Olhar de Cinema: Diz a Ela que me Viu Chorar (Maíra Buhler)

uma corrente selvagemPor Gabriel Papaléo

Na abertura do filme, a cineasta Maíra Buhler falou sobre o desmonte atual dos centros públicos de apoio psiquiátrico no país. Ontem, dia da sessão, foi aprovada uma lei que tira a liberdade de escolha de um dependente químico à internação. O indivíduo mesmo em estado vulnerável perde sua vontade diante da máquina bruta do exercício de poder. A potência de Diz a ela que me viu chorar reverbera desde o primeiro plano, e o retrato de drogas aqui é escasso porque a urgência de um retrato habitacional que busca os contornos do confronto dos abandonados pelo Estado ao mesmo tempo é também o investir de tempo na observação das trocas entre os moradores, o cotidiano formador que humaniza.

O observacional novamente é o formato do dispositivo escolhido, de uma não-interferência que virou regra no documentário contemporâneo brasileiro, e é através da forma que Buhler mapeia o condomínio que o filme tenta se distanciar da distância que marca esses filmes. Nesse apreço pelo geográfico do local, se diz muito sobre a ideia de civilidade que Buhler tenta atribuir àquelas pessoas, dando forma ao lugar para contextualizar com mais responsabilidade os atos que verá.

A força dos personagens transborda na câmera atenciosa aos detalhes, e seus instantes de vulnerabilidades falam sobre desencontros, amores quebrados, problemas de família e a tentativa de lidar com o passado; dilemas quase sempre retratados à margem da dependência química, sem descartar o problema que ela causa mas trazendo motivos mais emocionais, num escopo maior da simples condenação das drogas. Buhler sabe que a humanização reside no cotidiano, nos problemas triviais do dia-a-dia, e não por acaso é tão raro que apareçam personagens consumindo crack.

É nos momentos da câmera como intrusa que o filme enfrenta os dilemas éticos que são comuns ao subgênero do doc observacional, não apenas no princípio de criar uma narrativa de disparidades sociais (entre equipe do filme e personagens filmados, uma diferença irreconciliável na sua base) mas também na dialética com os moradores, nas indisposições que escapam na câmera. No plano que um dos personagens grita com a mulher que ama no telefone, sua explosão emocional revela uma vulnerabilidade desconfortável, às vezes ambígua, suscitando a dúvida se ele está mesmo ciente do alcance dessa filmagem. É uma cena forte e tem seu valor na estrutura de Buhler em estabelecer humanização nos dilemas amorosos de certos personagens, mas até que ponta não expõe demais aquela pessoa. Algo similar acontece quando a câmera no tripé ocupa um grande espaço no elevador. Uma mulher, que o filme não acompanha com frequência, olha para a câmera e a equipe e reclama de ser filmada ali; “vocês não tem educação não?”, ela pergunta. E o plano continua, continua, continua. Soa uma provocação de Buhler diante do próprio dispositivo, como se fosse importante expor que houve resistência diante da filmagem, mas que ao mesmo tempo não obedece o pedido da moradora para parar de gravar naquela hora.

A forma que Buhler constroi atmosfera de um condomínio caótico esquecido no meio de São Paulo, a cidade motor que aqui é uma miragem distante vista de cima e sentida e ouvida apenas pelos trens que passam, cria de forma sucinta a distância que existe entre a cidade vista como civilizada e o condomínio visto como excluído. A cidade funciona assim como reminiscência de passados que não acessamos dos moradores, o que potencializa esse abandono social. É o retrato fílmico como dever cívico de representação, e nisso a ambiguidade da ética do relato aqui visto é colocada novamente.

A força do retrato de algo denso e ambíguo assim dá a relevância e dignidade ao filme, mesmo quando se questiona o que essas imagens de cidadãos vulneráveis e expostos às minúcias pode provocar no público homogêneo de sempre que costuma frequentar os festivais. A distância entre o Hotel São Pedro em São Paulo e a sala 3 do Itaú aqui em Curitiba permanece enorme.

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Olhar de Cinema: MS Slavic 7

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Por Gabriel Papaléo

No momento que a luz do projetor liga, a protagonista de MS Slavic 7, vivida por Deragh Campbell segura a carta da avó com cuidado. A câmera então se foca no manuseio do papel e nos olhos de Campbell examinando a carta enquanto a luz do projetor apontada pra câmera ilumina seu rosto. Esse é o jogo formal assumido por MS Slavic 7, filme de Sofia Bohdanowicz sobre a troca de cartas de sua avó Zofia com o poeta polonês Josef Wittlin, desde o princípio. O estudo das cartas como forma de entender origens, de um passado remoto para alguém que não encontra lastro no caos da cidade e nem na beleza do campo que naquelas cartas são descritos.

Na festa familiar, o que se intui ser o motivo da viagem da protagonista, a burocracia da família aparece nos pequenos detalhes, nos olhares desapaixonados da mulher que dentro da biblioteca soa atenta. Essa falência na estrutura da biblioteca, na curiosa cena de confronto entre o funcionário e ela, encontra reflexo direto na briga com a tia quando ela diz que “todos querem ser curadores”, à medida que a pesquisa da personagem avança. A crítica à metodologia falha versus os procedimentos de observação empírica aparece como o arco mais próximo de amadurecimento da protagonista, como se fosse preciso tomar as rédeas da memória familiar para crescer como pessoa.

Enquanto imagina os encontros, interpreta as palavras pela força do relato, a protagonista testemunha um vislumbre no presente do que seria a passagem do tempo desses amantes distantes das cartas na cena do aniversário de casamento. Aquele ideal, o suposto amor entre eles (como a própria personagem aponta), parece ali transfigurado numa possibilidade do que seria se Zofia e Josef tivessem se encontrado e ficado juntos. A historia familiar portanto funciona apenas como uma subjetividade distante e que estimula interpretações racionais e principalmente emocionais, mas como cotidiano fruto do tempo presente é um tanto frustrante com suas cerimônias distantes e distanciadas do afeto.

O exame cuidadoso do objeto, do documento que revela o passado, do processo pessoal que é refletido diretamente nas cartas, surge como antídoto disso. A atenção ao detalhe, apenas à observação, sugere passados nunca acessados para a protagonista, e esse apego ao manuseio surge como o contato mais próximo dela com o palpável.

Nesse apuro visual baseado na síntese de cores e locações, a ambientação básica do quarto de hotel comenta diretamente a solidão de Josef na cidade, sim, mas também ilustra com economia a ambiguidade da relação da protagonista com seu nome, com suas raízes. Em determinado momento, ela diz para o tradutor das cartas que “só sabe inglês”, e pede uma tradução de estrutura gramática, não de interpretação diretamente. Sua relação distante com a família, cuja briga pelo espólio parece um sinal de subjetividade cultural roubada, envolve a encenação de festa protocolar e tão insípida – e apenas nas cartas, na subjetividade, encontra algum alento no nome que carrega. É uma busca por identidade se confundindo com obsessão de investigação, tudo sutil pela narrativa de cenas calmas e de ações dilatadas, de alguém que admira o esforço de dois fantasmas em transformar tudo em linguagem.

Talvez seja por não falar o idioma natal da família que já exista a distância espacial tão clara entre a protagonista e sua famílias nos relatos cotidianos de autodescoberta sem possibilidade de conclusões em MS Slavic 7.

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Olhar de Cinema – Guia de Filmes #1

Por Pedro Tavares

uma corrente selvagemUMA CORRENTE SELVAGEM (Nuria Ibañez)

A tensão sexual como mediadora – ou corrente – da observação do cotidiano de dois pescadores que Nuria Ibañez recorta de forma bastante interessante: estes homens podem estar sozinhos no mundo ou criaram um antro à parte onde a vida mecanizada do trabalho serve mais como uma performance, de corpos contra sua própria natureza.

uma corrente selvagemDANIEL (Marine Atlan)

É admirável todo poder que Marine Atlan dá a corpos infantis à câmera. Nunca subestimados, sempre no limiar do fim da inocência e do abrupto horror da vida adulta, Daniel seria o equivalente ao filme infantil de Brisseau. É um filme que se distancia da morte mas nunca para um tipo de celebração da vida e sim para lamentar perdas precoces.

espero tua (re)voltaESPERO TUA (RE)VOLTA de Eliza Capai

Aqui um óvni intrigante sobre as manifestações de 2013 e seus desdobramentos até a posse de Jair Bolsonaro. É um filme ideal para exibição na MTV ou compartilhamento em redes sociais pela sua vitalidade, dinamismo e por todo seu didatismo jovial, embora se saiba que a grande rede o guardará como um registro histórico e não como um filme – no caso, a Globo, produtora do filme. A impressão é que o filme está deslocado, mesmo com a urgência do assunto e que levanta a questão sobre o significado de “urgência” e se ela já se transformou em “estado”.

uma corrente selvagemCINZAS E BRASAS (Manon Ott)

Entre duas formas, se destacam as ações ante à palavra para exibir como o trabalho suga e rege a vida das minorias na França. Certamente um filme que apesar de referenciar a Sylvain George, é muito menos histriônico e condensado e justamente por toda essa simplicidade de realização tende a criar veracidade às imagens colocadas em consideração.

um-filme-de-verão-jo-serfatyUM FILME DE VERÃO (Jô Serfaty)

Leia o texto completo sobre o filme.

espero tua (re)voltaNÃO PENSE QUE VOU GRITAR de Frank Beauvais

Os filmes de pesquisa/arquivo hoje chegam ao ponto de se pensa-los como um protocolo. Beuvais faz um recorte de sua vida – nunca se sabe da veracidade do que é narrado – e a partir dela utiliza imagens de filmes como um analogia de sua segurança na própria pesquisa, como se a contingencia nunca fosse possível num mundo imerso em imagens e a pensar em Farocki, é possível sempre criar novos significados. O que não é bem o que Beauvais faz aqui nessa espécie de filme de encaixes.

espero tua (re)voltaPAHOKEE (Patrick Bresnan e Ivete Lucas)

Ecos da metodologia de Frederick Wiseman na observação de uma instituição que reflete um microcosmo que sempre está às escuras: uma comunidade na Flórida composta majoritariamente por negros e imigrantes. Bresnan e Lucas registram usam o último ano de alunos no colégio como instrumento de reflexo social de um costume tipicamente americano: o fim de uma era e a hora da mudança para um novo estado.

uma corrente selvagemSETE ANOS EM MAIO de Affonso Uchôa

Três blocos performáticos para entoar a violência do estado que partem de uma simplicidade atroz. Do jogo do plano/contra-plano ao uso do corpo em função óbvia, surpreende que Uchôa use corpos e palavras para objetivos tão frontais e consequentemente inocentes.

happy-family-1548902TEL AVIV EM CHAMAS de Sameh Zoabi

Buscar um tipo de mensagem acessível pela luz que se joga na discussão sobre a opressão implícita. O filme de Sameh Zoabi parte de um bom argumento, mas o coloca em dimensões e campos tão maleáveis que seria possível tirar diversos filmes dali. Há essa noção tanto que o filme em certo momento brinca com a possibilidade de ser um “filme infinito”, justificando pela sua matéria-prima, uma novela sobre um amor improvável entre um judeu e uma palestina.

A031_C011_0812KDA NOITE AMARELA (Ramon Porto Mota)

O filme de horror dO Som e a Fúria. Exemplar de credo na exequibilidade da imagem e seus efeitos conforme a mesma se dissolve – literalmente – em outras formas, principalmente em glitches. Na mesma medida, a atmosfera de horror vai de um proto-slacker nos minutos iniciais a um suspense juvenil do cinemão americano no terço final. É notável a versatilidade de Ramon Porto Mota para domar tantos fios, ainda que a objetividade do todo se resuma a estes exercícios.

um-filme-de-verão-jo-serfatyA PORTUGUESA (Rita Azevedo Gomes)

Um trabalho impressionante de distanciamento que torna a culpa masculina como uma miragem para toda eternidade; filme muito coeso para transferir toda historicidade embutida em seu tema como reflexo e comentário assertivo sobre a masculinidade através de uma personagem de contornos complexos sempre justapostos ao panorama histórico.

happy-family-1548902SEGUIR FILMANDO (Saeed Al Batal, Ghiath Ayoub)

Começar o filme com análise detalhada de um plano de Resident Evil de Paul W.S Anderson e com um corte parar na guerra da Síria elimina um longo caminho de argumentações e discussões sobre guerra e espetáculo – principalmente como suas emulações deixam de ser assertivas. Ainda que o norte seja de nunca desligar a câmera – que no acaso arrematam sequências brutais que inevitavelmente se justificam dentro de uma “normalidade” difícil de digerir. Batal e Ayoub gastam tempo com olhares além dos limites da zona de guerra que tiram a ideia de que todo filme dado à câmera é experimental e sobre seu alcance.

uma corrente selvagem

ILHA (Ary Rosa e Glenda Nicácio)

Leia o texto completo sobre o filme.

happy-family-1548902ÉTANGS NOIRS (Pieter Doumolin & Timeau De Keyser)

Um fiapo narrativo que parte da desconfiança geral – dos personagens ao espaço filmado – para compor uma sobreposição de gêneros cinematográficos muito interessante, guiada principalmente por um thriller fantasma composto de corpos e luzes. Talvez o mais próximo que o cinema independente chegou de um filme de Michael Mann.

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HIGH LIFE (Claire Denis, 2018)

O mandamento do Único

por Felipe Leal

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A nível quiçá muito íntimo, é com o matrimônio entre as leis da economia e os fenômenos biológicos que Claire Denis cada vez mais sutilmente parece se preocupar. Número e corpos; distribuições dos usos e circularidade “tragicossexual” dos genes. Colônias, exército, famílias, máfias, casais, imigrantes – o todo e o diferente se entrechocam em sua obra nos deslizes microscópicos entre os sujeitos. Olhar o sangue de perto, o transe da bruxa pelo transe do olho partilhado, estar próximo o suficiente do homem diante do Nada, até que seu rosto seja único e limítrofe demais para não ser todos. Tracemos, pois, uma rápida e eficaz analogia: se se diz de Solaris (Solyaris, 1971), o símbolo úmido e magnânimo de Tarkovsky, que o planeta é um espelho da alma do homem, poder-se-á dizer de High Life (idem, 2018) que a suspensão humana diante dos astros, neste último Denis, é nosso esperma. E muito como a semente, para as plantas, é infinitamente mais que um minúsculo projétil de vida – é a grafia inteligente, pré-inscrustada, de um movimento de diferenciação para o sol e para a terra, a codificação de um ser novo explicitamente feito não só da planta para ela, mas do todo-mundo que ela habita, que ela é –, não tardará para que nas câmaras monocromáticas de dormência e assassinato o espermatozoide seja também esgarçado, seja sujeito e evidência dessa borda que é para nós uma espécie de abismo.

Muito como em J. L. Borges, e certamente para além da eficácia, digamos, dos quesitos dinâmicos do ritmo, há algo na síntese das elipses da diretora que tem a capacidade de estabelecer um plano de enfrentamento moral, ético, ser-entre-ser inerente, uma espécie de lençol freático sob o efeito do qual seus personagens embatem com deuses encarnados nos elementos que melhor os conjugam entre si. A obsessão e o sangue, a invasão de propriedades e raça, a hierarquia e o sexo aqui se transmutam num lance melancólico e desesperado entre o tabu e a razão de sobrevivência. Isto – o estouro de dados pelo truque da elipse – porque lhe basta um gravador e uma mulher inquirindo um homem apreensivo, com o risco de vida amalgamado nos ombros e olhos, para que a informação trocada tenha não só o valor de um ultimato político, como também o legado de certa forma definitivo, crítico, para a Terra da qual aqueles indivíduos à deriva no espaço se destacaram. São criminosos encapsulados numa missão sem cauda, expurgados do planeta sob falso propósito, e não será preciso dizer mais nada, porque o misterioso oco do espaço sideral se torna ainda mais vazio: é um Nada. É pior que a falta de todas as coisas porque não há volta nem chegada.

A ferramenta de conserto Monte (Robert Pattinson), que nos primeiros minutos escorregara, por um quesito de ângulo, num mergulho espaço abaixo, por esse segundo fator de uma penalização ao Eterno repentinamente refaz o quadro e todos aqueles ainda a vir: não há norte ou sul para a vida à deriva, o corpo é uma estranha e ilusória interrupção no tempo, um contínuo sem nada, perde as funções de sentido, vira uma ferida do futuro; a “vida alta” (vida no alto? vida suspensa? vida flutuante, adormecida?) é um miserável culto àquela que a bruxa vem a coordenar como aposta única, aposta ao Único. Xamã do esperma, chama-lhe aquele a quem todos se referem como ‘O Monge’, o assassino refeito por uma ordem interna. Com o resto de vida devotada a tornar a nave uma ala hospitalar-higiênica de produção de esperma e inseminação, de tentativas cujo esforço de ultrapassagem só reforça a tarefa Sísifica, que o sexo maquínico de Binoche resulte num transe pagão espiralado como Robert Eggers jamais sonharia é um estimulante e um fato inconteste de que só o contato aproximativo, progressivamente seccional, intimizado, disposto ao “sujo”, pode almejar a um excedente que permaneça “para os que ficam”, para todo nosso regime de vida que visa a, que se projeta para sustentar um porvir. Ou seja: há, no filme, (nos filmes) uma preocupação da ordem do transmissível que só pode ser equiparada ao projeto de um filho. Mostrar, implorar que se veja, que alguém possa ver assim e jamais certas coisas. Magia e tabu.

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Arte; reprodução e prole; ciência; aliás, ganhe o nome que melhor convir, toda aposta até então arriscada pelo homem para sobrevivência de si mesmo é uma resultante de uma ininterrupta mistura. O cinema o conhece bem, o jogo de somas e lances que fabricam um corpo imaterial, e em High Life a montagem de Denis não é menos que um desafio a isto que ultrapassa, um percurso  de convencimento entre o sabido e o que já não se sabe mais. “Você está sentindo?”, “Desta vez eu sei”, “Nesta eu acredito”, diz a filha sobre a tentativa ainda em ponderação de arriscar a entrada num buraco, numa passagem do espaço. É a filha que a médica diz ser perfeita e que a trama esfíngica faz literalmente perfeita: é a restante; provavelmente, até, a última humana, uma messias torta: a urgência com que nos atravessa o diálogo no trem confirma o que o testemunho só faria supor, que algum inédito acontecimento terrestre – sim, estamos diante de um curioso sci-fi – faz daqueles exilados e do retardamento da passagem do tempo fora da Terra uma questão derradeira à vida do homem. Logo na cápsula de expatriados por desvio de conduta.

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A concordância do pai é, ali naquele tempo saltado, o atender afetuoso de um pedido sonhado, expansiva fé da criança escolhida, já privada de tudo e, portanto, plena de todos os possíveis? É decisão do homem na projeção (palpite, escolha) mais razoável, pautada no racionamento de si enquanto espécie? À independência excruciante, sensual, da resposta, que é nunca se dizer porque não existe, o desejo e a subtração que lhe persiste como sombra percorrem a clausura espacial em todas as suas técnicas de procriação e adestramento, em toda a responsividade epitelial dos papéis e cruzamentos, até que haja mais um humor, mais uma suave colocação em questão do que uma imagem ensimesmada (porque assim já foi acusada Denis), e é por este humor que a inquietação que vinha tamborilando sobre a mistura de uma observadora tão erótica com um gênero tão “pensante” ganha um gosto violento de excedente e surpresa.

Nos soluços de uma habitação fadada à autofagia do laboratório de existentes, aquilo que Susan Sontag chamou de “imaginação do desastre” enquanto lógica da ficção científica, aqui, replica à nós a catástrofe ao fazê-la humana, concernente a todos, decerto, mas também entre pai e filha. O contorno de um rosto olímpico e frágil, embalsamado e nunca tão vivo em sua linha de vida de faltas, um rosto assim não se via desde que Kubrick colocou máquina e super-homem um defronte o outro, ambos trocando de lugar. O efeito do encontro entre dedos adultos com uma irrisória mão de recém-nascido, aquela imagem já pós-comercial, quem poderia fazer re-trovoar a delicada aleatoriedade que é um nascimento, uma vida, senão aquela que do cinema se fez enteada para tratar, através das peles se imantando entre si, do único tempo que honestamente nos une, o futuro, essa motricidade de linhas debaixo da vista indo a algum lugar até onde reste um. Ou nasça uma – e a natureza, apática ou esperançosa?, depende, mais uma vez, de como se vê a chaga que somos.

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VIDAS DUPLAS (Olivier Assayas, 2018)

Ao estranhamento

Por Pedro Tavares

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Há em Vidas Duplas, longe da sugestão do título nacional, a dicotomia que envolve a tradução da famosa sensação de estranhamento Freudiana, que também a coloca como uma sensação de desrealização e alienação. O estranhamento, a princípio, parte de como Olivier Assayas escapa de um fluxo de filmes incisivos para uma espécie de ironia sem reconciliação com o espectador. Vidas Duplas, numa associação primária – imagética e narrativa – é um filme dado aos eixos do cinema comercial francês, de cotidiano, traições e conflitos agridoces, ideal para que o escapismo ganhe algumas dobras para que seja considerado como um “ponto fora da curva” deste nicho. Cenas-chave para isso são as que Assayas reúne seus personagens num espaço teatral, opta por filmá-los geralmente de cima, como a visão de Deus e pouco faz além de plano e contra-plano. É o ensaio incisivo e a prática frouxa. Nestes espaços, geralmente cobertos de copos com bebidas ou pela natureza do litoral francês, costumeiramente, filmes desta estirpe oferecem entrelaçamentos com o conflito e o golpe de Assayas aí reside.

O primeiro estranhamento geral, a pensar na trajetória do autor, é como Assayas provém um filme mecânico, onde sua posição é adormecida e que a espera geral é que exista um ponto de equilibro entre a psique e o modus operandi. Pois se vemos um filme “analógico”, o conflito aqui é literalmente digital – costurado por dispositivos eletrônicos e por boa parte do filme vagantes e invisíveis. Há, obviamente para o questionamento ético destas práticas modernas, mas o que é interessante nas opções de Assayas é como o comportamento digital é diluído nestas presenças, como estes corpos são gradualmente dominados por uma obrigatoriedade comportamental imposta por estes dispositivos e como a vida tem uma nova interpretação. Esta é uma abordagem relativamente nova para o cinema, ainda acostumado a associar aparelhos eletrônicos com o futuro e Assayas o coloca no presente, como uma peça dominadora, como uma extensão da belíssima cena de perseguição construída por SMS em Personal Shopper.

Parte daí a necessidade de um conciliador que Assayas não oferecerá. Vidas Duplas é um filme-diagnóstico e pouco faz além de coloca-lo na montanha russa do cotidiano. Reside nas conversas, nas oscilações de humor, nas inseguranças e principalmente na metamorfose ética dos personagens sem que sejam necessários suportes para estas mudanças; o mudar do dia é o suficiente para que estes personagens tenham novos avatares, novas formas de pensar e agir.

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O grande estranhamento, portanto, não é do que o filme tem a oferecer e sim do que se nega a compreender; é um tipo de conclusão em que o desprezo serve de um reflexo imediato, a pensar que o homem ainda está a dominar a máquina, mesmo que ele esteja num móvel longe e que estes personagens consigam ler e conversar por alguns momentos sem a interferência dos celulares. Os rastros deixados por eles são lineares, de uma ponta a outra do filme e é comum que um filme sem pontos altos e baixos de conflitos criem tanta resistência e o que Assayas faz é dar o primeiro passo.

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SUSPIRIA (Luca Guadagino, 2018)

Terrorismo Matriarcal

Por João Pedro Faro

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Madame Leblanc (Tilda Swinton) explica para Susie (Dakota Johnson): “Você confunde fraqueza física com preferência artística”. Em uma premissa cínica como a de um remake de Suspiria (1977), seria fácil demais misturar essas duas coisas, ou talvez tentar fazer com que uma justificasse a outra. A verdade é que Guadagino, por mais que não se coloque como um autor-maestro, por mais que seja quase invisível enquanto indivíduo artístico, compreende que não existe Argento para os anos 10. Compreende que a Jessica Harper enfrentando um bando de holofotes avermelhados, cenários fantasiosos e cantigas infernais que surgem das profundezas do inferno em pouco mais de 90 minutos não é algo possível de ser refilmado. Se aquele cinema é grandioso e eterno por pertencer a certos modos de produção e certas limitações artesanais que explodem como recursos inventivos, resta a Guadagino, em 2018, a seguinte preferência artística: Tratar cada corte como uma fratura, repensar toda uma ideia vinda dos porões italianos setentistas como ferramentas para os próprios interesses contemporâneos. Uma decisão, no mínimo, louvável.

Tudo começa em potências descentralizadas. A companhia de dança dominada por bruxas existe muito mais como catalizadora de um jogo ambíguo de dominações do que como força central do poder tenebroso. Susie Bannon ingressa nesse espaço como uma dançarina de suspeita inocência, cercada por uma Berlim efervescentemente caótica, de trocas de olhares tensos com Madame Leblanc e de diversas tramas políticas de espionagem e terrorismo que nunca parece compreender. É nisso que Suspiria (2018) estabelece sua fantasia, são tantas forças atuantes em cenários tão próximos que todo o enigma é simplesmente sobre quem está por cima dessa busca por domínio. Forças guerrilheiras que atuam contra soberanias diabólicas estão de alguma forma interligadas a performances íntimas e ritualísticas de feiticeiras seculares, um psicólogo em sua jornada detetivesca pelo oculto parece ser cada vez mais engolida por forças do oculto muito além da psicanálise, amores antigos desaparecem tanto por uma memória que custa em tentar recordá-los quanto por fronteiras de um pós-guerra impiedoso… Suspiria é realmente um filme ocupado. Mas o processo de overdose de contextos, pistas, olhares por portas entreabertas e personagens que nunca parecem sair de tela é justamente parte da construção para a busca da resposta inicial: Quem tem o poder de dominar todos esses outros poderes?

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Susie Bannon vai aprendendo a cada dança que o primeiro passo para a dominação total é a dominação de si mesma. Parece brega colocar a dança como símbolo de um processo de domínio do próprio indivíduo, e provavelmente é, mas Suspiria usa desse princípio para elevar Susie por sua jornada de sacrifício pelo combate aos sistemas dominantes. A principal lateralidade Argentiana que Guadagino retoma como força motriz de um filme sobre resistências: a emancipação. O matricídio como tomada de poder da mais forte em uma utopia matriarcal, um universo tão envolto em conflitos e embates externos que acaba por focar nos desligamentos e golpes internos dos grupos de resistência. Lá pela metade entendemos que aquele grupo de bruxas resistiu ao nazifascismo na união iônica de poder, não em um embate direto como organizações armadas, mas pela simples sobrevivência. O terrorismo matriarcal parece simplesmente ser sobre sua própria existência, esse conjunto de poder manter-se vivo já é o bastante para ser um centro de destruição do fascismo.

As trocas com a Madame Leblanc se tornam o mais essencial pois fortalecem Susie contra qualquer outro poder, inclusive esses poderes que atuam internamente (“contra qualquer ação contrarrevolucionária” se torna “morte a qualquer outra mãe”). Como o comando do grupo, da bruxa secular Helena Markos, já é ultrapassado para novas urgências dos novos tempos. Que respeitem a tradição, mas que saibam que parte dessa tradição é justamente a subversão. E essa acaba sendo a jornada central de Susie: perceber que cabe a ela poder manter aquele universo vivo, que os comandos anteriores daquele grupo de bruxas estão perdidos em ideologismos (como uma bruxa explica, um grupo polarizado entre as “Markos” e as “Blanc”). A única resistência duradoura envolve a quebra de qualquer partidarismo autocentrado, envolve a celebração de como essa força de resistência foi construída e sua manutenção através de martírios. Toda a sequência final antes do epílogo é entorno disso, de Susie percebendo sua importância e, literalmente, explodindo a contrarrevolução. Finalmente sabemos quem era o poder dominante construído de forma tão ambígua.

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Suspiria parte de uma hiperestilização que tem muito mais a ver com tendências de cineastas como Nicholas Roeg do que com Argento. Mais claramente, Inferno de Sangue em Veneza, de 73 (o tempo deslocado, o terror dos becos estreitos, a ameaça caquética misteriosa) mas também o esquecidíssimo Bad Timing, de 80 (os relacionamentos destroçados pelos contextos externos, os olhares trocados por instantes, cidades filmadas de um jeito que sempre parecem querer fazer com que você se perca). As imagens são constantemente recortadas de forma que o efeito tenebroso vem muito mais das impressões deixadas por suas transições do que pela entrega individual de cada uma dessas imagens. É um processo quase de apunhalada, do terror que brutaliza a rapidez dos movimentos e se alia aos tais corpos em iminência de um perigo misterioso. Corpos em constante movimento, não só pela dança, pouco mais óbvia, mas também pelo desespero desses espaços que parecem contrair-se cada vez mais até que revelem todos os seus segredos (como a personagem da Mia Goth descobrindo aonde estava a personagem da Chloe Moretz, retraída e putrefata entre cantos de um mundo subterrâneo). Surpreendentemente é um filme que renega uma estética pomposa ou até qualquer estética, não deixa com que imagens mais visualmente expressivas durem tempo o bastante para que tornem-se apreciáveis. Afinal, está trilhando um caminho contra essas possíveis aceitações, ele busca um ideal paranoico de assimilação imagética onde o objetivo é que toda sequência se complemente do jeito mais deslocado possível.

Parece até mais certeiro comparar o filme do Guadagino com Inferno (1980) do que com o Suspiria original, um outro filme que constantemente cria um terror de planos-detalhe, de enigmas de casa mal assombrada e de investigações mal resolvidas pela falta de um antagonismo claro. Em uma obra centrada em subtextos terroristas e conflitos de guerrilha, não poderia ser mais claro como Guadagino se interessa bem mais sobre essa energia caótica de horrores paralelos.

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A conclusão do novo Suspiria é de um trabalho muito mais emergente do que o projeto poderia parecer. Mesmo dentre o cinismo de qualquer remake, é inegável que todo um ideal original é produzido e de que ele se permite toda a loucura e toda a gritaria de suas temáticas. É esquizofrênico, quase convulsivo, mas nunca desfocado do que realmente importa para seu próprio microcosmo de bruxarias, danças, golpes e paranoias. Reimagina todo um ideal de poderes utópicos e como fazem falta em um momento onde resistências parecem tão dóceis e tão impotentes. É contra tudo que não suje as mãos, que não se frature para atingir causas muito maiores. Sobra apenas um suspiro entre um corte e outro.

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A perda da inocência e do encanto: os contos de Perrault por Breillat

Por Camila Vieira

Se as narrativas dos contos de fadas expressam mitologias extraídas de uma tradição oral em que se canoniza a moral de uma época, de que modo é possível transfigurar tal legado por meio de um cinema que se inventa no presente? Ao usar como matéria-prima os contos de Charles Perrault para a realização dos longas-metragens Barba Azul (Barbe Bleu, 2009) e A Bela Adormecida (La Belle Endormie, 2010), Catherine Breillat não tem a pretensão de se manter fiel ao imaginário das fábulas originais. A busca da cineasta pelas fábulas orbita em torno da compreensão do que delas é possível extrair a favor de seu olhar cinematográfico para a descoberta da sexualidade da mulher e para a transformação de suas personagens pelo desejo – duas obsessões marcantes da própria filmografia da Breillat.

Tanto em Barba Azul quanto em A Bela Adormecida, a fábula é convocada menos pelo seu poder de crença, mas como artifício que escancara a perda da inocência. É interessante até mesmo pensar o gesto seco e direto de encenação da Breillat como contraponto ao gesto transbordante e ornamental de encenação que Jacques Demy propõe em Pele de Asno. Se Demy se entrega por completo à mística fabulosa de Perrault pelo que há de excessivo e encantatório, Breillat parece tomar a fábula pelo viés do desencanto. Seria a consciência bastante brutal de que, se o mundo já não é mais capaz de extasiar, a fábula precisa então ser desvelada como artifício narrativo.

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É por isso que Barba Azul propõe de saída uma metanarrativa: duas pequenas irmãs se deleitam no porão da casa com a leitura do conto de Perrault, mas é a menor que escapa da literaridade das palavras e propõe pequenas subversões à leitura. A história do conto parte do destino de duas irmãs, que estão de luto pela morte do pai e padecem na miséria. A mais velha, Catherine, se casa com o personagem do título, um homem rico, que mora em um castelo luxuoso e que é conhecido na região como alguém cruel com mulheres – ele se casa com meninas sem dote e, depois de um ano, elas desaparecem. No filme de Breillat, Barba Azul é um gigante glutão e taciturno, que parece confiar na nova esposa ao deixar as chaves com ela, antes de suas partidas misteriosas. Ele avisa ser um monstro à Catherine, que retruca: “Tenho mais medo da maldade invisível”.

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Mesmo com o corpo pequeno e frágil, Catherine não teme a presença imponente de Barba Azul. Muitas cenas enfatizam a escala de tamanho entre os corpos dos dois personagens. Ela exige um quarto pequeno só para ela. A coragem da menina é vista como orgulho pelo Barba Azul: “É preciso tomar cuidado para que o orgulho não se torne vaidade”. Barba Azul confia a ela uma chave de um quarto secreto, que ela jamais poderá abrir. Mas é a curiosidade que vai colocar em risco a vida de Catherine, tal como o mito de Eva. Ao abrir o quarto, ela encontra corpos de mulheres mortas e o chão empoçado de sangue. Da mesma forma que o conto, a menina consegue escapar da morte. Ou seja, a vontade de ver e a astúcia da personagem não são motivos para punição. Quem irá morrer não será a personagem do conto, mas aquela que escuta a história ser narrada pela irmã mais jovem,  que é a mais astuciosa, curiosa e ativa na leitura. A leitora passiva e inocente será relegada a cair e morrer.

Breillat coloca em prática seu desejo como leitora ativa, insubordinada, subversiva por excelência com A Bela Adormecida, que não se restringe apenas ao conto de Perrault, mas pavimenta uma mistura narrativa de diversas mitologias, desde a referência à princesa russa Anastásia até a fábula A Rainha da Neve, de Hans Christian Andersen. Enquanto a bela adormecida do conto tradicional é condenada a dormir por 100 anos por uma bruxa malvada, o filme de Breillat leva a heroína a adormecer dos 6 aos 16 anos. Tal peripécia permite a personagem a desdobrar sua infância como uma viagem por diferentes mundos fantásticos e escapar da realidade, percebida com desgosto pela própria personagem – uma tomboy que detesta o “mundo das pequenas garotas”.

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Relógios de tamanhos diferentes e verbetes do dicionário atraem a menina, que burla a temporalidade de sua experiência com saltos para múltiplas paisagens fabulosas. Uma gruta vigiada por um gigante com furúnculos, um pequeno vilarejo em que conhece Peter – o menino encantado pela rainha da neve –, um percurso de trem que a conduz a um reino de príncipes albinos anões, uma carroça saqueada por ciganos. Em cada uma das jornadas por espaços e tempos diversos, a menina descobre mais sobre seus próprios desejos em uma espécie de versão fabular do coming of age.

No momento que adentra mais na narrativa de A Rainha da Neve, o maravilhamento cede lugar à percepção cruel da vida, que só vale a pena ser experimentada com a lucidez do desencanto. “O que você chama de felicidade me impede de viver”, afirma Peter, que irá desaparecer e se tornará o fantasma amoroso da protagonista. Ao sucumbir à morte no mundo fantasioso, a menina acorda em seu castelo de outrora, mas no corpo de uma adolescente. Ela experimenta o prazer sexual com um jovem invasor de seu castelo e com uma jovem cigana que a salvou da morte.

Mas é necessário que a princesa fuja dos grilhões do castelo, onde o tempo pareceu se estagnar – personagens do passado agora são figuras estáticas. Ela pede para seu amante a oportunidade de conhecer a vida lá fora. O salto para o mundano fora do luxo do castelo é o contexto urbano da França no século XXI. O corte é seco, brusco, sem qualquer fusão. A menina está grávida e provavelmente o pai a abandonará. Não há suavidade na queda para o contemporâneo. A busca da menina pelo garoto ideal termina na ausência de qualquer desfecho romântico para a adolescente. É uma dor tão evidente quanto a frágil superfície rasgada da meia-calça da jovem em plano de detalhe e escolhida como última imagem do filme.

Superfícies que se rasgam. Percepções inocentes que se rompem. Corpos que sofrem. Narrativas que perdem o encanto. Leituras que se tornam subversivas. O que esperar da conclusão da trilogia, que promete finalizar com uma versão de A Bela e a Fera? Para uma leitora insubordinada como Breillat, a fábula torna-se um lugar fértil para a desconstrução da moral tradicional do faz de conta. O melhor de tudo é que a ruptura não exige o abandono do jogo da ficção.

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O zumbi da História – Ecos de Calibã e a Bruxa em George Romero

Por Bernardo Moraes Chacur

 

Todas as histórias antigas, como disse uma das nossas belas mentes, são apenas fábulas convencionadas; e para os modernos, um caos que não pode ser desvendado.

Voltaire, Jeannot et Colin

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Bruegel, o velho, O Triunfo da Morte, 1562 (detalhe)

Na historiografia tradicional, o surgimento do capitalismo é representado como um progresso natural, a vitória do pragmatismo econômico sobre o feudalismo e as trevas. Nessas narrativas, a miséria e a pilha de mortos acumuladas durante a transição costumam ser retratadas como incidentes lamentáveis, mas periféricos, da grande marcha evolutiva. Essa versão oficial é contestada em Calibã e a Bruxa, de Sílvia Federici, que identifica a violência e a expropriação como elementos indispensáveis para o estabelecimento da nova ordem. A conquista da América e o tráfico negreiro foram, afinal, os grandes financiadores da revolução industrial, que exigiu por sua vez uma força de trabalho empobrecida e disciplinada pela repressão às revoltas camponesas, pela perseguição aos hereges, por um novo sistema de criminalização e pelo cerceamento à liberdade feminina. Sangue e sofrimento permearam cada etapa do processo.

Mas na obra, Federici não se limita em perfilar uma longa sequência de injustiças, dedicando igual atenção ao extenso histórico de revoltas que marcou o fim da era feudal. Para a autora,

O capitalismo foi uma resposta dos senhores feudais, dos mercadores patrícios, dos bispos e dos papas a um conflito social centenário que chegou a fazer tremer seu poder e que realmente produziu “uma grande sacudida mundial”. O capitalismo foi a contrarrevolução que destruiu as possibilidades que haviam emergido da luta antifeudal — possibilidades que, se tivessem sido realizadas, teriam evitado a imensa destruição de vidas e de espaço natural que marcou o avanço das relações capitalistas no mundo.[1]

A transição pacífica rumo ao capitalismo é, portanto, uma fábula convencionada, omitindo a intensidade e potencial subversivo dessa grande sacudida. Essa mesma omissão foi perpetuada pelo cinema, um dos grandes vetores do nosso imaginário histórico. Há, certamente, filmes sobre a luta contra a tirania ambientados no mesmo período abrangido por Federici. Essas histórias costumam assumir, contudo, tons vagos e moderados, esquivando-se de aproximações desconfortáveis entre os carrascos de então e seus herdeiros contemporâneos. Basta lembrar que o protagonista preferencial desse tipo de enredo é o nobre renegado que enfrenta os usurpadores da autoridade legítima: nessas tramas, o problema da ordem constituída é sempre seu desvirtuamento, nunca sua fundamentação. Enquanto consumimos revisões periódicas do mito de Robin Hood, histórias como a Rebelião de Kett (encabeçada por um servo) ou a insurgência de “37 mulheres, lideradas por uma tal Capitã Dorothy[2] (ambas contra os cercamentos na Inglaterra), seguem na obscuridade, a exemplo de dezenas de outros casos elencados ao longo de Calibã e a Bruxa.

Para além dessa lacuna, também poderíamos questionar a aptidão de um roteiro clássico (centrado em heróis e heroínas individualizados) para representar esse histórico de insurgências coletivas. Essa questão já havia sido levantada por cineastas do bloco soviético, que tentaram retratar a multidão como protagonista da História (como por exemplo, Miklós Jancsó em Salmo Vermelho, de 1972). Mas, salvo exceções, a massa indiferenciada costuma ocupar uma posição bastante diversa na caracterização cinematográfica, onde a contraposição entre personagens principais e uma multidão ameaçadora é uma constante desde, pelo menos, O Nascimento de uma Nação. E, assim como no filme de Griffith, essa distinção orienta-se frequentemente por coordenadas raciais: os nativos da América, África e Ásia como obstáculos para a “missão civilizatória” dos europeus e seus descendentes, reproduzindo nas telas uma retórica mobilizada a cada novo projeto de expansão territorial-econômica. O clichê presta-se igualmente a criminosos, terroristas, exércitos inimigos ou qualquer outro grupo apresentado de forma homogênea e sub-humana.

***

À primeira vista, os zumbis pareceriam a continuidade dessa longa tradição, a massa desumanizada por excelência. Mas na obra de George A. Romero, o grande arquiteto do gênero, os mortos-vivos nunca receberam tratamento simplista. Pelo contrário, os filmes compreendidos entre A Noite dos Mortos-Vivos (1968) e Terra dos Mortos (2005) são algumas das explorações mais interessantes já produzidas pelo cinema sobre o conflito entre alteridade e identificação e sobre o potencial colapso de uma ordem ainda mais assassina do que os canibais que a destroem.

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A Noite dos Mortos-Vivos, 1968

O fim da civilização já era um espectro recorrente no terror e ficção científica quando o primeiro filme da série foi lançado em 68, mas o desenlace mais comum para esse tipo de enredo ainda era a superação da ameaça, preferencialmente por meios científicos – a vitória do racionalismo contra a face sombria da Natureza. Noite também parece terminar com a reafirmação do status quo, mas o reestabelecimento da ordem passa inequivocamente pela ignorância e truculência: caipiras armados exterminam os zumbis que encontram pelo caminho e, no processo, executam o herói negro, identificando-o como um dos monstros – desenlace já prenunciado pelo início da trama, quando o grupo (branco) de sobreviventes hesitava entre considerar Ben um aliado ou um risco.

A “vitória” revela-se apenas temporária em O Despertar dos Mortos (78), no qual acompanhamos o agravamento do caos precipitado pelos zumbis, mas consumado pela brutalidade dos vivos. Seguindo o padrão histórico, a resposta das autoridades ao clima de instabilidade é direcionar seu aparato de violência aos guetos: a trama começa com a invasão de policiais a um bairro de negros e hispânicos, produzindo mais uma pilha de cadáveres na declarada intenção de reestabelecer a paz. E ao final do filme, a fortaleza estabelecida pelos personagens não é rompida pela horda de mortos-vivos, mas por um grupo de saqueadores humanos. Na imaginação de Romero, a lógica – política e cinematográfica – do “nós contra eles”, é habilmente subvertida.

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O Despertar dos Mortos, 1978

Nesse segundo episódio se manifesta uma fascinação pelo apocalipse, o êxtase do abandono do trabalho e do passeio pelo shopping center em um mundo em que o dinheiro perdeu o valor, evidenciando o caráter arbitrário e contingente de uma organização social que tendemos a considerar natural e imutável. Esse esvaziamento de sentido é levado adiante em Dia dos Mortos (1985), em que militares e cientistas tentam aplicar as soluções tradicionais – violência e instrumentalização – a uma situação além de qualquer controle. No segundo grupo, o Dr. Logan defende a conversão dos mortos em força de trabalho, um adestramento que exige recompensas (“eles precisam ser recompensados, Capitão. Caso contrário, como irão fazer o que queremos?”) – que no caso, só pode significar alimento. O exército, contudo, enoja-se com a perspectiva de ter que sacrificar (literalmente) a própria carne. Na falta de consenso, os zumbis invadem a base e despedaçam quem encontram pelo caminho, na sequência mais brutal da série. No desfecho do filme, Bub, a principal cobaia do Dr. Logan reafirma sua dignidade, enquanto o Capitão Rhodes, líder truculento e antipático, é destroçado sem despertar qualquer simpatia.

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Dia dos Mortos, 1985

Romero retornou a esse universo duas décadas depois em Terra dos Mortos (2005). Desta vez, somos apresentados a um condomínio de luxo cujo conforto é sustentado por servos iludidos pela promessa de ascensão social e pelo saque dos subúrbios habitados pelos mortos. Depois de uma dessas incursões violentas, um grupo de zumbis decide organizar-se e retaliar a predação, concretizando a possibilidade de um ponto-de-vista zumbi já sugerido no filme anterior. O deslocamento narrativo acompanha a tomada de consciência por parte dos “monstros”: facilmente ludibriados nas primeiras cenas, solidários e alertas na conclusão da saga.

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Terra dos Mortos, 2005

***

Mas qual é, afinal, a conexão entre Calibã e a Bruxa e a tetralogia dos Mortos? Há, certamente, pontos de contato entre as obras: tanto a historiadora quanto o cineasta descrevem cenários de calamidade e anarquia acompanhados de repressões violentas. Ambos articulam, cada um ao seu modo, indignação contra injustiças sociais inseparáveis de desigualdades econômicas. Cada um é, à sua maneira, otimista, ou pelo menos afirmativo: Federici resgata insurreições que alcançaram vitórias importantes, ainda que parciais ou provisórias. Romero imagina uma realidade em que os detentores do poder são vencidos, apesar de toda sua violência, ou justamente por causa dessa violência. Os exercícios de memória e imaginação envolvem, como sempre, posturas políticas.

Todo esse preâmbulo me prepara para admitir que, afinal, não há conexão direta entre Calibã e Bruxa e a tetralogia dos Mortos. Nada sugere que Romero estivesse pensando em alegorias históricas quando conseguia esporadicamente os recursos para retornar a esse universo. Seria, além disso, simplista reduzir uma obra tão rica a uma leitura unívoca. Ainda assim, lendo Federici, deparei-me com situações e imagens que me remeteram a esses quatro filmes.

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Jacques Callot, Os horrores da Guerra, 1633

Como lembra a autora, “a transição para o capitalismo inaugurou um longo período de fome para os trabalhadores na Europa[3]. A privatização de terras coletivas desestabilizou a produção de alimentos, cuja distribuição também passou a ser condicionada por um novo fluxo comercial. A pressão combinada dessas e outras mudanças reduziu parte expressiva da população à indigência. Legiões de desnutridos assombravam as estradas e batiam desesperados nos portões das cidades.

(…) as principais armas que os pobres tinham à sua disposição na luta pela sobrevivência eram seus próprios corpos famintos, como nos tempos em que as hordas de vagabundos e mendigos cercavam os mais abastados, meio mortos de fome e doentes, empunhando suas armas, mostrando-lhes suas feridas e forçando-os a viver num constante estado de medo frente à possibilidade de contaminação e à revolta.[4]

A indignação e repulsa não se dirigiu, entretanto, às causas da crise, redirecionando-se contra os mais atingidos, conforme atesta o comentário de um médico lombardo em 1630:

O ódio e o terror engendrados por uma multidão enlouquecida de gente meio morta, que assedia as pessoas nas ruas, nas praças, nas igrejas, nas portas das casas, que torna a vida intolerável, além do fedor imundo que emana deles e do espetáculo constante dos moribundos […] só pode acreditar nisso quem já o tenha experimentado.[5]

Em situações extremas, ameaças de canibalismo compuseram o panorama das revoltas, “já que os trabalhadores rebeldes às vezes demonstravam seu desprezo por aqueles que vendiam seu sangue, ameaçando comê-los[6]. Em Nápoles em 1585, “durante um protesto contra os altos preços do pão, os rebeldes mutilaram o corpo do magistrado responsável pelo aumento e colocaram à venda pedaços da sua carne[7]. O espectro da antropofagia fez parte da demonização dos revoltosos. No mesmo período, o arquétipo do canibal foi indispensável para caracterizar a suposta selvageria dos habitantes das novas colônias. As vítimas sofreram assim uma dupla violência: de um lado, a desestruturação total de seu modo de vida e de outro, a imposição do estigma de monstros. Esses dois movimentos se retroalimentaram:  a imagem de sub-humanidade justificava novas espoliações, que engendraram por sua vez mais miséria.

“A grande multidão dos homens”, escreveu Henry Power, um seguidor inglês de Descartes, “se parece mais com o autômato de Descartes, já que carece de qualquer poder de raciocinar e [seus membros] apenas podem ser chamados homens enquanto metáfora” (…) Os da “melhor classe” concordavam que o proletariado era de uma raça diferente. A seus olhos, desconfiados pelo medo, o proletariado parecia uma “grande besta”, um “monstro de muitas cabeças”, selvagem, vociferante, dado a qualquer excesso (…).[8]

Na concepção que se difundiu, o ser humano é uma combinação – separável – entre razão e animalidade. Às mulheres, aos camponeses, aos africanos e indígenas escravizados, cabia apenas a segunda parte: corpos sem intelecto. E na mesma linha do Dr. Logan em Dia dos Mortos, o pensamento europeu converteu esses corpos em objeto de estudo, visando a sua utilização para fins produtivos. Vivissecções eram realizadas publicamente em “teatros anatômicos”, preferencialmente em condenados.  Mas enquanto a ciência buscava explicar o corpo como uma máquina,

Entre a população se difundiu uma concepção mágica do corpo, segundo a qual este continuava vivo depois da morte e esta o enriquecia com novos poderes. Acreditava-se que os mortos tinham o poder de “regressar” e levar a cabo sua última vingança contra os vivos. Acreditava-se também que um cadáver tinha virtudes curativas.[9] 

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William Hogarth, A recompensa da Crueldade, 1751

Essa crença relaciona-se com a popularização do canibalismo medicinal na Europa dos séculos XVI a XVIII, “envolvendo carne humana, sangue, coração, crânio, medula óssea e outras partes do corpo, não (…) limitado a grupos marginais: era também praticado nos círculos mais respeitáveis[10]. Ironicamente, imagens de banquetes antropofágicos foram peças-chave da propaganda que qualificou os ameríndios como criaturas bestiais.

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Théodore de Bry, Canibais na Amazônia, 1578

Calibã e a Bruxa abrange muito mais que os episódios e temas periféricos que reuni nesses últimos parágrafos. Espero, no entanto, que esses poucos exemplos indiquem como diferentes discursos foram – e continuam sendo – mobilizados para justificar desequilíbrios, exclusões e fomentar o medo. O cinema acaba sendo mais um componente dessa engrenagem, por inércia ou deliberação. Parte da originalidade de Romero (e de Federici) é justamente a desestabilização desse tipo de narrativa.  A cada iteração, o diretor nunca perdeu de vista os piores monstros, sejam os fictícios ou suas contrapartes no mundo real: das milícias que executam o herói negro no primeiro filme aos magnatas manipuladores da última parte, que se beneficiam do ciclo de morte sem jamais sujarem as mãos.

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Durante a elaboração desse texto tive em mente a resenha de A Noite dos Mortos-Vivos publicada pela Multiplot em 12 de junho de 2018, escrita por Kênia Freitas (http://multiplotcinema.com.br/2018/06/a-noite-dos-mortos-vivos-night-of-the-living-dead-george-romero-1968/). Espero que ninguém a culpe por isso.

[1] Federicci, Silvia. Calibã e Bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. Tradução: coletivo Sycorax, São Paulo, Elefante, 2007, p. 44

[2] p.143

[3] p. 155

[4] p. 158

[5] p. 158

[6] p. 318

[7] p. 319

[8] p. 278

[9] p. 263

[10] p. 388

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Crimes e orixás: O Amuleto de Ogum, de Nelson Pereira dos Santos

Por João Pedro Faro

o amuleto de ogum

O cinema brasileiro é, historicamente, um cinema de chavões, sendo dos mais recorrentes os tais “filmes sobre o povo”. Eles percorrem desde as chanchadas até a pós-retomada, o que também torna histórico que ser “sobre o povo” quase nunca significa ser verdadeiramente popular. Não apenas o popular no sentido de cinemão de shopping, de sala lotada e de ator global, mas na representação fiel desse tal povo como uma existência humana concretizada, complexa, rica. Felizmente, esse popular pode existir graças à certos raros e ocasionais brilhantismos. Exemplo: Jards Macalé, na abertura de O amuleto de Ogum (1974), cercado de três malandros armados e confiando em sua própria odisseia oral para poder sobreviver. Junto com ele, um Nelson Pereira dos Santos cansado dos cinemanovismos, revendo seu próprio significado enquanto cineasta e buscando novas identificações com o popular, deixando seu papel de autor o menos intrusivo possível para elevar em tela o que dificilmente havia sido elevado anteriormente e, nesse processo, criando um dos mais essenciais trabalhos da filmografia nacional. No processo de experimentação em tomar certa rigidez como princípio, Amuleto encontra a liberdade possibilitadora que Nelson Pereira desejava.

Todo o projeto de O Amuleto de Ogum converge para que seu ponto de partida em conseguir lidar com a cultura do candomblé e com as crenças de raiz popular seja atingido. A lenda cantada do jovem nordestino Gabriel (Ney Santanna) protegido por um amuleto que o torna o criminoso perfeito, de corpo fechado, inatingível, consegue tomar e compreender cinematograficamente complexidades sociais e religiosas justamente por se ater a um universo muito próprio e reduzido. A escolha de Nelson Pereira de fazer um filme de gênero assumido, um gângster clássico todo completo em sua estrutura, permite uma abertura por caminhos antes inimagináveis tanto no cinema de gênero quanto no cinema nacional: os arquétipos do tipo servem muito bem às novas contextualizações umbandísticas e as sobras formais do Cinema Novo se ajustam às particularidades narrativas da obra. Através dessas misturas, vai surgindo uma personalidade fílmica que de fato renova toda a forma de enquadrar religiões de matriz africana no cinema brasileiro. Entre o que havia sido tomado como “realismo”, os exageros inevitáveis do filme de crime e as transições etéreas coloridas do tropicalismo, Amuleto de Ogum consegue firmar a natureza mística da religião como uma verdade irrefutável da obra. Gera uma potência em toda manifestação presente desse místico, pois ele existe no mesmo plano da realidade, desde a consagração do amuleto até a cena em que a gangue descobre o poder que Gabriel carrega, tudo é enquadrado de forma tão direta que o que antes seria fantasia torna-se pura realização terrena.

o amuleto de ogum

Quando é dada a essa cultura marginalizada o poder de sua realidade no cinema, as complexidades do contexto aliadas à objetividade do gênero tomam caminhos muito maiores. Anos antes de Glauber ser acusado de “deixar de ser marxista pra virar cristão” em A Idade da Terra (1980), Nelson em Amuleto já torna o poder da religiosidade como braço da inversão de hierarquias e terrorismo de classes. O verdadeiro temor do chefão branco Severiano (Jofre Soares) é perceber-se num universo onde a crença do povo que domina tem poderes muito maiores do que ele poderia ter. Após a fortíssima cena em que recebe um orixá e ajoelha-se diante de um pai de santo, percebendo sua inferioridade perante o alcance espiritual de um negro, Severiano logo em seguida renega tudo que passou e coloca todo o caso com Gabriel, o Amuleto e tudo mais como absurdismo. Nelson pode estar tratando de uma especificidade por conta do gênero que trabalha, mas não poderia ser mais claro em mostrar como a validação concretizada de uma religião nascida pelas formas de opressão colonial ainda abalariam e desmantelariam qualquer relação de poder ainda estabelecida. São os orixás contra a autoridade.

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Quando essa crença é apropriada para os fins do comando vigente, como no arco de Severiano buscando um pai de santo trambiqueiro para conduzir a situação, ela ocupa um estado falso, mesquinho, muito distante dos ápices espirituais vividos por Gabriel (especialmente em suas cenas no terreiro pouco antes do embate final). E a todo momento que Gabriel é tentado aos terrores desse sistema de opressão, a própria religião invalida as suas verdades (sua amante, ex-mulher de Severiano, comparando-o ao ex-marido justamente antes das coisas começarem a dar errado para o protagonista).

o amuleto de ogum

o amuleto de ogum

Amuleto só alcança essa qualidade quase totalizadora justamente porque nunca se atém a nada que não seja seu próprio universo. Até por ser um filme onde Nelson Pereira reavalia seu próprio cinema, é uma obra que constantemente está atrás de limitações e de reduções para poder se engrandecer. Já no título fica marcado: mesmo sendo espacialmente interessado pela Baixada Fluminense, é batizado por um objeto, não por toda uma cidade como em Rio, 40 Graus (1955), um filme que faz o caminho oposto, pois toma proporções enormes para acabar tratando do mínimo. Mais um ponto preenchido de seus interesses iniciais, é uma certeza que Nelson conseguiu a libertação desejada de querer totalizar-se já no começo. Indo mais além para renegar esses costumes de um cinema velho, Amuleto dá fim à estética da fome. Não à toa, uma de suas passagens mais emblemáticas é um banquete suburbano filmado todo no improviso.

Sem querer cercar qualquer sofrência, Amuleto trata o marginalizado através de uma lente celebratória, que não priva nenhuma exposição das camadas repressoras, mas que está muito mais interessada na resistência através da celebração da força de toda essa cultura. Poucas obras concentraram em si tanta vontade pelo que é realmente novo, pelo que jamais pode ser visto da forma que é mostrado aqui (tendo completa noção dos motivos dessas novidades serem tão temidas). Desde a trilha do Macalé que torna o canto popular em relato genuíno até o plano final de Gabriel que revive das águas pela presença de suas raízes migratórias, Amuleto de Ogum é a lenda que também é documentário, é o produto final de uma luta pela própria existência da tradição de toda uma gente. É simplesmente sobre o que existe e sobre o que resiste. Ou seja, sobre o povo. E não dá para fazer nada sobre o povo que não acredite no que cantam por aí.

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EDITORIAL – A poética da fabulação

Por Camila Vieira

A relação entre cinema e fábula envolve de saída um impasse bastante recorrente e pertinente dentro de uma certa tradição teórica historiográfica. Nos anos 1920, o jovem Jean Epstein vaticinava em seu texto Bonjour Cinéma: “O cinema é verdade. Uma história é uma mentira”. Era como se a arte de narrar histórias estivesse restrita a um legado literário aristotélico (de orquestrações ordenadas de ações) e precisasse ser colocada em um lugar distinto, longe da desordem da vida que o cinema parecia buscar a partir da técnica com a câmera. “A vida não conhece histórias. Não conhece ações orientadas para um fim concreto, apenas situações abertas em todas as direções”, escreve Rancière na tentativa de compreender o gesto de Epstein. A arte cinematográfica deveria estar neste lugar de excelência da inversão da racionalidade da trama.

Mas Rancière acaba por reconhecer que a visão de Epstein é de um tempo distinto do nosso na contemporaneidade. É uma visão do cinema carregada de uma nostalgia por insistir na separação entre a presença íntima das coisas do mundo e o universo da fábula. Também é uma visão condescendente por compreender o cinema como arte a partir de um dispositivo técnico que poderia colocar em prática uma utopia estética, política e científica daquele contexto histórico. A partir da reflexão sobre tais limitações do texto de Epstein, Rancière procura afirmar a fábula como elemento constitutivo do cinema como experiência.

Mas o que seria do cinema de Epstein sem a fábula, que faz com que ainda possamos sonhar com esta imagem sobreposta do rosto de uma mulher com a selvageria das ondas do mar em Coeur Fidèle (1923)?
Mas o que seria do cinema de Epstein sem a fábula, que faz com que ainda possamos sonhar com esta imagem sobreposta do rosto de uma mulher com a selvageria das ondas do mar em Coeur Fidèle (1923)?

Nem a fábula se restringe à mera contação de tramas ordenadas, tampouco o cinema se restringe aos efeitos de real que podem aproximá-lo de uma certa autenticidade da vida. Para esta nova edição da Multiplot!, pouco interessa a velha distinção entre verdade e mentira, que parecia ser tão cara a Epstein. O que nos interessa como críticos na contemporaneidade é escapar das dicotomias que figuram cordas lançadas pelas teorias e que, muitas vezes, são capazes de sufocar elas mesmas. O gesto a ser feito é mergulhar nos procedimentos estéticos que determinados realizadores lançam mão a favor de dramaturgias em vizinhança com as potencialidades da fábula, aqui defendida em suas diferentes nuances e matizes do sonhar e do imaginar que já estão presentes desde o início do cinema. De que maneira o cinema ainda é capaz de apostar na crença da fabulação?

Pensamos aqui as vontades de alguns realizadores contemporâneos em construir narrativas com zonas de contato mais próximas de fábulas tradicionais, como os contos de Charles Perrault, ressignificados pela postura da leitura ativa de Catherine Breillat, em Barba Azul e A Bela Adormecida. Ou mesmo a peça infantil de Maeterlinck que se transfigura em uma artesania imagética pelo olhar de Maurice Tourneur em O Pássaro Azul.

Alguns cineastas buscam se ancorar na radicalidade da fábula para enfrentar mais diretamente os modos de produção da indústria cinematográfica hollywoodiana, como é o caso da trilogia do ridículo de Alex Cox, ou fazer uma crítica contundente ao status quo capitalista, por meio dos filmes de zumbi de George Romero.

Diretores representativos de movimentos cinematográficos abraçam curvas singulares em suas cinematografias, em grande parte devido à sedução pela fábula. Nelson Pereira dos Santos enfrenta as limitações realistas do paradigma cinemanovista com a ressignificação fabular da força mítica dos terreiros de candomblé e de umbanda em O Amuleto de Ogum. Roberto Rosselini também subverte os meandros neo-realistas com as fábulas indianas que compõem India: Matri Bhumi.

Valerie e sua semana de deslumbramentos, de Jaromil Jires, se alimenta de personagens fantásticos em que o despertar da sexualidade é uma debochada crítica às instituições patriarcais, enquanto L’Apollonide, de Bertrand Bonello, mergulha no nó fabular de cortesãs de uma casa de prostituição do século XIX que procuram burlar a melancolia que encarna seus lugares no jogo da história.

Outros cineastas são convocados ao longo desta edição da Multiplot!, em textos que não pretendem traçar uma linha temporal historiografia de produção entre os filmes. A virada se dá na aposta das intensidades. O intervalo de um texto a outro pretende friccionar olhares diversos, compondo uma grande tessitura de gestos fílmicos tocados pela poética da fabulação. O jogo está posto.

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India Matri Bhumi: fábulas indianas narradas em documentário

Por Carla Oliveira

o amestrador de macacos

India: Matri Bhumi (1959), inédita no Brasil até ser apresentada na mostra 6x Rossellini: Uma Homenagem à Cineteca de Bologna (no Festival do Rio de 2014), é uma obra única na filmografia de Roberto Rossellini. Exaltada por Godard, que comparou seu formato documental enriquecido com segmentos ficcionais que abordam mitos e costumes do país retratado a obras-primas do gênero como Tabu (Tabu: a story of the south seas, 1931), de Murnau, Que viva México! (¡Que Viva Mexico! Da zdravstvuyet Meksika!, 1979), de Eisenstein, e É tudo verdade (It’s all true, 1993), de Orson Welles, é ainda pouco vista e discutida.

Depois de ter realizado filmes — Alemanha, ano zero (Germania anno zero, 1948), Stromboli (Stromboli, terra di Dio, 1950) e Viagem à Itália (Viaggio in Italia, 1954) — nos quais seus protagonistas se deslocam para países (Alemanha e Itália) que haviam sido devastados pela Segunda Guerra, deparando-se com o fantasma da violência, a força da natureza e sua própria humanidade, Rossellini decide empreender uma jornada própria para um país rico em narrativas, bastante distintas das europeias. O roteiro de India: Matri Bhumi, que contempla a faceta poética da Índia, sem deixar de lado as preocupações éticas e sociais que sempre assolaram a obra neorrealista de Rossellini, foi escrito por ele, junto à escritora Sonali Senroy Das Gupta (que se tornará sua esposa) e ao diplomata iraniano Fereydoun Hoveyda. Formado na  Sorbonne, o cinéfilo Hoveyda escreveu para a Cahiers du Cinema, entre 1955 e 1965. Era um apreciador do cinema do calcutaense Satyajit Ray e, na sua lista de melhores filmes elaborada para a mítica revista, destacou O tigre da Índia (Der tiger von Eschnapur, 1959), de Fritz Lang, como o melhor filme desse mesmo ano em que India: Matri Bhumi concorreu ao prêmio máximo no Festival Internacional de Cinema de Moscou.

Fritz Lang e Rossellini foram dois dentre vários cineastas europeus que lançaram seus olhares para a Índia no período posterior à sua independência em relação à Inglaterra (a qual se deu em 1947, como decorrência da segunda grande guerra). O tigre da Índia, de Lang, teve uma sequência: O sepulcro indiano (Das indische grabmal), lançada no mesmo ano. Ambos foram baseados em um livro de sua ex-esposa, Thea von Harbou, e narram o encontro e o espanto de um europeu com o exotismo da Índia, em uma história repleta de romance e aventuras. Lang fez várias viagens para a Índia, mas a realização dos filmes se deu na Alemanha. O pioneiro dentre esses cineastas, contudo, foi Jean Renoir, por quem Rossellini nutria grande admiração. O rio (The river, 1950), adaptado da obra da escritora Rumer Godden, é uma obra ficcional, que aborda temas humanistas igualmente caros a Rossellini e contém traços documentais, principalmente no retrato feito por Renoir das festas e cultos religiosos. Fiel a seus preceitos realistas, filmou em Bengala, às margens do Ganges. Pasolini, em 1961, empreendeu uma viagem à Índia na boa companhia de Alberto Moravia e Elsa Morante que resultou no livro O cheiro da Índia, não propriamente documental, e no filme sobre um filme: Appunti per un film sull’India (1968), no qual discute mitologia, costumes e realidade social. Louis Malle filmou um extenso documentário para a TV,  L’Inde fantôme (1969), onde se destaca o segmento Calcutta, focado nas crises políticas e sociais pelas quais o país passava. Marguerite Duras, na França, realizou India Song (1975), obra-prima experimental que retrata a decadência de europeus abastados que compunham a Índia branca colonial nos anos 30. Conflitos morais dos europeus na época colonial também foram abordados por David Lean em Passagem para a Índia (A passage to India, 1984), baseado no livro homônimo de E. M. Forster. Peter Brook e Jean-Claude Carrière fizeram numerosas viagens à Índia na preparação da peça Mahabharata, posteriormente adaptada para a série de televisão The Mahabharata (1989-1990).

O Mahabharata e o Ramayana, que alimentam o imaginário ocidental, são os principais poemas épicos da Índia antiga. Junto aos Vedas, transmitem ensinamentos morais e são a base da mitologia hindu. Foram, inicialmente, transmitidos oralmente. Ainda hoje estão onipresentes entre os indianos, que desenvolveram ao longo de sua história apreço pela arte de contar. A música e o teatro indianos também muitas vezes se aproximam do mito e do sagrado, assim como o cinema, que já impressionava o ocidente desde que Raj Kapoor apresentou O vagabundo (Awaara, 1951), no Festival de Cannes de 1953, e Satyajit Ray, A canção da estrada (Pather Panchali, 1955) — primeiro filme da Trilogia de Apu — , no mesmo festival, em 1956. O cinema de Kapoor  estabelece o estilo de Bollywood: é romântico, tem temática social e utiliza canto e dança como elementos narrativos. Já o cinema de Ray é de cunho realista. Seus temas são também sociais e sua abordagem é bastante humanista.

trabalhador da represa

Em India: Matri Bhumi, Rossellini filma em cenários naturais e se vale da fábula e da poesia para oferecer uma contemplação sobre a Índia. Nos créditos iniciais, vemos imagens de deuses esculpidas na pedra: Shiva, com suas três faces, como um deus que pode assumir todas as formas; e Ganesha, um deus híbrido: tem corpo de homem e cabeça de elefante. Sons de instrumentos musicais indianos ajudam a dar significado às imagens mitológicas.

A seguir, cenas de Mumbai (antiga Bombaim): o porto à beira do mar arábico e a multidão. Um narrador bem humorado e generoso nos fala do cosmopolitismo da cidade, uma das principais portas de entrada para a Índia. Dentre os que caminham por suas ruas, em meio a vacas e variados meios de transporte, há pessoas de várias religiões, de grupos étnicos distintos, descendentes de todas as castas. O narrador as vê como um grupo pacificado e tolerante, em constante deslocamento rumo ao trabalho, ao descanso e ao divertimento. Rossellini não procura (ou explora) a miséria e a doença. Cartazes de filmes de Bollywood são vistos em toda parte.

Mudam o ritmo da música e a paisagem. O narrador parte em busca da Índia  profunda e tradicional. Sua fala, antes frenética, se torna pausada. Passamos a ouvir os sons da natureza. Planos longos acompanham o movimento dos animais e de um rio. Imergimos em uma jornada visual e sonora, como se a mudança do espaço nos levasse a uma viagem no tempo: um caminho ficcional, poético, fabular pelo qual Rossellini nos faz enveredar. Vemos paisagens do sul da Índia: templos, rios, lagos e florestas. Nessa localização, naquele momento, os elefantes eram utilizados como força de trabalho. A relação entre os condutores de elefantes e os animais é mostrada. Suas jornadas de trabalho comparadas. Então, acontece a transmutação do narrador: ele passa a ser um dos condutores de elefante. Passamos indiscutivelmente do documentário para uma fábula, que fala de trabalho, amor, costumes de família, casamento, gestação e nascimento. Isso porque ambos se enamoram simultaneamente, o elefante e o gentil condutor. Uma jovem cantora participante de um grupo de titereiros encanta o nosso narrador. Ele precisará de pausas na sua rotina extenuante de trabalho para viver esse amor. O elefante, também.

condutor de elefantes

Fim da primeira fábula, serão quatro. Volta o nosso primeiro narrador, admirando imagens do Himalaia, onde nasce o Ganges: rio que purifica, que significa a vida. Ele fala do karma, do peso dos nossos atos, discutido no Mahabharata. Passamos para imagens de uma construção de uma barragem em um rio paralelo ao Ganges. A narração passa a ser assumida pela voz de um dos trabalhadores, um migrante que precisou sair de Bengala Ocidental depois da partilha que deu origem ao Paquistão. Ele é um entusiasta da modernização e do progresso. Finda a obra, ele precisa partir para encontrar outro emprego, o que aborrece sua esposa que quer continuar vivendo na mesma terra onde teve seu filho. Ele sente orgulho por ter construído a represa. Acha que é uma construção muito mais grandiosa que um pequeno templo que terá que desaparecer. Toma banho no lago artificial da represa ao invés de purificar sua alma em um rio sagrado. Corpos de trabalhadores mortos são cremados às margens desse mesmo lago. É uma fábula que fala da interferência do homem na natureza e do desafio ao mito e às tradições.

A terceira fábula aborda a velhice. Em um povoado junto a uma antiga fortaleza muçulmana, o narrador, que agora é um senhor de 80 anos, se vê incapaz para o trabalho. Vivendo junto à família, próximo a uma floresta onde se escuta o canto de amor dos tigres, ele sente necessidade de uma vida contemplativa. A harmonia da paisagem e o cotidiano da família são abalados pela chegada de um grupo explorador de minérios. Com a mudança do ecossistema, um dos tigres ataca um homem, algo que nosso narrador nunca tinha visto em toda a sua longa vida. Ele fica ao lado do tigre, pois sempre viveu integrado à natureza.

Em uma região muito quente, um homem e sua macaca amestrada se dirigem a uma festa religiosa. Ele, que poderia ser o narrador desta quarta fábula, morre de calor. A macaquinha consegue se soltar do corpo morto de seu dono e vai só à feira, carregando um pedaço de sua corrente. O condutor principal da história, o narrador viajante, seguirá nos relatando os infortúnios do animal. Na feira, ela fará seus truques e recolherá moedas que não sabe para que servem. Ficará só. Ao tentar interagir com macacos selvagens, será repelida. Eles sentem o cheiro do homem nela. Sua única saída será encontrar um novo dono. Não escapará da domesticação e das correntes.

Rossellini documenta, em India: Matri Bhumi, a realidade contemporânea da Índia: suas questões sociais e morais, a modernização, a interferência do homem na natureza. Os fragmentos de vida relatados nas fábulas mostram o quanto havia de passado naquele presente. Os animais mais emblemáticos da Índia – as vacas, os elefantes, os tigres, os macacos – foram usados como partícipes da narrativa. Uma outra forma de relato, menos poética, não nos causaria o mesmo efeito.

 

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Homens têm segredos, mas não mistérios

Por Felipe Leal

Noites de cetim branco

que nunca chegam ao fim

(The Moody Blues – Nights in White Satin)

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Pode se dizer d’Os Amores da Casa de Tolerância (L’Apollonide – Souvenirs de la Maison Close, 2011) que há uma fluidez diegética típica à duplicidade que costuma se atribuir à “grande arte”: simultânea e perfeitamente bem, ora o que se vê é a decadência entrópico-biológica das cortesãs de uma casa de prostituição na passagem do século XIX ao XX, ora há uma evidência da trajetória do desejo e do lugar social masculino perante àquelas que, por percurso trágico (ou tardiamente trágico), são escolhidas para servir de bonecas especializadas às descargas pulsionais desses que, em público, jamais ousariam assumir o corpo por inteiro. Em outras palavras, certamente vulgares: há uma crítica a algo da ordem do “real”? Há uma ficção desamarrada de pujança social, ainda que ligeiramente? A questão, que não demoraríamos a perceber como moral, encontra para vias de intensificação deste elemento um punho fabular melancólico, posto que àquelas mulheres não há relação ou uso que não passe por um espelhamento sob a lógica de uma torre de Quasímodo: o tanto que sonham com a liberdade, com a compra de suas propriedades físicas, corporais, é o tanto que devem pagar, literalmente, atuando qualquer fantasia até que se tornem quase rijas como bonecas, funcionais como a materialidade correspondente do cruel excedente masculino. Moldáveis, sagazes – mas mortas.

O fabular É. Se encerra num baque e, no seu sentido, produz sentido: a situação que lhe provoca aquilo do lecionável opera por lugares cuja fixidez é obrigatória e se dá por repetência, sem que isso seja pejorativo, apenas da ordem do micro-cósmico; fixo porque a mobilidade de seus elementos é pré-registrada (não se fala necessariamente de uma causa-consequência, mas de algo do trágico para alguns, saliente para outros, uma vez que alguém deve pagar um custo para que um terceiro saiba, se exceda e aprenda), repetido, seriado, porque propriamente mitológico, cada qual encarna seu lugar no jogo da história que só aparenta ceder liberdades na progressão que Bonello peculiarmente chama de Crepúsculo à Aurora. Como num sistema mercantil apodrecido, todas eventualmente se endividarão com a matrona para pagar por aquilo (perfumes, loções, antissépticos) sem o que não podem trabalhar – para se endividar mais. A realização fantasiosa que as garante a miserável estabilidade é também o motivo do bocejo e do cansaço: têm de repetir o que os homens não podem exigir às esposas até que a corrente de papéis não lhes faça entrever outra opção que não fantasiar a própria saída – a liberdade que nunca será dada, consumada, por quem precisa que elas existam. Mas o nó fabular já acusa seu teor agravante na catapulta que as lança da esperança sorridente ao choro extático coletivo. Não há impossibilidade, só perpetuação.

Bonello faz de qualquer plano inicial o assombro e a epítome de sua esteira: num corredor iluminado, alaranjado, de frestas e buracos escuros como que vazantes, uma cortesã enlaça a outra: “Não se preocupe, hoje você vai ser escolhida para a liberdade”, e ambas somem no negrume replicado que acusa segredos e casulos, continuando o caminho para o salão onde são selecionadas, jogam, ouvem histórias e se embriagam, ou adentrando as redomas fetichistas que diversas vezes nos aparecem como split screen: quatro quadros de um trabalho de Sísifo, interpretado como uma vitrine de natal repetente. Quase nada mais é filmado em termos de arestas do que estes corredores, quartos ou pequenos salões. Como na cápsula de vidro que tão bem caracteriza a obra-prima de Silvia  Plath, uma relação entre o estranho e o cognoscível, o explicitamente contratual (à luz do aceitável) desponta como a sustentação de uma espinha fantasmática. O exercício daqueles que as contratam é dar forma àquilo que sequer conhecem, o exótico do desejo que, se pronunciado na rua, causaria quiçá mortes literais – e não assombrará que “as negras custem 100 [da moeda] a mais” –; a constatação das mais lúcidas, ou ousadas, é que o melhor é “se entregar direta e rapidamente à gonorreia” ou às drogas, acelerar a morte que é o único destino ao horizonte.

Um acelera a morte daquele sem o qual não conseguirá (sobre)viver.

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E todos entram em seus paradoxos: eles fingindo não se importar que a sobrevivência daquelas casas depende de um quesito cada vez mais financeiro, ao mesmo tempo em que recusam a ajudá-las ou assumi-las além da luminosidade pública, elas adiando a ação que romperia o sistema que as torna mais endividadas e menos passíveis de exercer qualquer liberdade até mesmo de individuação. Mas há algo naquelas mulheres que as faz exceder, para além do óbvio protagonismo cênico e narrativo, por natureza, qualquer domínio que aqueles sobre elas parecem ter: talvez porque privadas de uma vida “no fora”, inerentemente cegas à concepção de algo além dos corpos e mensagens vagas, pois, portanto, mestras no ofício do transformismo, são todas ainda assim as que adivinham, conduzem, ou seja: criam, dão forma, são O prazer, O faltante, O contínuo do outro. E não faltarão planos, porque aliás todos se compõem sob esta elegia à parte-pelo-todo, em que os coletivos de seios e clavículas, ou de coletes e pelos pubianos, se mostrem duplamente singulares e misturados. Todo corpo é, sozinho, e também por conta dos outros, sejam estes semelhantes ou antagônicos. No jogo de carteado que as anuncia um futuro que querem saber e sobre o qual cospem em descrença, mandíbulas trêmulas, unhas roídas e pupilas enfadadas entoam o mesmo desejo. Cada homem chega praticamente nas mesmas vestes e se desdobra numa especificidade delicada de realização em cada secreto quarto.

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Os artifícios e joalherias das prostitutas centuplicam o espectro conhecido de cores, mas por que é mais fácil lembrar, e curiosamente longe do dualismo, da completa escuridão das câmaras e dos corpos iluminados? Porque, como ordenam os sonhos, a fantasia, o excesso, o ficcional, isso que escorre entre os homens melhor acontece numa caixa preta da qual só lembramos por iluminuras. O filme desponta com a questão: “Você se lembra com frequência dos seus sonhos?”, ao que A Mulher Que Ri, pela negativa, sofre a tragédia do lampejo de um preenchimento (sonha que ele goza e ela é tão inundada que lacrimeja sêmen) seguido de dois rasgões na pele do rosto que era seu pão. Fadada a rir eternamente, cumprir-lhes a plenitude que vêm buscar na caverna dos sonhos, à força. Mas por que Bonello nos lembra que é simplíssimo recorrer à heterogeneidade de mulheres e à simplificação dos homens numa só figura? Os muitos séculos de mal contada história o provam, e ainda mais ironicamente o metteur-en-scène: dobrado numa icônica passagem de século, o risível do “progresso” fica melhor eternizado. Uns caçam, outras coletam e cuidam? Uns trabalham, outras zelam pelo fruto do emprego daquele? Uns melhor indicam, norteiam, outras se apresentam menos capacitadas? Assim a ciência o produziu em literatura: Samira, a árabe exo/erotizada, se debruça em prantos com o livro emprestado de antropometria cefálica que a diz que prostitutas e criminosos possuem crânios menores pelo menor uso das capacidades cerebrais.

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E o duplo engano o tempo inteiro ululando na sedução: nem todas as capacidades são racionais (sobretudo aquelas pelos quais os tolos e bestas mais anseiam), nem aquilo que a inteligência elaborou se sustenta sem aquilo que ela não conseguirá jamais conceber: se existem as putas é, também, porque algo de sistêmico e facilmente tornado negócio ameaça a inexistência mesma do estrato que as encerrou nas casas e agora as relega às ruas. Poderia Bonello ter acendido a fagulha de uma previsão desastrosa? Assim como aquela que Ri sonha com seu assassino mascarado, a prótese terá, no seu início pelo corpo, evoluído das máscaras aos anonimatos contratuais totais? Fala-se do capitalismo exaustivamente como um lobo, mas terá outro modo de troca um potencial de epidemizar mais o adoecimento do corpo até que este seja pura boneca escorrendo um líquido que mata, ao invés de nutrir? Findam todas exaustas em noites de cetim, todas “menos uma”, a que participa do choque anafilático temporal que é a cartada premonitória. A redoma de vidro pode muito ter virado a própria atmosfera, então, porque deste mundo é preferível nunca ter participado.

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Valerie e sua semana de deslumbramentos: para se perder em uma fábula

Por Chico Torres

 

Livre de qualquer responsabilidade, a fantasia pura se entrega a esses jogos cromáticos.

(Walter Benjamin em Livros infantis antigos e esquecidos).

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As Fábulas de La Fontaine representam uma das lembranças mais significativas de minha infância: mais do que “a moral da história” contida nas adaptações feitas pelo autor francês, o que ficou verdadeiramente gravado em minha memória foi o modo como aquelas breves narrativas eram ilustradas pelas gravuras em preto e branco de Gustave Doré. Hoje sei que as fábulas, assim como o conto de fadas, estão historicamente ligadas a qualidades do universo infantil fundamentais: primeiro a oralidade, depois a ilustração.

Então, me surge a questão: é possível construir uma fábula através de um filme? É possível compor uma “fábula cinematográfica”? Se por questões óbvias, o cinema não é capaz de reproduzir fielmente os efeitos de uma fábula oral/livresca, conseguiria ao menos se aproximar, através de uma composição ou reconstituição, da fábula nos moldes tradicionais? Talvez nesta edição da Multiplot! alguns textos contemplem filmes que vão nesta direção. Por outro lado, penso que o cinema, em seu natural antropofagismo, surge para estabelecer crises em tudo aquilo que toca. No território inimigo do cinema, é possível que a fábula, portanto, seja posta ao avesso e sirva como lastro para a construção de narrativas que podem, inclusive, serem metáforas sobre a própria impossibilidade de se contar histórias como antigamente.

Este parece ser o caso de Valerie e sua semana de deslumbramentos (1970), filme de Jaromil Jires. O diretor, que fez parte da instigante New Wave Tcheca (cito aqui alguns filmes que me vêm à memória: As pequenas margaridas, de 1966; Trens estreitamente vigiados, de 1966; Marketa Lazarova, de 1967), arquitetou um filme que faz jus à sua fonte de inspiração, o romance homônimo de Vítezslav Nezval, escritor ligado ao surrealismo. Por outro lado, o aspecto vanguardista do filme torna-se mais significativo ao se desenvolver sob o pano de fundo da fábula e do conto de fadas: Valerie é uma jovem que vive com sua avó em uma pequena cidade aparentemente feudal. Em um plano maquiavélico, a mulher resolve entregar sua neta a um monstro que em troca promete lhe devolver a juventude perdida. Nesse sentido, há no filme diversas características que remetem ao universo da fábula e do conto de fadas: a presença diabólica e do encantamento por magia; o bucolismo medieval e renascentista, que geralmente compõe o universo fantástico dessas histórias (certamente as fábulas se desenvolveram com mais intensidade nesses períodos); o excesso de cenários e do aspecto pictórico dos planos, reiterando a presença das ilustrações e das cores, elementos característicos do universo infantil.

Valerie parece estar além e ao mesmo tempo aquém em suas intenções simbólicas, não se constituindo nem como fábula e nem como obra propriamente surrealista, encontrando-se em um limiar raramente explorado na história do cinema. Ainda que as associações simbólicas se constituam de forma frágil, suspeita e quase gratuita, através de uma narrativa nonsense que ironicamente pretende dar uma direção, tais associações compõem um filme que consegue ser extremamente crítico, no conteúdo e na forma.

Certamente, o elemento chave da obra é a conscientização de Valerie sobre sua sexualidade. Presenciamos o momento em que, enquanto caminha entre flores e pedras, ela menstrua pela primeira vez e mais adiante confessa: “Eu não sou mais criança, vovó”. A jovem possui um par de brincos que representa um jogo de “perde e ganha”, o que pode significar o lugar de transição no qual ela se encontra (entre a criança e o adulto), passando a compreender que seu corpo se constitui como objeto de desejo. É magistral a forma como se dá a construção desse lugar de Valerie, um misto de ingenuidade e curiosidade sexual que faz com que ela consiga ser o verdadeiro elemento transgressor do filme, já que seus perseguidores são vampiros que escondem desejos perversos sob o aval da religião.

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Com exceção de Orlik, personagem que serve como par romântico e testemunha ocular das desventuras de Valerie, todas as figuras masculinas do filme são monstruosas e ameaçadoras. Valerie vive imersa nesse mundo de criaturas quase mortas, mas sua curiosidade e identificação estão voltadas para outra camada social: a de indivíduos que parecem viver num paganismo que se afirma através de uma vivência sexual sem pudores. Essas personagens aparecem de forma quase sempre alegórica e, basicamente, têm como função expor o voyeurismo de Valerie (todas as cenas de sexo desse grupo se dão em ambientes abertos e quase sempre são testemunhadas pela adolescente), servindo de contraste ao moralismo religioso, representado no filme por figuras monstruosas e perversas.

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No entanto, na segunda metade do filme se evidencia mais nitidamente seus aspectos, como não acho outro termo mais adequado, surrealistas: a obra se torna extremamente confusa, com um entrelaçar de situações e ambientes que provocam um incômodo que só pode ser sanado pela sempre impecável direção das cenas. Ainda que durante todo o filme a linearidade narrativa seja subvertida, não obedecendo a uma lógica espaço-temporal, nesta segunda parte a obra deixa transbordar seu desejo de nos provocar de modo radical, de elaborar seu caráter crítico mais especificamente em relação à forma. Se nós esperávamos, mais ou menos confortáveis, o desfecho da estranha fábula, somos jogados em uma história que deixa de comunicar qualquer relação razoável entre os acontecimentos, aprofundando seu aspecto irônico e iconoclasta. Valerie se encaminha para um desfecho em que todas as figuras arquetípicas se integram, literalmente, numa dança surrealista dentro da floresta.

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Não há mais o bem e o mal. Não importa se Valerie será salva das garras dos monstros ou não. Ela agora está integrada a eles, integrada a tudo que é profano e a tudo que é sagrado. A crítica presente no início do filme se dilui em imagens deslumbrantes, em entrega ao que é dado sem julgamentos morais ou elaborações racionais no sentido cartesiano. Valerie é um filme belo e desconcertante que nos mostra, ao mesmo tempo, a subversão de uma tradição e as mazelas que estão em suas origens, e a impossibilidade de reconstituir aquilo que já não pode mais ser moralizado. Valerie é, antes de tudo, uma fábula amoral.

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Fantasmas e reminiscências – as formas de diálogo entre tempos nas Hong Kongs de Stanley Kwan e Wong Kar-Wai

Por Gabriel Papaléo

No início de Dias Selvagens, segundo filme dirigido por Wong Kar-Wai, Yuddy, o personagem vivido por Leslie Cheung diz para Lai-Chung, vivida por Maggie Cheung: “Por conta de você, lembrarei desse minuto para sempre.” Em Rouge, de Stanley Kwan, o espírito da personagem Fleur vivida por Anita Mui se apaixona pelo marido arranjado sem saber do destino que os aguarda. A construção da mitologia da memória é feita com fantasmas palpáveis, e o cinema de Kar-Wai e Kwan nesses filmes se baseia na relação que seus personagens têm com a ciência dos sentimentos que contém e que emanam. O tempo fugidio é como um catalisador de olhares, e a noção do fim que torna os personagens em Dias Selvagens nostálgicos é a mesma que falta na fantasma de Mui em Rouge, e que faz dela uma errante.

Essa galeria de personagens perdidos em seu presente pelos desencontros amorosos que experimentam complexifica as ideias de romantismo aderidas por ambos os diretores, o do relacionamento surgido por motivações sociais e sacralizado pela tragédia inerente ao romantismo em Rouge, e as promessas impossíveis e falta de cotidianos divididos em Dias Selvagens – esse último um reflexo direto de certa tradição pelo gestual de mulheres que sofrem com seus amores egresso do melodrama chinês que Wong Kar-Wai preza por, algo visto mais diretamente em Amor à Flor da Pele (2000) e Hua yang de nian hua (2001), curta do diretor composto exclusivamente por trechos de longas chineses antigos selecionando danças, beijos e cantos das personagens que reverencia, e veio a trabalhar nas suas próprias narrativas.

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Em Rouge, o amor construído sobre os signos do romantismo, dos gestos políticos do casamento, contém o luxo que se espera de tal sociedade de rituais – ritual esse que leva à aproximação de Fleur e seu amado. Todo o lastro emocional construído nesse prólogo na conversa franca com o amor impossível dos grandes gestos é devastado pelo plano de Hong Kong dos anos 80, no escuro da cidade, na noite dos abandonados à metrópole. A cidade do presente, com os empregos burocráticos, com os encontros em restaurantes a céu aberto sem o glamour, vivendo de fabulações esgotadas, testemunhadas pela fantasma vivida por Anita Mui, refém de um olhar de seu passado morto.

Ou estariam esgotadas de fato as fabulações românticas? O estado suspenso de Fleur, à deriva e à descobrir as traduções contemporâneas dos gestos do amor, bate de frente com o ideal fabuloso e fabulesco da sua memória de casal. Na cena do ônibus, ela constroi e desfaz toda a tensão com Yuen ao passar por lugares que lembram seu amado, mas não estão mais por ali – como um travelogue de experimentar o desfazer das memórias afetivas, uma legítima experiência de transporte coletivo dos trânsitos de cidade. É ao se deparar com a namorada de Yuen, e com a simplicidade do apartamento do casal, e sua cumplicidade afetuosa, que Fleur se entende no 1987 do filme. Aprende ali com o cotidiano desse novo amor diante da nova Hong Kong, o casal com roupas simples e pouco caracterizadas dentro de uma cultura chinesa, cujo apartamento guarda diferenças arquitetônicas irreconciliáveis com a opulência da residência do passado de Fleur – e que mesmo assim, e talvez por isso, se une para ajuda-la. Os pequenos atos de esforços de afeto se renovam conforme gerações.

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O que se renova em gestos, no entanto, não é atualizado na ansiedade juvenil pelo fulgor do aqui e agora. Em Dias Selvagens, a fuga como sinal do amadurecimento que afasta os amados é a mesma de Yuddy da mãe, do relacionamento com a personagem vivida por Carina Lau, e também da sua amizade de circunstâncias com o Tide de Andy Lau. Muitos são os relógios ao longo do filme, todos singelos no ambiente mas em quadro, por vezes altos em símbolo, por vezes baixos em volume – o amor está passando, a juventude também, os tempos mudarão.

A tentativa de projetar futuros onde eles não existem, paisagens que mudam com a frequência que apenas uma fuga propicia. O não criar dos laços emocionais com lugares parece a base errante desses personagens fadados a nostalgia, principalmente no protagonista masculino de Dias Selvagens. Yuddy vive de trambiques e embarca em relacionamentos com fins muito demarcados concomitantemente à busca por alguma realeza talvez herdada do pai ausente, nas Filipinas de florestas esverdeadas da fotografia de Christopher Doyle, um lugar estrangeiro diante dos olhos e cuja localização espacial é radicalmente diferente de Hong Kong; mais um terreno propício a desencontros, a uma viagem em busca de respostas que traz apenas novas perguntas e desarranjos. Nos espaços vazios que filma, na investigação de Yuddy, Kar-Wai imagina as historias ali contidas e não acessadas por distanciamento historico, cultural, de país, enquanto organiza um final de esperas por futuros não consumados, de chuva e silêncios, de Lai-Chung aprendendo sob a distância do afeto.

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O cinema surge portanto como forma de reencantar a rotina ao redor para tornar imagem a distância de corpos. Em Dias Selvagens, sob relação mais abstrata, na forma que Wong Kar-Wai se apropria do suspense, do road movie, do filme de luta no segmento das Filipinas, para trafegar seus personagens incertos pelos lugares. Em Rouge, na literal visita a um set de filmagem, a despedida de dois enamorados, uma jovem fantasma e seu amante que sonhou ser um velho, para o beijo derradeiro ser o mais poderoso gesto diante dos voos graciosos e contemplativos do wuxia filmado nos arredores. É como se o poder dos grandes gestos que o cinema fantástico produz ressignificasse – e sobretudo potencializasse – a afetividade que testemunhamos em tela, cheia de peso histórico e contexto, como a Hong Kong que visitamos, como o amor através dos séculos, como o voo dos lutadores.

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A fabulação trabalha sob a estrutura do melodrama nos dois filmes, como um véu fantasioso além vida diante dos eventos e desencontros que acometem os casais fadados a últimos encontros e frustrações. Essa talvez seja a forma tanto de Kwan quanto de Kar-Wai de encapsular suas obras em tempos presentes cortantes, desviados, sempre despidos diante da nostalgia; saudar o passado com os futuros que poderiam ter acontecido mas não o foram é esse ato de romantismo fugidio que os jovens que eles filmam aderem tanto, por noção das escolhas pessoais que os formarão, pelo amadurecimento que sentem chegar longe e o abraçam de formas inevitáveis, no fluxo da vida que por vezes nos chega sem esquemas, sem precisões. Que esses personagens saibam fazer as escolhas difíceis que vemos em Rouge e Dias Selvagens ilumina a inteligência emocional daqueles atos, e portanto ajuda a renovar as noções de romantismo que a literatura, a música, a pintura, e o cinema falam há tantos séculos. A passagem do tempo existe, e quem percebe esse fluxo pode entender melhor as decisões que toma; o abraço a nostalgia facilitadora raramente coexistirá com o presente nos quais vivem as crias de Kwan e Kar-Wai, personagens amargurados, frustrados, mas nunca resignados ou desprovidos de sonhos de futuros.

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