Nós (Us, Jordan Peele, 2019): apocalipse subterrâneo

Por Kênia Freitas

No conto “Aqueles Que Se Afastam de Omelas”, Ursula Le Guin descreve uma cidade paradisíaca e feliz: com festivais de verão, prosperidade, bela arquitetura, sem soldados e sem clero, sem reis e ditadores, com orgia e drogas e sem culpa. Omelas pulsa arte e inteligência em uma felicidade não pueril. Há, no entanto, um grande porém: toda essa felicidade é dependente da manutenção de uma criança com problemas mentais suja, doente, subnutrida, e constantemente maltratada, em um porão imundo. E a narração não deixa dúvida:

“Todos eles sabem que está lá, todo o povo de Omelas. Alguns deles chegaram a vê-la, outros se contentam apenas em saber que está lá. Todos eles sabem que tem que estar lá. Alguns deles entendem o porquê, outros não, mas todos entendem que a sua felicidade, a beleza de sua cidade, a ternura de suas amizades, a saúde de seus filhos, a sabedoria dos seus estudiosos, a habilidade de seus fabricantes, mesmo a abundância da sua colheita e o clima agradável de seus céus, dependem inteiramente do sofrimento abominável desta criança” (Ursula K. Le Guin).

A felicidade descrita no início do conto e a ciência da criança torturada como a sua base de manutenção criam a complexidade ética da história de Le Guin: é possível ser feliz às custas da desumanização brutal de uma pessoa? Ou se é mais feliz ainda sabendo-se do sofrimento e da dor de Outro, que poderiam ser mas não são suas? A salvação de uma única criança valeria pela infelicidade de milhares de pessoas e de toda uma população? Se não, mais uma vez, é possível ser feliz em Omelas? Como?

Sem mais respostas, a última parte do conto apenas nos diz que alguns jovens e algumas pessoas mais velhas eventualmente partem em linha reta (não se sabe bem para onde, embora eles pareçam saber) e se afastam de Omelas.

***

Em Nós (Us, Jordan Peele, 2019) o apocalipse se mostra justamente com a ressurgência de seres subterrâneos e maltratados – os acorrentados (Tethered). Diferentes da criança de Omelas, eles não são um Outro distante na aparência, mas cópias dos seres da superfície: ligados por um espelhamento corporal, eles repetem de forma tosca mas inevitável as ações dos seus duplos do lado de cima. Dois corpos presos pelo compartilhamento de apenas uma alma, como Red – a chefe da rebelião dos acorrentados – explicará para Adelaide (a sua cópia que vive na superfície).

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Nós não é construído, no entanto, em uma chave comum de filmes apocalípticos de grandes eventos – nos quais o fim do mundo (ou do mundo como conhecemos ou o fim dos EUA lido como o fim de todo o planeta) é contado de uma perspectiva dos macro poderes e dos seus agentes (governantes, cientistas, mídia, forças policiais, etc.). Jordan Peele ancora o seu filme a partir de uma narrativa do trauma e da sobrevivência de uma mulher negra de classe média comum, Adelaide: ex-bailarina, mãe de dois filhos, levando uma vida aparentemente tranquila e próspera com o marido. Como heroína desse apocalipse, Adelaide não pretende salvar o mundo ou encontrar alguma solução de convivência com os duplos, mas apenas seguir viva (matando quantos acorrentados forem necessários para isso).

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O fim da vida como se conhece em Nós chega pela rememoração do trauma de infância de Adelaide, ao voltar para a casa de férias e para a praia em que tudo aconteceu. Imageticamente o filme trabalha com sinais de um alinhamento cósmico: a simetria do 11:11, um círculo que se encaixa perfeitamente sobre o outro, repetições e duplos. Sinais que anunciam que algo excepcional está por acontecer.

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Nesse sentido, vale retomar a ideia de apocalipse não apenas como um sinônimo para o fim do mundo, mas como uma revelação (na sua etimologia original): a palavra faz mais referência a uma ideia de desvelamento, de iluminação de um segredo divino. Na bíblia, o livro do apocalipse descreve visões terríveis da luta final entre o Bem e Mal como uma revelação (em algumas interpretações, um aviso) aos humanos para que se alinhem e confiem na força de Deus  (que sempre triunfa ao fim). Ou haverá consequências…

A ideia de um Deus punitivista paira sobre a narrativa de Nós. De forma mais evidente com as menções do versículo bíblico Jeremias 11:11: “Portanto assim diz o Senhor: Eis que trarei mal sobre eles, de que não poderão escapar; e clamarão a mim, mas eu não os ouvirei”. E na referência ao mito “Das 4 Criações” do povo nativo americano Hopi, que aparece como uma narração na casa assombrada quando Adelaide e Red (o seu duplo acorrentado) encontram-se crianças pela primeira vez. Nas duas narrativas originárias, as passagens evocadas falam de um Deus que pune aos humanos por estes terem esquecido das suas origens e espiritualidade. Esse esquecimento das origens e as suas consequências se mostram peças chaves para pensar a relação entre Adelaide e Red[1] e a rebelião dos acorrentados liderada pela segunda. O trauma criado quando a acorrentada rouba o lugar de seu duplo na superfície desdobra-se em Adelaide em um apagamento/esquecimento e em Red em uma pulsão vingativa e punitivista (tal qual dos Deuses…). Se o apagamento/esquecimento é o que permite a sobrevivência (e a felicidade?) de Adelaide, é ele quem impulsiona a ira de Red.

Editorial use only. No book cover usage. Mandatory Credit: Photo by Universal/ILM/Kobal/Shutterstock (10162635c) Lupita Nyong'o as Adelaide Wilson/Red 'Us' Film - 2019 A family's serenity turns to chaos when a group of doppelgängers begins to terrorize them.

Assim como no conto de Le Guin, o que me move no filme de Peele não é encontrar equivalências concretas às metáforas e alegorias propostas nas narrativas especulativas. Os acorrentados (e a criança) são e não são ao mesmo tempo toda uma gama de grupos oprimidos: os povos de África escravizados, os povos indígenas dizimados pela colonização, os operários sacrificados no capitalismo industrial, os pobres, os imigrantes, as pessoas racializadas em um mundo organizado pela supremacia branca, etc., etc.[2]. O que assombra em Nós e “Aqueles Que Se Afastam de Omelas” são as implicações éticas internas às narrativas e o seu desdobramento no mundo.

E um dos atravessamentos principais das duas narrativas é a linha divisória entre os que são considerados parte da humanidade e os que não. O título do filme aponta para esse pertencimento de forma dúbia. De um lado, “Us” como “United States” abreviação comum entre os estadunidenses para se referir aos EUA – importante aqui lembrar quando Adelaide pergunta à Red quem eles são, e ela responde “nós somos americanos”. De outro, “Us” como “nós”, essa terceira pessoa do plural que agrega um conjunto incerto de pessoas e/ou grupos: Nós da superfície? Nós a família de Adelaide? Nós humanos?

A linha entre humano e não humano que o filme invoca implica em uma estruturação justificada de opressões. Assim, se os acorrentados são criaturas não humanas e sem alma, apenas cópias rudimentares dos humanos da superfície, então é aceitável o seu aprisionamento nos subterrâneos e o seu extermínio durante a sua rebelião (?). E se Red pode se tornar Adelaide como lidar com essa divisão?

E essa linha imaginária das humanidades também implica em um questionamento de quando as engrenagens do apocalipse entraram em ação. Quando os acorrentados foram criados em uma tentativa humana de assumir o lugar de criação divina? Quando o projeto fracassou e os acorrentados foram abandonados à própria sorte? Quando Adelaide e Red nasceram com uma ligação acima do comum? Quando a criança do subterrâneo trocou de lugar com a da superfície? Ou quando, por fim, Red buscou à sua redenção junto com os demais acorrentados à categoria humana?

O que o apocalipse filmado por meio do trauma de Nós nos indica é que na linha divisória entre o humano e o não-humano fins de mundos estão sempre em ação – em Omelas, na Califórnia, ou em qualquer porão imundo. E esquecer disso pode despertar iras divinas ou subterrâneas.

[1] Seguirei chamando de Adelaide a cópia que inicia a narrativa na superfície e de Red a acorrentada, pois isso facilita o entendimento. Ainda que tecnicamente pela troca ocorrida na infância os nomes estejam invertidos.

[2] Esse fio no Twitter traz algumas dessas possibilidades de leitura do filme: https://twitter.com/kenialice/status/1111105047142825985

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Pode até ser que isto seja um grito

Por Lucas Saturnino

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Contes de juillet (Guillaume Brac, 2017)

Como imaginar o porvir em um país sem futuro?

(Jean-Pierre Bekolo, Les saignantes)

Lá está ela, um ser humano, mergulhando no desconhecido, e ela está bastante acordada

(Ottessa Moshfegh, Meu ano de descanso e relaxamento)

 

A linha-mestra de Ne croyez surtout pas que je hurle (Não pense que eu vou gritar, de Frank Beauvais, 2019) é um monólogo autobiográfico de Frank Beauvais — o narrador, protagonista e diretor. Em tom confessional e memorialístico — procedimentos muito caros à literatura contemporânea —, Beauvais disserta sobre cerca de 7 meses que passou isolado em uma aldeia na Alsácia, para onde havia se mudado com um ex-namorado e onde permaneceu após o término da relação.

Psicologicamente estagnado e vivendo como um ermitão, Beauvais isola-se ao extremo, reduz qualquer possibilidade de contato social ao mínimo e passa a assistir 4, 5 ou mais filmes ao dia, donde são originárias as imagens de Ne croyez…, obra inteiramente composta por excertos dos mais de 400 filmes vistos por ele no período.

Ne croyez… tem sido descrito como um filme sobre cinefilia — sua premissa não é de difícil identificação para uma plateia de cinéfilos, críticos, curadores etc. No entanto, Ne croyez… é tanto uma obra sobre cinefilia quanto sobre tecnologia e isolamento — e individualismo? —: ser capaz de baixar filmes e vê-los a sós em casa, fazer dinheiro vendendo coisas na internet — desempregado, é sua fonte de renda ocasional — e ir vivendo enquanto continua a ignorar os vizinhos e o contato social em geral.

O que fazer — quarentenado — durante uma pandemia? Ver filmes? Ver muitos filmes? Ver não apenas muitos filmes como especificamente os filmes que queres ver, tendo acesso a inesgotáveis bibliotecas — peer-to-peer, em especial — online? Tão óbvio quanto esquecível, isso só é possível com determinada tecnologia. Assim, Ne croyez… é o testemunho duma forma contemporânea de se consumir de arte e entretenimento.

Beauvais retrai-se radicalmente em resposta a — ou como sintoma de — uma sociedade doente. Para além da corrosão generalizada das relações interpessoais, há o preço dos aluguéis em Paris e os ataques terroristas que se sucedem na França entre 2015 e 2016. Longe de tudo, as notícias chegam a Beauvais — e a nós espectadores — com certo ar de irrealidade. Enquanto assistimos às imagens de uma vasta e eclética biblioteca cinematográfica, ouvimos-lhe comentar sobre o ataque terrorista em Nice.

Contudo, sem poder ver para crer, imersos na sedução estética dos excertos que nos sugerem outros filmes e outros mundos, torna-se difícil dimensionar o ataque referido — para os cinéfilos, existe um conforto, uma familiaridade, naquele fluxo visual.

Pensemos em Hanne e o Feriado Nacional, um dos médias-metragens que compõe o belo díptico Contes de juillet (Contos de Julho, de Guillaume Brac, 2017). Num dia vadio de verão — 14 de julho de 2016, Dia da Bastilha e data do ataque em Nice —, os jovens personagens bebem, flertam, divertem-se e fortalecem até que quebram laços de amizade.

No final, Hanne, bêbada, após brigar com a amiga por causa de homem, chora sozinha na cozinha do alojamento universitário. De repente, junto ao cair da noite e aos fogos do 14 de julho, surge o sorrateiro som do noticiário comunicando o ataque terrorista em Nice. Enquanto os personagens gozavam do ócio que dá sabor à vida, a morte dava as caras por aí. A qualquer momento, uma notícia poderá irromper inadvertidamente no cotidiano: um ataque terrorista, um novo vírus, um golpe de estado, uma invasão alienígena. Em 2 de agosto de 1914, a Alemanha declarou guerra à Rússia e Franz Kafka foi nadar, etc.

Diz a clássica metáfora que o cinema seria capaz de fazer o espectador viajar —transportá-lo-ia para outras realidades, outras peles. Beauvais, porém, compara filmes a curativos, ataduras. Assim são os cinéfilos calejados: entendem demais do riscado para conseguirem vê-lo inocentemente — ora guardiões, ora túmulos de ilusões. Para ele, os filmes, acumulando-se, funcionariam como analgésicos — um cine-narcótico, sedativo e aditivo, frente à nação convulsiva.

Não é uma lógica semelhante — a da saturação — que anestesia o peso das tragédias? Elas vão ocorrendo, sendo noticiadas e se acumulando. Beauvais abre o computador, vê a notícia do ataque terrorista, pondera que não conhece ninguém em Nice e vai dormir.

Ansiando por outra coisa, Beauvais põe-se a assistir antigos filmes da Alemanha Oriental e da URSS à procura de personagens que questionavam seu papel na sociedade, enquanto lutavam para construí-la. O compromisso comunitário: o que terá sido feito dele?

Em decorrência do isolamento autoimposto, ele confessa que pegou o costume de só ir ao supermercado uma vez a cada dois meses. Em 2019, isso soava como um exagero, indício irrefutável de que Beauvais não andava em seu melhor — o brasileiro, por sua vez, talvez se lembrasse do hábito, causado pela inflação, das “compras do mês”.

Cá estamos, entretanto, em 2020, espaçando as idas ao mercado… Terá Ne croyez… adquirido contornos — por que não — singelamente proféticos? O que vem e o que veio é muito pior e incerto, então permitam-me o ensejo para uma digressão cinematográfica ao ocaso de duas sociedades muito diferentes, embora originárias do mesmo lugar:

Há muitas formas de se fazer um filme em uma sociedade prestes a desaparecer, frente a um apocalipse particular iminente. Por exemplo, Veit Harlan fez Kolberg (1945) — o mesmo Harlan que viria a ser julgado por crimes contra a humanidade devido ao seu envolvimento na máquina de propaganda nazista. Kolberg, a última superprodução do Terceiro Reich, narra — manipulando os fatos segundo os ditames da propaganda — a resistência suicida da pequena cidade de Kolberg contra o exército napoleônico.

Imoral ao extremo, o objetivo de Kolberg era convencer os espectadores de que a Alemanha não deveria parar de lutar, mesmo que a guerra parecesse perdida, conclamando-os a perseverarem até morrer, cumprindo assim o desejo/impulso de morte — suicida — que está na base da ideologia nazifascista. Pois o horizonte nazifascista é a aniquilação, nem que seja a autoaniquilação, e daí também o fetiche sacrificial.

Goebbels mobilizou cerca de 187 mil soldados para atuarem como figurantes. E quis realizar a première em La Rochelle, das últimas bases sob controle alemão em uma França em processo de libertação, onde uma cópia do filme teria sido insolitamente jogada de paraquedas. Quando os soviéticos tomaram Kolberg, Goebbels omitiu essa informação do público, temendo que o potencial inspirador do filme fosse prejudicado pela realidade.

Harlan busca transformar a aniquilação da cidade resistindo ao invasor em algo belo — Kristina Söderbaum, embalada por sinos e canhões, acariciando loiros cabelos infantis, enquanto canta e chora a incineração da Heimat —, como se o sacrifício encontrasse sua razão de ser no espetáculo audiovisual do canhoneio e na representação do povo — uma massa magnética e acima de individualidades — como repositório da energia belicamente sexual da nação. A catarse resultante seria a maneira de seduzir o público a aderir a uma luta fadada à morte. A imoralidade no cinema poucas vezes terá ido tão longe.

Os cinemas mantiveram-se abertos até a rendição ou bem perto dela. Goebbels julgava-os essenciais, uma “necessária distração”, pois seria necessário que o povo tivesse onde desanuviar. Conforme os bombardeios iam destruindo o circuito exibidor, teatros e outros estabelecimentos eram transformados em cinemas. O Tauentzienpalast, a primeira sala a exibir Kolberg em Berlim, não terminaria a guerra de pé.

Depois do fim, depois de Kolberg, restam as ruínas. É nas ruínas, das ruínas, que surgirá o cinema da Alemanha Oriental: com narrativas de perda, culpa coletiva e reconstrução nacional como Die Mörder sind unter uns (Os Assassinos Estão Entre Nós, de Wolfgang Staudte, 1946). E o que começa em ruínas morais e concretas, terminará em ruínas simbólicas — retratos de uma sociedade estagnada e estagnante: a utopia fossilizada.

Andreas Voigt documentou, na linha de frente, o colapso do comunismo na Alemanha. Em Leipzig im Herbst (Leipzig no Outono, 1990), realizado em conjunto com Gerd Kroske, Voigt registra as manifestações de massa nos meses que antecederam a queda do Muro, o momento em que o povo vai abandonando o regime e a inépcia do Estado em reestabelecer um diálogo, um pacto de confiança e governança com os cidadãos.

A câmera de Voigt permaneceria em Leipzig nos anos seguintes, documentando a convulsão social subsequente ao fim do comunismo. Glaube, Liebe, Hoffnung (Fé, Amor, Esperança, 1994) é possivelmente o primeiro retrato cinematográfico da ressurgência da extrema-direita na Europa pós-1989. O filme deixa implícito um motivo até simples: a vida dessas pessoas é uma merda e por acaso alguém se importa com elas?

Antes, em Letztes Jahr Titanic (Ano Passado Titanic, 1991), Voigt acompanhara diversos moradores de Leipzig entre os dezembros de 1989 e 1990, ou seja, entre a queda do Muro de Berlim (09/11/89) e a reunificação da Alemanha (03/10/90). Letztes Jahr Titanic retrata um período composto por incerteza, desconfiança e esperança. O tempo parece simultaneamente suspenso e acelerado. Sobre imagens desamparadas — angustiadas, à deriva, esperando —, paira o fantasma do desemprego. O porvir lhes obsoletará, tirando-lhes a subsistência, ou lhes dará oportunidades para melhorar a qualidade de vida?

A jornalista Renate confessa seus sentimentos conflitantes: está alegre em ver renovado o seu horizonte de possibilidades, mas crê não ter futuro profissional ou social, sentindo medo e vontade de desistir. Renate havia colaborado com a Stasi (a polícia política) após ser estuprada e chantageada por um oficial. “Com um passado desses, não há futuro”, diz. Muitos pararam de cumprimentá-la. “Quando deveríamos ou poderíamos ter sido mais espertos lá atrás? O meu ideal de sociedade parecia realizável na Alemanha Oriental”.

A jovem gótica Isabel comprou uma arma após passar a ser constantemente assediada por grupos de extrema-direita. Tentam agredi-la, ameaçam cortar-lhe o cabelo ou queimá-lo. “De onde vem essa violência?”, Voigt pergunta. “De tudo o que aconteceu”, ela responde, “A merda toda. Por conta da reunificação […] As coisas estão ficando mais conservadoras […] Eu terei que me conformar, mudar o meu estilo […] usar roupas normais”.

— “Como você quer viver no futuro?”

— “Não sei. Não faço ideia. Eu tentarei seguir com a minha vida. É isso.”

Perto do final, um dos entrevistados observa que Voigt e sua equipe também ficarão desempregados com o fim da DEFA — o estúdio cinematográfico do regime comunista, o qual, sendo estatal, deixará de existir com o fim desse mesmo Estado — e recomenda-os procurar trabalho no lado ocidental: “Há muita oferta de emprego lá”, ele lhes diz e ri, entre um gole de cerveja e outro. Em seguida, corta para a fachada de um cinema. “Dicas de filme”, lê-se na vitrine — a recomendação é Crocodile Dundee II (John Cornell, 1988). Ao lado, outro cartaz: “Um filme só se torna uma experiência na sala de cinema”.

Um pouco como no mundo todo, a introdução da televisão na Alemanha Oriental provocou uma queda no número de espectadores dos cinemas. E fez diminuir o orçamento da indústria cinematográfica estatal, uma vez que, à nível de produção audiovisual, passou a sofrer a concorrência da televisão também estatal. A competição com a TV era dupla: do lado ocidental, torres de transmissão foram erguidas perto da fronteira, sendo possível sintonizar os canais do vizinho capitalista em quase todo o país — as duas regiões onde o sinal ocidental não pegava ganharam o apelido de “vale dos inocentes”.

Segundo Sabine Hake¹, o declínio no número de espectadores e de produções contribuiu para a crescente marginalização do cinema na vida cultural da Alemanha Oriental, o que transparecia em narrativas menos tradicionalmente politizadas, em contraste ao projeto pedagógico comunista/antifascista que deu origem à DEFA — sinalizando, ela conclui, um tácito reconhecimento de que o “cinema socialista” havia falhado. Por conseguinte, a DEFA desaparecerá porque o mundo a que servia e reportava deixará de existir.

Enquanto a câmera percorre a fachada do cinema, ouvimos a melodia de La Paloma, canção imortalizada na língua alemã por Hans Albers em Große Freiheit Nr. 7 (Grande Liberdade Nº 7, de Helmut Käutner, 1944) — realizada na fase final da guerra, uma obra-prima desesperada e alucinatória, sobre ilusões e frustrações, a instabilidade de promessas portuárias e a desolação decorrente das esperanças estilhaçadas pela liberdade dos outros.

Dentro do cinema, a câmera nos mostra um ambiente completamente destruído. No interior da sala, uma panorâmica revela apenas destroços. Corta e surge uma loja mais moderna. Na fachada, lê-se: “VIDEO–WORLD”. La Paloma ainda está a tocar. Segue-se um skinhead raspando a cabeça de outro — Voigt retrata skinheads de esquerda e de direita em seus filmes, o que causa confusão visual — e, ao som quase inaudível do hino nacional alemão porcamente executado, fogos-de-artifício explodindo colorido no céu.

Letztes Jahr Titanic se inicia com a imagem de um trem chegando na estação e se encerra com a imagem de um trem deixando essa mesma estação. No começo, sabemos que ele está a chegar em Leipzig. Ao final, porém, não conhecemos seu destino. Nesse ínterim, a Alemanha tornou-se novamente uma só. No último plano, a câmera está no mesmo lugar onde se encontrava no primeiro. O início e o fim mostram-nos um mesmo trilho em momentos distintos, cada qual com um trem percorrendo-o em direções opostas. Assim sendo, na nossa perspectiva, a dianteira converte-se na traseira do comboio. E, dessa maneira, a câmera passa a só ser capaz de filmar aquilo que deixa para trás.

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Letztes Jahr Titanic (Andreas Voigt, 1991)

¹ Hake, Sabine. German national cinema. London: Routledge, 2008.

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Circuitos ao vento: a solidão no fim do mundo de Kairo (2001), de Kiyoshi Kurosawa

Por Diogo Serafim

Eu me sinto sozinho às vezes. Mesmo quando rodeado por pessoas que amo, mesmo quando cercado por pessoas que eu poderia amar, mesmo quando sozinho no meu quarto pensando nas pessoas que amo ou que poderia amar. Quando afirmo que me sinto só, não tenho a intenção de estruturar um relato de mim mesmo enquanto ser solitário, mas sim da condição de solidão que se apresenta no meu espírito. A priori o que pode aparentar um simples jogo retórico é de fato uma concreta alteração analítica do problema: a solidão é uma condição maior, primária, da qual a minha consciência faz uso. A solidão me atravessa – eu estou sozinho, mas nunca sou sozinho. Vista assim, a solidão pertence ao espírito, não à consciência. Empregada essa ótica, a solidão tem pouco a ver com a propriedade de um indivíduo e tem consequentemente muito pouco a ver com o não-ser – o ser é, e sempre será, assim a solidão não é uma condição existencial, mas sim espacial. A solidão não se apresenta como não-ser, e sim como não-estar. E poucas coisas assustam tanto quanto o não-estar.

Eu me sinto só quando o que se apresenta fora da minha consciência me é apreendido como puramente externo, algo do qual eu jamais poderia fazer parte. É o solipsismo puro, o raciocínio cartesiano primário, a ontologia natural da essência humana associada à ideia de propriedade. Hegel apresenta uma solução para lidar com essa problemática: quando eu mesmo me apresento como um elemento a ser reconhecido, o ser sai da sua condição em-si rumo ao para-si. A consciência-de-si se dá quando eu mesmo sou Outro. Quando o meu último amigo no mundo sou eu mesmo.

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Michi trabalha com plantas. Estas são criadas no alto de um edifício em Tóquio, em um escritório, frequentemente cercadas por plástico. Taguchi, um colega seu, não vai ao trabalho há mais de uma semana e com isso o disquete contendo os dados que ele deveria analisar não lhe foram enviados. Michi não entende muito bem como funcionam computadores e disquetes. Ela tem uma televisão em casa, que também não sabe como funciona. Se o virtual é um mistério para ela, o material também, tendo que um dia lhe vem ao espírito uma ideia que a assusta bastante: a de que talvez seja muito fácil se suicidar.

    Ryosuke tem um computador no seu quarto. Na tela, ele vê imagens de pessoas que estão longe dele, também sozinhas nos seus respectivos quartos. As janelas no quarto de Ryosuke estão normalmente fechadas. O seu computador já é uma abertura para o mundo, assim como as suas janelas, mas aqui a questão espacial já não se põe em jogo – no virtual, o espaço é subordinado ao tempo. Ryosuke, assim como Michi, não entende muito bem como funcionam computadores.

Ryosuke, apesar de não ter muitos amigos, gosta bastante de uma estudante de computação chamada Harue. Ela se considera uma amiga de Ryosuke, ou algo próximo disso. Harue, diferentemente de Ryosuke e Michi, entende muito bem de computadores. Apesar de ter alguns amigos, ela se sente muito sozinha e é frequentemente assombrada pela vida que a circunda e os afetos que circulam à sua volta. Ela tem muito medo de morrer sozinha.

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    O fim do mundo em Kairo é a perda da relação do Eu com o mundo. Se eu não estou mais no mundo, ou se ele já não se apresenta mais como algo material para mim, o mundo chegou ao seu fim. Como poderia ele durar mais que eu, sendo que ele estava contido em mim? O apocalipse é a desapropriação epistemológica da experiência com o mundo.

Poderia a solidão ser filmada? Sim, respeitada a condição de que a câmera represente essa solidão ela própria. O dispositivo captura um estado de espírito, se apossa dele, não o descreve. A inteligência formal de Kairo está na maneira como Kurosawa estabelece a própria câmera como um elemento assombrado do filme. A decupagem faz uso da profundidade de campo, de glitches, de diferentes texturas, diferentes ângulos e composições, de variados valores de plano, sempre numa lógica de isolar os personagens dos espaços que eles ocupam. O dispositivo aprisiona esses personagens em um universo em ruínas do qual eles não podem nunca efetivamente fazer parte.

Os espaços em Kairo aparentam quase desprovidos de materialidade. Quando seus personagens fazem um percurso de ônibus, o mundo exterior sempre aparenta desarticulado das suas propriedades, em um estado de desapropriação entre duas abstrações temporais, em certa medida não pertencente ao instante em si. Esse desmembramento se reduz numa dicotomia fundamental entre o movimento e o estático, traduzida em absoluta suspensão, tanto espacial quanto temporal, da experiência. Isso se dá muito pela maneira como Kurosawa usa o digital no seu filme: o avião e a subsequente explosão no fim do filme, a poeira digital de Junko, amiga de Michi, quando esta se desintegra perante seus olhos, os espaços percorridos pelo ônibus efetivamente, tudo é estranhamente texturizado, quase virtual, desarticulado da dramaturgia e dos personagens. Kairo é um filme de pessoas que vivem em um mundo ao qual elas não podem pertencer.

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    Esse conflito entre o movimento e o estático é provavelmente fruto de um embate mais fundamental entre a tradição e a marcha do tempo, a cultura e o progresso, a identidade e a universalização, contradições que vão se estabelecendo cada vez mais claramente em Tóquio, numa lógica de otimização espaço-temporal que acaba por destituir essas propriedades das suas fenomenologias constituintes, alcançando um estágio abstrato de alienação entre o perene e o terminal.

    A construção atmosférica de Kurosawa geralmente se dá por pacientes planos gerais, de uma singular perspicácia composicional, dispondo seus elementos formais de maneira que os traços que remetem ao isolamento de seus personagens coexistam numa paleta monocromática sombria, frequentemente contrastada por elegantes jogos de luz. O diretor faz uso de linhas estruturais que deslocam os elementos centrais de cada cena, conduzindo em seguida o movimento desses elementos em um ritmo hipnótico que dão protagonismo à iconografia desoladora de horror psicológico.

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    Se muitos diretores fazem uso de exposições fugazes e esporádicas dos seus elementos de horror para não os desgastar, Kurosawa parte de uma abordagem oposta, apresentando essa iconografia como subordinada a uma temporalidade que não nos assusta num estado de euforia, mas sim nos aprisiona em um estado constante de agonia e ansiedade. Ele confronta o horror como um verdadeiro elemento a ser internalizado, não apenas um artifício de estimulação sensível. Tudo vale: a suspensão do som, a manipulação do obturador da câmera, o uso do foco e da profundidade de campo, a espacialização, a expectativa, a sugestão – nesse sentido, não seria exagero dizer que Kairo está entre os filmes mais inventivos da história.

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Em Kairo, desaparecer não significa a morte. Um fantasma é só alguém que se sente sozinho. No filme, um programa de computador simula o nosso circuito de afetos: se duas pessoas estão muito próximas, elas morrem. Se elas estão muito longe, elas se atraem. Os fantasmas tentam conversar conosco exatamente por estarem muito longe, presos em um solipsismo existencial, enquanto essa aproximação nos aprofunda progressivamente nesse mesmo solipsismo, até que nós mesmos ou morremos, ou seguimos o resto das nossas vidas sozinhos.

A grande questão é que eu próprio sigo me afastando constantemente de mim mesmo. Mas não sinto uma atração que me chame de volta para a minha fonte própria. Aproximar-me de mim mesmo, um outro muito próximo que se afasta, é um esforço ativo que deve ser exercitado – seria essa então a subversão da morte? Aceitar a si mesmo como algo a ser assimilado e não como algo espontaneamente inexorável seria a etapa final para tornar-si?

    Suicidar-se é sempre tão fácil. Principalmente quando nós estamos todos tão sozinhos, principalmente quando tirar a sua vida só concerne a você próprio. Encontrar a felicidade já não é tão simples assim. É preciso afirmar estar vivo, a vida não é uma propriedade passiva, e sim um enfrentamento ativo face às forças erosivas da existência. No fim de Kairo, a felicidade é encontrada quando o meu último amigo no mundo sou eu mesmo. Isso quando o maior medo que se pode ter é continuar sozinho mesmo após a morte.

Nada muda com a morte. Como agora, para sempre. A morte, como a solidão, não é não-ser, a morte é não-estar. Continuamos seguindo em frente, um navio solitário no meio de um oceano sem cartografia definida. Vento e plástico, água e pó, eu e vocês, nosso circuito.

Referências

Fenomenologia do Espírito – Georg Wilhelm Friedrich Hegel

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O Sertão como meio e o Sertão como fim

Por João Lucas Pedrosa

O “Apocalipse”, último livro das Sagradas Escrituras, já tornado conhecimento geral, transcreve as revelações (raiz etimológica do título) do que Deus teria guardado para o futuro dos homens. O autor João redigiu o que Jesus Cristo recebia de seu Pai em forma de visões, elementos simbólicos (“em apocalipse tudo ou quase tudo tem valor simbólico”, diz a Bíblia de Jerusalém), sem rigor com a coerência dos efeitos obtidos. O contexto histórico de autoria – pouco antes de 70 d.C. ou em 95 d.C., quando crê-se ter sido escrito[1] – é a violenta perseguição à Igreja pelo Império romano. A necessidade de elevação do ânimo dos fiéis para resistirem à repressão motivou a narrativa de punição e aniquilação dos inimigos adoradores de Satanás (e do próprio) para que, enfim, se estabelecesse a paz e a prosperidade do Reino celeste para todo o sempre.

Uma questão primordial em narrativas apocalípticas é que representação de mundo é esta. Mimesis, de Erich Auerbach, começa dissecando a que é traçada na Bíblia: em seu modelo (que chama de exegese), descrições de espaço e de tempo são sempre vagas. Abraão chega com seu filho Isaac a alguma montanha na terra de Mariá em três dias, e não importa onde ela fica exatamente nem o que se passa na cabeça dos dois nesse tempo, e sim a obediência da ordem divina. O resto é entrelinha, preenche-se no imaginário do leitor. Na representação do sacrifício por Caravaggio, não se vê olhos ou expressão facial no patriarca. A ordem é cega a todo o resto, e seu rosto sequer olha diretamente ao anjo, que precisa impedi-lo fisicamente. Da mesma forma, o mundo varrido por Deus no Apocalipse não conhece os povos ameríndios ou a dinastia chinesa pois se reduz à polarização promessa do Reino de Deus/ameaça satânica (o Império romano). Nosso mundo, na Bíblia, é unicamente campo de guerra para Deus e para o Diabo. A narrativa funciona na chave da falta, ambos de objetivo concreto e de subsistência (como não nos deixa esquecer as provisões divinas no deserto do Êxodo), e faz todo sentido, portanto, que sua verdadeira consistência esteja no plano transcendental.

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No Brasil, esse campo de guerra é representada de forma inigualável pelo Sertão nordestino, e a narrativa cinematográfica que compreende melhor a sobreposição psíquica desse mito sobre uma terra marcada pela falta é provavelmente Deus e o Diabo Na Terra do Sol (1964), de Glauber Rocha. Se o fim do mundo necessita do filtro simbólico nas Escrituras, para o filme é esse mesmo filtro sobre a subjetividade sertaneja que confere a seu povo o eterno estado de fim do mundo. O filme parte da travessia pelo deserto em busca de futuro, o movimento primordial do Êxodo. Como os israelitas no Egito, Manoel era escravizado por seu patrão – a violenta insurgência do protagonista vem ao ser por ele chicoteado -, e sua peregrinação com a esposa Rosa acontece na fuga da reprimenda que matou sua mãe. A busca dos dois é, essencialmente, por um Moisés, por um guia pelo caminho do deserto. Juntam-se ao beato Sebastião (numa mistura de Antônio Conselheiro com Padre Cícero) e depois a Corisco, o Diabo Louro. Os dois funcionam como alusões a figuras históricas que entraram para a mitologia regional, e escolhem derramar sangue até que “o Sertão vire mar e o mar vire Sertão” – em última instância, até que o dilúvio divino chegue para instaurar o Reino celeste depois de aniquilar o grande inimigo sertanejo: a sede. Antes disso, os dois morrem. O religioso pela mão de Rosa, após ele tentar purificá-la com o sangue de um bebê sacrificado nos braços de Manoel, e o cangaceiro por Antônio das Mortes (que alude, por sua vez, ao caçador de cangaceiros José Rufino, que matou Corisco na vida real). O primeiro é motivado pela metafísica e o segundo pela anarquia, mas ambos abraçam a lógica da arbitrariedade idealista, que no plano terrestre se converte em tiros ao céu (como o fim de Paulo Martins em Terra em Transe, Glauber e seus mártires do vazio). Manoel e Rosa terminam ainda correndo a esmo. Ela cai no meio do caminho e ele continua correndo pelo cascalho até chegar numa estrada. Um insert do mar ao som de Villa Lobos fecha o filme como uma meta inatingível, como o petisco pendurado na frente de um cachorro na esteira, e que mantém o nordeste brasileiro afundado em sua miséria alienada.

Como uma das obras que anteciparam um vazio ideológico e político que se estenderia à esquerda intelectual urbana após o Golpe de 1964, o filme estende a expressão da crise de sentido ao uso da linguagem cinematográfica. Essa mesma crise se transforma em quebras de eixo, jumpcuts, métodos contrastantes de direção de atores (Corisco quebra a quarta parede e atua para ela como um personagem brechtiano; Manoel está preso à diegese e à atuação naturalista, sofrendo os impactos mentais de seu entorno), letra da trilha sonora em diálogo com os diálogos proferidos pelas personagens. A quebra de códigos de uma representação de mundo fechada e de referenciais bem definidos (Auerbach chama de diegese, usando a Odisseia como contraponto à Bíblia) cria esse desnorteamento sensorial para expressar o conflito do sistema de signos que move a psiquê nordestina comum. O Sertão em Deus e o Diabo, como lembra Ivana Bentes, opera como espaço do imaginário, não do concreto. É possível, portanto, que nele Canudos e o cangaço se sobreponham temporalmente, pois nele opera o sempre eterno, o tempo de Deus. Na cena final, Corisco é emboscado por Antônio das Mortes ao som da trilha de Sérgio Ricardo. Ele pula para trás em sobressalto, gesto repetido três vezes e ampliado em três diferentes ângulos. O caçador dá três tiros pausados para a frente, e um plano afastado mostra Corisco girando ao invés de cair morto. Ele para, solta sua peixeira, e logo antes de começar a cair, grita – num brado que interrompe a trilha sonora – “mais forte são os poderes do povo!” e um jump cut corta sua queda pelo meio para ele direto já caído no chão. O brado segue em sua duração original, ecoando depois da queda, e só então a música volta. Cristino Gomes da Silva Cleto morreu, mas Corisco jamais. Ele pula, gira e ecoa para sempre. O Sertão, para Glauber, tem o funcionamento da metafísica subjetivista bíblica, onde a terra é zona de conflito para deidades históricas, e onde o homem é nada mais que sujeito paciente de um mundo que não lhe pertence.

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As intervenções musicais no filme quase sempre narram musicalmente momentos de importância, nunca em reiteração das ações exibidas, mas como consumador do tom fantástico, epopeico da narrativa. Pois o que vemos à nossa frente é o desenrolar de um cordel, com direito a moral da história. Durante a corrida final do casal, o cordelista conclui:

Tá contada a minha história
verdade e imaginação
Espero que o Sinhô
tenha tirado uma lição
Que, assim mal dividido,
esse mundo anda errado
Que a terra é do hômi
não é de Deus nem do Diabo!

E enquanto isso não fosse compreendido, o Sertão seria para sempre apocalipse.

* * *

            A obra que aparece como atualização definitiva da relação entre o sertanejo e o apocalipse é Bacurau, de Kléber Mendonça Filho e de Juliano Dornelles. O filme se aproxima de Deus e o Diabo acima de tudo pela oposição perspectiva, como já anuncia a primeira imagem dos créditos iniciais: enquanto Glauber escolhe começar no chão, de cara com o limite, os autores escolhem o céu, dirigindo-se ao infinito. A narrativa de Glauber é a da urgência de voltar-se à terra, de abandonar a transcendência e apropriar-se sobre o concreto. Mendonça Filho e Dornelles, por sua vez, compreendem que a mitologia anda de mãos dadas com a política, e que não pode ser abandonada ou destruída, mas pode e deve ser reconfigurada. Se, nessa escolha inicial, os autores criam o contraste inverso da abertura inicial de Glauber (constelações brancas no preto sideral ao invés dos mato desidratado cinza escuro sobre o branco da terra seca), é porque o projeto de Bacurau é a formulação de uma utopia nordestina.

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            O uso dos créditos iniciais é mais recentemente reconhecido como recurso nostálgico de referência ao cinema de cerca de 30 anos atrás, antes do hábito entrar em desuso. Eles também são ornados por uma canção sessentista, Não Identificado, na voz de Gal Costa. O uso das canções é igualmente relevante aqui, menos na intenção de inventar uma percepção nordestina quintessencial, e mais fazendo referência a uma política de estilo:

Eu vou fazer um iê-iê-iê romântico
Um anti-computador sentimental
(…)
Para gravar num disco voador
Eu vou fazer uma canção de amor
Como um objeto não identificado

            Em 1968, começou o movimento tropicalista do qual a canção faz parte. O projeto retomava nas sete artes o princípio antropofágico do modernismo dos anos 1920 numa nova busca da essência brasileira. O resultado digestivo misturaria, além das três culturas que constituem a miscigenação do povo brasileiro, também esse saldo com a pop art e com a cultura de massa hegemônica.. Um iê-iê-iê como dos Beatles, mas nordestino. Que possa voar para o espaço, chegar em outros planetas. Bacurau se apropria de códigos típicos do gênero apocalíptico estadunidense para fazer um filme que converse com a própria massa e também com o planeta que o invade. Após 55 anos de Deus e o Diabo, Dornelles e Mendonça Filho compreendem os erros da primeira fase cinemanovista e os mecanismos da indústria estadunidense, que ainda toma conta do mundo. Não é uma meta trazer à massa a “consciência de sua miséria”, isso já é dado comprovado e reiterado e esvaziado e, não obstante, ainda vivido. Tampouco é diagnosticar a religião e o povo como alienado (traço mal envelhecido no cinema novo). Trata-se de um chamado energizante à luta, erguido pela reapropriação de estruturas narrativas que constituíram ao longo dos anos a mitologia cinematográfica de sustento imperialista.

A trama é simples: o pequeno povoado interiorano de Bacurau, após a morte de sua matriarca, começa a sumir dos mapas virtuais e a ser atacada por um grupo de estadunidenses, europeus e brasileiros sudestinos abastados e armados até os dentes, decididos a exterminá-lo por esporte. Aqui, é retomado o estilo bíblico de narrativa apocalíptica pela ignorância do entorno. O mundo é Bacurau: Não Identificado continua tocando após o fim dos créditos iniciais, e uma pan para a esquerda revela a Terra. Após cruzado por um satélite, o enquadramento se aproxima do nordeste brasileiro até a imagem fundir-se, por um segundo, com o close de Teresa (Bárbara Colen) adormecida e um plano de um céu alaranjado. Então o amálgama dá lugar ao take aéreo de um caminhão de carregamento seguindo em direção à cidade. Se Bacurau é o mundo, os alienígenas são os de fora da cidade, e não à toa os caçadores usam drones em forma de disco voador para vigiar os nativos que lhes são presa. A alienação não mais vem do comportamento do povo, mas é consequência da privação de recursos que o vulnerabiliza e o invisibiliza, e é essa condição mesma que estabelece Bacurau como centro do próprio universo – e que, em última instância, sustenta a associação não nativo/alienígena.

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Essa construção metonímica de mundo é feita de forma involuntária (ou não) há dezenas de anos por narrativas de invasão alienígena no cinema norte americano, iniciadas em tramas-reflexo de conflitos políticos tornados pavores comuns, como o belicismo exponencial em O Dia Em Que A Terra Parou (Robert Wise, 1951), a ameaça comunista em Vampiros de Almas (Don Siegel, 1955), um inimigo maior que a bomba atômica em A Guerra dos Mundos (Byron Haskin, 1953). Entre muitos ecos contemporâneos, algumas particularmente bem sucedidas são narrativas de salvadores norte americanos, como Independence Day (Roland Emmerich, 1996),  – onde o contra-ataque aos alienígenas tem êxito em 4 de julho, pareando a celebração da libertação global à da independência estadunidense -, e na franquia Os Vingadores. Seus heróis são à moda americana, mesmo que não nativos dos EUA ou da Terra, pois operam em prol do status quo americano, portando um irônico domínio inato da língua inglesa. Quando perdem a batalha contra um alienígena portador de uma arma de destruição em massa, metade do Universo é dissolvido. No filme seguinte, eles se apropriam da arma e restituem boa parte do que foi perdido. O arco dos Vingadores é o arco do destino universal, eis o poderio por eles detido. O desenho dessa importância não é menos megalomaníaco que o monopólio concreto da franquia – ou dos demais filmes da Disney – sobre as exibidoras ao redor do mundo, esmagando cinemas nacionais (situação, no Brasil, agravada pelo governo bolsonarista que destrói o que pode do horizonte de produção cultural brasileira). Em Bacurau, os opostos bom/mau, alienado/alienígena, poder em massa/poder regional são reflexo de e referência a esse contexto.

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            O risco de extermínio iminente e a urgência do contra-ataque é onde se aplica o aprendizado de Deus e o Diabo, pois a narrativa parte de um conflito concreto. Há uma mudança essencial, entretanto, no olhar sobre o misticismo, saldo dos 55 anos de evolução antropo e sociológica que separam os dois filmes, e está em sua função de empoderamento e de parte do paradigma que constitui a representação de mundo. No primeiro plano, como comentado, há uma fusão simultânea do take espacial com um close de Teresa adormecida e um plano de um céu alaranjado – o de Bacurau. Entrar na cidade envolve a entrada numa sorte de transe, traço em diálogo com o trabalho fotográfico de Pedro Sotero no qual os focos de luz dissolvem os traços onde batem com força, e garantem na figuração uma presença do abstrato. Assim que Teresa vê Damiano (Carlos Francisco) em sua chegada, antes de cumprimentá-la, ele a manda abrir a boca e receber um comprimido. Sua boca o recebe em plano detalhe, como uma sorte de hóstia. Mais à frente, descobriremos ser esse comprimido um psicotrópico, dado a todos os residentes – homem, mulher, idoso, criança – antes da batalha final, que será vencida pelos residentes. Bacurau é uma terra mística, e nela o transe não aliena, mas finca em si os pés do povo, garantindo vigor na luta e sua posição de agente da própria história. A transcendência, como a alienação no filme, dualmente isola e empodera.

            Acima de tudo, Bacurau é uma obra do contemporâneo. Como tal, se passa num tempo futuro também indefinido, “daqui a alguns anos…”. O contemporâneo globalizado opera numa sorte de amálgama de tempos e de referências concretas de momentos históricos diversos, em que jovens trajados teen à la 1990 escutam discos sessentistas de vinil enquanto usam celulares touch screen. É nesse tipo de contradição que Bacurau opera, trazendo a secular questão da pobreza a um olhar específico do gênero setentista/oitentista, e fazendo ferramentas de ação tanto de tecnologias recentes quanto de antiguidades. O museu de Bacurau aparece como elemento ignorado (os sudestinos, quando passam pela cidade, não fazem questão de visitá-lo) até o momento do embate, quando um dos assassinos, à procura de vítimas, percebe que uma ala destinada a armas antigas contém apenas os selos nas paredes: os cidadãos estão armados. E aí a história vira instrumento de luta, vira via de sobrevivência; o mesmo tratamento tem a educação, que faz, da escola, uma trincheira durante o tiroteio. Na limpeza do sangue dos inimigos no museu, a responsável manda deixar as manchas nas paredes: “Quero que fique assim, exatamente do jeito que tá.”. Nesse jogo de passado e futuro, o presente vira uma feitura consciente da História.

A noção de amálgama, além do de signos geracionais, se aplica a Bacurau em muitas formas, uma outra principal a de atores, à medida que rostos já conhecidos pelo audiovisual brasileiro e mundial se confundem com os dos nativos da cidade da Barra (RN), onde o filme foi produzido. São feitos closes nos rostos familiares como nos anônimos à indústria, e os planos conjuntos e panorâmicas homogeneízam o elenco: em Bacurau não há protagonista. Faz parte da utopia que o herói seja uma massa coletiva e consciente. Uma massa plural, composta por médica, professor, puta, lavrador, matador, fugitivo. E, na sua história, são todos salvadores.

Bacurau é, em última instância, um filme que não existiria sem Deus e o Diabo na Terra do Sol, nem sem o cinema de gênero estadunidense, e nenhum deles existiria sem a Bíblia. O Apocalipse, no fim das contas, é uma narrativa de crise em torno de uma meta para o mundo, podendo ser tanto um encerramento quanto uma possibilidade. No contexto de lançamento, Bacurau é a prova de que o Brasil ainda é capaz de fazer algo que o brasileiro comum havia esquecido que podia: retomar uma mitologia que seu povo e que o resto do mundo possam venerar.

[1] Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Editora Paulus, 1998, p. 2139.

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Há um olho que me observa

Por Felipe Leal

Instigados pelo ruído grandioso, temático, que certas palavras podem suscitar a despeito de seus tamanhos ou complexidades consoantes, seríamos tentados a esquadrinhar o apocalipse sobre as mesas já demasiadamente iluminadas, ora do evento religioso, ora dos interesses filosóficos: ele é, afinal, sempre “O” apocalipse, a derradeira despessoalização; e é também, à sua maneira, um dos poucos termos limítrofes do sujeito pensante enquanto pessoalidade, humanidade de qualquer pensamento. Enquanto cá residirmos para pensar o mundo, este seguramente existe, existe ao menos enquanto algo a se pensar. Entretanto, ele continuaria a existir, uma vez que não houvesse ninguém para concebê-lo? Sedimenta-se um nó – algo emperra e impede que a ideia de fim consiga conceber o próprio fim, restando-nos dois gérmens de ‘antes’ e ‘depois’. Pensar um fim final, ao que até aqui parece, é, de imediato, unir-se à pergunta do quando. Notemo-lo bem: o apocalipse é da ordem de um tempo específico tanto quanto trata de um modo específico de vida em deterioração; ele precisa da extremidade que aquilo de já estanque pode atingir.

Praticamente todo filme apocalíptico é grande dependente de um estado de exceção em que o doméstico se dissolve e, no externo, é preciso atuar em dedicação delicadamente conjunta, em definitivo e contra ou a favor de uma articulada fonte de poder. As narrativas planejam que sempre restará alguém para preservar, ou ainda, alguém que poderá multiplicar e povoar de novo, ou que sempre, e mesmo que a contragosto, um indivíduo específico poderá evitar qualquer (outro) apocalipse (realmente final) de uma catástrofe já eminente, presente, por algo de único que só ele detém. E nós que não somos o acontecimento vivemos num curioso empecilho onde o único tecido que pode nos lembrar e nos fazer durar (isso que se chama história) convoca, dos enlaces produzidos, aquele de um tênue custo ético, tão mais comprimido quanto maior nos ameaçar uma aniquilação. À pergunta, portanto, sobre se seria possível filmar um apocalipse doméstico, mas, mais que isto, um fim de toda a possibilidade de intercalar ou separar, um cineasta respondeu com uma paixão das mais afetadas e com um comedimento material dos mais notáveis.

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Pois se há marco temporal e ético na historiografia da própria história, assim como deve haver um para o cinema, em que a invasão dos corpos mais mundanos – individuais e quaisquer – faz do filme uma artimanha elaborada de des-identificação, é com o mesmo rigor de desinteresses auto-impostos pelo objeto fixo, catalogável ou escrito, historicizável enfim, que Tsai Ming-Liang construirá O Buraco (Dong, 1998). Um mundo está em colapso, decerto, mas a elementaridade virtual cultivada “por detrás” da quarentena, da escassez de apoio de saúde e da moléstia que a televisão comunica para a Taiwan-povo sem qualquer drama além do comunicado informativo, esse componente dorsal que faz do filme um filme “de…”, “sobre…” ou “ao redor de…” é extinguido através do caractere biológico. Em sua realidade mais íntima e constitutiva, o corpo é passível de contaminação, infiltração, reação: ele não é isolado, ainda que tudo se construa para que ele se separe. Os personagens, pois, funcionam apenas sob a estimativa das necessidades e funções; não possuem nomes, psicológicos ou profundidades delineadas, aquele homem e aquela mulher unidos por um vazamento e alargados por um buraco. Do lado de baixo, acumulam-se papel higiênico e a quantidade de panos necessária para conter o vazamento de cima, e o locatário de lá já se encontra a consumir os produtos do próprio mercado enquanto assiste ao aumento do buraco.

Mais do que a apocalíptica experiência do mundo enquanto labuta canina ou de assassínios, mais do que a escassez cujas narratividades “do fim” pintam pelo pontapé da animalização permitida e não-vigiada, o que eles vivem é o aglomerado de profusões voltadas à faceta microscópica e solitária do cotidiano, e, ademais, paradoxalmente, já que dos vizinhos às necessidades trabalhistas tudo está literalmente a enlouquecer ou estourar. Janelas, corredores, portas, dobradiças, resistências, materiais, vizinhanças, isolamentos, edifícios: toda a escancarada e predeterminante geografia de nosso isolamento, e, por conseguinte, de qualquer relação com um “fora”, volta-se para si mesma até que o caráter pânico e aquele cenográfico estejam imiscuídos. É somente quando o inseticida lhe vem como uma rajada imprevista, do apartamento de baixo até o olho, como um gêiser punitivo, que ele se percebe voyeur e imprensado por meio do concreto em cima daquela mulher. A trama do que nos é permitido enxergar e do que é legítimo que o outro (me) veja rui como os farelos de poeira daquele pequeno círculo encanado. Pouco parece importar, para a tragicomédia musical de Tsai, se haverá alguém para perpetuar alguma história nossa, se teremos morrido pelo malefício mutante de um ser natural ou pela punitiva temporalidade divina.

Mas que reste uma Grace Chang para nos transitar por certo acalento através de canções, que por algum lugar a vidraçaria do realismo e o cristalino do verdadeiro possam se desfrutar na dança despreocupadamente rigorosa, ressuscitada, de um outro tempo que já é também um outro vivível, permitindo a um corpo tido como efetivamente comum, o corpo da imagem, que a coisa guardada como a lembramos possibilite uma existência tanto quanto a maneira pela qual ela deve ter acontecido por norma – isso, é indubitável, importa. Tsai o mantém, literalmente, para todos os propósitos, e assim o assinou ao término da última imagem. Toda a complexidade de tal desejo de endereçamento, aliás, pode ser dita de dois modos simultâneos: a) o apocalipse lhe acontece desde já, e o que resta é selecionar, preservar e exibir aos outros apaixonados todas aquelas figuras, como num álbum passado entre mãos; b) se aquilo com que podemos devanear é somente o termo apocalíptico do acontecimento em si, é dentro do campo do “como ele poderia vir a acontecer, acontecendo” que nos cabe estar restringidos. Um filme musical, um filme endereçado explicitamente aos seus fundos de endereço, e que ele retoma retomando a parte do cinema concernida com os buracos, entrevisões e vazantes: a cinefilia.

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A rigor, tudo acontece num primeiríssimo plano de desimportância representada, o encanador, a descoberta do vazamento e o diálogo enfadonho à porta imantados por uma persistente falta de corte, por uma banalidade, como se um buraco qualquer por algum motivo nos tivesse sido aberto bem no teto, até que algo de uma inteireza também mágica é posto incessantemente ali, junto a tudo o que acontece, e um véu incontornável recai sobre uma amplitude diegética cuja única preocupação sempre será, com efeito, que se resolva o vazamento num apartamento taiwanês na virada do milênio dois mil.

Seria o apocalipse para Tsai uma paulatina não-distinção entre som, imagem, sonho, pele? Porque nunca custará lembrar do eminente e único dado informativo do filme: durante noventa e cinco minutos e unido do crescente e cômico desinteresse do liame jornalístico diante da solubilidade da crise biológica, a chuva é intermitente, a única sonora certeza. Ela é, em uma medida tão desvairada quanto concebível, até mesmo mais crucial que os próprios personagens. O aguadeiro não somente infiltra e descasca os papéis de parede dos apartamentos, não fica restrito ao aumento da umidade como símbolo do contágio afetivo nem tampouco está encerrado na forma de anúncio barrista de um fora em catástrofe. Aquela chuva, a água do elemento majoritário da terra e da composição química dos corpos ultrapassa sua qualidade retratista (de sublinhar um ambiente ora coletivo demais, ora pessoal e abstrato) quando o assunto que ela implica atinge uma mistura, uma intensidade “contaminante” e empírica além, aquém e concomitante ao filme precisamente pela constância desastrosa do empirismo em que ela outrora nos relançaria (a melancolia, o intolerável, a anulação). Pedra de Sísifo, barata kafkiana, praga bíblica, neblina mágica.

Em outras palavras, e no que diz respeito ao cênico, num termo em que a espacialidade da malha sonora possa vir a ser termo para todos, o mote epidêmico/apocalíptico, torcendo a teatralidade do personagem, ao invés de multiplicar, “universalizar”, opta por reduzir, não sendo jamais entre si que eles terão de se relacionar, já que não se trata de fabular um enamoramento pelo lampejo da tradição musical entrecortando cenas, mas com o espaço que os torna alguém um para o outro. Sofisticar e apaziguar, entranhar (sedimentar) e simplificar participam milagrosamente de um mesmo ato conjunto. A possessão repentina dos planos com um certo brilho cinemático toma dessa aclimatação do olho e de sua membrana próxima à habituação o elemento que, no cinema, mais confunde os olhos com certa extra-ordinariedade: que uma vida qualquer esteja à altura da ímpar vida que ela, para todos os efeitos, não poderia ser. Na sucessão dos dias, a mulher degusta o quinto ou sexto macarrão instantâneo – já não sabemos se a água está ou não contaminada, se certo nível de fervura a torna limpa da bactéria ou não, e pouco importa – num improvisado de assento tão esmagado pelo acúmulo de provisões e pelo acúmulo de restrições daquele estilo de apartamentos, que basta uma explícita penumbra ensaiada pelo estado refletor da água para que em seu isolamento subsista uma pose estatuesca de Elizabeth Taylor ou Cyd Charisse.

Tão contaminadas de anglicismos como se perfilavam as canções populares de jazz retidas em Grace Chang setenta anos atrás (Shidaiqu, musicalidade híbrida chinesa/jazz e próxima à outra virada de século), também o fator encantatório de tal sonoridade imagética se infiltra assumindo certo esmagamento improdutivo, ensaiado, finito. Aquela meia dúzia de esquetes musicais vem a nos parecer menos uma homenagem do que o encontro de um consolo pela composição; e ele é barato pela sua qualidade eficaz de fosforescência, pela especificidade de sua consumação. Não poderia sê-lo de outra maneira: aquele casal unido e dessegmentado por um buraco acha, no tecido para o qual o narrativo mostra as dobradiças de sua intenção, uma possibilidade de invasão e de sobrevivência cada vez mais ativa. Eles precisam sobreviver, eles são levados ao consolo sonhado pelo cúmulo de uma brecha. As separações do mundo binomial se dissolvem, como se umedecidas. No penúltimo prenúncio a esquete de Gesundheit!, ela espirra, mergulhada numa banheira em forma quase plenamente anfíbia, e a música que segue não é menos que uma literalidade de espirros compondo versos sobre o teor alergênico da vida amorosa, enquanto que a última dança do casal já rodopia artificialmente, ambos cravados num círculo minúsculo de baile, à maneira das caixas de música com bailarinas eternalizadas. O grau protético desse sonho infiltrado no decorrer dos dias (espécie de daydreaming) é a doença definitiva do mundo biológico que jaz sob o núcleo celeste econômico.

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Pois que ele pode não ter sequer mais um cliente restando para manter o negócio numa pequena mercearia, mas é ainda mais grave que sua antiga clientela e seus habitués tenham vivido a mutação completa e suficiente para torná-los organismos exemplares do mundo regido pelas máquinas: a epidemia bem sabe dançar pela transmissividade da água e pela retração de um espaço possível à humanização, e todos em breve, eles inclusos, serão ratos, baratas, animais de gaiola e sígnicos do laboratorial na experimentação. A diferença é que o buraco lhes proporciona a alternância de lugares.

Um buraco… o que é? Ele é o dado de uma brecha. Mas, no fim dos tempos, nessa exceção chamada ‘agora’, a doutrina das transparências joga “sozinha”, ainda que ao olho da câmera; o avesso por baixo de seu significado basicamente formal, o de ser estando esburacado, assumido ao mesmo tempo em que desvelado, numa transfiguração urgente e dosada vai tornando a fissura um poder de fazer participarem aqueles indivíduos de uma quantidade maior de visões, outrora suficientes à exclusividade vigiada de uma partilha. Ela telefona ao vizinho para lhe dizer de “um olho que a observa”, e o trabalho de destituição do metafórico quase nos leva a crer que ele é de fato simples. Ora, todo o cinema de Tsai jamais se deparou com um problema em assumir uma lógica da contaminação. Se a artificialidade dos números musicais nos aparece como algo que, no mínimo e ao máximo, une as canções amorosas melodramáticas ao prosaísmo de um extintor de incêndio ou de um espirro, a montagem bem soube se utilizar dessa irrupção cenográfica, típica da fortuna mágica musical. Ter outros acessos por visibilidades, neste caso, significa então simular por colagens, acrescentar gestos, realçar a determinação de efeitos.

Eles copiam os trejeitos com que a era de ouro da sonorização espetacular formulou amores dignos das simulações de romances pistoleiros, e não com menor labor o encadeamento coreográfico à miséria sanitária se adapta (re-produz) à simplicidade do ambiente para o qual a quarentena é antes habitat que exceção. Mais que uma vazante, esse buraco significa que a potência material de um atravessar se nos relaciona através de um transbordamento da visão: ver é ver sendo usado.

Cada episódio cantado acrescenta à seriedade diegética uma indiscernibilidade entre o que o passado pode recriar e o que a atualidade precisa fazer ressurgir, inventando. As interrupções não são mais fugas. Não são sequer interditos. Não acrescentam. Consolam, lembremos, e portanto não podem participar de um regime de veracidade, distorção, confusão ou apagamento, já que o consolo ameniza, desvia, reduz, sem por isso deixar de ser válido, eficaz, verossímil. Não é por acaso que o recurso televisivo é amputado até que só reste som, “informação” inútil, ou que o papel de higienização se transfigure de um amontoado de precauções até o comando disfuncional de uma sexualidade higienizada.

Se já não nos coabita um apocalíptico imaginado através de Tsai, com que suavidade ele não repousa nesses tempos distendidos por um ator que interpreta sempre o mesmo ninguém, tão alheio à própria caminhada à morte epidêmica que lhe sustém mais alimentar um gato com as mesmas latas de ração, mais chorar pelo buraco do que pelo lamentável enlouquecimento de seus semelhantes? Com que mecanismo simultâneo de espanto e deslumbramento se concebe, senão pelo impossível olho, que um carteado de canções de uma caricata estrela popular estaria à altura da sobrevivência com que um vizinho pode estender a uma mulher afogada um copo com água? São perguntas que só esse cinema conseguiu desvendar, porque só ele as propôs. A chuva, a grande pergunta da abundância da água. Ela chora copiosamente, mesmo quando o quarto já se encontra em vias de inundação. O apocalipse é essa brecha de uma dúvida desnecessária tornada lastro. Grandiloquente “e se…

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Godzilla ontem e hoje

Por Flavio C. von Sperling

Seria frágil uma análise de Godzilla (Gojira, 1954, Ishirô Honda) que não levasse em conta o contexto de sua recepção no Japão. A fita foi lançada apenas nove anos depois das explosões nucleares de Hiroshima e Nagasaki e do bombardeio de Tóquio em março de 1945 – que destruiu quase metade da cidade, ceifou mais de 100 mil vidas japonesas e alijou milhões de suas casas, apenas dois anos após o fim da ocupação estadunidense no Japão, marcada por estupros e pilhagens, e em pleno preamar dos testes nucleares no Pacífico. Em março de 1954, o barco pesqueiro Lucky Dragon N. 5 foi atingido por poeira radioativa resultante da detonação da bomba estadunidense Castle Bravo, à época a mais potente explosão causada por seres humanos (um erro de cálculo previa 6 megatoneladas, a explosão liberou 15). Toda a tripulação foi contaminada e os atuns pescados chegaram aos mercados de Tóquio. Os Estados Unidos, embora negassem os riscos de consumo destes peixes, suspenderam as importações de atuns japoneses. Concluiu-se que mais de 800 outras embarcações japonesas foram expostas à radiação da explosão e, entre março e dezembro de 1954, as autoridades destruíram dezenas de toneladas de peixes radioativos. É neste contexto apocalíptico que o filme foi lançado em outubro de 1954, um mês após a morte do operador de rádio do Lucky Dragon N. 5, e sua primeira cena faz alusão explícita ao incidente (que seria referenciado em dezenas de outros filmes, e é acontecimento central em pelo menos dois – Daigo Fukuryu-Maru, 1959, de Kaneto Shindô, e O monstro da bomba H, 1958, de Ishirô Honda). Em Godzilla, fatores extra e intra-fílmicos se emaranham de tal maneira que se tornam indissociáveis.

A década de 1950, considerada a era de ouro da ficção científica no cinema, já havia visto o medo e a angústia atômica nas telas, ora de maneira metafórica, ora literal. Embora inspirado em alguns filmes estadunidenses, especialmente O monstro do mar (The beast from 20,000 fathoms, 1953, de Eugène Lourié), Godzilla carrega uma pungência única no cinema.

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Godzilla, encarnação do apocalipse nuclear que para o Japão parecia iminente – se não em curso constante -, transcende a metáfora, e torna-se também símbolo de uma identidade nacional retalhada. O público ainda marcado pela guerra viu-se na pele do monstro, uma pele que, como a de muitos espectadores ali, carrega cicatrizes, queimaduras, deformidades advindas da violência nuclear. Godzilla, ao mesmo tempo em que amedronta, é passível de empatia. Essa ambivalência, esse caráter dual de vítima e algoz, que é da própria ontologia dos monstros, encontra sua potência máxima em Godzilla, talvez comparável apenas ao monstro de Frankenstein, e está impressa inclusive no seu rugido metálico, carregado de dor e raiva. O rugido do monstro, manifestação sonora de um páthos rudimentar, só é menos aterrorizante que seu silêncio, o de uma força descomunal, impassível, inconsciente da destruição que causa. São numerosos os relatos que fazem menção ao silêncio sepulcral que sucede o estouro de uma bomba atômica.

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Godzilla é o mais sombrio dos filmes de ficção científica. Apesar do filme ter seu arcabouço baseado na fantasia e de sua implausibilidade científica (tanto do monstro quanto da arma que o elimina), caros ao gênero, Shindô, veterano da Segunda Guerra, imprime na forma do filme um realismo quase documental, praticamente sem paralelo no gênero até então, distanciando-o de seus contemporâneos estadunidenses e aproximando-o de filmes como Hiroshima (1953, Hideo Sekigawa) e documentários de guerra. As cenas noturnas de destruição parecem filmadas in loco na noite de 9 de março de 1945 – a noite do famigerado bombardeio de Tóquio. As cenas de hospital de Godzilla e, por exemplo, do assustadoramente realista Catástrofe nuclear (Threads, 1984, de Mick Jackson), são mais próximas do que a distância de três décadas entre elas poderia sugerir. Há relatos de que, durante a cena na qual Godzilla destrói o Toho Theater, parte dos espectadores presentes no cinema real tentou fugir da sala, o que nos lembra a anedota do público amedrontado pela vinda do trem dos Lumière, quando o cinema ainda era coisa nova.

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Godzilla é permeado por diversas relações de dualidade, desde a já mencionada ambivalência fulcral do monstro, até a de um Japão tradicional e um Japão moderno, encarnada no dilema de Emiko entre o casamento arranjado com Dr. Serizawa e sua paixão por Ogata. Uma das dualidades mais marcantes do filme é apresentada nas diferenças entre Dr. Serizawa e Dr. Yamane. Este, paleontólogo, representa uma aproximação mais humanista da ciência. Dr. Yamane insiste que Godzilla não deve ser exterminado, mas estudado a fim de mitigar os efeitos oriundos da atividade nuclear. Na última cena do filme, é ele quem nos diz que, caso os testes nucleares não sejam interrompidos, em breve outro Godzilla surgirá, nos admoestando num final típico das cautionary tales – narrativas que nos servem de alerta ou reprimenda. Dr. Serizawa, uma encarnação do trauma da guerra, considera-se mais monstruoso que Godzilla, uma vez que ele criou uma arma que, em mãos erradas, seguramente seria usada para destruição em massa. Serizawa, veterano da guerra, mutilado, com um olho arrancado pela invenção de algum outro cientista, recusa-se veementemente a utilizar o Destruidor de Oxigênio contra Godzilla. No entanto, após ver o rastro de destruição deixado pelo monstro e um coral de garotas cantando em luto na televisão, ele decide destruir sua pesquisa e utilizar o Destruidor de Oxigênio apenas uma vez, para por fim às agruras sofridas pelo seu povo. A cena do coral, das mais poderosas do filme, é uma quase mística evocação de um espírito coletivo japonês que marca o ponto de virada para Dr. Serizawa, a personagem humana mais emblemática de toda a franquia. Serizawa sabe que ele deve morrer junto com sua criação. É seu dever moral sacrificar-se e levar seu conhecimento de potencial destrutivo para o túmulo. Nos filmes de ficção científica, é comum os cientistas morrerem vítimas de sua própria criação, mas o suicídio determinado de Serizawa destaca-se entre os filmes da época.  Em The phantom from 10,000 leagues (1955, de Dan Milner), por exemplo, o cientista mergulha no mar a fim de destruir a arma que criara (numa cena possivelmente inspirada no final de Godzilla) e acaba morto, mas não por algum gesto suicida. O monstro ressurge e o agarra, impedindo-o de fugir da explosão – monstrum ex machina. É possível, nesta comparação, identificar traços culturais diferentes entre os Estados Unidos e o Japão que se evidenciam nestes filmes.

Embora o monstro seja derrotado e haja algum alívio momentâneo, não há nenhum clima de vitória no final de Godzilla. Não há celebração, ao contrário da maioria dos filmes de ficção científica estadunidenses da época. A necessária morte de Godzilla é também a morte de uma vítima, e os testes nucleares, souvenirs da tara bélica americana, continuam acontecendo ali naquele mesmo mar onde estão as personagens.

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Esta ambivalência vítima x algoz de Godzilla praticamente se perde nos demais filmes da franquia, nos quais, a cada um deles, o monstro oscila mais próximo dos extremos desse espectro – embora na maior parte dos filmes ele seja tido como um herói nacional, protetor do Japão, uma figura quase paternal (algo que permanece até hoje na figura de Godzilla como ícone da cultura popular japonesa). Gosto de pensar que estes filmes (1955-2004) formam uma espécie de necrológio em painel do monstro original de 1954, onde a cada hora ele é evocado de uma forma diferente, destacando diferentes características suas.

Em Shin Godzilla (2016, Hideaki Anno e Shinji Higuchi), contudo, há uma forte reaproximação do monstro com sua versão original. É o único dos filmes, depois do primeiro, no qual o Japão ainda não conhece Godzilla, o que faz do filme mais uma refeitura do original do que realmente uma sequência.

Shin Godzilla tem o mesmo tom austero do primeiro filme e resgata vários atributos dele. Após décadas, Godzilla aparece aqui sozinho novamente, sem os demais monstros que povoavam as telas em quase todos os filmes depois de 1955 (a única exceção sendo O retorno de Godzilla, de 1984, pensado como uma continuação do filme de 1954). O realismo do primeiro Godzilla também volta e é marcante o uso de diferentes dispositivos e meios de intermediação de imagens empregados (celulares, câmeras de segurança, computadores, etc). Aqui temos de volta a ”câmera à altura do homem”, enquanto os demais filmes (exceto o primeiro) privilegiavam a “câmera à altura do monstro”.

O trauma coletivo do tsunami de 2011 e do acidente nuclear de Fukushima se soma às feridas ainda abertas da Segunda Guerra e à dominação estadunidense que se articula de outra maneira, muda de forma, mas se perpetua sobre o Japão. “O Japão do pós-guerra é um estado tributário”, comenta uma personagem. “O pós-guerra se estende para sempre”, arremata outra. Pouco mudou no estado de espírito do povo japonês desde o contexto do primeiro filme para Shin Godzilla.

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O filme apresenta uma espécie de protagonismo em painel. É o coletivo e o processo de cooperação que fazem às vezes de protagonista. Após o surgimento do monstro, o poder público é incapaz de oferecer resposta imediata. Não se sabe qual é o departamento responsável pelo inédito aparecimento de um monstro. Especialistas são reticentes em dar diagnósticos e indicar medidas a serem tomadas, com medo de ferir suas reputações e toda determinação passa por três ou quatro pessoas antes de ser posta em prática. Os centros de operação parecem um formigueiro desarticulado, nos planos gerais. Repetições enfadonhas de travellings em reuniões recheadas de desorientados homens velhos trajando ternos iguais sublinham a letargia do Estado. Novos rostos, funções, cargos, comitês e forças-tarefas aparecem a todo momento numa cacofonia que opera na chave da sátira (uma das reuniões é interrompida por uma cartela sobre tela preta que nos indica que fomos poupados de parte dela). Estes ministros, oficiais e funcionários públicos não são, no entanto, vilanizados hora nenhuma; são indivíduos que tentam colaborar para o bem comum, mas são travados pela burocracia do Estado e por alguma inaptidão. O princípio da colaboração é central em Shin Godzilla.

Um comitê paralelo, formado por párias, lobos solitários, nerds, hereges da academia, luta contra o tempo enquanto Godzilla destrói Tóquio e os EUA planejam soltar uma terceira bomba atômica sobre o Japão a fim de dar cabo ao monstro (e, obviamente, lucrar com a reconstrução da cidade). O comitê tem em mãos um enigmático mapa genético do monstro, deixado por um cientista desaparecido, que pode conter informações que levem a uma solução menos trágica do que a proposta pelo País da Liberdade. Este comitê representa uma crença na superioridade do pensamento científico sobre a violência bélica e a aniquilação. É interessante que a solução para decifrar o mapa genético se encontre na milenar arte japonesa do origami, aliando o conhecimento popular japonês ao saber científico e simbolizando um certo espírito nacional que o filme parece querer promover (vale notar que o integrante do grupo de outcasts que indica o origami como solução é representado por Shin’ya Tsukamoto, diretor de Tetsuo, Bullet ballet, entre outros).

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Shin Godzilla é o único filme da franquia no qual o monstro muda de forma. Assim como o Japão no filme, ele também é obrigado a se adaptar a situações adversas. Em sua primeira aparição, de aparência anfíbia, ele se move de maneira caótica pelos rios de Tóquio, arrastando barcos, quebrando pontes e deixando um cenário de destruição muito semelhante ao que o mundo viu e o Japão sentiu após o tsunami de 2011. Quando Godzilla pisa (ou se arrasta) em terra, ele ainda não consegue suportar o próprio peso nas pernas e se debate entre os prédios convulsivamente, em evidente desespero. Seus olhos de peixe, esbugalhados e ainda sem pálpebras, reforçam sua agonia e, como acontece com o monstro de 54, temos franca empatia por ele. Quando Godzilla atinge sua forma terrestre, a rigidez de seu corpo e seus punhos contraídos parecem indicar uma excruciante e constante dor, assim como sua carne exposta, sua pele rasgada, seus dentes deformados – marcas da violência que o originou. É, na história de Godzilla, a representação mais devastadora do monstro como vítima dos pecados humanos.

As sequências externas, salvo as de ataques aéreos, geralmente privilegiam o ponto de vista humano, do nível do chão, exacerbando o aspecto colossal e horrífico do monstro. No entanto, vez ou outra temos uma mudança de perspectiva que nos apresenta um Godzilla diminuto, em planos abertíssimos, em aparente continência perante o cosmos. Estes planos, por sua vez, rimam em sua composição com outros recorrentes planos abertos de seres humanos pequenos e sozinhos em quadro – talvez o que nos distancie dos monstros seja apenas uma questão de escala.

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“A humanidade deve coexistir com Godzilla”, diz uma personagem. O Godzilla congelado ao fim do filme, no meio de Tóquio, talvez seja a imagem mais marcante de Shin Godzilla; é o lembrete de um perigo latente, de natureza cíclica, que nunca será de fato extirpado – memória constante de que o apocalipse não acaba, mas vem em ondas, e é também um monumento de tributo ao Japão e ao viço de seu povo que sobrevive ao longo de uma história maculada por tragédias, de causas humanas e naturais; repetidos “fins do mundo”. Embora este não seja um filme exatamente otimista, ele fecha com a sensação de que se aprendeu algo com a tragédia de hoje, e exalta um espírito coletivo japonês que, embora não sem perdas, conseguiu, dessa vez, transpor suas adversidades. O Japão de Shin Godzilla é agora um país mais seguro de si.

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A festa do fim do mundo e sua nostalgia sexual em Estranhos Prazeres

Por Gabriel Papaléo

“Há uma batida de ritmo de selva embaixo de mim; o som de cassetetes batendo em escudos de choque, tradição da polícia quando a coisa fica feia. (…) Porque vai haver sangue de transientes derramado por todo esse lugar.”

Warren Ellis, Transmetropolitan 3

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Como vivemos no totalitarismo da imagem? O cotidiano pode ser mediado pelo controle absoluto dos dispositivos digitais que nos cercam?

A repressão do governo nas ruas através do uso da força policial como contenção da ebulição de pensamento de descontentamentos é o contexto das ruas de Los Angeles nesse 1999 alternativo cyberpunk concebido por Kathryn Bigelow, em Estranhos Prazeres. A população inflamada apanha sem nem ao menos sabermos o porquê e a indiferença do protagonista Lenny Nero, ao passar pelas ruas na sua Mercedes, parece deixar claro que aquela paisagem há muito é palco de confrontos. Sua jornada é no contrabando de imagens, de um dispositivo chamado SQUID – criado para acessar memórias alheias em primeira pessoa, como um videogame em realidade virtual – e seu contato com a realidade é através dessas imagens alienantes da nostalgia, do gradual descarrilamento do presente como abrigo do pensamento. A televisão mostra o rapper morto misteriosamente, as ruas sangram sua insatisfação, mas, para Lenny, as imagens digitais e seus prazeres bastam nesse estado de letargia desacreditada com o mundo típico dos detetives de noir que o filme dialoga.

Na explosiva cena de abertura, sentimos de imediato o objeto de desejo de tantos personagens ao acompanhar a ação em primeira pessoa do dispositivo, numa perseguição atordoante que termina em morte das muitas pulsões que Lenny almeja aqui. Quando o ex-detetive busca as memórias de sua ex, fica claro que o passado atormentado é sobretudo uma relação desapaixonada com as instituições e é nesse sentimento que Bigelow concentra toda a primeira hora de filme, investindo no pano de fundo, nas interações entre os personagens, em como funciona a máquina cyberpunk do pré-apocalipse da virada do milênio. O conflito racial surge nesse setting como o grande preço que as pessoas pagam ao tentar lutar no tempo presente.

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O estado policial de opressão sentido a cada interação, no abandono das interações sociais, nas vizinhanças sitiadas – devidamente ignorados pela nostalgia digital do protagonista, claro. Essas vizinhanças, por sua vez, só surgem de início em flashback, para apresentar o contato inicial entre ele e Mace, vivida por Angela Bassett. Que Bassett dê uma fisicalidade à Mace que expande cena por cena o papel da personagem é algo perceptível até no olhar da atriz e cabe a essa personagem, bem mais afinada com os dilemas sociais e com a resistência urbana direta diária, a quebra do feitiço digital de Lenny. Que Mace seja uma motorista de limusine dos ricaços, como no Cosmópolis, de Cronenberg, só evidencia seu papel mais íntimo com a cidade, de um conhecimento das ruas pelo dever direto que exerce e observa pela janela.

O conceito de explosão sensorial via realidade virtual é algo que Cronenberg viria a trabalhar diretamente em Existenz, um dos seus melhores filmes, e o título brasileiro do filme de Bigelow chega até a ser o mesmo do Crash do diretor canadense. As perversões da alma sexual do cinema do canadense aqui se tornam ponte para um discurso de privilégios, com foco outro além das inquietudes psicológicas – e aí a comparação mais afinada me parece com o já citado Cosmópolis, um filme que ocorre na pressão entre o ar condicionado da limusine de Robert Pattinson e o ar digital do lado de fora. Aqui em Estranhos Prazeres, o ar não é propriamente digital e as manifestações não exemplificam as virtualidades, as vulnerabilidades e as flutuações delirantes do mercado financeiro; o ar daqui é poluído como a geografia de Los Angeles, a segregação e suas vozes ativas diante das culturas alternativas. O embate do hip hop na televisão, atacado como símbolo político, nas tentativas de despolitizar a cultura de periferia. A motorista dos ricaços numa cidade sitiada e cosmopolita tenta sobreviver com o psicológico intacto à medida que dá, mas sem ignorar os problemas ao redor sob a égide do cinismo e da derrota. É sobretudo um ritual de disciplina, exemplificado na recusa da utilização do SQUID por parte de Mace, que exala da presença da personagem. É da dificuldade em balancear o desejo e o dever, o condicionamento da realidade sob pulsões duvidosas. Escapando de uma premissa reacionária de escapismo, Bigelow no entanto cria a virada da personagem ao fazê-la usar o dispositivo para algo que falaria com seu âmago sob a urgência do levante popular. Mace acessa as imagens, quase com medo, e tem sua realidade aumentada justamente pelo dispositivo que vemos ser anestesiante para o resto dos personagens. É como usar a ferramenta, sobretudo, e sem a inocência de negar o peso rústico do que ela pode causar – e a verdade que Mace vê é filmada como o ataque agressivo aos sentidos que é.

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Conforme a violência vai se tornando mais próxima, mais brutais ficam as cenas que as mostram – e há duas cenas de estupro fortíssimas no filme, em primeira pessoa, abordando diretamente uma questão sensorial da brutalidade superficial da imagem e da linguagem nela inserida. A visão em primeira pessoa nos faz quase cúmplices do crime, e Bigelow sabe disso, mas não na exposição de culpa, o que seria uma iniciativa cínica, e sim de exposição do ponto sem retorno sensorial causado pelo dispositivo. “A paranoia é apenas a realidade numa escala reduzida”, como um personagem diz no filme, e fica difícil estar a par das nuances da realidade quando as imagens obliteram suas córneas. A articulação da conspiração parte então da perversidade explosiva das imagens, do que a memória tornada viva expressa e, com isso, muito da miopia social de Lenny é explicada; é através de Mace, e do snuff da prostituta assassinada, que ele começa a ter relação com aqueles fatos – uma relação moral, de dever ético claro, mas que passa primeiro pelo campo do afeto pessoal, uma vez que é nele que a imagem mais ataca nesse universo.

Talvez por isso a trama de traição importa tão pouco – até mesmo para Bigelow, que encena o clímax no quarto de hotel com cortes bruscos e parecendo mais interessada em experimentar com aquele tempo que de fato resolver dramaticamente aqueles arcos -, porque no limite são atos de crueldade de pessoas ricas e brancas que estão paranoicas porque presenciaram a morte pela primeira vez. Philo Gant, personagem central vivido com a vilania dos gestos calculados e expansivos de Michael Wincott, já servira de bom grado ao papel de homem branco apropriador ao lidar com Jericho One sob o filtro das fortunas, mas é apenas quando se sente ameaçado pela primeira vez pela conspiração em curso que ele se torna não apenas paranóico com seu círculo de influência, como viciado ao extremo no uso das imagens digitais do SQUID. É quase como se a falta de tato ao lidar com situações de pressão e de cerceamento geográfico e social pelas castas mais ricas fosse diretamente culpada pelos grandes atos de destruição e pela proporção inesperada dos movimentos de mudança. Resta a autodestruição, seja na música, seja fritando o cérebro com vídeos.

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Como em um presente de imagens inúmeras, de catalogação complexa e estufada, a paranoia se intensifica e as desconfianças aumentam – as relações perigosas e sexuais surgem exatamente no nível de overdose representativa proposto por Abel Ferrara em outro clássico cyberpunk, Enigma do Poder. Ferrara também lidava com a virada do milênio como dispositivo estrutural para dialogar com videoclipes e a imaterialidade das imagens, a fragilidade da plataforma, refletindo diretamente o psicológico em xeque do triângulo amoroso devido a paranoia de encarar cada representação como a faca de dois gumes da interpretação duvidosa. A espionagem virava intriga sexual, e a perdição nos ambientes exige o total isolamento para alguma organização de pensamento. A diferença central é que, enquanto aquela trama de noir tornava-se a própria overdose de imagens orquestradas por Ferrara na meia-hora final, no confinamento do hotel vertical concebido por William Gibson, aqui em Estranhos Prazeres as imagens nunca dominam inteiramente os heróis tortos. É sobretudo na figura de Mace, sensível ao contexto político que busca as ruas para propor uma mudança significativa, que há o embate contra o império das imagens, imagens a ruir nas manifestações, contra a brutalidade policial, em nada dialogando com intrigas do ego.

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O comentário de ambientação da tensão racial e a trama principal andam sugeridos mas não interligados por mais da metade do filme e, quando eles se atravessam, é culminando todo o ponto de vista estético e emocional que Bigelow vinha conduzindo: a experiência em primeira pessoal da testemunha da brutalidade do Estado, da violência diretamente ligada a uma pulsão sexual do voyeurismo, da importância do combate. As imagens do assassinato de Jericho One surgem com o diálogo direto ao vídeo das agressões sofridas por Rodney King em 1992, que desencadearam nas manifestações pelas ruas de Los Angeles e mostraram o fascismo agindo sobre o homem comum no seu viés mais racista e segregatório. O assunto fora algo amplamente discutido por Bigelow na hora de construir sua distopia, ao aliar essa temática política à intriga romântica do roteiro original de James Cameron e Jay Cocks, e redimensiona de fato os acontecimentos daquele mundo, traz o peso do ambiente interferindo no psicológico de quem há muito luta. Toda representação a partir daí começa a contar e toda a virtualidade dos encontros com o passado de Lenny e seus clientes perdem a força diante do chamado das ruas das palavras de Jericho One, dos punhos cerrados de Mace ao enfrentar quem a persegue. Não por acaso Mace desconfia da integridade do comissário ao lhe entregar as imagens que provam o assassinato de Jericho; os algozes da lei trouxeram esse estado das coisas ao lidar com o presente sob o filtro do afastamento social.

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Ao final, o comissário é inocente e Bigelow propõe que a resistência envolve algum tipo de diálogo, até mesmo de conciliação, e então o roteiro abraça soluções que envolvem a fé na lei e na manutenção das ideias em determinadas situações. No entanto, o que move o policial inocente, no limite, não é sua integridade; é o medo, como Lenny diz, porque a opressão das castas sociais também atinge os empregados mais poderosos do maquinário fascista. As diretrizes ameaçadoras agem no sistema que se deglute pelo estado de opressão e a desconfiança da vigilância. Essa ambiguidade, em uma tentativa de jogar com o medo a seu favor, evita Bigelow de impedir o foco na pulsão pelo revide, das pessoas que aprenderam a estar atentas ao tempo presente, sem esquecer que as resoluções até são possíveis, mas a violência policial é causada por estruturas e não pela galeria de perversos que causam as atrocidades muitas de gênero e raciais. A população se revolta na festa do milênio, enquanto ouve o Skunk Anansie gritar que “Eles estão vendendo Jesus”, porque a pulsão da violência racista dos dois policiais pode ter causado os assassinatos, mas não causou o espancamento de Mace diante da multidão.

A chegada do milênio surge como prenúncio do apocalipse, do grande evento. O principal privilégio cyberpunk é buscar realidades de memórias para fugir do momento à beira do colapso, da tensão das ruas, dos anos 2000 em uma cidade com ânsia pelo fim do mundo. Esse fim do mundo é desejado como um sinal da mudança dos tempos, de que talvez as lutas sejam fortes o suficiente para desafiar e obliterar os sistemas presentes de governo e da economia, mas para as camadas privilegiadas com delírios de grandeza sobre seus problemas emocionais e suas intrigas afetivas, o apocalipse é apenas um desejo cínico de pulsão autodestrutiva de quem não tem o apreço pelo próprio corpo presente, e portanto parece o destino natural da violência, das pistas do crime, da paranoia. Mas como diz o personagem de Tom Sizemore no clímax: “não é nada; nunca é nada”. A grande conspiração megalomaníaca é apenas a forma delirante de auto importância que as camadas de cima veem para fugir da violência policial que os segregados sofrem diariamente.

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Entre templos e ruínas: fim do mundo e continuidade do cosmos

Por Luís Flores

Bato à porta da pedra.

– Sou eu, me deixa entrar.
– Não tenho porta – diz a pedra.

(Wislawa Szymborska)

 

    Na tela, uma pedra. Uma pedra no meio do caminho. Ela encara de frente, ou é antes encarada pelo olhar da câmera, com sua parte humana e sua parte de máquina, crédula de poder perscrutar o conteúdo do universo por completo, conhecer cada partícula que compõe a superfície do visível. A pedra é mostrada de perto, em um close acirrado que não permite identificar seu objeto senão por atributos menos categóricos, como a cor e a textura. Sobre essa pedra planificada, em todo caso, que ocupa a tela sem função aparente, sem fundação, surge a palavra Bassae. Trata-se do título de um curta-metragem de Jean-Daniel Pollet, lançado em 1964, no qual ele realiza justamente uma incursão poética ao templo de Apolo Epicuro no sítio arqueológico de Bassae, na Grécia. Ali, diante dessa edificação em estado de ruínas, são lançadas interrogações teórico-existenciais que tangem o cerne da experiência humana e sua percepção do tempo. O pensamento, ativado sob a forma de imagens, rigorosamente enquadradas, decompõe a matéria em fragmentos elusivos, sondando-a de perto sem jamais tocá-la.

    Ainda que tomando certa liberdade em relação a universos distintos, gostaria de confrontar os escombros do templo em Bassae, abordados por Pollet com ênfase ensaística, a outra aparição das ruínas, bastante diversa, em um filme de origem mbyá-guarani. Duas aldeias, uma caminhada (2009), dirigido por Germano Benites, Ariel Duarte Ortega e Jorge Ramos Morinico, traz uma concepção imagética aberta, feita em proximidade com os personagens filmados e com o dia-a-dia na aldeia. As mediações técnicas, irredutíveis às convenções usuais do cinema, não coincidem com um discurso narrativo ou ensaístico fechado, estando vinculadas a uma reflexão mitológica que reescreve, cotidianamente, os elementos de ordem histórica. Em dado momento, os indígenas visitam a Tava de São Miguel Arcanjo, espaço sagrado construído por seus ancestrais a pedido da divindade Nhanderu. Mas, diferentemente de Bassae, onde o substrato temporal não abandona o centro humano da razão, as ruínas surgem aí em conexão com uma série de fundamentos cosmológicos que o filme elabora, dando a ver uma maneira alternativa de ordenar o tempo e a imagem.

    Em Bassae, que exibe um forte grau de estilização, a coluna de pedra é mostrada em plano médio, logo após o título, com a paisagem vazando pelas laterais. A câmera se aproxima lentamente do pilar, cujas marcas de desgaste são vistas entrecruzadas às linhas verticais da arquitetura helenística. Quando a coluna ocupa todo o quadro, um plano geral vem situar o conjunto das ruínas no centro da paisagem. Um novo corte, então, traz de volta a pele pétrea da coluna, seguida por um plano ainda mais geral que ressalta a pequenez do templo em meio às montanhas. Pollet alterna entre diferentes escalas, jogando com a percepção do espaço, ao som de uma música metalizada que lembra as badaladas de um sino – como se dessem concretude à passagem do tempo. Finalmente, enquanto a câmera circunda lentamente a coluna, entra em cena a voz over de Jean Negróni (o mesmo narrador da viagem no tempo de La Jetée, 1962, de Chris Marker) lendo um texto escrito por Alexandre Astruc e dando início a um magnífico vai-e-vem entre palavra e imagem.

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Muito se falou desse ensaio fílmico condensado, de nove minutos de duração, como uma simples meditação sobre as ruínas, com perguntas lançadas às vozes do passado que ecoam no presente. Foram raros os pensadores que captaram, para além de uma concepção histórica ou arqueológica, o sentido profundo da reflexão de Bassae sobre o tempo humano. Serge Daney, em um artigo publicado na revista Cahiers du Cinèma, foi um dos poucos que chegou perto de apreender esse gesto: “O que sabemos, nós, das civilizações? Sabemos que são mortais. Pollet nos confirma que estão mortas. (…) O homem talvez seja apenas um acidente da paisagem, bastante imperfeito, vulnerável e provisório”. O crítico francês apresenta Pollet como “o cineasta dos últimos momentos”, que “filma entre a condenação e a morte”. Ele chama atenção para o questionamento do conceito de humano operado ao longo do cinema de Pollet, seja nas ruínas e nos vestígios do Mediterranée (1963), no banimento dos leprosos em L’ordre (1973), co-dirigido com Malo Aguettant e Maurice Born, ou na solidão e no delírio de Le horla. “A loucura de Terzieff é a chegada da Horla e, portanto, a desaparição do Homem. A morte é o melhor álibi”.

    Divisamos, assim, três zonas abissais para a ordenação humana do tempo, não necessariamente segmentadas: a história, a alteridade e a mortalidade. O que Daney tateia, ainda sem chegar às últimas consequências, é o limite físico e conceitual do homem, sua insuficiência no sentido cósmico. Pollet, que tomou conhecimento do templo durante as filmagens de Meditarranée, dizia se interessar principalmente pelo seu duplo caráter de “fim do mundo” e de “centro do mundo”, uma espécie de princípio e limite de tudo, entre criação e destruição. A construção do filme, todavia, não deixa de lançar suspeitas sobre essas próprias noções de fim e de centro, preservando certa zona de opacidade sobre a suposta realidade histórica das ruínas. “Queria fazer um filme sobre esse objeto que perdeu toda a significação, mas possui um potencial misterioso, fantástico”, afirma o diretor.

    Bassae (1964), que não possui, a rigor, objetividade documental, privilegia imagens que flertam com o desconhecido e assumem, como princípio especulativo, um franco desejo de exploração espaço-temporal. Há, na visualidade da câmera, um misto de fascínio e de espanto, resultando em planos fechadíssimos, ávidos por se aproximar da matéria, e também em movimentos de deriva ou recuo, quando o olho parece titubear. Entre planos gerais e close-ups, o filme apreende as ruínas tanto no contexto amplo (paisagem, nuvens, céu do Mediterrâneo, montanhas, pedras ao redor) quanto nas particularidades (chão despedaçado, pilares quebrados, fileiras de colunas), criando contrastes não cartesianos entre o efêmero e o duradouro. Em certos enquadramentos, o templo é excluído do campo de visão, evidenciando a importância do entorno (montanhas, nuvens, pedras). Nessa disputa entre ordem e desordem, entre humano e divino, os fragmentos antes organizados em arquitetura são agora tomados pela relva, e retornam lentamente, “como mastros de um navio fantasma, à sua lenta passagem pelo reino mineral, que em momento algum havia deixado de ser o deles”.

    A multiplicação dos ângulos e pontos de vista reflete, assim, uma tentativa de pensar os fundamentos do visível, sendo complementada, nessa caméra-stylo a quatro mãos, pelos comentários tecidos por Astruc. As peças extraídas filmicamente do espaço já são, de certa forma, “estratos” da antiga ordenação do templo, remetidos agora ao âmbito assombroso de uma pré-história, afinal, “estamos ainda no primeiro dia, antes do começo de tudo”. A natureza retoma seu domínio sobre as coisas, no qual as “árvores petrificadas imitaram a forma clássica de um templo somente pelo tempo de um bocejo”. O homem é devolvido à condição biológica, pois “nada neste cemitério mineral, evoca a possibilidade mesmo acidental em favor da vida humana”. Esse templo, antigamente destinado a um deus antropomórfico, é recapturado pelo “velho deus do tempo, de quando não havia homens e nem mesmo o próprio tempo”. A humanidade, com suas maneiras costumeiras de pensar a história e construir relações temporais, é colocada em questão diante desses pedaços de pedra para os quais, em última instância, “não há história própria. Não há lugar”.

    Bassae introduz fissuras nas cronologias usadas pelo chamado gênero humano para se orientar no tempo, cronologias que privilegiam as bases ontológicas e perceptivas de um sujeito específico, em detrimento de outras formas de vida humanas e não-humanas. Como aponta o filósofo argentino Fabián Romandini, nada garante sequer que o vivente humano seja o limite e o correlato necessário da história, sendo que esta talvez precise ser reformulada de maneira mais aberta, digamos, mais “imprópria”, como a história dos ecossistemas da vida cujas relações com uma história cósmica do Universo antes mesmo de qualquer substrato biológico não devem ser ignoradas. Talvez, afugentados pelo potencial devastador dessa tarefa, muitos filósofos a tenham evitado ao longo dos séculos, preferindo alimentar ilusões mais positivas sobre a humanidade.

Fig. 3 Fig. 4

    A questão da temporalidade, em todo caso, “essa física aparentada com os fenômenos do cosmos”, está inevitavelmente ligada à questão da ontologia da imagem, para além do reflexo no espelho e da insistência narcísica. Na ontologia Yanomami, por exemplo, segundo Davi Kopenawa, ser é imagem, é existir por outrem. Sem dúvida, Bassae é um filme atípico dentro da tradição visual euro-ocidental, na medida em que não reproduz por completo o problema do ser e do tempo, produzindo nele algumas tensões. A câmera, em especial, não tenta estabelecer uma zona de conforto, optando por sublinhar certo estado de desintegração do templo, abandonado, desapossado, desprovido de função. Porém, no tocante ao texto, ainda que reforce frequentemente uma poética das ruínas, ele não deixa de enunciar um “eu” que parece remeter ao cineasta-narrador (“eu multiplico os pontos de vista”), e que se autoproclama, no desfecho da obra, “o Verbo”, tudo leva a crer, na modalidade escrita. Além disso, o aspecto mais enfático e tradicional do comentário de Astruc propicia uma relação de organicidade com as imagens, corroborando uma perspectiva logocêntrica. Algo observável, em menor escala, na utilização da música que, se por um lado cadencia a ideia do tempo, por outro confere ao templo certa ilusão sonora de majestade.

    Correndo o risco de fazer um salto brusco, tento olhar agora para Duas aldeias, uma caminhada, em busca de uma forma de ordenação imagética e temporal não restrita aos estilhaços da tradição eurocêntrica. No começo do filme, uma mulher e uma criança mbyá-guaranis caminham na beira da rodovia, essa via de traslado que, assim como o templo de Bassae, constitui um dos marcos da civilização ocidental. Do asfalto, passando pela estrada de terra, somos levados em deriva até Tekoá Anhetenguá, a “Aldeia Verdadeira”, em Porto Alegre (RS). Nela, acompanhamos homens e mulheres indígenas em atividades cotidianas, como o despertar, a cantoria (de cunho político), a caça, a procura do mel, a roda de chimarrão, a confecção do artesanato, a ida à cidade. Em cada momento, há um ímpeto de reestruturação temporal no qual a imbricação das palavras, dos gestos e dos movimentos de câmera transborda tanto a duração do filme quanto o corte cronológico, abrigando outras relações possíveis.

    Diferentemente de Bassae, onde o tensionamento da história depende dos deslizamentos ensaísticos entre palavra e imagem, a imbricação dos tempos em Duas aldeias se dá na própria cena, como um tipo de cinema direto, não apenas porque o tempo do mito e o de hoje são contemporâneos, mas porque a própria ideia de mundo pressupõe, para citar Viveiros de Castro e Déborah Danowski, “um gigantesco acordo discordante, mutável e contingente das intencionalidades múltiplas e distribuídas por todos os agentes”, humanos e não-humanos. Nesse sentido, as operações fílmicas ressaltam um uma dimensão cosmopolítica que implica, para cada gesto cotidiano, relações latentes com o invisível, de modo que o espírito da humanidade apresenta afinidades significativas com o espírito das abelhas ou dos deuses, em um tipo de “platonismo às avessas”.

    Isso pode ser observado, por exemplo, na cena da busca pelo mel. Após o plano paisagem da aldeia cercada pela cidade em expansão, um garoto mbyá-guarani segura uma colmeia e tenta explicar o motivo das abelhas terem abandonado suas casas. “Algo estava incomodando elas. (…) São que nem os mbyá-guarani. Não foram embora porque queriam. Às vezes, os mbyá-guarani se mudam porque tem alguém incomodando”. A montagem, então, parece ressaltar essa associação, ao conferir agência às abelhas e colocá-los logo após o plano da paisagem, além do mel retornar no mito cosmogônico do filho de deus, Papa Mirĩ. E também a caça, ao longo do filme, acolhe relações que vinculam tempo histórico e tempo cosmológico. O jovem mbyá-guarani conferindo se o gambá está na fissura de um tronco, o buraco do tatu sendo cutucado pelo mesmo jovem, um grupo de indígenas assando passarinho no meio da mata, o garoto fazendo armadilha de pegar passarinho e, por fim, o mbyá-guarani mais velho lamentando a escassez de animais para serem capturados na atualidade. “Se estivéssemos num lugar com mais mata, os deuses teriam muitas coisas para nos dar de comer. (…) O Javali tem um deus, um dono com morada aqui na terra. Se você meditar para esse deus, ele vai permitir que o Javali pise na armadilha para você comer”.

Fig. 5Fig. 6Fig. 7 Fig. 8

    Na parte final do filme, os indígenas vão vender artesanatos na Tava de São Miguel Arcanjo, um espaço sagrado, construído e habitado por seus ancestrais mbyá-guarani a pedido da divindade Nhanderu. De um ponto de vista histórico-político, ela é crucial para a memória e a afirmação da identidade, mas não é nesse aspecto que nos concentraremos. Para além dos limites históricos, a Tava está inserida em uma concepção temporal capaz de abrigar oposições entre os mundos celestes e terrestres, mortais e imortais, imperecíveis e perecíveis. Após uma série de contatos com os brancos, visitantes “espaçosos” que adentram o território com postura turística, fazendo perguntas incômodas ou manifestando preconceitos, um grupo de indígenas começa a caminhar em direção às ruínas. Um deles conta a história das violências que seus antepassados sofriam nas mãos de missionários e colonizadores. Com efeito, para os povos indígenas na pós-colonização ou para negros e negras submetidos à diáspora – como reflete Kênia Freitas – o mundo de certo modo já acabou, o apocalipse aconteceu e eles continuam aqui. Por isso, Ailton Krenak pode dizer com firmeza: “Não é a primeira vez que profetizam nosso fim, já assistimos a várias profecias. Enterramos todos os profetas.”

    Na narrativa mítica da Tava, portanto, um mbyá-guarani teria escapado dos carrascos e voltado depois, quando as coisas estavam mais calmas, sentando-se no pátio com as crianças. “Foi aí que apareceu a Cobra Grande”. Nesse momento, a cena evidencia a importância do invisível, e a força mítico-cosmológica da palavra, de valor predominantemente oral, vem tomar conta das imagens. Como que reforçando o transbordamento do relato, a tela, ocupada até então pelo registro direto da realidade, é tomada por uma série sutil de quatro imagens divergentes – três fotografias quase pictóricas das ruínas e um desenho de ordem “sobrenatural” – sublinhando o rompimento com uma sensibilidade prévia. Esse operação da montagem, que acompanha a oralidade da cena, produz uma conversão imagética tão profunda quanto intangível: ela não abala as aparências do visível, mas desloca contundentemente seus sentidos. Toda a temporalidade do filme, narrativa ou histórica, é como que ressignificada pela força do mito.

Fig. 9Fig. 10Fig. 11Fig. 12

    Nas paredes internas da Tava, o grupo aponta as manchas de sangue e gordura da Cobra Grande, esmagada pela intervenção de Tupã. “Algumas vezes, quando você olha, a gordura fica mais visível”. Algo que o olhar do branco, condicionado por certa formatação da história e por certa recusa da “sobrenatureza”, não logra alcançar. Se até então o filme havia sustentado uma simultaneidade entre o índio e o branco, que partilhariam o mesmo presente no espaço das ruínas, agora, a partir dessa fenda cosmológica, “nós” brancos somos remetidos a um passado fossilizado, enquanto os indígenas ressurgem como o futuro de uma história reescrita, “a contrapelo”, na tessitura do mito. Sem o intuito de generalizar, é curioso notar uma dinâmica semelhante em outro filme mbyá-guarani, Ava Yvy Vera, dirigido por Genito Gomes, Valmir Gonçalves Cabreira, Jhonn Nara Gomes, Jhonaton Gomes, Edina Ximenes, Dulcídio Gomes, Sarah Brites e Joilson Brites. Após operar, por quase 45 minutos, uma documentação atenta da vida em comunidade, atravessada por reencenações do passado recente, o filme é tomado pela energia cósmica dos relâmpagos, que surgem indomáveis em meio à escuridão. “Cheguei no lugar do raio sem fim”, afirma a voz de um dos personagens. “O tempo é assim”.

Fig. 13 Fig. 14

    “Nenhuma história antiga nossa, nenhuma, admite que a gente vai acabar. Temos uma narrativa que é cósmica, uma cosmogonia. Nós não estamos aqui”. Com essas palavras, Ailton Krenak fala a verdade que a filosofia ocidental, aterrorizada pela própria loucura, tentou constantemente ocultar com a falácia da razão: não estamos sozinhos. Estamos, isso sim, ensimesmados em uma perspectiva especista e racista, de um mundo supostamente neutro, pretensamente universal, aniquilando as outras possibilidades de mundo, os mundos dos outros. Não pretendo, com isso, desmerecer o trabalho de Pollet, esse “cineasta dos últimos momentos”, que cumpre renovações estéticas e investigações fundamentais para se repensar criticamente determinada tradição da imagem e da história. Apenas indicar que essa visão, fundada em ontologias eurocêntricas, talvez se beneficie do reconhecimento de pontos de vista discrepantes, como é o caso dos cinemas indígenas. O fim do mundo, afinal, depende de qual mundo falamos, e não passa de um estado provisório para quem entende o cosmos como uma “guerra dos mundos” (indígenas contra brancos, animais contra humanos, Gaia contra a civilização). Guerra essa que, para convocar a noção usada por Bruce Albert ao descrever a politização do xamanismo Yanomami, toma a forma de uma “guerra das imagens”. As imagens, aliás, continuam a viver, especialmente para os que constroem a existência nos reflexos do imperecível e buscam estabelecer, nos limites temporais do mundo visível, abordagens cosmológicas mais porosas.

Fig. 15

Lista de leituras

Ailton Krenak. Entrevista disponível em https://amazoniareal.com.br/nao-e-a-primeira-vez-que-profetizam-nosso-fim-enterramos-todos-os-profetas-diz-ailton-krenak/.

Bruce Albert. “Yanomami : retour sur image(s)”. Publicado em Fondation Cartier Trente ans pour l’art contemporain, vol 2, pp. 237-248. Paris : Fondation Cartier pour l’Art Contemporain, outubro de 2014.

Daniel Calazans Pierri. O perecível e o imperecível. Livro publicado pela editora Elefante.

Davi Kopenawa e Bruce Albert. A queda do céu. Livro publicado pela editora Companhia das Letras.

Fabián Ludueña Romandini. A ascenção de Atlas: Glosas sobre Aby Warburg. Livro publicado no Brasil pela editora Cultura e Barbárie.

Serge Daney. “Pollet: Le Horla”. Texto publicado na revista Cahiers du Cinèma, número 188, de março de 1967.

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Um outro destino para o tempo em O sacrifício, de Tarkovski

Por Chico Torres

“Através da imagem mantém-se uma consciência do infinito: o eterno dentro do finito, o espiritual no interior da matéria, a inexaurível forma dada”

(Tarkovski, Esculpir o tempo)

(imagem de abertura)

Questões sobre destruição, ruína e catástrofe são constantes na obra de Tarkovski. Como bem apontou Adalberto Müller, em artigo para a revista Cult: “A destruição e a catástrofe são temas centrais no pensamento de Tarkovski, constituem uma de suas ambiências fundamentais: a destruição da inocência e da infância de Ivan; a destruição da arte em Rublev; a destruição do planeta Solaris; a destruição da Zona em Stalker; a destruição da fé em Nostalgia; a destruição do nosso próprio planeta em O sacrifício”.

Trago aqui algumas reflexões sobre o tempo no sentido histórico e, mais especificamente, sobre alterações de padrões comportamentais que podem ser concebidos também sob uma mudança (muitas vezes radical) na percepção do tempo e da história. Irresponsavelmente, ponho em diálogo algumas frentes filosóficas antagônicas, como é o caso de Santo Agostinho e Nietzsche. Também estabeleço uma conversa entre Walter Benjamin e Tarkovski, além de trazer algumas concepções sobre a filosofia da história. O que pretendo aqui, através de Tarkovski e da filosofia, é pensar novos modos de vida que podem surgir através de uma outra vivência do tempo histórico e, por que não, subjetivo.

Na Grécia Antiga, o tempo não era concebido de modo linear. Havia uma concepção cosmológica que fazia com que os gregos definissem o Universo (Cosmos) como um processo fechado e interdependente. Essa tendência está muito presente na filosofia pré-socrática, mas temos ideia do seu alcance se observarmos, alguns séculos depois, a noção de causa em Aristóteles, em que todo o processo que constitui isso que chamamos de realidade funciona através de um logos que “orienta” as causas, em que todos os fenômenos estão conectados a uma “causa final” e necessária. No cristianismo e posteriormente no mundo moderno, representado especialmente pela filosofia de Kant, a noção linear do tempo se estabelece, assim como um ideal de progresso humano. O plano iluminista começa a cair por terra no século XIX, mas é no século XX que se desenvolvem críticas consistentes sobre todo o ideário progressista. No cinema, Tarkovski é um de seus críticos mais fervorosos.

Em O sacrifício, o tema do fim do mundo pode ser compreendido sob diversos aspectos, mas pelo menos dois deles me parecem evidentes: uma crítica à sociedade moderna e ao ideal de progresso propalado pela mesma, já que no filme o fim do mundo é produzido pelo avanço técnico responsável, entre tantos outros malefícios, pela bomba nuclear; e o rompimento com essa sociedade através de um ato de fé, um sacrifício de uma vida inteira realizado através da vivência de um milagre. Todos nós sabemos da ligação de Tarkovski com o cristianismo e o modo como ele transporta para a arte seus ideais de fé, moral, verdade e espiritualidade. Apesar disso, Tarkovski nunca produziu obras moralistas, mas sempre polissêmicas e carregadas de um misticismo que está além de algum tipo de cartilha religiosa institucional, pois o olhar místico leva, em última instância, para a salvação pela arte, pela imagem sacralizada.

No início do filme, Tarkovski apresenta o protagonista, Alexander, realizando uma tarefa curiosa: ele planta uma árvore morta, seca. O personagem nos fala, enquanto realiza a atividade, sobre uma fábula oriental na qual um homem faz o mesmo que ele: planta e cuida de uma árvore morta. Depois de três anos fazendo diariamente aquela mesma coisa, o homem da fábula nota que a árvore renasce e dá flores. Após contar essa anedota, Alexander afirma que uma simples ação repetida cotidianamente deve, de algum modo, mudar algo no mundo. Mudança não em sentido metafórico, mas uma mudança concreta, como se houvesse uma força holística a reger os fenômenos. Após essa cena, surge a figura enigmática do carteiro (Otto), que divaga junto a Alexander sobre o conceito nietzschiano do eterno retorno. Penso que toda essa cena inicial, filmada magistralmente em um único plano, abarca significativamente as intenções mais fundamentais do filme, já que todo o seu desenvolvimento terá como princípio esse conflito entre a ordem “natural” das coisas, em sua temporalidade linear, e um tempo que rompe com essa estrutura e transcende os limites do cotidiano.

(imagem I)

imagem II

Nietzsche, voltando seu pensamento para a filosofia pré-socrática, considera o universo não como infinito, mas como um sistema fechado, cíclico. Nessa perspectiva, todo o movimento, tudo o que existe e é experienciado, irá se repetir infinitamente, visto que as trocas entre os elementos são limitadas. Além de pensar o eterno retorno como a repetição das forças cósmicas, expressadas em qualquer aspecto da vida, há também a perspectiva de pensar esse conceito como uma nova forma de lidar com a temporalidade, expressa em condutas libertadoras e de desapego. É assim que Otto se expressa a Alexander, afirmando que o mesmo, apesar de todo o seu sucesso como intelectual, ainda é um ser angustiado e cheio de expectativas. Nietzsche possui uma noção na qual presente, passado e futuro são exterminadas em nome de uma vivência mais autêntica no agora (pois apenas o agora existe), em que o esquecimento, e não a memória, tem muito mais forças propulsoras de transformações efetivas. Ironicamente, a mudança parece vir da aceitação de um ciclo que se repete e, consequentemente, tal ideia deve gerar um esvaziamento libertador, quase um estoicismo.

Essa concepção corrobora com a filosofia amoral de Nietzsche e da sua transvaloração dos valores. Se tudo é troca infinita de forças (e nada mais do que isso), então todo o projeto humano calcado no ideal de progresso, evolução e superação precisa ser revisto, assim como todas as instituições, todos os conceitos básicos que constitui isso que chamamos de civilização, incluindo aqui o que entendemos por ciência, arte, técnica, história, etc. Em O sacrifício, a crítica ao progresso é evidente, mas Tarkovski faz também uma reflexão mais profunda sobre outra possibilidade de existência calcada na radicalização da compreensão de um rompimento com a marcha do progresso e das convenções sociais, que no filme se concretiza com o personagem incendiando a própria casa e “abandonando” a família, caindo em processo de enlouquecimento, evidentemente julgado por outrem. Em Agostinho, em suas reflexões sobre o tempo, ainda que se estabeleça um tipo de tempo cronológico, há uma belíssima consideração sobre o “eterno agora”, que seria o “tempo” de Deus, mais precisamente, a Eternidade que antecede qualquer tempo. A meu ver, o eterno retorno nietzschiano se assemelha com esse eterno agora agostiniano, mas a ambição de Nietzsche é muito maior: tirá-lo de Deus e torná-lo humano, ainda que o preço por isso seja alto demais. Não é em vão que Alexander toma atitudes extremas, como tantos outros personagens de Tarkovski que se sacrificaram em nome de uma vivência que “atingiu a transcendência”: basta pensarmos no Stalker e no personagem que incendeia a si mesmo em Nostalgia. A construção temporal de Tarkovski, exposta em sua obra cinematográfica e em seu livro Esculpir o tempo, revelam uma preocupação em capturar o instante em sua pureza, através de uma suspensão do tempo e seus entraves cotidianos. O ideal de Tarkovski é capturar na imagem a eternidade, o agora em sua singularidade, em busca de uma revelação mística através da contemplação do plano.

(imagem III)

Outro pensador, agora contemporâneo, também pensou sobre novas e radicais possibilidades de experiência através de reflexões sobre o tempo. Walter Benjamin, vinculado estreitamente ao aspecto fragmentário e ao poder das imagens e da ruína, cunhou o conceito de tempo-do-agora, nas famosas teses sobre o conceito de história. Uma proposta ousada que une messianismo judaico e marxismo. No judaísmo, esse tempo-do-agora seria uma interrupção do tempo concebido como homogêneo e vazio, para uma reestruturação da vida através de uma noção de redenção. No marxismo, essa interrupção e redenção não se dariam pela volta do Messias, mas pela atividade revolucionária que deve estar atenta as convulsões sociopolíticas provocadas pelo ideal de progresso. É famosa a imagem criada por Benjamin do anjo da história, em que é arrastado por todos os entulhos e ruínas que são o resultado da cultura que “progride” na medida em que acumula injustiças e exploração. Benjamin quer, portanto, acertar contas com o passado, vendo em uma reparação social uma nova maneira de estimular a emancipação humana. Mais uma vez a temporalidade convencional é colocada em cheque em nome de uma vida mais autêntica.

A atitude de Alexander me leva a pensar em semelhanças entre essa concepção de Benjamin e Tarkovski. Em ambos, há uma explícita crítica ao progresso e à técnica usada para fins nefastos. Se em Benjamin há um impulso revolucionário e ao mesmo tempo messiânico de interrupção da história e sua temporalidade tendenciosa, em Tarkovski, há o mesmo impulso, mas sempre manifestado na atitude isolada, deslocada da organização política e, portanto, oprimida e silenciada. O que se vê em Tarkovski é uma utopia que se concentra em apenas um sujeito e se expande, diante de nós, como sonho irrealizável, apenas presente na imagem artística. Se Benjamin acreditava em mudanças concretas, Tarkovski nos diz que é tarde demais, nos restando simplesmente contemplar aquilo que se perdeu.

Eterno retorno; eterno agora; tempo-do-agora; tempo cíclico e interrupção messiânica através da ação política e da arte, não são poucas as perspectivas lançadas por artistas e pensadores para propor novos e desafiadores olhares sobre a cultura ocidental. O sacrifício, com Alexander ateando fogo em sua própria casa, abrindo mão de tudo diante de um novo e redentor significado da vida, acaba por representar, no cinema, uma das mais potentes críticas a uma sociedade há muito adoecida pelo ritmo de Kronos. Ao esculpir outro destino para o tempo, Tarkovski nos mostra o quanto precisamos morrer para que surja, mesmo que em sonho, uma nova vida.

Referências:

Ambiências do sagrado (2017), de Adalberto Müller.

Confissões (2011), de Santo Agostinho;

Assim falou Zaratustra (2011), de Friederich Nietzsche;

Sobre o conceito de história (2012), de Walter Benjamin ;

Esculpir o tempo (2010), de Andrei Tarkovski.

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Saindo de férias durante o apocalipse: Mad Max e o negacionismo

Por Bernardo Moraes Chacur

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Em S/Z, Barthes defende que uma das características do texto clássico é a especificação crescente, em que cada descrição e acontecimento gradualmente limita as possibilidades da narrativa[1]. A progressão do enredo tende a nos fazer esquecer que a história poderia ter seguido rumos diferentes e mesmo as eventuais releituras e revisões acabam sendo condicionadas pelo desenlace já conhecido. Esses aspectos são claramente perceptíveis no cinema de franquias, em que cada nova iteração precisa se ater a um cânone ou incorrer na acusação de heresia. Esse cabresto também é aplicado retroativamente: o primeiro filme de uma série é frequentemente valorizado de acordo com a quantidade de elementos canônicos que prefigura, enquanto os pontos discordantes são ignorados ou menosprezados.

No caso de Mad Max (George Miller, 1979), os pontos discordantes são indisfarçáveis. Enquanto suas três sequências (de 1981, 1985 e 2015) são pós-apocalípticas, ambientadas décadas depois do colapso da civilização, o episódio inaugural se passa em um mundo quase inteiramente familiar. Logo depois dos créditos, há o aviso de que estamos em um futuro próximo (‘A FEW YEARS FROM NOW’), embora boa parte da ambientação pareça simplesmente a Austrália de 1979 em um filme de baixo orçamento. Mesmo a presença de gangues caricatas não serve de índice futurista, considerando quantas vezes o cinema das décadas de 60-80 (pós-contracultura, pós-movimentos pelos direitos civis) representou marginais desgrenhados como a encarnação dos medos conservadores. Nesse mundo, o comércio e a prestação de serviços ainda funcionam: vemos casas noturnas, sorveterias e hospitais. Há um único sinal inequívoco, portanto, de que a Ordem se encontra nos estertores: o prédio-sede da polícia, dilapidado e quase vazio.

Em um momento decisivo da trama, o protagonista se sente afetado pela anarquia crescente e resolve tirar férias com a família. Nesse ponto o filme se transforma: Max, mulher e filho vestem as melhores roupas e viajam para o campo, onde a crise social parece exorcizada. Os partidários dos “roteiros plausíveis” provavelmente considerariam a premissa absurda: que tipo de gente sai de férias em meio ao caos? Penso, contudo, que esse é o elemento mais perceptivo da obra, ilustrando o nível de negacionismo mobilizado por uma sociedade para rejeitar as evidências de que seu modo de vida não é mais sustentável. Mas a ilusão de segurança é frágil e a mesma gangue enfrentada por Max em seu trabalho como policial vêm romper definitivamente o idílio.

Como se demarca um fim de mundo, a transição entre normalidade e a catástrofe? Em Mad Max, assim como na cultura hegemônica do século XXI, a gravidade da crise só se torna clara quando a família branca das nações desenvolvidas é sacudida de sua habitual posição de conforto: para as demais populações, as distopias já começaram muito mais cedo.

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Bacurau (Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, 2019) também nos situa “alguns anos no futuro” e, assim como no filme de Miller, apresenta poucas diferenças evidentes entre seu universo ficcional e as representações do presente. Há, no entanto, o detalhe periférico de um televisor ligado, na qual lemos as palavras: “AO VIVO. EXECUÇÕES PÚBLICAS RECOMEÇAM ÀS 14H – VALE DO ANHANGABAÚ”. O prefixo recomeçam – indica uma barbárie já instalada e provoca a pergunta: quando teríamos transposto aquele limite? Considerando que o jornalismo policial clama há décadas pelo extermínio dos “bandidos” e o número efetivo de mortos em “confrontos com a polícia” no Brasil, essa fronteira já não teria sido ultrapassada?

Situar uma narrativa pessimista em um futuro próximo possui, em princípio, uma carga perturbadora, sugerindo que pouco separa a nossa realidade dos piores cenários. Ao mesmo tempo, o expediente interpõe uma distância reconfortante entre o presente e a catástrofe. Resta, dessa forma, uma gama de opções ante os prognósticos adversos, da sensação de urgência ao derrotismo e a negação, escolhas que poderão ser postergadas até que finalmente alcancemos o ponto da irreversibilidade.

P.S.: Agradecimentos a Victor Lopes pelo incentivo, a Juliana Fausto pela ajuda com a redação de um trecho e aos editores da Multiplot pela paciência.

Referências

Roland Barthes, S/Z. Éditions du Seuil, 1970

[1] Éditions du Seuil, 1970. Paráfrase livre do que o autor escreve sobre a redução da pluralidade no texto clássico em várias passagens, como nas seções VI, XV e XL e também sobre a nominação na seção XI. As frases posteriores à referência são extrapolações por minha conta, acreditando que a situação mudou muito desde que Barthes escreveu que “os hábitos comerciais e ideológicos de nossa sociedade recomendam que joguemos fora a história uma vez consumida” (seção IX, p.20, tradução própria).

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À beira do abismo: Miracle Mile, de Steve De Jarnatt

Por João Pedro Faro

“Seria esse o objetivo do armagedom? Terminar com ambiguidades, acabar com qualquer dúvida.”

Ruído Branco, de Don Dellilo (trecho).

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Durante décadas, houve incerteza sobre qual seria a real conclusão da sísmica cena final de A morte num beijo (1955, Robert Aldrich). Uma das versões, a mais circulada, encerra o filme com o casal Ralph Meeker e Maximine Cooper presos na casa de praia onde uma bomba atômica acaba de ser acionada. A casa explode e o letreiro “The End” surge por cima da catástrofe nuclear. Uma segunda versão, redescoberta tardiamente, mostra Meeker e Cooper conseguindo fugir de dentro do local e assistindo à explosão caídos na areia. Os dois se beijam e o “The End” aparece na tela em um desfecho menos abrupto. Porém, a real diferença entre os dois finais não está entre a vida e a morte dos protagonistas. Afinal, a bomba atômica explodiu, o apocalipse é iminente e acontece em ambas as versões. Os amantes vão morrer de qualquer jeito. O que muda no segundo final é que Aldrich permite ao casal um último beijo desesperado antes do fim do mundo.

Miracle Mile (1988, Steve De Jarnatt) funciona como uma expansão do que foi proposto por Aldrich 30 anos antes: a iminência da fatalidade em uma última chance de entrega ao outro. O romance de paranoia nuclear que acompanha Harry (Anthony Edwards) noite adentro, tentando fugir com sua recém-conhecida amada Julie (Mare Winnigham) nos 70 minutos restantes antes da chegada dos mísseis soviéticos que apagarão Los Angeles do mapa, torna um ideal típico de paixão perfeita em um inevitável refúgio por uma morte menos solitária.

Em seu monólogo inicial, Harry esclarece que passou toda sua vida atrás de alguém como Julie. É um discurso de sentimentos fatalistas, da certeza de que encontrou uma companheira ideal. O que funciona, em um primeiro momento, como uma banalidade sentimental que preza pela estabilidade dos desejos, retorna posteriormente como a totalidade das impressões de um indivíduo que vê o fim da própria vida. Harry nunca desiste de tentar achar um meio de sair da cidade com Julie antes da chegada do míssil, mas a cada tentativa tudo parece estar mais próximo de acabar. É desse efeito de exaustão, de sobrevivência falida, que o romance vivido pelo casal vai se concretizando do jeito mais essencial: através da desesperança de que a vida possa continuar e sua intrínseca energia para consumir tudo que resta, no tempo que resta.

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Existe uma sensação totalizadora em Miracle Mile quando Jarnatt apresenta o último momento da vida na terra como um filme que corre em círculos. Harry passa grande parte da projeção perseguindo objetivos mínimos que acredita que possam salvá-los, sendo essa busca incessante por salvação cada vez mais desacreditada. Ele nem parece conseguir sair do mesmo quarteirão durante todo o tempo. Portanto, Miracle Mile acaba sendo a mais enérgica obra sobre melancolia de sua geração – tudo parece tão gritante, tão histérico e, ao mesmo tempo, tão inútil e tão impossível. Essa sensação culmina na sequência mais destrutiva do longa: Harry, descendo pelos esgotos e saindo pelo bueiro, sobe em cima de um carro em uma avenida, podendo ver as consequências totais que o anúncio televisivo do apocalipse trouxe à população. Carros se acumulam em um trânsito inconcebível, não sobra espaço no asfalto, tomado tanto pelos automóveis empilhados quanto por corpos que se esbarram, correm e gritam. Casais fazem sexo em frente às lojas, saqueadas e destruídas por uma multidão sem propósito de existência além do consumo final de tudo aquilo que está em sua frente. O fim do mundo não é triste, é apenas excessivo.

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Essa sequência pode ser também considerada a única resposta no cinema americano ao trânsito de Week-End à Francesa (1967, Jean-Luc Godard). Enquanto o armagedom godardiano é repleto de tédio, do esvaziamento intelectual na existência francesa, o grande apocalipse americano é constituído pela inexistência de limites entre o consumidor e o consumo, tudo em tela se devora, tudo em tela precisa ser associado, tomado para o indivíduo antes que não exista mais o que consumir ou quem consuma. Enquanto os burgueses de Godard definham até serem canibalizados pelos mais jovens, os personagens de Miracle Mile aproveitam o tempo que sobra para se comerem. Não à toa, o trânsito apocalíptico de Week-End acontece em uma sequência de 8 minutos, sem corte, enquanto o de Miracle Mile pertence a um plano de pouco mais de 30 segundos.

Nada tão certeiro quanto o responsável por um longa tão definidor ser Jarnatt, um diretor sem carreira, autor de uma só obra, que atualmente vive em sua casa no interior, ao lado de um bunker que ele mesmo construiu. Miracle Mile parece um expurgo de alguém sem muito mais a dizer, que, assim como seus personagens, apenas pôde aproveitar o pouco que tinha em mãos. Segundo o próprio Jarnatt, toda a ideia surgiu a partir de paranoias próprias sobre o seu estado presente, portanto é mais do que justo que um filme tão fechado em si mesmo possa querer ser tão totalizador sobre o estado de espírito de um humano em completo desespero com o tempo em que vive.

O anseio de Jarnatt por temas e ideias maiores do que o próprio filme (difícil pensar outra coisa de um longa que abre com uma narração de museu sobre o início da vida na terra) funciona pelo afunilamento, narrativo e visual, que Jarnatt atinge ao focar no casal de protagonistas. Enquanto tudo se encaixa para que a câmera só consiga enquadrar o rosto de Harry e Julie se encarando em desespero, recorda-se o aspecto clássico do romance de acaso que inicia a jornada dos dois. Nos minutos finais, que acompanham os amantes prestes a morrer, tão próximos que parecem um só, a carga de um universo gigantesco e caótico, exterior aos dois, mostra-se essencial para que haja a potência nos últimos close-ups do beijo antes da morte; justamente porque faz tudo parecer tão pequeno diante da necessidade daqueles rostos em encontrar-se fisicamente até os limites do próprio corpo. Não há como ficar sozinho, não há como não querer ao outro quando tudo está para sumir.

A única forma que Jarnatt encontra para que qualquer ideal romântico exista naquele espaço e naquele tempo, do consumo banalizado como único motivo de existência, é que ele aconteça pelos meios mais primitivos da necessidade de se ter alguém próximo enquanto aguarda o juízo final. Harry e Julie são apresentados como o último casal da humanidade, unindo-se cada vez mais enquanto chega o fim do mundo. Simplesmente porque não resta fuga, não resta sobrevivência, resta apenas o que está ao seu alcance. No caso, resta a Harry estar com Julie, e resta à Julie estar com Harry. São pessoas com sentimentos, fruto de um desespero, como quaisquer outras, porém contempladas pela troca genuína de necessidades mútuas enquanto afundam para tornarem-se fósseis. O acaso do encontro perfeito só é possível às vésperas do colapso da terra, e só é completo quando tudo acaba.

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O céu é uma massa horrenda de videocassetes rodopiantes e videogames Magnavox

Por Natália Reis

And those who expected lightning and thunder
Are disappointed.
And those who expected signs and archangels’ trumps
Do not believe it is happening now.
As long as the sun and the moon are above,
As long as the bumblebee visits a rose,
As long as rosy infants are born
No one believes it is happening now.
(A Song on the End of the World, CZESLAW MILOSZ)

 

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Phillipe Dubois, teórico que, entre outras coisas, percorreu as possibilidades do vídeo enquanto imagem e dispositivo, fala de um “lugar dilacerado na história” ocupado pelo formato, condicionador de uma imagem transitória, que pende entre o cinema e o digital: é como “um banco de areia, entre dois rios, que correntes contrárias vêm apagar progressiva e rapidamente”, “um parêntese”, “um interstício ou um intervalo”, “uma ilha destinada a submergir”. Nesse não-lugar da analogia de Dubois, uma figura antes difusa entra em foco: num motel de beira de estrada, um homem branco de meia-idade espreita através das cortinas o céu escurecer e ser preenchido por nuvens carregadas, tv e rádio ligados anunciando a tempestade iminente, dias de espera. Em Weather Diary 1 (1986), primeiro filme da extensa série de “diários climáticos” de George Kuchar, a imagem ilhada é a esperança nunca concretizada de testemunhar um fenômeno meteorológico de magnitude e captá-lo na câmera de vídeo.

Por quase trinta anos, Kuchar manteve as idas periódicas ao estado de Oklahoma, coração da região conhecida como Tornado Alley (“alameda dos tornados”), no intuito de observar o clima e suas reverberações. Primeiramente instalou-se numa YMCA, associação para jovens cristãos na cidade de Oklahoma, e posteriormente no pequeno município de El Reno, onde realizou em 1977, Wild Night in El Reno, curta de pouco mais de 5 minutos de duração e de certa forma gênese dos Weather Diaries. O interesse por meteorologia nutrido desde a juventude – para além de um fascínio pela “tapeçaria colorida do céu que pairava sobre os cortiços de onde morava” como descreveria mais tarde, o diretor também já havia trabalhado fazendo mapas climáticos para o noticiário local – vem ao encontro de um potencial criador igualmente prematuro: desde os 12 anos de idade, George e o irmão gêmeo Mike produziam filmes em super-8 que replicavam, à sua maneira, os melodramas comerciais hollywoodianos e filmes B de terror consumidos por sua família de classe trabalhadora do Bronx. Com a naturalização das câmeras de vídeo nos anos 80, o fluxo (sempre considerável) das produções é amplificado, a comodidade e o baixo custo somados a uma estética por vezes considerada de filmes caseiros e/ou pouco artísticos, se tornam material basilar para os trabalhos posteriores de George Kuchar, incluindo seus diários.

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O filme-catástrofe como gênero, na sua essência, conclama pelo esforço coletivo em prol de um bem maior, seja o cumprimento de uma missão (Twister, 1996) ou a própria salvação (O dia depois de amanhã, 2004; 2012, 2009). A fuga e o deslocamento também figuram como forças motoras do gesto de sobrevivência, uma vez que a imobilidade significaria o fim (afinal um fenômeno natural só se torna catastrófico no momento que irrompe no cenário urbano, humanizado). O que Kuchar faz nos seus Weather Diaries, e sobretudo no primeiro filme, é justamente subverter essas abordagens partindo da calamidade como rotina solitária, uma espera permeada pelas previsões e notícias que chegam do mundo externo através do rádio e da tv, e mediada pela paisagem desgastada na janela do quarto no Motel Reno. Uma forma de existência no porvir.

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Em Gummo (1997), de Harmony Korine, crianças e adolescentes perambulam entre as ruínas de uma cidade devastada após a passagem de um furacão. Se o filme é por vezes tratado como apocalíptico, é possível que seja menos pela destruição causada pelo tornado e mais pelo que ela escancara: uma classe de pessoas fragilizadas, subnutridas e semialfabetizadas, cuja condição de vida precária numa área de risco a coloca sempre perto do fim. Numa mesma chave em determinado momento de Weather Diary 1, Kuchar conversa com uma mulher de traços indígenas sobre um alerta de tempestade. A mulher é filmada de costas olhando para o céu com preocupação, e é questionada se teria algum lugar onde se abrigar. A resposta – ela mora em um trailer estacionado perto dali – vem com palavras apaziguadoras (e no fundo temerosas) de ambos interlocutores de que, afinal, o evento não deve ser tão avassalador assim. Mais tarde, enquanto o céu parece desabar, o diretor se lembra da breve companhia

O medo e o desejo estão ali, mas o que transborda em Weather Diary 1 é o tempo e as transformações suscitadas na natureza (nos elementos humanos e não-humanos) e no corpo do diretor. Com o decorrer dos dias, poças e insetos se acumulam, quedas de energia se tornam frequentes, aparelhos eletrodomésticos começam a ranger, a pia entope e brotoejas se espalham sobre a pele de Kuchar. Lá fora, rostos conhecidos dizem adeus, algumas crianças brincam em um córrego poluído e os cães rondam animais mortos. A montagem, realizada na própria câmera, é quase toda composta por inserts, por meio de um método que consiste em retomar cenas antes gravadas e criar e simultaneamente preencher fissuras com novas cenas, novos comentários. Nesse processo, o que se experiencia é uma cronologia que obedece apenas à própria ordenação, como o fluxo da programação da tv que Kuchar goteja pelo filme inteiro, ou o vortex que escapa da descarga do vaso sanitário, no ralo da pia e no café mexido, sucedendo um ciclo de deterioração do universo pessoal do diretor.

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Nos últimos filmes da série, o motel habitualmente ocupado por Kuchar é transformado em casa de repouso – o que não o impede de continuar frequentando e muito menos de se tornar o único hóspede posto em um quarto inalterado enquanto reformam tudo ao redor. Essa imagem talvez seja a sumarização do lugar do realizador nos seus diários: um “storm squatter”[1] (se dizia) em oposição aos storm chasers, um ponto fixo num estado das coisas retido na incerteza. Se a câmera, como afirmava, era o que o protegia no vislumbre do mundo que parecia ruir sob a ameaça de tempestade, ela também é ancoragem da sua presença, uma alternativa preciosa para tempos nos quais só é possível olhar pelas telas e janelas.

Referências

Dubois, P. (2014). Cinema, vídeo, godard. Editora Cosac Naify.

MacDonald, S., & Kuchar, G. (1985). George Kuchar: An Interview. Film Quarterly, 2-15.

Ziemons, U. (2014). Aufzeichnungen eines Storm Squatters: George Kuchars Weather Diaries (Vol. 15). transcript Verlag.

[1] Algo como “sedentário de tempestades”

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O apocalipse filmo eu: Sogobi, de James Benning

Por Pedro Tavares

Narrador não-epistolar do cinema experimental e dos filmes-ensaio, James Benning é o que Walter Benjamin chama de flâneur, um autor que armazena o tempo como uma bateria armazena energia[1]. A carreira de Benning segue abordagens minimalistas e que discutem a força da intervenção do autor. De One Way Boogie Oogie (1977), filme no qual Benning “permite” a intromissão de pedras batendo nos tapumes da cidade ou a simples presença de pessoas que não autorizam a ciência se elas sobem ou descem as ladeiras até o recente L. Cohen (2018). Quatro décadas depois, o filme fortalece o conjunto de imagem e som através de artifícios. Na observação de Benning, há sempre um deslocamento da coerência na diegese, da lógica narrativa dos planos.

Sogobi, filmado em 16mm no ano 2000, antes da partida do autor para os dispositivos digitais, é uma espécie de retorno à natureza e filmado no Central Valley de Los Angeles. É a última parte da “trilogia da Califórnia” que se complementa com Los (2001) e El Valley Centro (1999), o primeiro concentrado na zona urbana da cidade e o segundo na área desértica. Na experiência de Sogobi, estruturalista como sempre, Benning analisa não só a intervenção do homem em “tempo real” com presença de helicópteros, caminhões e trens na área selvagem de Los Angeles.

A degradação da natureza nas imagens de Benning é oblíqua; o timing de fixação dessas imagens aos poucos se embaralha, e a ideia de uma narrativa de degradação da natureza por atitudes antropocêntricas oferece diferentes perspectivas. Uma delas está nas diversas sinopses encontradas pela internet que afirmam que Sogobi filme, em 35 planos, a natureza intocada. Outra é uma afirmação do próprio realizador que sugere o olhar para “puras imagens” e também o vislumbre de uma experiência arqueológica do cinema pela estrutura utilizada pelo diretor para contemplar o movimento e a falta deste – mais precisamente, o diálogo entre cinema e pintura.

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Em primeiro plano, há uma ideia de deslocamento de Benning a respeito do cenário apocalíptico nos Estados Unidos construído após os ataques de 11 de setembro de 2001, já que Sogobi foi lançado em 2002. Uma insinuação ao que o dromologista e pensador francês Paul Virilio chama de “não-lugar”[2]. Se não existe identidade, pois não há um “lugar”, ou seja, um reconhecimento imediato da imagem, as paisagens – e degradações – registradas violam a noção de cidade em favor de um sentido, o da angústia e a certeza do fim.

Ainda sob as palavras de Virilio em The Vision Machine (1989), a rapidez serve como a velocidade central da experiência contemporânea. Vale a lembrança da mudança tecnológica que o mundo passava no momento de filmagem de Sogobi com a chegada da internet em banda-larga. A percepção do mundo e velocidade mudaria mais uma vez em rápido curso de tempo.

O que o autor faz é não se concentrar na simples descontinuidade da diegese de ação e reação de seus planos estáticos. Afastar-se da coerência dos signos estipulados por suas imagens é, neste caso, uma “desnaturalização da experiência do tempo”, a usar as palavras de Timothy Corrigan (2011).

O apocalipse de Benning é intrínseco à subjetividade pública, longe dos grandes centros e que espelha ações que está a milhares de quilômetros dali, seja nas ações do capital de destruição da natureza como na própria guerra estipulada por George W. Bush em 2001. Se máquinas, armas e câmeras fazem parte do arsenal bélico americano com diferentes funções, o autor, em seu retrato particular de uma área delineada pelo pensamento estrutural, eleva o conceito dramático de destruição geral, seja por incêndios, outdoors, maquinários que tomam as paisagens ou a coreografia do funcionamento dessas máquinas.

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Pela temporalidade de registro dessas ações, James Benning incita um tipo de lamento na observação. A destruição como caminho irreparável de um modelo social que se espelha em outros extremos, incluindo a guerra. A angústia do ato de contemplar o extermínio é possível em Sogobi, afinal não há gritos ou explosões. Existe um enganoso sentido de trégua entre homem e natureza que o autor contrasta. As intervenções de Benning levam esta representação para o espaço público, onde não há escapatória para o olhar e a ciência do caminho de autodestruição. Toda coerência supostamente funcional é orquestrada para o fim da utopia de um espaço ainda não explorado, de uma reserva natural e moral disponível para deteriorações humanas.

As imagens de Sogobi invocam um organismo que reflete ações como escoadouro inevitável. A pureza do ambiente e das próprias imagens, aqui ora adulteradas e ora intactas, comenta a irreversibilidade do trauma – antes inócuo, agora (de)formado e com funções de interesses exclusivamente humanos. A questão que cerca todo o filme é se os interesses são de fato genuínos para o funcionamento de um espaço público que está no contraplano ou se toda mutação aqui registrada serve como uma via facilitadora de motivações financeiras ou bélicas. Benning, contrariando formas de pensamento a respeito do tempo, consegue “pegar a mosca com a mão”. O tempo está capturado com a certeza que para a ganância o tempo corre lentamente.

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[1] Walter Benjamin descreveu o flâneur como a figura essencial do espectador urbano moderno, um detetive amador e investigador da cidade. Mais do que isso, seu flâneur era um sinal da alienação da cidade e do capitalismo. Para Benjamin, o flâneur , conheceu o seu fim com o triunfo do capitalismo de consumo.

[2] Como um enunciado filosófico Virilio insinuava o fim da geografia onde emergem os não-lugares e a identidade dá lugar à rastreabilidade: “Eu não posso ser sem ter um lugar, torno-me um estranho.”

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Artifício apocalíptico: alegoria e corpo em Medo do escuro

Por Camila Vieira

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O primeiro plano de Medo do escuro (2015), de Ivo Lopes Araújo, apresenta em contra plongée dois prédios abandonados. Entre eles, é possível avistar o céu ser invadido por imensas nuvens brancas que estão a passar e que ocupam completamente o azul com uma grande e densa névoa. É uma atmosfera de um lamento fúnebre, uma figura ameaçadora como uma luz gigantesca e destruidora. Um holofote de um tempo de aniquilação das vidas. Aqui me amparo em Sobrevivência dos Vagalumes (2011), de Georges Didi-Huberman (2011), quando alerta para a luz feroz dos projetores que levarão ao desaparecimento dos vagalumes. Por meio do ofuscamento dessa luz branca, reina o fascismo triunfante.

Como seria possível para um corpo resistir ao fascismo que vai se disseminando pela paisagem de Medo do escuro? Antes de arriscar uma resposta, será preciso entender como o filme articula duas vontades singulares. O primeiro gesto é do levante, convocado pelas próprias palavras de Ivo Lopes Araújo sobre o filme. Um levante que se desdobra na própria feitura do filme. É toda uma cena artística de Fortaleza que é convocada como força coletiva dentro do filme: poetas, performers, músicos. O ator principal é Jonnata Doll, cantor e performer. A trilha musical do filme era executada ao vivo por um quarteto de músicos – Ivo Lopes Araújo, Vitor Colares, Uirá dos Reis e Thaís de Campos. Exibir o filme era uma aventura de viajar junto com um grupo. Cada exibição tinha o caráter de uma experiência única. Medo do escuro é um filme em processo, um work in progress. É até difícil exibir em uma sala de aula, porque sua experiência parece ser da ordem do provisório.

O provisório leva ao segundo gesto. Um filme rodado em 16mm, com película vencida, em que se tinha três horas de material bruto para resultar em um filme de 55 minutos. Cada take filmado era um take único. Seria preciso confiar na performance dos atores para que o filme acontecesse. Confiar na potencialidade do fragmento como estratégia para uma dramaturgia possível. Performance e fragmento compõem diferentes modos de articulação do que se encena, em uma vontade de instaurar um cenário pós-apocalíptico. Medo do escuro aposta no artifício como experimentação estética a partir da construção de imagens alegóricas, na tentativa de estremecer as relações contíguas com um real previamente conhecido.

Abrir caminhos para sentidos múltiplos e provisórios é fazer também uso da alegoria como contraponto ao simbólico. Enquanto as metáforas e os símbolos apontam para unívocas interpretações de mundo, a alegoria possibilita uma proliferação de sentidos, que sempre mudam a cada olhar e criam momentos de interrupção no solo petrificado da significação. Tomo aqui o conceito de alegoria em Walter Benjamin (1984) para quem a alegoria configura-se como resistência ao símbolo. Diz Benjamin na Origem do Drama Barroco (1984): “alegoria não é frívola técnica de ilustração por imagens”. Nada na alegoria é definitivo.

O pesquisador Rainer Rochlitz dedica um trecho de seu livro O desencantamento da arte (2003) para compreender de que maneira a alegoria é elemento importante para construção de uma teoria da arte para Benjamin: “A alegoria não é aqui simplesmente um tropo, uma figura de estilo substituindo uma ideia por outra que lhe é análoga (…) a alegoria é não somente o princípio formal de um certo tipo de arte – desse ponto de vista, ela se opõe ao ‘símbolo’ ou a uma arte definida como ‘simbólica’ – mas ainda, mais que um conceito retórico ou mesmo poético, um conceito estético que remete à coerência de uma visão de mundo”.

Não se trata de compreender a alegoria como “uma técnica lúdica de figuração metaforizada”, como explica Rochlitz, mas como expressão, um conceito estético. Na alegoria, a face hipocrática da história se oferece ao olhar do espectador como paisagem primitiva petrificada. É “a história, naquilo que ela tem de intempestivo, de doloroso, de malogrado”, afirma Benjamin. A alegoria benjaminiana é uma recusa radical de qualquer reconciliação simbólica. Está mais próxima de uma experiência da história com um olhar profundo que, segundo Benjamin, “transforma, de um só golpe, as coisas e as obras”.

Se preferirmos enfrentar a força da alegoria nas imagens de Medo do escuro, parece ser preciso sempre retornar ao filme e, a cada nova exibição, pensar de forma diferente em relação ao que está sendo colocado em jogo. Ainda segundo Rochlitz, “a alegoria faz aparecer a fragilidade do símbolo, sua vitória sempre provisória e momentânea sobre a ‘arbitrariedade do signo’. A escritura expressiva da alegoria é destrutiva”. Ao lançar mão de imagens alegóricas, Medo do escuro provoca determinadas rupturas no olhar. Penso não apenas naquilo que conseguimos ver dentro de um campo limitado de uma tautologia das imagens, mas como o filme opera buracos, rachaduras, ausências em uma certa platitude da visibilidade, que a nós parece já estar acomodada e domesticada. Em outras palavras, seria possível pensar junto com Didi-Huberman que aquilo que vemos também nos olha.

Considero gestos de operações de figuras cinematográficas em que a imagem acaba por rachar, cindir, ser perturbada por rastros, marcada por vestígios que colocam em questão ou em suspensão regimes de visibilidade do contemporâneo que podem conduzir às tiranias de uma mirada realista naturalista ou de uma interpretação simbólica. Na alegoria, uma imagem não está a serviço de um modo de ilustração ou simbologia de algo dado no mundo, mas como potencial dialético que intercepta o símbolo ao convocar o provisório, o fragmento, o vestígio. De acordo com o pensamento benjaminiano, “na esfera da intenção alegórica, a imagem é fragmento, ruína. Sua beleza simbólica se evapora. O falso brilho da totalidade se extingue”. A imagem como fragmento e ruína dentro do cinema abre uma conexão com o artifício.

Ângela Prysthon (2015) argumenta que o realismo preponderante da década de 2000 vai cedendo lugar a ambiguidade do que ela chama de “realismo sob rasura” em que o artifício dilacera o real. “Choque deliberado entre o realismo e o artifício excessivo que desarticula e desestabiliza os efeitos de real pressupostos em plots mais banais”. Para a pesquisadora, a transfiguração ou desfiguração do real em filmes que apostam no elogio do artifício acabam por inventar mundos alternativos com o cinema. “Os filmes propõem potentes heterotopias fílmicas, exercícios de resistência ao real ou premonições sombrias, e se revelam extremamente pertinentes para pensar o contemporâneo”.

A alegoria pode ser pensada como conceito estético que, no cinema, vincula-se a uma estratégia do artifício. Para Benjamin, a alegoria é “um objeto de saber, aninhado em ruínas artificiais, cuidadosamente premeditadas”. Em Medo do escuro, tais ruínas artificiais engendram volumes de corpos e superfícies de paisagens entregues ao esvaziamento, às forças sensíveis dos vestígios em que o ver nada mais é que uma experiência dos rastros. Figurar a história como catástrofe, como acúmulo de ruínas, é o que mobiliza Medo do escuro. Um jovem sobe os andaimes de um prédio abandonado e cata papeis em meio a escombros para fazer uma fogueira e se aquecer. Ele deambula por uma cidade desolada, tomada por entulhos, em ruínas.

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As ruínas em Medo do Escuro não são apenas a constituição aparente da paisagem. Elas são imagens do provisório e do fragmento que a alegoria evoca e, de algum modo, roçam a fragilidade e o desamparo de uma cidade como Fortaleza, povoada por edifícios e ruas abandonadas. Lugares de memória, destruídos ou largados à própria sorte, pairam em meio à dinâmica predatória de ocupação dos espaços da cidade. Como ainda é possível habitar uma cidade em ruínas? Como criar bolsões de resistência neste cenário pós-apocalíptico? Contentar-se com o pouco, com o frágil, construindo diferenças com os resquícios que ficam, pode ser uma estratégia. O gesto é o mesmo do protagonista que constantemente arrisca voltar às ruas para coletar restos.

Medo do escuro projeta cenários de paisagens em ruínas em que personagens encontram novas formas de sobrevivência. O filme é entulhado por escombros de prédios, em ruas esfumaçadas, com personagens em meio a fragmentos de espelhos e lixo. Prysthon compreende que “essas imagens de ruínas e de desolação parecem desfigurações ou transfigurações da Fortaleza real”. Mas é justamente a transfiguração que está em jogo nas imagens de Medo do escuro que faz com que a paisagem possa reverberar a sensação de ocupar qualquer grande centro urbano, que privilegia a construção de grandes empreendimentos e ordena remoções constantes da população. A ruptura se dá neste lugar em que já não é possível reconhecer imediatamente a cidade de Fortaleza como lugar de representação, mas a construção de um espaço alegórico em que tudo parece ruir.

Se o levante se dá na práxis do filme, há um gesto iconoclasta em relação à imagem simbólica já desgastada do levante: jogar o coquetel molotov com o rosto coberto por uma máscara. Não há em quem atirar a garrafa incendiária – a cidade está vazia – e a máscara não é uma forma de esconder a identidade de um rosto – o ar está tóxico. É uma ação para o nada, que termina com a sensação de cansaço, muito comum ao que parte de nós vive no corpo. Um trio de agressores observa e ataca. Os corpos dos poucos sobreviventes entram em convulsão ou desencanto. São constantemente agredidos e abatidos. Há o gesto de acolhimento de uma garota em abrigar o corpo do jovem para um intervalo de cura. É preciso acolher em momento de necessidade de ajuda.

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Os lampejos intermitentes de Medo do escuro – espelhos reluzentes, reflexos do sol e o brilho nos corpos dos personagens – parecem vislumbres de um possível que permitem aos corpos continuar, a dar mais um passo, a não ceder diante das ameaças. Nos momentos mais críticos, há sempre a queda, mas algo impulsiona os personagens a recomeçar. Em uma morada hostil, talvez não haja força suficiente para combater os poderes. Quem sabe tais instâncias de soberania sejam apenas imagens a impor o medo, a tentar nos imobilizar e arrefecer nossos ânimos? O que esse filme pode convocar em meio a uma nova barbárie?

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A imagem narcísica do agressor irá se desfazer como um espelho quebrado e o céu voltará a ficar azul. O impulso de resistência parece estar guardado no corpo: ele extravasa em um movimento de dança, como os vagalumes que dançam na alegoria lançada por Didi-Huberman. “Nós podemos experimentá-la a cada dia – a dança dos vagalumes, esse momento de graça que resiste ao mundo do terror, é o momento mais fugaz, de mais frágil”. Enquanto houver força para se tornar vagalume, o corpo resistirá como ser luminescente, dançante, errático, intocável. Eis que a questão em jogo é política e histórica.

Referências

BENJAMIN, Walter. Origem do drama barroco alemão. São Paulo: Brasiliense, 1984.

________________. As passagens. Belo Horizonte: UFMG, 2006.

DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Ed. 34, 1998.

______________________. Sobrevivência dos vagalumes. Belo Horizonte: UFMG, 2011.

PRYSTHON, Ângela. “Furiosas frivolidades: artifício, heterotopias e temporalidades estranhas no cinema brasileiro contemporâneo”. Revista Eco-Pós, Rio de Janeiro, v. 18, n. 3, p. 66-74, 2015.

ROCHLITZ, Rainer. O desencantamento da arte. Bauru: Edusc, 2003.

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Shyamalan e a iminência

Por Bernardo Oliveira

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I. (tomorrow is the question)

Os alienígenas em Twin Peaks — The Return estão bolados: demonstram preocupação extrema com o destino aparentemente inevitável da Terra. Com o advento dos testes nucleares, isto é, através de sua própria atividade, o “tipo Homem” atravessou um perigoso limiar, tornando concreta a possibilidade de sua própria extinção. Na antessala onde ocorre o bizarro parlamento, projetam-se imagens do acontecimento que pode determinar a destruição do planetinha vagabundo e da corja desalmada que o habita. As imagens incidem sobre uma tela instalada no hall, cuja aparência lembra a de uma sala de cinema, mas sem as poltronas. Seres antropomórficos assistem ao espetáculo da destruição como quem vê a realidade cósmica através da tela de cinema. Como no processo aterrador do Apocalipse bíblico, o Cinema também encontra sua potência em tramas de afetos e afecções, em articulações fantasmáticas entre imagem, som e palavra. A nós, espectadores terrenos e mortais, resta embarcar em um dos mais intensos fluxos audiovisuais da cinematografia recente. Invenção e escatologia se imbricam no imaginário apocalíptico criado por David Lynch.

Apocalipse, do verbo grego clássico apokálupsis (ἀποκάλυψις) — que é a junção do prefixo de negativo ápó (ἀπό) com o verbo kalúptô (καλύπτω, esconder), dando forma ao sentido de algo que se descobre, se revela, se torna público. O sentido mais literal do termo não se relacionaria somente à destruição, mas à ideia de algo que se descobre ao fim de um processo. Apocalipse, isto é, uma “revelação”. Em termos literários, o Apocalipse canônico teria, como uma de suas características, a proliferação de acontecimentos terríveis, carregados em imagens absurdas, que embaralham as dimensões da linguagem e das sensações. Redigido pelo profeta  João de Patmos, o Apocalipse descreve um cortejo de criaturas extravagantes revirando o Planeta de alto a baixo. Um espetáculo carnavalesco, trágica representação do acerto de contas divino com a humanidade vacilona. Bodes degolados com sete olhos e sete chifres, sete anjos que nos lançam sete pragas, “miríades de miríades e milhares e milhares” de anciãos, taças douradas, incensos, raios de fogo e lava, choros e gemidos suplicantes, mares de vidro e fogo. A colheita maldita separa os puros e os impuros, os sagrados e os degradados, “morte, miséria e fome”. Imagens de um filme-catástrofe que tira proveito do esgotamento para fazer transbordar um sentimento delirante de vingança divina.

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A catástrofe apocalíptica teria por função varrer do mapa o mundo tal como o conhecemos, expondo a todos — a todos, mesmo! — o conteúdo derradeiro do processo, isto é, o valor e o poder verdadeiros. O poder revelador da catástrofe é, portanto, um poder que evoca o sentimento generalizado de pavor diante da finitude humana, pavor que é produzido pela sensação de que o fim do mundo, tal como o conhecemos, é inescapável. O fim do mundo corresponde ao desmascaramento de todas as ilusões de sobrevivência, particularmente da raça humana. E, no intervalo entre a destruição e a revelação, pode-se flagrar a oscilação apocalíptica, as múltiplas forças da dúvida e do movimento, que incidem sobre os viventes e que rebatem o pavor, redistribuindo as cartas.

Shyamalan tematiza diretamente o fim do mundo em Fim dos Tempos e Sinais, operando também a tensão revelatória em praticamente todos os seus filmes. O conteúdo derradeiro, porém, nunca é exposto ou resolvido em sua totalidade, ficando espaço-tempo e personagens à mercê de uma realidade descontinuada. O Apocalipse shyamalânico não se concretiza, mas funciona como pressuposto para a manipulação das atmosferas que envolvem seus personagens. Seu ponto de vista se vê oscilando entre a descoberta e a destruição, sempre sob a perspectiva da Iminência — “pois o tempo está próximo…” (Apocalipse, 1). O foco não reside no fim, na destruição de toda a ordem, tampouco na revelação da nova ordem, mas nas variações particulares provocadas pela situação de suspensão. O conteúdo revelado — místico, misterioso ou escatológico — corresponde à suspensão da ordem universal, natural ou restrita, sem que sejam substituídas imediatamente por outras ordens. Se há um registro apocalíptico na obra de Shyamalan, não se trata nem de um apocalipse derradeiro ou terminal, nem do anúncio de uma verdade; mas desse espaço de suspensão entre a destruição e a renovação.

Lemos no escrito canônico do Apocalipse, que integra o Novo Testamento, algo que nos remete diretamente à potência revelatória que o Cinema manifesta em Twin Peaks. Após uma primeira anunciação divina, o profeta assiste a uma cena inusitada: “eis que se mostrou uma porta aberta no céu; e a voz […] falando comigo, dizendo: ‘Sobe até aqui e eu te mostrarei as coisas que é preciso que aconteçam depois dessas’.” O céu se abre como a tela de cinema alienígena e, através dela, recebemos, a um só tempo, um comando decisivo, um testemunho do devir e uma convocação para a ação. Na situação revelatória, deserdados pelo destino dos ingênuos, somos forçados a traçar uma linha de fuga e agir a todo custo.

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Assistimos aos nossos próprios traumas se dissolverem ante ao espetáculo da destruição. O horizonte de expectativas é borrado pela dúvida: o que virá? Como em praticamente todos os seus filmes, trata-se também de um elogio e de uma operação sobre a hesitação: duvidar daquilo que se vê e crê; paulatinamente tomar consciência da enrascada em que nos metemos. A dúvida — que fazer? — empurra a trama adiante e mantém o processo irresoluto entre a realidade deste e a de outros mundos possíveis. Em meio à iminência, ocorre também a intermitência da catástrofe, os fragmentos do conflito que se espalham e se depositam pelo seu entorno. O terror, como subproduto da dúvida, advém de uma realidade envolta nas consequências imprevistas da suspensão revelatória: o mito comunitário e opressor descortinado em A Vila; a trama invisível que incide sobre os humanos em Fim dos Tempos (melhor seria tomarmos pelo seu título original: “O Acontecimento”…); a ameaça alienígena como escravização do humano em Sinais; a esperança de reconduzir a “Dama da Água” de volta ao seu mundo. Manter a dúvida é fundamental. Assim, o autor não dissolve, mas torna fluido o limite entre a luz e a escuridão. Seu cinema é apocalíptico, porque se autodetermina no limiar entre finito e infinito, ciência e subjetividade, magia e realidade, mantendo em aberto o espaço da iminência. Entre a iminência e o interdito, há mais do que uma diferença de grau, mas a emergência de uma nova ordem, que permanecerá desconhecida. Shyamalan não pretende iluminar a escuridão, mas posicionar seus personagens em uma fronteira cinzenta, de modo que eles testemunhem e reajam à catástrofe inevitável.

II. (broken shadows)

“Cresci hindu”, afirma Shyamalan em uma entrevista. Naturalizado norte-americano aos 18 anos, substituiu o Nelliyattu pelo Night e abreviou Manoj.: M. Night Shyamalan. Nasceu em Mahé, pequena cidade em Pondicherry, Distrito Nacional da Índia, migrando para a Pensilvânia com seis anos de idade e naturalizando-se norte-americano durante a Faculdade. Ainda jovem, realizou dezenas de filmes em Super-8, sob a influência de Steven Spielberg, o cineasta judeu responsável por um dos filmes mais ofensivos de que se tem notícia contra a religião Hindu: Indiana Jones e o Templo da Perdição (1984). Isso não impediu Shyamalan de tomar Spielberg como referência, mas, também, de forma inequívoca, de subverter a máquina spielberguiana, sabotando-a por dentro. Digo isso, pois, não tendo a competência para uma análise breve da diferença entre Protestantismo e Hinduísmo, assim como das relações de aproximação entre Judaísmo e Protestantismo, gostaria apenas de observar que o Protestantismo opera por redução, ao máximo, dos caminhos que conduzem à divindade, tendo as restrições prescritas pelas “Cinco Solas”, critérios de estreitamento simbólico. Só há um caminho e a disputa é o termo exclusivo. Sobre esse aspecto, o Hinduísmo é duplamente contrário ao Protestantismo e ao Judaísmo: não há apenas um só caminho a percorrer ou uma divindade a adorar, tampouco uma divisão tão rígida entre a imanência e a transcendência.

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O preconceito norte-americano é o subproduto direto da ganância nacional: a ética protestante preside o espírito do Capitalismo. A ética da competição, a educação para o sucesso e para o fracasso, o peso de ser um loser… Mas é também uma resposta formulada pelo medo do futuro. Shyamalan nos oferece uma cartografia ambígua do medo norte-americano, cultivado inclusive por uma cinematografia milionária. Em seus filmes industriais, as ameaças surgem sob a forma de alienígenas, do fim do mundo, da morte e do além-morte, dos mutantes, dos superpoderes e da tecnologia que não dominamos. Os imigrantes são sempre representados como subalternos ou ameaça. Shyamalan reverte o esquema: a ameaça serve como meio de exposição dos preconceitos — e não seria a sociedade representada em A Vila, eventualmente terraplanista e antivacina, a mais forte caracterização do olhar crítico que Shyamalan lança sobre a sociedade norte-americana?

Inverte-se a lógica triunfalista do drama hollywoodiano e desdobram-se possibilidades intensivas, outros tipos de relação com o clichê e o gênero, ambos expositivos e marcados por um estilo preciso no enquadramento e nos movimentos de câmera: de um lado, “o universo em desencanto cósmico”; de outro, “a natureza em suspensão mística”.

Quando o Universo se encontra em desencanto cósmico, o processo de desmoronamento definitivo ou provisório é o grande tema. Como em A Vila, Fragmentado, Sinais, Fim dos Tempos, Olhos Abertos, o presente é deformado por forças do passado, atualizadas por acontecimentos misteriosos e traumas insuperáveis. Marcado por seu sofrimento particular, os personagens se veem na necessidade de suspender provisoriamente o trauma e superar a personalidade, por força da necessidade urgente de ação e mudança. Em Fragmentado, a besta perdoa somente os cindidos, os quebrados, os que sofrem e superam. O sofrimento é o que sublima as potências próprias de Crumb e Elijah. O indivíduo é impelido à desfragmentação, perde sua individualidade e busca reconstruir-se a partir das forças atemporais do Cosmos. Em A Vila, por exemplo, abre-se a caixa do passado no exato momento em que a menina, através de um esforço descomunal, atravessa a fronteira em direção ao “fora”, independente da catástrofe que este “fora” determinará na vida daquela comunidade. Em Sinais, o inesperado ocorre justamente em uma fazenda isolada do mundo, onde o luto e o desencanto plantaram raízes e se instalaram definitivamente. O acontecimento misterioso, que impele os humanos a cometerem suicídio inconsciente, obriga o professor do high school a usar seus conhecimentos científicos para salvar a si e aos seus. A revelação reside na instalação de uma simultaneidade, onde presente e passado incidem misteriosamente, um sobre o outro, se iluminam mutuamente e exigem mudança e superação.

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A Natureza em suspensão mística corresponde à suspensão do tempo-espaço convencional, abrindo a realidade para o além e o aquém do humano; e, em alguns casos, para as volatilidades das formas orgânicas e inorgânicas. Futuro, presente e passado coincidem, tornam-se simultâneos, ainda que assimétricos, em seus graus de manifestação intensiva. Os poderes especiais dos personagens, seus mundos específicos, suas características divergentes, tudo conduz ao alargamento do horizonte de atividades: a trilogia dos heróis opera diretamente essa desnaturalização da potência, em força cega interiorizada. O mesmo ocorre também com o menino-médium em Sexto Sentido, o menino desafiado por uma natureza alienígena em Depois da Terra, o surgimento de uma ninfa intraterrena em A Dama da Água, os poderes de outro menino extraordinário em O Último Mestre do Ar (aliás, remeto a presença forte das crianças às “Três Metamorfoses” de Zaratustra: de camelo a leão e, por fim, à criança, ou seja, a inocência do devir, o Amor Fati…) Em Sexto Sentido, a intuição mediúnica tem o poder de reparar o passado, pois, conversando com os mortos, o menino remedia e atualiza suas dores. A força e a fraqueza de Elijah Price e David Dunn nunca se colocam como absolutas; parecem obedecer a graus de atualização por interdependência, fornecendo a base dialética para a ampliação da individualidade — para cada herói, um duplo: a mãe, a amiga e o filho. A revelação reside na descoberta do transindividual, expondo tanto a condição provisória do humano, como também as potências ocultas e os poderes impróprios.

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Vale notar que muitos dos filmes reúnem os dois registros. Sinais, por exemplo: universo em desencanto cósmico, oscilando brutalmente entre o trauma e a dúvida; mas também a Natureza em suspensão mística, revelando seres extraterrenos e, com eles, um desdobramento da impotência humana diante do que virá, não importa se o caos ou o destino. Fim dos Tempos também comporta a volatilização da Natureza e a superação do humano. Em A Vila, esse limiar entre humano e inumano é motivo de oscilação; assim como em Corpo Fechado e Fragmentado — em Vidro, essa dúvida torna-se o epicentro da questão, servindo como base ao extraordinário diálogo entre a psiquiatra e os heróis. A Visita constituiria o caso divergente, pois não sendo nem cósmico, nem místico, mantém-se no domínio da hesitação privada.

III. (skies of america)

Não há personagem nos filmes de Shyamalan capaz de provocar o mesmo grau de desencantamento do que o planejado pela psiquiatra Ellie Staple e seu poder científico, institucional e policial. Olhar penetrante como uma dose de Pentobarbital, enquadra os pacientes enquanto distúrbios clínicos, reações naturais — e não sobrenaturais — aos traumas que atravessaram. A psiquiatra não esconde um afeto perverso por seus casos, comunicando-se com eles através de seu rosto calmo e voz segura. Dra. Staple representa a responsabilidade fria do Capital, o poder policial da Ciência, mais voltado para a estabilização do status quo — representado por um restaurante metido a besta — do que por sua transformação. Usando métodos semelhantes aos da terapia familiar e, eventualmente, aos da tortura, Dra. Staple encara suas preciosas anomalias com firmeza de propósito e autocontrole. Como toda psiquiatra, ela cobra dos casos a prova do desencanto, a confissão voluntária e o voto pela normalidade. Dra. Staples representa a força do establishment, a força da violência normalizadora, incomparável à violência perpetrada pelo vigilante, pelo gênio do mal e pelo assassino fragmentado.

A resposta dos heróis fortalece a aliança anômala e, sustentando a dúvida, permanece tão ambígua quando evidente. Apesar do projeto de normalização, sempre persiste um master plan, nem que seja um plano suicida. Apesar da realidade vigente que constrange os superpoderes, apesar de se autodestruírem, apesar de vulneráveis às armas policiais, o trio insiste: “nós existimos”. A interrupção da proliferação anômala pode ser compreendida tanto como uma vitória parcial do poder despótico, como um lamento diante da morte da diversidade. O que suscita o pavor não são os superpoderes, mas a descrença radical nas potências pré-individuais, potências de renovação do presente. Em suma, a descrença no presente enquanto portador de élan vital, devido ao baixo grau de diversidade humana, vegetal e animal — como adverte Pascal Picq em seu livro A Diversidade em Perigo, chamando a atenção para “os desenraizados pelos avanços da civilização são cada vez mais numerosos”.

(from left) Samuel L. Jackson as Elijah Price/Mr. Glass, James McAvoy as Kevin Wendell Crumb/The Horde, Bruce Willis as David Dunn/The Overseer, and Sarah Paulson as Dr. Ellie Staple in "Glass," written and directed by M. Night Shyamalan.

Escrevendo sobre o conteúdo apocalíptico e o Milenialismo do cinema norte-americano na virada do século, Kirsten Moana Thompson mostra que a atmosfera apocalíptica é engendrada por ansiedades, provocadas pela instabilidade da opressão presente:

“Repetidamente, quando o desastre ocorreu, o pensamento escatológico entendeu a ruptura política, social ou física como presságios do começo do fim do mundo; a enorme devastação causada pela praga bubônica nos Séculos XIV e XV e a ameaça de invasão islâmica no Século XVI, provocaram o retorno dessas ansiedades”.

Thompson complementa o que escreve Eva Horn em The Future As Catastrophe:

“O valor político das profecias bíblicas, portanto, estava diretamente nas imagens da queda dos impérios, da destruição dos emblemas do poder terrestre e da punição dos poderosos. Essa destruição é uma promessa de que o poder mundano terminará e que o mundo atual estará sujeito a um final”.

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A força motriz desse acontecimento é o presente indefensável. Assim como as narrativas proféticas, que acorrem a um diagnóstico implacável do presente, Shyamalan problematiza seu próprio tempo através de uma crítica velada, às vezes imperceptível, a conceitos e valores caros ao léxico político da Modernidade — nação, território, fronteiras, defesa, soberania. Convém, então, dizer com todas as letras: os filmes de Shyamalan operam a partir do fluxo de imagens extraídos da décadence americana, a decadência dos Estados Unidos da América. Hackeando os mecanismos redutores de representação da alteridade do Cinema norte-americano, seus filmes parecem sugerir que a hegemonia dos Estados Unidos se encontra em processo de dissolução.

Como consequência, seu cinema também capta a decadência de um certo modelo épico, racista e autossuficiente. Edward Walker não corresponde, necessariamente, a sua aparência superficial, o pai dedicado e líder responsável. Antes, eu o percebo como um alt-right bizarro que dispõe abusivamente dos destinos da comunidade. Da mesma forma, estamos acostumados a encarar o vigilante no cinema como um herói inequívoco, tal como personificado por David Dunn. Mas podemos considerar igualmente que a descrença do justiceiro na política e no Direito é tão nociva quanto os abusos conduzidos pela instabilidade do “fragmentado” e o genocídio que a hiperinteligência do Sr. Vidro pode provocar.  São narrativas que nos situam justamente no limiar entre o mundo competitivo vendido pelo American Way of Life — AKA Capetalismo — e a abertura que ele propicia para reações catastróficas, geradas pela fé-cega no “mercado”, no indivíduo e no fim da política.

Referências:

BÍBLIA: Novo Testamento: os quatro Evangelhos. Tradução do grego, apresentação e notas por Frederico Lourenço. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.

HORN, Eva. The Future as Catastrophe. Imagining disaster in the modern age. Translated by Valentine Pakis. New York: Columbia University Press, 2018.

PICQ, Pascal. A diversidade em perigo : de Darwin a Lévi-Strauss. Rio de Janeiro : Valentina, 2016.

THOMPSON, Kirsten M. Apocalyptic Dread: American Film at the Turn of the Millennium. Albany, N.Y.: State University of New York Press, 2007.

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