Homens têm segredos, mas não mistérios

Por Felipe Leal

Noites de cetim branco

que nunca chegam ao fim

(The Moody Blues – Nights in White Satin)

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Pode se dizer d’Os Amores da Casa de Tolerância (L’Apollonide – Souvenirs de la Maison Close, 2011) que há uma fluidez diegética típica à duplicidade que costuma se atribuir à “grande arte”: simultânea e perfeitamente bem, ora o que se vê é a decadência entrópico-biológica das cortesãs de uma casa de prostituição na passagem do século XIX ao XX, ora há uma evidência da trajetória do desejo e do lugar social masculino perante àquelas que, por percurso trágico (ou tardiamente trágico), são escolhidas para servir de bonecas especializadas às descargas pulsionais desses que, em público, jamais ousariam assumir o corpo por inteiro. Em outras palavras, certamente vulgares: há uma crítica a algo da ordem do “real”? Há uma ficção desamarrada de pujança social, ainda que ligeiramente? A questão, que não demoraríamos a perceber como moral, encontra para vias de intensificação deste elemento um punho fabular melancólico, posto que àquelas mulheres não há relação ou uso que não passe por um espelhamento sob a lógica de uma torre de Quasímodo: o tanto que sonham com a liberdade, com a compra de suas propriedades físicas, corporais, é o tanto que devem pagar, literalmente, atuando qualquer fantasia até que se tornem quase rijas como bonecas, funcionais como a materialidade correspondente do cruel excedente masculino. Moldáveis, sagazes – mas mortas.

O fabular É. Se encerra num baque e, no seu sentido, produz sentido: a situação que lhe provoca aquilo do lecionável opera por lugares cuja fixidez é obrigatória e se dá por repetência, sem que isso seja pejorativo, apenas da ordem do micro-cósmico; fixo porque a mobilidade de seus elementos é pré-registrada (não se fala necessariamente de uma causa-consequência, mas de algo do trágico para alguns, saliente para outros, uma vez que alguém deve pagar um custo para que um terceiro saiba, se exceda e aprenda), repetido, seriado, porque propriamente mitológico, cada qual encarna seu lugar no jogo da história que só aparenta ceder liberdades na progressão que Bonello peculiarmente chama de Crepúsculo à Aurora. Como num sistema mercantil apodrecido, todas eventualmente se endividarão com a matrona para pagar por aquilo (perfumes, loções, antissépticos) sem o que não podem trabalhar – para se endividar mais. A realização fantasiosa que as garante a miserável estabilidade é também o motivo do bocejo e do cansaço: têm de repetir o que os homens não podem exigir às esposas até que a corrente de papéis não lhes faça entrever outra opção que não fantasiar a própria saída – a liberdade que nunca será dada, consumada, por quem precisa que elas existam. Mas o nó fabular já acusa seu teor agravante na catapulta que as lança da esperança sorridente ao choro extático coletivo. Não há impossibilidade, só perpetuação.

Bonello faz de qualquer plano inicial o assombro e a epítome de sua esteira: num corredor iluminado, alaranjado, de frestas e buracos escuros como que vazantes, uma cortesã enlaça a outra: “Não se preocupe, hoje você vai ser escolhida para a liberdade”, e ambas somem no negrume replicado que acusa segredos e casulos, continuando o caminho para o salão onde são selecionadas, jogam, ouvem histórias e se embriagam, ou adentrando as redomas fetichistas que diversas vezes nos aparecem como split screen: quatro quadros de um trabalho de Sísifo, interpretado como uma vitrine de natal repetente. Quase nada mais é filmado em termos de arestas do que estes corredores, quartos ou pequenos salões. Como na cápsula de vidro que tão bem caracteriza a obra-prima de Silvia  Plath, uma relação entre o estranho e o cognoscível, o explicitamente contratual (à luz do aceitável) desponta como a sustentação de uma espinha fantasmática. O exercício daqueles que as contratam é dar forma àquilo que sequer conhecem, o exótico do desejo que, se pronunciado na rua, causaria quiçá mortes literais – e não assombrará que “as negras custem 100 [da moeda] a mais” –; a constatação das mais lúcidas, ou ousadas, é que o melhor é “se entregar direta e rapidamente à gonorreia” ou às drogas, acelerar a morte que é o único destino ao horizonte.

Um acelera a morte daquele sem o qual não conseguirá (sobre)viver.

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E todos entram em seus paradoxos: eles fingindo não se importar que a sobrevivência daquelas casas depende de um quesito cada vez mais financeiro, ao mesmo tempo em que recusam a ajudá-las ou assumi-las além da luminosidade pública, elas adiando a ação que romperia o sistema que as torna mais endividadas e menos passíveis de exercer qualquer liberdade até mesmo de individuação. Mas há algo naquelas mulheres que as faz exceder, para além do óbvio protagonismo cênico e narrativo, por natureza, qualquer domínio que aqueles sobre elas parecem ter: talvez porque privadas de uma vida “no fora”, inerentemente cegas à concepção de algo além dos corpos e mensagens vagas, pois, portanto, mestras no ofício do transformismo, são todas ainda assim as que adivinham, conduzem, ou seja: criam, dão forma, são O prazer, O faltante, O contínuo do outro. E não faltarão planos, porque aliás todos se compõem sob esta elegia à parte-pelo-todo, em que os coletivos de seios e clavículas, ou de coletes e pelos pubianos, se mostrem duplamente singulares e misturados. Todo corpo é, sozinho, e também por conta dos outros, sejam estes semelhantes ou antagônicos. No jogo de carteado que as anuncia um futuro que querem saber e sobre o qual cospem em descrença, mandíbulas trêmulas, unhas roídas e pupilas enfadadas entoam o mesmo desejo. Cada homem chega praticamente nas mesmas vestes e se desdobra numa especificidade delicada de realização em cada secreto quarto.

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Os artifícios e joalherias das prostitutas centuplicam o espectro conhecido de cores, mas por que é mais fácil lembrar, e curiosamente longe do dualismo, da completa escuridão das câmaras e dos corpos iluminados? Porque, como ordenam os sonhos, a fantasia, o excesso, o ficcional, isso que escorre entre os homens melhor acontece numa caixa preta da qual só lembramos por iluminuras. O filme desponta com a questão: “Você se lembra com frequência dos seus sonhos?”, ao que A Mulher Que Ri, pela negativa, sofre a tragédia do lampejo de um preenchimento (sonha que ele goza e ela é tão inundada que lacrimeja sêmen) seguido de dois rasgões na pele do rosto que era seu pão. Fadada a rir eternamente, cumprir-lhes a plenitude que vêm buscar na caverna dos sonhos, à força. Mas por que Bonello nos lembra que é simplíssimo recorrer à heterogeneidade de mulheres e à simplificação dos homens numa só figura? Os muitos séculos de mal contada história o provam, e ainda mais ironicamente o metteur-en-scène: dobrado numa icônica passagem de século, o risível do “progresso” fica melhor eternizado. Uns caçam, outras coletam e cuidam? Uns trabalham, outras zelam pelo fruto do emprego daquele? Uns melhor indicam, norteiam, outras se apresentam menos capacitadas? Assim a ciência o produziu em literatura: Samira, a árabe exo/erotizada, se debruça em prantos com o livro emprestado de antropometria cefálica que a diz que prostitutas e criminosos possuem crânios menores pelo menor uso das capacidades cerebrais.

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E o duplo engano o tempo inteiro ululando na sedução: nem todas as capacidades são racionais (sobretudo aquelas pelos quais os tolos e bestas mais anseiam), nem aquilo que a inteligência elaborou se sustenta sem aquilo que ela não conseguirá jamais conceber: se existem as putas é, também, porque algo de sistêmico e facilmente tornado negócio ameaça a inexistência mesma do estrato que as encerrou nas casas e agora as relega às ruas. Poderia Bonello ter acendido a fagulha de uma previsão desastrosa? Assim como aquela que Ri sonha com seu assassino mascarado, a prótese terá, no seu início pelo corpo, evoluído das máscaras aos anonimatos contratuais totais? Fala-se do capitalismo exaustivamente como um lobo, mas terá outro modo de troca um potencial de epidemizar mais o adoecimento do corpo até que este seja pura boneca escorrendo um líquido que mata, ao invés de nutrir? Findam todas exaustas em noites de cetim, todas “menos uma”, a que participa do choque anafilático temporal que é a cartada premonitória. A redoma de vidro pode muito ter virado a própria atmosfera, então, porque deste mundo é preferível nunca ter participado.

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