Festival de Brasília: Mostra Competitiva de curtas – Parte 2

Por Kênia Freitas
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As melhores noites de Veroni (2017), Ulisses Arthur

Tentei (2017), de Laís Melo

Esses dois curtas trazem o corpo feminino como temática e como forma de exploração material do filme. As protagonistas femininas em ambos colocam as relações de afeto e poder que perpassam as vidas das mulheres em evidência. Em As melhores noites de Veroni, de Ulisses Arthur, esse corpo – o corpo da protagonista Veroni – está em impasse: de um lado a clausura de um apartamento apertado, da vida familiar e de um relacionamento em crise com o marido caminhoneiro quase sempre ausente; de outro, as aulas de canto e a performance na noite. O curta de apartamento, usa desse espaço limitado para aumentar o efeito de aproximação com Veroni e o seu cotidiano trivial. Interessa, assim, menos a resolução das incertezas da personagem ou a imposição bem delineada de um conflito narrativo e mais um aproximar afetivo desse corpo feminino e dos seus deslocamentos.

Em Tentei, de Laís Melo, os procedimentos iniciais de entrada no filme são semelhantes: o espaço íntimo de um quarto, vemos inicialmente um casal (homem e mulher) na cama e  acompanhamos os gestos mínimos e silenciosos dessa mulher que se arruma para sair de casa. O procedimento então se altera completamente, estamos no espaço impessoal de uma repartição pública, que descobriremos ser uma delegacia policial. O filme orquestra então de forma engenhosa um plano e contraplano entre Glória (a mulher que vimos sair de casa) e o funcionário público que a atende. Embora ambos ocupem a mesma sala, cada um dos personagens existe em uma pulsação de vida diferente. O atendente segue protocolarmente os procedimentos para registrar a denúncia de abuso e estupro marital de Glória, o seu discurso conforma-se no registro institucional. Glória pouco consegue expressar-se pelas palavras, o seu discurso é aquele que não consegue ser formulado de forma adequada ao protocolo. Plano e contraplano colocam o espectador entre duas imagens que não poderão se encontrar de fato na tela. Por fim, diante da impossibilidade, na sequência final do curta, a esse corpo que não consegue produzir discurso sobre a violência que sofre, o que resta é voltar-se contra si e também contra a câmera, contra a sua transformação em imagem.

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Peripatético (2017), de Jéssica Queiroz

Nada (2017), de Gabriel Martins

Chico (2016), dos Irmãos Carvalho

Peripatético, Nada e Chico trazem para a tela os corpos e questões da juventude negra, uma juventude que nos filmes negocia entre a própria possibilidade de existir no mundo e os desejos que atravessam uma existência mais plena (menos precária e com significado). Nada, de Gabriel Martins, mergulha na crise existencial da Bia. A jovem de família de classe média e as portas de prestar vestibular, manifesta o seu desejo profundo de não fazer nada: de não escolher uma profissão e não entrar na máquina de moer pessoas da vida adulta.  Equilibrando as diversas reações  (da família, da escola e da amiga) diante do desejo de Bia, o curta tem as suas melhores cenas quando entrega-se plenamente as formas de apreensão do mundo por Bia – no travelling de abertura com o deslizar da câmera nas ruas acompanhado pela trilha musical, na cena em que Bia canta rap no quarto e a câmera entra na coreografia com ela, nos corredores da escola quando a banda sonora do filme fica nos fones de ouvido da jovem em detrimento aos sons do mundo exterior. No fim, após a fuga da garota, o filme devolve aos espectadores um lugar do julgamento ou da absolvição com um “valeu a pena?” que não será respondido.

Chico, dos irmãos Carvalho, nos desloca para uma narrativa de futuro: estamos em 2029, em um regime de exceção em que jovens negros e pobres podem ser presos preventivamente pelos crimes que supostamente irão cometer. Chico é um desses jovens, carregando nos tornozelos a marca desse destino. Embora futurístico, é difícil classificar o filme como uma distopia estando este tão próximo das representações e das discussões sociais do nosso presente (a redução da maioridade penal e o encarceramento em massa, para falar dos temas mais óbvios). As escolhas da direção de arte e da encenação são fundamentais também no sentido de inscrever esse futuro como um registro familiar do nosso presente. Na encenação, temos um registro naturalista dos acontecimentos, sobretudo nas relações familiares afetivas e francas entre avó, mãe e filho. Os elementos futurísticos inseridos para marcar cenograficamente esse futuro são sutis (como a tornozeleira prateada de Chico) reforçando essa relação direta com o presente. Então, de fato o deslocamento maior do filme vem não de sua temporalidade, mas da sua resolução pelo cruelmente e amorosamente mágico na cena final.

Peripatético de Jéssica Queiroz acompanha os amigos Simone, Thiana e Michel. Simone quer arranjar um emprego, Thiana estuda para passar no vestibular e Michel está tranquilo jogando videogame. A narrativa pulsa no ritmo da correria de Simone, é preciso deslocar-se pela cidade, usar sapatos e passar por inúmeras entrevistas que não dão certo. Situando-a para além da sua vizinhança e núcleo de amigos, o filme apresenta também uma série de outros candidatos a vagas de emprego (de idade, raça e classe social diversos). Abrindo a subjetividades diversas a busca da personagem. No entanto, a narrativa divertida e de influências pop é bruscamente interrompida pela realidade histórica. As imagens televisivas nos situam então em 2006 no dia em que o protesto de uma facção criminosa e a reação policial contra a periferia da cidade rasgaram São Paulo (e no filme a vida de Michel). O curta se depara assim com um paradoxo de existência semelhante ao dos seus jovens personagens: o desejo de ser e pulsar em um ritmo, e as demandas concretas de precisar existir em outro registro.

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Carneiro de Ouro (2017), Dácia Ibiapina

O filme de Dácia Ibiapina começa por nos apresentar o personagem de Dedé Monteiro, um realizador do Sertão do Piauí que produz cinema popular com poucos recursos, contando histórias fantásticas e de aventura, com muito efeitos especiais inusitados. De início, o documentário trabalha em um registro padrão de entrevista com o personagem e algumas imagens do seu processo de produção. Mas o grande movimento do filme de Dácia Ibiapina é quando este permite-se o gesto de fazer ready made com o cinema de Dedé Monteiro. O curta então perde-se (no melhor dos sentidos da criação livre) nas imagens do cinema do cinema de Dedé e torna-se ele próprio esse cinema popular escrachado de efeitos especiais absurdos e cativantes. Mais do que um filme dentro de outro filme; trata-se de um cinema (o francamente popular) dentro de outro cinema (o do registro documental legitimado por festivais e crítica). Sendo um belo gesto de crença e amor às imagens do cinema.

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