EDITORIAL – A poética da fabulação

Por Camila Vieira

A relação entre cinema e fábula envolve de saída um impasse bastante recorrente e pertinente dentro de uma certa tradição teórica historiográfica. Nos anos 1920, o jovem Jean Epstein vaticinava em seu texto Bonjour Cinéma: “O cinema é verdade. Uma história é uma mentira”. Era como se a arte de narrar histórias estivesse restrita a um legado literário aristotélico (de orquestrações ordenadas de ações) e precisasse ser colocada em um lugar distinto, longe da desordem da vida que o cinema parecia buscar a partir da técnica com a câmera. “A vida não conhece histórias. Não conhece ações orientadas para um fim concreto, apenas situações abertas em todas as direções”, escreve Rancière na tentativa de compreender o gesto de Epstein. A arte cinematográfica deveria estar neste lugar de excelência da inversão da racionalidade da trama.

Mas Rancière acaba por reconhecer que a visão de Epstein é de um tempo distinto do nosso na contemporaneidade. É uma visão do cinema carregada de uma nostalgia por insistir na separação entre a presença íntima das coisas do mundo e o universo da fábula. Também é uma visão condescendente por compreender o cinema como arte a partir de um dispositivo técnico que poderia colocar em prática uma utopia estética, política e científica daquele contexto histórico. A partir da reflexão sobre tais limitações do texto de Epstein, Rancière procura afirmar a fábula como elemento constitutivo do cinema como experiência.

Mas o que seria do cinema de Epstein sem a fábula, que faz com que ainda possamos sonhar com esta imagem sobreposta do rosto de uma mulher com a selvageria das ondas do mar em Coeur Fidèle (1923)?
Mas o que seria do cinema de Epstein sem a fábula, que faz com que ainda possamos sonhar com esta imagem sobreposta do rosto de uma mulher com a selvageria das ondas do mar em Coeur Fidèle (1923)?

Nem a fábula se restringe à mera contação de tramas ordenadas, tampouco o cinema se restringe aos efeitos de real que podem aproximá-lo de uma certa autenticidade da vida. Para esta nova edição da Multiplot!, pouco interessa a velha distinção entre verdade e mentira, que parecia ser tão cara a Epstein. O que nos interessa como críticos na contemporaneidade é escapar das dicotomias que figuram cordas lançadas pelas teorias e que, muitas vezes, são capazes de sufocar elas mesmas. O gesto a ser feito é mergulhar nos procedimentos estéticos que determinados realizadores lançam mão a favor de dramaturgias em vizinhança com as potencialidades da fábula, aqui defendida em suas diferentes nuances e matizes do sonhar e do imaginar que já estão presentes desde o início do cinema. De que maneira o cinema ainda é capaz de apostar na crença da fabulação?

Pensamos aqui as vontades de alguns realizadores contemporâneos em construir narrativas com zonas de contato mais próximas de fábulas tradicionais, como os contos de Charles Perrault, ressignificados pela postura da leitura ativa de Catherine Breillat, em Barba Azul e A Bela Adormecida. Ou mesmo a peça infantil de Maeterlinck que se transfigura em uma artesania imagética pelo olhar de Maurice Tourneur em O Pássaro Azul.

Alguns cineastas buscam se ancorar na radicalidade da fábula para enfrentar mais diretamente os modos de produção da indústria cinematográfica hollywoodiana, como é o caso da trilogia do ridículo de Alex Cox, ou fazer uma crítica contundente ao status quo capitalista, por meio dos filmes de zumbi de George Romero.

Diretores representativos de movimentos cinematográficos abraçam curvas singulares em suas cinematografias, em grande parte devido à sedução pela fábula. Nelson Pereira dos Santos enfrenta as limitações realistas do paradigma cinemanovista com a ressignificação fabular da força mítica dos terreiros de candomblé e de umbanda em O Amuleto de Ogum. Roberto Rosselini também subverte os meandros neo-realistas com as fábulas indianas que compõem India: Matri Bhumi.

Valerie e sua semana de deslumbramentos, de Jaromil Jires, se alimenta de personagens fantásticos em que o despertar da sexualidade é uma debochada crítica às instituições patriarcais, enquanto L’Apollonide, de Bertrand Bonello, mergulha no nó fabular de cortesãs de uma casa de prostituição do século XIX que procuram burlar a melancolia que encarna seus lugares no jogo da história.

Outros cineastas são convocados ao longo desta edição da Multiplot!, em textos que não pretendem traçar uma linha temporal historiografia de produção entre os filmes. A virada se dá na aposta das intensidades. O intervalo de um texto a outro pretende friccionar olhares diversos, compondo uma grande tessitura de gestos fílmicos tocados pela poética da fabulação. O jogo está posto.

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