Olhar de Cinema: Canto dos Ossos

Por Geo Abreu

Alguns limites para a liberdade

“O difícil é ter que recomeçar sempre”

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Assisti Canto dos Ossos pela primeira vez na Mostra Tiradentes SP para uma semana depois rever na programação do Olhar de Cinema. Comprei o segundo ingresso no dia seguinte ao primeiro visionamento. Filmes feitos entre amigos costumam me animar, mas o que me empolgou mesmo foram as potências de invenção que se apresentam na história dos amigos Naiana (Rosalina Tamiza) e Diego (Maricota).

Acompanhar os filmes feitos por Jorge Polo, Catu Rizo e Helena Lessa (as duas últimas diretoras de fotografia de Canto dos Ossos) tem sido garantia de boas surpresas posto que eles formem uma trupe de bruxas e magos, que fazem do cinema essa mistura de elementos díspares, palavras sussurradas, conjuramento de feitiços e produção de rituais que servem aos mais diversos fins, sendo vencer o tempo a ideia que atravessa todos eles (os fins e os filmes).

Os rótulos de fantasia ou filme de terror me deixam encabulada. Tem muito mais coisa por baixo das unhas compridas cobertas de vermelho.  Chega um momento do filme que a primeira ligação que faço é com Desejo e Obsessão de Claire Denis. Acompanhamos o envolvimento entre Diego e um amigo: após um susto inicial, se estabelece uma movimentação violenta, algo de kink, de perversão consentida, experimentação de quase morte como prazer. A liberdade que se vê aqui como texto se cruza com a liberdade criativa das disjunções e dos personagens que precisamos decifrar a partir do próprio repertório e esbarram na ideia de imortalidade como prisão, na necessidade de fuga e mudança constante, na consequência de existências livres que se metem em problemas todos os dias.

Deve ser cansativo para Naiana, Diego e seus amigos, pois a cada gesto que afirma suas naturezas se esbarra em alguma força contrária, e a tensão que daí surge muitas vezes é sublimada para que se prossiga a jornada sem chamar atenção, enquanto em outras é preciso tomar partido e lançar o corpo no contra-ataque. A figura da criatura enfaixada de voz cansada e antiga pode muito bem ser um demônio à Hellraiser, uma imagem perdida em algum sonho Lynchiano ou o homem que vendeu o mundo naquela música do Bowie. Faz tanto sentido que ela seja decrépita e carcomida como a juventude possa se restaurar do combate tomando um banho de mar.

Essa mesma juventude é atraída magneticamente, os grupos se formam, convivem por um tempo e se espalham pelo mundo novamente. Velas são acesas e rituais online são necessários para manter a conexão. As verdades que eles compartilham podem servir a criação de discursos em linguagens diversas. É cômodo transmutar o sangue que se espalha nas ruas e na TV aberta em signo estético de vida em explosão, experimentação ao limite, riscos, dúvidas e beleza? Mostrar as garras passa a ser cômodo sim em algum momento e é necessário que assim seja.

A monstruosidade como figura de expansão é para mim a grande mensagem de Canto dos Ossos. O ranger de velhas estruturas, como o cinema, mascaram o desejo de que algo os faça mover para tombar, e ser testemunha desse movimento é tão precioso que me deixa feliz em meio a tanta merda concentrada no ano de 2020.

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Olhar de Cinema: Trouble

Por Camila Vieira

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Trouble começa com uma reportagem dos anos 1960 em que aparece o protestante David Coleman, aos 19 anos, em Belfast. Ele estava desempregado e prometia se casar com uma jovem católica. A união do casal desafiava os conflitos permanentes entre as duas religiões naquele território. Décadas depois, a imagem de Coleman na juventude e seu envolvimento político na capital da Irlanda do Norte conduzem a diretora estadunidense Mariah Garnett a realizar um filme sobre ele. David é o pai de Mariah e hoje mora na Áustria. A realização de Trouble foi uma forma da diretora estadunidense conhecer melhor seu pai ausente – com quem se correspondia apenas por cartas e teve o primeiro contato presencial quando ela completou 27 anos.

Ao retomar fotografias e informações do passado, David até fala bastante sobre sua família, o contexto político de Belfast e seu envolvimento como membro ativo do People’s Democracy, partido estudantil e trabalhista. Mas ele prefere relatar tudo do conforto de sua casa e recusa a proposta que Garnett faz de viajar à Irlanda para reencontrar seus amigos e familiares. A relutância do pai leva a diretora a construir uma estratégia bastante inusitada para seu filme: ela se veste tal como seu pai aparecia na reportagem e performa seus gestos e suas falas nas ruas de Belfast, como se fosse o jovem Coleman nos anos 60.

Ao preencher tais lacunas da memória com suas reconstituições históricas pela performance de seu próprio corpo em cena, Garnett brinca o tempo todo com a forma do filme e subverte a convencionalidade de um documentário de família. É um jeito queer de pensar e fazer cinema, em que o realismo dos depoimentos e das imagens de arquivo vai cedendo espaço para as divertidas encenações em que Garnett atua como o pai dela. Se desde o início já não era possível recuperar integralmente o passado de seu pai, a magia de Trouble encontra-se em assumir o artifício como estratégia de reposicionamento das falhas e das fissuras da memória e de inventar novos gestos narrativos para os códigos dos filmes biográficos.

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Olhar de Cinema: Traverser (Após a Travessia)

Por Camila Vieira

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Na Costa do Marfim, uma reza coletiva acontece em volta do túmulo do patriarca de uma família. Uma mãe e sua filha rezam, choram e retomam o caminho para casa. Na Itália, rapazes acabam de chegar e um deles é o marfinense Inza Touré, conhecido por todos como Bourgeois. Ele esteve preso na Líbia, acaba de aterrissar em território italiano e precisa chegar até a França, onde almeja melhorar suas condições de vida e conseguir sustentar sua mãe e sua família que lá ficaram na Costa do Marfim.

O documentário Traverser, de Joël Akafou, acompanha os percalços de Touré em sua rotina de sobrevivência em território europeu. Ao fazer uma chamada em vídeo para sua mãe, ele chora e ela o consola: “Diante da adversidade, você deve ser forte”. Mais tarde, ele olha para a fotografia da mãe e diz em voz alta: “Sou seu herdeiro, seu filho, seu sucesso, sua evolução. Tenho que lutar por você, mamãe”. Mas a Europa expulsa Touré a todo instante: ele não encontra oportunidades para permanecer por muito tempo em um só país. Ele pula de casa em casa e depende da benevolência de mulheres – Aminata, que pagou três vezes sua fiança na Líbia; Michelle, que o hospedou na Itália; e Brigitte, que pretende o receber na França.

Um dos amigos de Touré pede para que tenha cuidado para não enganar as mulheres que aparecem em seu caminho. “Minha vida é difícil. Estas são as condições em que sou obrigado a sobreviver”, explica Touré. A rotina como imigrante não abre novas possibilidades de escolha para Inza Touré, que mal consegue dinheiro para fazer uma travessia segura até a França. Em uma roda de conversa com outros amigos imigrantes na Europa, um deles fala: “O que estamos vivendo aqui não é uma vida! Estamos todos em um mesmo ‘barco’ na África”. A promessa de uma vida melhor na Europa é um horizonte ilusório que explicita as marcas da colonização.

Com Traverser, o diretor Joël Akafou volta a acompanhar a jornada de Touré, que também foi o personagem principal de Vivre riche, seu primeiro longa-metragem. A filmagem em cinema direto torna visível a proximidade entre quem filma e quem está sendo filmado, sobretudo quando a vida de Touré encontra paralelos com a própria experiência de Akafou como imigrante africano na Europa. A direção propõe se colocar ao lado dos anseios e das incertezas de Touré, sem julgamentos de seus atos.

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Olhar de Cinema: Na Cabine de Exibição

Por Pedro Tavares

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O cineasta e a espectadora, cada um em seu bunker, e entre eles, um corpo fragilizado pela frequente exposição – o da imagem. Este exercício minimalista de exame é muito poderoso à medida que cada suposto diagnóstico sobre os fins da imagem é criado.

Quando a jovem Maia entra na cabine de exibição e golpeia as imagens para forjá-las de acordo com suas relações imediatas a elas, é muito interessante que Ra’anan Alexandrowicz solicite um retorno. Uma segunda consulta às imagens. Os olhos de Maia, um exemplar de máquina de articulações e possibilidades, cria novas possibilidades enquanto o realizador observa suas pré-finalidades, se casam ou não com a espectadora-máquina.

As imagens estão em cheque a respeito de sua veracidade, longevidade, durabilidade e o processo de produção é de dúvida concomitante a estes tópicos; o curioso é que a potência dessas imagens nunca está em questão. Tanto Maia como Alexandrowicz, independente de suas convicções a respeito do que é ou não real ou se logo serão esquecidas, em suas discussões, inerente, está a maneira que essas imagens encontram seus espectadores e seus efeitos.

O que vem em primeiro é o desconforto perante a suspeita. E, lentamente, ambos forjam a imagem a seu gosto. Na Cabine de Exibição talvez seja dos mais frontais e potentes casos de análise de imagem provenientes de novos dispositivos, no caso câmeras de telefones celulares e hospedados no Vimeo. Um belo caso de arqueologia de “novas” imagens e que sinalizam novas possibilidades de estudo sobre seus imediatismos e funções.

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Olhar de Cinema: Responsabilidade Empresarial

Por Camila Vieira

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O dispositivo criado por Jonathan Perel para realizar Responsabilidade empresarial é muito simples: filmar as fachadas de empresas que tiveram papel ativo na repressão e na perseguição de trabalhadores durante a ditadura militar na Argentina, entre 1976 e 1983. Enquanto vemos as imagens, escutamos a voz over de Perel que lê trechos do livro Responsabilidade Empresarial por Crimes Contra a Humanidade, Repressão de Trabalhadores durante o Terrorismo de Estado, publicado em 2015 pelo Ministério de Justiça e Direitos Humanos, no final do governo da então presidenta Cristina Kirchner, hoje atual vice-presidenta da Argentina. As informações contidas no livro expõem o envolvimento de cada uma das empresas e de seus proprietários em ações criminosas contra trabalhadores, principalmente sindicalistas.

Filmados sem tripé, os planos assumem a leve flutuação da câmera na mão de quem registra – o próprio Perel – sem a possibilidade de pedir autorização às empresas (já que tal solicitação provavelmente colocaria tanto filme quanto o realizador em risco). As filmagens foram feitas dentro do carro do diretor, que acoplou os microfones na parte externa do veículo. Mas ao mesmo tempo em que há a instabilidade do take, a frontalidade de cada plano junto à narração objetiva dos dados do relatório de crimes faz do documentário um contundente documento histórico, bastante cru, incisivo, sem rodeios.

A sucessividade dos planos com detalhes de números de vítimas assassinadas, torturadas, presas, desaparecidas, sequestradas desloca o espectador do seu presumido conforto ao ver um filme em uma sessão de festival. O acúmulo de crimes relatados provoca vertigem e nos leva a pensar o que o desvelamento de um passado pode nos dizer sobre o que acontece no presente. Por mais que seja um filme que lança luz sobre o passado cruel de derramamento de sangue na Argentina e que é constantemente apagado pelas forças locais, Responsabilidade empresarial é a denúncia do jogo permanente de interesses entre Estado e empresas privadas. Diante da conjuntura de pacto neoliberalista e ascensão do reacionarismo da extrema-direita em vários países do mundo, seria interessante que o filme pudesse circular e ser distribuído para um público mais amplo e não ficasse restrito ao circuito dos festivais internacionais.

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Olhar de Cinema: O Ano do Descobrimento

Por Camila Vieira

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A textura dos planos traz a materialidade do vídeo Hi-8. O ambiente filmado é um bar/restaurante em Cartagena. Os personagens em cena vestem figurinos que parecem ter saído dos anos 90, mas eles conversam sobre o tempo presente. Eles estão vivendo os anos 2000, mas de algum modo tudo o que vivem hoje reverbera um passado não muito distante da Espanha. Em 1992, as Olimpíadas de Barcelona e a Expo Sevilha divulgavam a Espanha como moderna, desenvolvida e dinâmica para o público estrangeiro. No entanto, o país vivia uma crise interna social, política e econômica, com desempregos em massa e 127 manifestações em 180 dias. Em O ano do descobrimento, a simulação dos anos 1990 criada pela direção de fotografia de Sara Gallego e a encenação proposta pela direção de Luís Lopez Carrasco nos convoca a pensar que mesmo quem vive o presente na Espanha é atravessado pelas consequências de um passado próximo.

Com o recurso do split screen (a tela dividida em dois quadros), o diretor apresenta 45 personagens diferentes que interagem no espaço fechado de um bar/restaurante, durante as 3 horas e 20 minutos de duração do filme. Mas a montagem cria uma dinâmica bastante singular. Em muitos momentos, um close é colocado ao lado de outro, como se fosse uma conversa em que se vê o campo e o contracampo ao mesmo tempo. Em outros momentos, os closes colocados um ao lado do outro, aos poucos revelam conversas distintas com outros personagens fora de campo. Alguns olham para os lados, mas não sabemos exatamente para quem; se é ou não é para o personagem que está presente no quadro ao lado. As vozes que ressoam nos dois quadros também se interpõe e se misturam. A estratégia produz uma instigante ambiguidade temporal ao filme, sobretudo quando os planos são intercalados por noticiários e propagandas dos anos 1990.

O documentário é dividido em três partes e um epílogo. Começa com conversas entre jovens sobre seus empregos: muitos deles trabalham em jornadas longas, sem folga; outros estão desempregados e desabafam que se sentem doentes, deprimidos e sozinhos. Diferenças salariais, relação entre chefes e operários, educação pública e movimento sindical são alguns dos assuntos principais abordados. Na última parte do filme, os mais velhos acrescentam informações sobre o passado na Espanha: o histórico de lutas em Cartagena, a repressão do franquismo, os engajamentos no Partido Comunista, as crises na produção industrial que afetaram milhares de empregos, a ameaça de fechamentos de fábricas e a terceirização que culminaram em diversos protestos pelo país. “As pessoas se uniram nas manifestações, mas o conflito foi ficando duro. Esse humor se tornou medo e medo se torna raiva e raiva se torna violência”, explica o sindicalista José Ibarra Bastida. Ao contextualizar a situação da Espanha com o tempo presente de ascensão mundial da extrema-direita, ele constata de forma bastante lúcida que o capitalismo venceu.

O ano do descobrimento começa e termina com dois jovens diferentes que relatam sobre sonhos recorrentes. O primeiro narra sobre um reencontro com seus amigos de infância em um sonho, em que os rostos deles aparecem envelhecidos e, mais tarde, ele se dá conta de que todos estão mortos. O último relata que, no seu sonho, não consegue esmurrar um nazista de perto, como se sua mão deslizasse e não conseguisse dar um soco. Entre a figuração da morte e a impotência da luta, os desejos dos mais jovens parecem figurar uma fantasmagoria da estagnação. Mas é preciso mais uma vez retomar uma frase de Ibarra: “A solução não é sindicato. A solução é política”.

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Olhar de Cinema: Quem Tem Medo de Ideologia?

Por Pedro Tavares

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Originalmente um projeto dividido em duas partes, Quem Tem Medo de Ideologia? parte de uma lateralidade interessante, primeiro a pensar a força da natureza e o acordo dela com as mulheres como uma força imbatível. Desta dupla, a ideologia ganha um abrigo. A diretora Marwa Arsanios não precisa nada além dos corpos e da paisagem para que este acordo seja selado na imagem.

A partir deste reforço social-ideológico, a segunda parte dá o tom majoritário ao filme, dominado pela palavra e que é assertivo no pensamento do feminismo como a salvação de um grupo de mulheres que diariamente compete silenciosamente com os homens; se para eles a rotina de trabalho faz parte da vida, para elas evidentes e embutidas estão as injustiças oriundas do machismo e a inerente insegurança do dia-a-dia.

Quando Arsanios encontra a resposta para a pergunta “O que é estar aqui?” feita no início do filme, temos uma saída vigorosa para a resolução do tema, ainda que para isso precise de respiros para sua construção; a diretora se refugia no carro e na própria natureza. Sabe que a união é forte o bastante seguir seus olhos não acompanhem os movimentos extracampo.

Portanto, se a natureza é a ideologia e o feminismo é a solução, Quem Tem Medo de Ideologia? serve como um preparo para o enfrentamento de um mal maior e seu pilar está no alinhamento da natureza, ideologia e feminismo e como eles formam um só pensamento, um organismo ativo e que perdurará.

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Olhar de Cinema: Nardjes A.

Por Pedro Tavares

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Dois caminhos distintos guiam Nardjes A. ainda que dividam semelhanças em suas abordagens: o primeiro, uma observação da personagem que batiza o filme a partir do cunho político, como a manifestação pacífica em Argel pode movimentar milhares de pessoas em prol de único objetivo. Nele, entre cânticos e gritos de protesto, um sonho de um país livre das amarras de mais um desgoverno a vir no horizonte.

O segundo e grande ponto de declínio do filme é como a câmera do celular de Karim Aïnouz também serve como dispositivo para uma espécie de vlog-manifesto. Nele acompanhamos o dia desta protagonista e sabemos que ela está numa manifestação, mas o que importa para a câmera é como um diário é construído. É na produção de interação com as pessoas, como Aïnouz escolhe um plano que favoreça a presença da protagonista no quadro e não de uma mulher que solta gritos potentes pedindo liberdade, por exemplo. E é com a câmera que Nardjes divide seus temores, ainda que Aïnouz tente deslocar sua personagem usando a voz off como saída.

O filme cresce quando Nardjes se aproxima dos seus, cantarola ou até mesmo dá foras nos homens mais interessados em outros fins por um motivo simples: a câmera não está com a protagonista como centro. Nardjes está de costas em boa parte dessas ações e o caráter de um diário vaidoso se dilui, mas estes momentos geralmente são entrecortados por este caráter modernoso do diário da menina engajada.

Quando enfim o protesto se dispersa após a construção de uma grande comoção popular, o que resta é mesmo o rosto de Nardjes, que divide suas preocupações entre os amigos e como serão suas próximas horas. Curiosamente este espaço, uma espécie de apêndice do filme, um espaço livre, é preenchido pelo anticlímax: temos o ápice do perfil autocentrado de Nardjes A., um momento que coloca em cheque todo o percurso supostamente engajado do filme. Trata-se de um povo ou de uma só face? Apesar do filme ter um nome próprio, a dúvida segue pulsante.

Visto no Olhar de Cinema

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Olhar de Cinema: Para Onde Voam as Feiticeiras

Por Pedro Tavares

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Há um trunfo simples e muito funcional em Para Onde Voam as Feiticeiras: a noção e intenção de desajuste. O filme de Beto Amaral, Elianne e Carla Caffé é de múltiplas abordagens e formas que notoriamente é paralelo ao seu tema. No caráter investigativo que remete aos trabalhos de Sylvain George, o filme se mistura às distintas abordagens como análise da sociedade.

Tão frontal e necessário quanto Cabeça de Nego (Déo Cardoso, 2020), também presente na seleção do Olhar de Cinema, Para Onde Voam as Feiticeiras é um filme-óvni de intensas interpelações documentais e de performance: o desejo de alguma clareza pela aproximação dos corpos – que esbarra nos transeuntes, vendedores, pregadores e moradores de rua– ao espaço delimitado para performances. Espaço este que não é respeitado, ele toma proporções maiores que uma simples delimitação para um expurgo frente às câmeras.

Neste ponto, o filme torna-se uma grande reação aos temas abordados por seus personagens: se há o espaço para alguma revisita ao passado, na mesma medida ele coloca minorias em confronto direto àqueles que os acurralam socialmente. Das imagens de arquivo às discussões sobre as reais posições na sociedade, do desejo sexual à crise que assola o Brasil, o que se vê é um panorama volumoso em temas e interpelação que reflete a complexidade de um país que afunda diariamente.

Com este sentido de um desajuste fílmico para os ditos desajustados sociais, a pulsão é vantajosa como um manifesto. É com ela que o filme abraça a posição de filme político, mas capaz de respingar no campo existencial.  Nele sim as performances fazem seu sentido verdadeiro – conhecer os personagens com mais um panorama, como uma apresentação de uma trupe. A trupe é de artistas, mas para a sociedade, são tão perigosos como uma gangue pela simples existência. “Quero acordar, existir, não ser nada, sem peso”, diz um deles. O peso demonstrado por Beto Amaral, Elianne e Carla Caffé é real e a resistência é urgente.

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Olhar de Cinema: Crônica do Espaço

Por Pedro Tavares

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A ausência como disciplina do saber. Um aprendizado a fórceps criado na base das lacunas. Crônica do Espaço é um filme essencialmente contemporâneo a pensar nas palavras de Serge Margel que o contemporâneo representa uma forma traumática de reconstrução do presente comum.

O filme de Akshay Indikar narra um tempo de mudanças repentinas na vida do garoto Dhigu e como este trauma, em forma de diário (ou anotações ou crônicas, como o título entrega), constrói um ritual de sobrevivência inconsciente. Primeiro pela idade de seu protagonista, ainda incapaz de assimilar certos eventos-traumas e principalmente como o passar dos dias, a criar uma sensação incômoda, não encontra o presente. A realidade para o garoto é paralela.

Neste tipo de licença poética que Indikar encontra um caminho certeiro para todo tipo de introdução lúdica aos sentimentos do garoto, de seus desejos à relação com a família em um local inóspito para ele. Crônica do Espaço, portanto, é um filme sobre um ideal intocável. Os desejos de Dhigu, na mesma medida que se tornam imagens, viram lacunas. Espaços preenchidos por lamentos que Indikar aposta num uso geométrico, seja pela posição da natureza como dos personagens em cena – em ambos, a sensação é de ausência, da noção de um vazio nos espaços e nos corpos filmados.

Crônica do Espaço é também um filme contemporâneo por sua abordagem: dos tempos mortos, da ideia de imagens autônomas, da certeza que a medida do olhar é exata para captar sentidos e sentimentos maiores dentro do escopo apresentado. Dhigu é uma representação, milhares de lares ali colocados com certa pompa de seu êxito estritamente afetivo. Não é bem sucedido em todo o processo, ainda que suas tentativas sejam convenientes.

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Olhar de Cinema 2020

los lobos still

Um Filme Dramático
Camila Vieira

Nasir
Camila Vieira

Trouble
Camila Vieira

Canto dos Ossos
Geo Abreu

Traverser (Após a Travessia)
Camila Vieira

O Ano do Descobrimento
Camila Vieira

Responsabilidade Empresarial
Camila Vieira

Quem tem medo de ideologia?
Pedro Tavares

Para Onde Voam as Feiticeiras
Pedro Tavares

Nardjes A.
Pedro Tavares

Victoria
Pedro Tavares

O que Resta / Revisitado
Pedro Tavares

Crônica do Espaço
Pedro Tavares

Los Lobos
Pedro Tavares

Sertânia
João Pedro Faro

Cabeça de Nêgo
João Pedro Faro

Canto dos Ossos
João Pedro Faro
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É Tudo Verdade: Segredos de Putumayo

Por João Pedro Faro

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Em seu novo documentário, o cineasta Aurélio Michiles percorre os caminhos da histórica expedição do irlandês Roger Casement pela floresta amazônica no início do século 20. Marcada pelo testemunho da escravidão e do genocídio indígena, cometidos por empresas extrativistas inglesas que invadiram a Amazônia, o diário de Casement é a base estrutural do longa, que remonta a história através de entrevistas, arquivos e reconstituições em locação.

Surge, desde os primeiros minutos de projeção, uma tentativa de trazer um escopo épico ao projeto. É embalado por uma trilha incessante e fortemente dramática, acompanhada por imagens que firmam o preto e branco como potencializador de sua intensidade sombria. Assim, entram os recorrentes trechos de reconstituição, feitos por um ator vestido de Casement, que não vão muito além de filmar pessoas de costas e criar ilustrações imediatas e desinteressantes para acompanhar a narração do diário. Nesse quesito, o filme remete muito às produções históricas feitas por alguns canais de TV por assinatura, e essa sensação televisiva e desconjuntada não casa com as intenções mais sóbrias do projeto. Um outro exemplo de como a reconstituição desmonta algumas cenas, em um momento mais pontual, é quando Michielis decide ilustrar um trecho de entrevista que detalha algumas atrocidades cometidas contra o povo indígena na região e cria, com próteses falsas, uma sequência de imagens de esqueletos e pedaços de corpos humanos na mata. Trabalhada de forma pobre e carente de algo que a justifique, a reconstituição não serve bem ao longa, tornando momentos de temáticas fortes em apelos dignos de televisão barata.

Em contrapartida, a reunião dos arquivos é vasta e enriquecedora. A seleção de imagens, parte delas fotografadas pelo próprio Casement em sua viagem, trazem à luz uma realidade histórica severa. São intrínsecas a esses frames uma carga de revolta e inconformismo, pois expõem de forma objetiva e estática os horrores concretizados do imperialismo em estado bruto. Nem sempre o filme consegue se debruçar sobre esses arquivos sem trata-los com certa mediocridade, sendo pontualmente rebaixados à uma exibição de slides, sem que essas incríveis e tortuosas memórias gráficas sejam exploradas em toda a sua complexidade. Muito se deve a forma como o filme enxerga suas imagens como meras ilustrações do que está sendo ouvido, sem que elas integrem um mesmo plano mais bem trabalhado. Como nas entrevistas, especialmente as dos peruanos descendentes das gerações escravizadas, que são realmente bem realizadas e trazem diversas falas relevantes, mas que nem sempre são acompanhadas por imagens que buscam um diálogo maior com o processo fílmico. A quantidade de vezes que ouvimos algo e, logo em seguida, somos expostos à uma imagem diretamente correspondente às palavras que foram ditas, não é pouca. Parece que o filme não deseja construir uma operação que seja plural em sua linguagem, e tratando-se de um tema tão rico e poderoso, esses fatores pesam na experiência.

Segredos do Putumayo é um projeto de alcance informativo e que movimenta alguns dos trechos mais absurdos e revoltantes da história da América Latina. Infelizmente, não há grande interesse em complexificar seu processo de composição fílmica, renegando o documentário a uma estética empobrecedora e pouco condizente com seus escopos épicos. Suas informações tem valor inestimável, mas não deseja apresenta-las em um arranjo que esteja à sua altura.

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É Tudo Verdade: Fico te Devendo uma Carta sobre o Brasil

Por João Pedro Faro

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A cineasta Carol Benjamin narra e organiza imageticamente a trajetória da prisão de seu pai, nos anos 70, cometida ilegalmente pelo regime militar brasileiro. Fico Te Devendo Uma Carta Sobre o Brasil agrupa uma investigação feita por Carol pelo passado do seu pai e a participação de sua avó na campanha pela anistia política.

Seguindo uma tendência contemporânea pelo documentário que coloca o histórico na perspectiva do íntimo, o longa funciona quase como um filme-ensaio intimista. Carol apresenta um material de arquivo amplo e bem integrado à uma narrativa documental concisa. O texto escrito é incluso no plano das imagens, as leituras de cartas funcionam como seguimentos articulados e pulsantes que criam ritmo às imagens estáticas e valorizam todo o arquivo reunido como uma possibilidade de criação cinematográfica. O documento existe como espaço de memória viva, especialmente na primeira metade do filme, mais focada nos desdobramentos dos primeiros anos da prisão de seu pai. Carol atinge uma louvável comunhão entre os impulsos investigativos, informativos e fílmicos, formulando o processamento de descoberta de fotos, textos e vídeos como o próprio princípio de composição imagética e sonora em seu documentário.

Enquanto resguarda um apreço e uma força ao se debruçar sobre as difíceis memórias de sua família, o filme se movimenta de forma interessante e oferece uma firme cisão entre formas de perpetuação do passado. Porém, há uma constante e desagradável intromissão verborrágica, por parte da narração do próprio filme, que diminui as energias dos arroubos iniciais. O reconhecimento de um valor íntimo à documentação histórica já se mostra presente no longa quando é criado um contexto em torno da revelação dos arquivos pessoais da família, atingida pela ação criminosa de um governo terrorista. Mas o documentário não permite que isso fale por si só, intrometendo verborragias intimistas que parecem querer explicar o que já estava claro, repetir o que já havia sido feito, tudo de forma muito verbalizada e dissonante. A sensação é de que a atenção dada ao material é renegada por um fio textual que deseja esmiuçar e tornar ainda mais tocante um grupo de documentos que, da forma como haviam sido apresentados, já falavam o que é dito, já tocavam o subjetivo pelas vias históricas. Cria-se um ciclo de repetição que, aos poucos, aproxima o filme de uma dinâmica redundante. A fala narrada em primeira pessoa surge como a única possibilidade de formulação do subjetivo, tornando o projeto menos memorável e se aproximando mais de documentários contemporâneos que tratam de questões similares (não há como ignorar a semelhança do texto de Carol com o do último longa de Petra Costa).

A partir de um conjunto de personagens brilhantes, enriquecidos pela preservação de suas memórias, Fico Te Devendo Uma Carta Sobre o Brasil consegue realizar passagens marcantes e bem compostas que geram movimento a partir da abertura de cofres do passado. Carol tem uma boa inclinação sobre o uso de arquivos e sabe remonta-los dentro de uma estética condizente com seu projeto e com suas intenções históricas mais personalistas. O que não cabe ao longa é a desvalorização de seu próprio processo e sua determinação em dizer as mesmas coisas duas vezes, não deixando com que o método engrandeça a experiência da autodescoberta pelas vias da lembrança.

 

 

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Olhar de Cinema: O Que Resta / Revisitado

Por Pedro Tavares

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No texto Imagens do (nosso) Tempo, Peter Pál Pelbart lembra como Paul Virílio analisa nossa instabilidade em habitar o agora e como ele se evapora num tempo sem espessura e sem perspectiva. Este raciocínio de Virílio aclarado por Pelbart vem em choque ao filme de Clarissa Thieme, O Que Resta / Revisitado.

Entre a ideia de resgate e sequência, Thieme constrói a crença nas imagens e o que ganha é a essência do verbo quando curiosos olham param  para analisar seus frames impressos em formato de banners e suportados pelos assistentes da diretora. O filme, que teoricamente se resume à fórmula do retorno aos mesmos locais filmados há dez anos para análise do tempo na Bósnia-Herzegovina em locais que protagonizaram crimes de guerra nos anos 90 está mais para blocos de lembranças particulares, como se Thieme colocasse uma cadeira em algum lugar público e esperasse alguém disposto à uma sessão de pura nostalgia.

Não há grandes mudanças nos últimos anos desses locais com as imagens dos banners, o que é um bom indicador comparando com o que fora visto nos anos 90 e que encerra frontalmente a navegação política de Thieme – não a expelindo por completo e são nestes resquícios que o filme tem alguma força, pois o tempo ganha outro sentido de compreensão. Se antes ele funcionara como amálgama do quadro dentro de outro, como se estes dez anos que separam o “grande quadro” do “pequeno quadro”, agora ele está salpicado, entrecortado e interrompido por essas conversas.

A pureza da revisita, como se guarda no título é abortada; Thieme tem em suas mãos o acaso do “grande quadro”, ou seja, do plano geral captado pela câmera e a certeza que seus banners criarão algum tipo de resposta ao mesmo ambiente que está ali suspenso em formato de fotografia. Dos transeuntes, sejam turistas, antigos ou jovens moradores, todos ali têm um reflexo imediato às imagens. Poucos guardam reações adversas ao que é mostrado e a principal liga entre imagem e “público” é o resgate, como se a proposta inicial de Thieme estive em pleno funcionamento, porém o que está no plano maior contradiz por completo esta ideia.

Fiel ao formalismo, Thieme mantém-se distante e dá o trabalho da proximidade ao captador de som, que corre até aqueles que se aventuram a falar. A câmera obscura é um grande caminho para que as pessoas não se curvem perante ao dispositivo e criem assim suas teorias sobre o tempo, um tempo que não criou muitas mudanças e que possibilita para Thieme um exercício sobre o passado, este sim um tempo com espessuras e perspectivas.

Visto no Olhar de Cinema

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É Tudo Verdade: Pão Amargo

Por João Pedro Faro

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O novo filme de Abbas Fahdel, Pão Amargo, realiza blocos de encenações cotidianas dentro de um campo de refugiados sírios no Líbano. Fahdel adentra o terreno ocupado pelo grupo imigrante, localizado entre um conjunto de vales e uma movimentada estrada, a partir dessa premissa de intromissão fílmica, causando ao espaço uma movimentação em torno da câmera que acaba por forjar diálogos e situações propícias aos seus interesses mais propriamente documentais.

Existe uma apresentação de conflitos íntimos de determinados personagens que discorrem através de situações claramente encenadas, possibilitando uma espécie de panorama interrogativo. Ele cria perguntas invisíveis que serão respondidas de forma indireta pela encenação dos refugiados, em diálogos expositivos que apontam situações como exploração de sua mão de obra, dificuldades em se alojar nas limitadas tendas, tédio e desesperança. Ou seja, o processo de Fahdel redireciona a conflituosa relação entre câmera e entrevistado, oferecendo uma possibilidade de criação de cena um pouco mais complexa, onde questões são respondidas sem que haja uma clara interrogação jornalística por trás das câmeras. Seu mote operacional permite ao grupo que acompanha uma ativa participação em um processo fílmico expansivo, que cria enquadramentos bem compostos e os isola no quadro, ao mesmo tempo que não deixa de investiga-los, não deixa de contribuir para a propagação de suas falas e de seus conflitos. Ao coloca-los nessa posição, onde são atores de si mesmos, Fahdel cria as imagens necessárias para que se construa um projeto documental rico na exibição do pacto entre quem filma e quem está sendo filmado. É assim que vemos momentos como um grupo de mulheres do campo trabalhando em uma plantação e reclamando de seus salários, um pai e um filho que discutem a demora para a preparação de um casamento, o dono de uma venda de produtos que reclama dos fiados com um supervisor, entre outros blocos de cena que arranjam situações ordinárias e seus protagonistas colocando a entrevista integrada à ação.

É justamente a relação entre o coletivo e o espaço que está no centro de todas as questões que compõe Pão Amargo. Entre um grupo de pessoas que tiveram suas casas destruídas pela guerra e que tentam, diariamente, construir alguma estabilidade dentro das limitações do lugar que ocupam, Fahdel registra imagens que colocam em um mesmo plano os moradores do campo, o campo e o sítio que ele se insere. Há essa constância de planos gerais que marcam desde as montanhas no fundo da paisagem, descendo para as tendas na beira de estrada e acabando nos moradores em suas tarefas diárias. O escopo sempre tenta englobar uma grande quantidade de fluxos imagéticos que se comunicam diretamente em um espaço onde a vida é construída em tamanho reduzido. Onde os elementos, sejam eles pessoas, casas, decorações ou animais, convivem em um intenso agrupamento, impossibilitado de se expandir. A câmera abre e tenta conseguir encaixar tudo isso enquanto ainda continua a captar suas falas e gestos, em conformidade com toda a gambiarra necessária para a sobrevivência de um grupo à margem.

No único momento em que permite que um personagem fale para a câmera, um refugiado que empilha repolhos em um caminhão esbraveja para a lente: “Que Deus amaldiçoe aqueles que destruíram nosso país”. Cedendo à potência de uma espontaneidade, mesmo dentro de um processo fílmico tão próprio e tão fechado, Fahdel só reafirma os esqueletos de Pão Amargo. Realizar, dentro de um grupo de pessoas em estado de desesperança, isolamento e incerteza, um encontro com um aparelho cinematográfico que não busque extrair dele uma experiência, pelo contrário, decide adicioná-los uma. Uma encenação criada e desenvolvida pelo pacto.

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