Olhar de Cinema: No Salão Jolie (Rosine Mbakam)

uma corrente selvagem

Por Gabriel Papaléo

Pouco antes do título surgir na tela, alguém passa na frente da câmera e bota as mãos na lente com agressividade, e pede para não ser filmado. Logo depois, a cabeleireira Sabine pede a Rosine, diretora do filme, que entre com a câmera porque “filmar ai fora vai dar problema”. A câmera então entra, pra não sair mais. Em No Salão Jolie o dispositivo observacional é muito claro e é o que conduzirá o filme pelos seus 70 minutos, mas a disposição da diretora Rosine Mbakam em desafiar essa observação teoricamente passiva é estabelecida desde esse início. Os quadros escolhidos por Mbakam, diante dos apenas 8m2 do salão, são surpreendente variados na construção e organização daquele espaço, seja através dos rostos que filma, seja através dos espelhos que ali dilatam.

Nesse contexto dado, a interação entre as mulheres dali gira em torno de assuntos cotidianos ao longo das muitas e muitas horas de trabalho, que revelam pontualmente dados importantes como os detalhes do processo de imigração e a rede de auxílio mantida pelas mulheres dali para pessoas que querem também emigrar. Existe um panorama da relação entre Camarões e Bélgica tratado aqui com afinco, mas através da luta diária de Sabine e suas amigas e funcionárias, representada sutilmente, um dia-a-dia que inevitavelmente sugere lutas diversas. O contexto emocional das consequências desses entraves sociais se dá na atenção de Mbakam também para as pequenas histórias, como a da filha que perde a mãe e enfrenta a burocracia do país, questões elementares no mapear da geopolítica ali discutida.

O lidar com os brancos de Bruxelas que passam pelo salão encarando, com olhos curiosos ou inquisidores (às vezes os dois), estabelece boa parte da tensão racial que parece ficar sempre do lado de fora do salão, o microcosmo que acaba por exemplificar um bastião da sociedade segregada dos imigrantes negros da cidade. Ali os brancos agem como turistas, corroborando o preconceito com atitudes passivo-agressivas sempre à distância, com historias similares sendo apresentadas no cotidiano da porta pra fora – como a da mulher negra cheia de sacolas no metrô, encarada pelos brancos com medo irracional. São contos falados pelas mulheres do salão com naturalidade, certo deboche com os belgas até.

Os relatos passam por exemplos objetificação feminina (é um filme que relata estéticas das mais diversas, afinal), e ao falar da opressão das mulheres negras em outros países, chegam no caso das que procuram (e acham) homens brancos no Canadá, e são sexualizadas sob a promessa de ascensão social. Sabine então fala: “elas queriam achar homens brancos, elas acharam homens brancos”. A violência é a primeira impressão no confronto racial, mesmo – e talvez por causa disso – quando envolve gênero.

Contextualizando por esses tópicos até parece que No Salão Jolie trata com rigor sociológico acadêmico seus temas, mas é um filme de encenação marcada e simples, de cotidiano, de ações repetidas e bom humor, de quem sabe que o contexto será afirmado com o passar do tempo, através da voz de quem luta silenciosamente. Todo esse pano de fundo político se torna palpável de fato no medo da polícia de imigração bater ali, toda a construção da tensão final em volta da correria pontual das fugas discretas de Sabine e as outras ilegais. É nesse final que todo o lastro de combate político é visível, antes tão escondido sob a capa da civilidade europeia, e nos lembramos então que mesmo a rotina trivial comunica bastante sobre nossos tempos.

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