalhes mais quentes: às hiper mulheres nada escapa; tudo é naturalizado: elas não gostam de pênis pequeno e dizem isso sem pudor.

Da beleza de um trato com a vida que nos ultrapassa em muitos passos, a cadência dos cantos emociona. Lição de vida e de cinema. Como diria Cassavetes, temos apenas duas horas para mudar a vida das pessoas. Os Kuikuro entenderam isso muito bem.

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Vício Frenético (Werner Herzog, 2009)

Por Kênia Freitas

Nem uma sequência e nem um remake do filme homônimo de 1992 de Abel Ferrara, apenas uma obra com o mesmo título sobre um “tenente mal” (tradução literal do título original). Pelo menos, é assim que o diretor Werner Herzog explica a coincidência, garantindo que não havia assistido ao filme dos anos 1990 – o que tem tudo para ser apenas mais uma das fabulações do diretor em torno da sua carreira. De qualquer forma, fato verídico ou inventado, isso não vem ao caso, visto que os dois filme são de fato muito diferentes em suas propostas.

Para enterrarmos as comparações de uma vez, podemos dizer que onde Ferrara mergulha numa frieza melancólica, Herzog se contamina pela maldade pulsante. Onde um é a depressão (com uma interpretação magistral de Harvey Keitel), o outro é pura mania (explosão de adrenalina em que até a canastrice típica de Nicola Cage funciona bem). Se Ferrara conseguiu um filme mais honesto; o cinismo de Herzog é, por sua vez, libertador… Temos a pura potência de um homem mal, despojado de valores morais e, por isso, indiferente as pressões sociais. Enfim, o que poderíamos chamar de  um homem livre.

No inicio do filme conhecemos Terrence McDonagh, aparentemente um policial exemplar –  afinal, ele estava trabalhando em pleno caos provocado pelo furacão Katrina em Nova Orleans, enquanto os outros haviam abandonado os seus postos. Nesse dia, tentando salvar um prisioneiro do afogamento, ele se machuca seriamente passando a sentir dores constantes no corpo e a depender de drogas (licitas ou não) para anestesiá-las. Mas o que está em questão não é apenas como um ambiente ruim irá transformá-lo em um policial corrupto e sem escrúpulos. Ou seja, como sua dependência é alimentada pelo próprio ambiente de trabalho. O que está de fato em jogo no filme de Herzog é a luta desse homem contra si, contra o próprio corpo dolorido e viciado, e contra a sua pulsão de auto-destruição.

Mais uma vez, temos a contaminação da loucura do personagem na câmera de Herzog – e, portanto, no filme. Em determinado momento, é como se estivéssemos presos naquela mente perturbada e em permanente martírio e não conseguíssemos sair. As iguanas cantam e os homens mortos dançam e, ainda assim, não podemos parar, não há descanso possível e, muito menos, corpo sem dor. Dos movimentos aberrantes às cenas de puro delírio, é preciso desestabilizar o local do espectador e do seu olhar.

Nesse sentido, a trama se conduz como um amontoado de cartas de baralho que vai caindo, mas que ainda assim se encaixa perfeitamente. Terrence McDonagh resolve cada um dos seus problemas enredando-os em outros ainda mais complicados e cada vez mais amarrados. E, quase inacreditavelmente, eles se solucionam: um pouco por sorte, um pouco por planejamento e, sobretudo, porque para quem nada pior pode acontecer não há outra alternativa. Assim, McDonagh precisa resolver uma investigação de assassinato, livrar-se dos capangas que chantageiam a namorada prostituta, apaziguar os problemas matrimoniais do pai em tratamento com a madrasta alcoólatra e conseguir pagar as dívidas acumuladas em jogos de azar: tudo ao mesmo tempo e urgente.

Temos, assim, uma espécie de fábula moral ao contrário. Em seu cinismo trágico, McDonagh é um homem terrivelmente preso a si – ainda que moralmente livre de todos. Na mesma medida em que tudo se resolve porque nada de ruim pode de fato afetar aquele homem, a recíproca é verdadeira para a felicidade. Não há final heróico que consiga evitar que ele continue a ter “alguns dias ruins”. Não há possibilidade de um ponto de vista fixo e definitivo. E, acima de tudo, não há fim.

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Little Dieter Needs to Fly (Werner Herzog, 1998)

Por Kênia Freitas

Little Dieter Needs to Fly poderia ser resumido como um documentário sobre o sonho americano de um garoto alemão. Mas apesar da pequena ironia do título, o filme de Herzog é muito mais cúmplice do que carrasco com o seu herói-quase-por-um-acaso. Assim, o diretor conta entre depoimentos, reencenações e imagens de arquivo a história do desejo do pequeno Dieter de voar, desejo que acaba o tornando um piloto da força aérea americana no Vietnam e um prisioneiro sobrevivente dessa guerra. De um pobre menino alemão que passou uma infância de fome em um país devastado pela derrota na Segunda Guerra Mundial, Dieter Dengler cumpre uma espécie de profecia bélica entre os dois grandes acontecimentos.

A infância de Dieter se confunde em vários aspectos com a do diretor Werner Herzog, também um alemão filho imediato do nazismo. Por isso, não é de se estranhar que o diretor e seu personagem dividam a voz narrativa do filme. Uma operação de dupla fabulação em que o personagem real se apodera do documentário sobre si, mas também em que o diretor torna-se esse personagem. Dessa forma, temos duas instâncias de enunciação no filme: a voz em off ou em depoimento presencial de Dieter e a voz over do diretor, que contextualiza os fatos – ao mesmo tempo que não perde a dimensão crítica tão comum ao cineasta em seus documentários.

Nessa dupla fabulação, o filme se constrói como uma memória recriada. Memória evocada não apenas pela narração dos fatos, mas também pela reencenação in loco de alguns acontecimentos. Herzog leva Dieter de volta a sua cidade natal na Alemanha e aos locais em foi prisioneiro no Vietnam. Mais do que isso, faz o personagem reviver toda a sua penosa saga entre a captura, a prisão, a fuga e o resgate. Em uma recriação bastante incomum pelo constrangimento dos envolvidos, figurantes vietnamitas interpretam os carrascos de Dieter. Mas essas imagens nunca conseguem atingir a potência da narrativa que revivem. A guerra como uma experiência não pode ser recriada em uma guerra como imagem.

No outro sentido, imagens de arquivo logo após o resgate do personagem e um filme da época de instrução para soldados são as munições das quais o diretor se serve para fazer sentir a diferença entre essas duas dimensões da guerra (como uma imagem e experienciada). Se a primeira é capaz de mover afetos e criar sonhos americanos, a segunda parece evidenciar as falácias da primeira como uma máquina de desejos que se realizam apenas no objetivo de se autoalimentar. Uma operação didática, é verdade. Mas tratando-se de uma pedagogia herzoguiana, estamos ao abrigo de qualquer senso comum.

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O Enigma de Kaspar Hauser (Werner Herzog, 1974)

Por Kênia Freitas

O que é um ser humano? Essa parece ser a questão central de Herzog em O Enigma de Kaspar Hauser. No início do filme vemos um jovem acorrentado em um porão. O seu único contato social é com um homem que o alimenta e em determinado momento o ensina a escrever o seu nome: Kaspar Hauser. Um dia esse mesmo homem misterioso leva Kaspar até a cidade de Nuremberg deixando-o plantado na praça da cidade com uma carta na mão, que explica brevemente a história do rapaz e o oferece como voluntário à cavalaria.

A figura causa um estranhamento imediato, o seu corpo mal consegue se manter ereto, Kaspar não responde às perguntas dos moradores e autoridades da cidade — logo todos percebem que ele não sabe falar e não faz ideia alguma do que seja a vida em sociedade. De caso pitoresco à aberração, ele não se encaixa naquela sociedade do século XIX e, sobretudo, à sua definição do que seria um indivíduo. A inventividade de Herzog em filmar essa história verídica de uma criança selvagem está em por em questão nossas convenções sociais e as fronteiras que estas criam entre ilusão e realidade, falso e verdadeiro — temas centrais no cinema do diretor alemão.

Nesse sentido, um dos personagens fundamentais da trama é o escrivão que, desde o momento em que Kaspar é encontrado até a dissecação do seu cérebro após seu assassinato, registrava minuciosamente a vida dessa figura pitoresca. Mas o próprio escrivão e o seu ofício nos soam aberrantes em sua obsessão de documentar, tornando evidente que entre todas as instituições sociais do século XIX uma das mais importantes era a discursiva. O ser humano era mais do que um corpo científico, uma fé religiosa e um conceito filosófico, mas também a interseção de todos esses discursos pelo registro oficial.

Mais do que um ser sem linguagem ou convívio social, o Kaspar de Herzog é um indivíduo sem instituições e suas convenções. E, quando inserido nelas abruptamente, um ser no qual as suas relações de poder e força não repercutiam. É o que o diretor nos mostra repetidamente durante todo o processo de adaptação do personagem à sociedade. Kaspar é confrontado pela lógica da Igreja, do Estado (que o transforma em espetáculo), da filosofia e da aristocracia. E, em cada um desses momentos, sua inadequação é gritante. Ele possui uma lógica de pensamento que não se enquadra. A música, os sonhos, a poesia e a natureza são as linhas de fuga que tornam a sua existência suportável para ele mesmo. E a violência de um assassinato a facadas parece ser a única forma de, de fato, penetrá-lo.

Como formula Michel Foucault no seu belo texto, A vida dos homens infames, o registro incessante da vida do homem comum por meio do processo de documentação oficial acaba por gerar uma nova relação entre o poder, o discurso e o cotidiano: uma nova mise en scène. E assim cabe a Kaspar, a cada momento, um papel diferente: primeiro, o prisioneiro com o qual o Estado não sabe o que fazer; em seguida, a atração de circo e, por fim, o pupilo esforçado de um pensador. Obviamente, nenhum desses papéis o convém.

E, nesse momento derradeiro de sua trajetória, o personagem começa a finalmente a compreender as engrenagens daquela sociedade e as suas representações. Sua recusa a qualquer mise en scène é então ainda maior. Kaspar, que no período de encarceramento não distinguia entre sonho e realidade, afirma ao seu tutor que sua atividade preferida é a do sonho. Como muitos dos personagens de Herzog, ele está no domínio do delírio e da ilusão.

Domínio que aos poucos contagia o filme. Somos levados por Herzog para as imagens do sonho recorrente do personagem, da sua história inacabada — um deserto com uma caravana perdida guiada por um homem cego. Tanto quanto Kaspar, somos inadequados aquele tempo e as suas instituições, isso é o que nos grita o filme o tempo inteiro. Nós também preferimos o cinema do delírio, que assim como seu personagem, Herzog pouco pode desenvolver nessa história. Resta-nos a figura cômica do escrivão e das suas certezas discursivas, tão risíveis no prisma das nossas novas convenções — último truque do diretor, que por fim põe em joga nossa própria ignorância. Se Herzog não abandona uma questão ao longo de sua filmografia é a de que: o que é um ser humano e quais são os seus limites.

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Aguirre, a Cólera dos Deuses (Werner Herzog, 1972)

Por Kênia Freitas

Aguirre é um desses filmes em que Werner Herzog condensa de forma sublime o melhor do seu cinema – e desse mistério que é a construção de um filme. Temos já, mesmo se tratando de um filme na primeira década de sua carreira, uma temática ao qual o diretor alemão voltará recorrentemente ao longo da sua obra: o poder da natureza em disputa com a potência do homem, a força esmagadora do ambiente contra o desejo de conquista desenfreado do ser humano.

Nessa expedição colonialista do século XVI, Herzog coloca em relação o ser humano como uma força de racionalidade, ou pelo menos, racionalizante (mesmo que de abstrações, ambições e delírios) e a natureza como o incomensurável e inconquistável (as águas do rio que não se deixam navegar, a espessura da floresta impenetrável, o nevoeiro que não permite enxergar e as montanhas ingremes dificilmente escaladas). Nesse sentido, o diretor coloca em questão esse que foi um dos grandes projetos da modernidade (e do seu cinema): a natureza como essa força intangível a ser superada pelo ser humano – e que as grandes navegações, já traziam em seu germe. Uma superação quase nunca possível e, ainda assim, almejada.

É assim que encontramos a expedição liderada pelo conquistador espanhol Gonzalo Pizarro em busca de Eldorado, a lendária cidade de ouro no Peru. A grandiosidade da empreitada esbarra em diversos problemas estruturais do grupo em plena floresta amazônica do século XVI. Nobres, soldados, escravos, um padre e duas mulheres são uma comitiva pesada demais para conseguirem avançar no terreno desconhecido e inóspito. A densidade da floresta toma conta dos planos. A umidade do rio turbulento engole as cenas. Os longos planos de espera e contemplação diante daquele ambiente exuberante materializam a impotência daqueles homens e mulheres frente à natureza e ao seu destino.

Diante da impossibilidade de seguir nessas condições, o grupo se divide em uma comitiva de cerca de 40 homens. Mas o subgrupo chefiado por Don Pedro Urzúa logo é tomado de ataque por Dom Lope de Aguirre. A loucura da missão materializa-se então na loucura de Aguirre, interpretado genialmente por Klaus Kinski. Esse filme marca, aliás, a primeira parceria conturbada entre o ator e o diretor – que ainda farão juntos Nosferatu (1979), Fitzcarraldo (1982), entre outros filmes do cineasta.

Seguimos então nessa expedição rumo ao nada – rumo à loucura. Loucura de Aguirre, de Herzog, de Kinski, da expedição, da natureza e do filme. Aos poucos, os movimentos aberrantes da câmera tornam-se comuns – em uma espécie de contaminação de humores. Da calmaria entediante com seus longos planos, a câmera também enlouquece, se desequilibra, dança. A cena da cabeça cortada que canta até dez nos instala definitivamente na insanidade que indiscerne os planos do filme – trata-se da loucura de quem, afinal?

Mas a loucura que obceca Herzog estava também na própria estrutura daquele grupo: nobremente protocolar em plena terra de ninguém. “Eu solenemente tomo posse dessas terras, seis vezes maior do que a Espanha” – declara Don Fernando de Guzmán ao se tornar rei da terra imaginária de Eldorado, em um momento em que o grupo está de fato perdido. Nesse ponto, o homem como potência racionalizante já perdeu a batalha contra o incomensurável. Estamos no terreno da pura abstração materializada em um quase realismo fantástico – mas na austeridade do cinema de Herzog. Afinal, o que é um trono senão madeira coberta de veludo? Como manter o protocolo aristocrata em uma terra sem leis – ou submetida fortemente as leis da natureza? Qual a validade de um julgamento do qual já se sabe a sentença? Ou de uma insurreição que leva do nada à coisa alguma? É o banheiro improvisado dentro da balsa, ela também já improvisada, que ressalta não a civilidade do humano, mas o absurdo de suas crenças, culturas e, sobretudo, dos seus códigos. São as mãos e bocas esfomeadas que precisam esperar o rei de terra alguma se alimentar para devorarem loucamente os seus restos.

Como se contaminado pela umidade do cenário, aos poucos o filme se transforma. Os longos planos silenciosos mais do que a espera passam a representar um medo invisível, uma inevitabilidade da catástrofe final que se prolonga arrastadamente. A mesma circularidade do caminho torna-se a da câmera. Na disputa entre poder e potência, os homens são completamente esmagados, em um processo gradativo de engolimento.  Realidade e ilusão, por fim, se misturam, pois já não há ponto de vista neutro e não enlouquecido.

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