A Liberdade das Imagens Mortas

Por Chico Torres 

O invento da fotografia e do cinema desenvolveu na arte aquilo que há de mais fantasmagórico em seu universo, um desejo presente desde as primeiras manifestações humanas através do rito: a conservação da vida pela representação. Toda a arte, se quisermos pensá-la sob uma possível perspectiva ontológica, é uma expressão desse desejo primitivo de conservação. É nesse sentido que Bazin afirma, em seu Ontologia da imagem fotográfica, que “A morte é senão a vitória do tempo. Fixar artificialmente as aparências carnais do ser é salvá-lo da correnteza da duração: aprumá-lo para a vida”. Cria-se, então, um paradoxo, porque à medida que reafirma a vida e sua conservação, a arte torna flagrante a presença da morte, e é aí que ela cria os seus fantasmas. Para exercitar uma análise psicanalítica desse dado, podemos pensar nas fotografias do século XIX, dos entes queridos falecidos posicionados ao lado dos parentes como se ainda estivessem vivos; pensar também naquele primeiro cinema no qual a imagem funcionava como espetáculo mágico, quando a narrativa e o realismo ainda não haviam dominado o espaço do cinema de massas. 

Ao longo da história, o cinema, como que negligenciando a sua essência de registro desinteressado da realidade, procura desenvolver pela inserção da dramaturgia tradicional uma recepção que mergulhe naquela “segunda realidade” e esqueça, através da transparência, que se está diante de projeções espectrais. Se o primeiro cinema teve como sua força propulsora a imagem em seu sentido mágico, logo ele se transformou em narrativa, de modo que ficou submetido aos imperativos da construção cênica, com suas tramas e personagens.

Mas ainda é possível um cinema que procure seguir o caminho inverso dessa forma de representação transparente e se volte, novamente, para o valor primevo da imagem. Em sentido dialético, já que a inocência do primeiro cinema não é mais possível, abre-se a possibilidade de um cinema capaz de desenvolver uma linguagem que envolve a consciência primitiva da morte e, por isso, do desejo do registro, daquilo que só se faz relevante porque, justamente, foi capturado antes de seu total desaparecimento no devir. Tio Boonmee, que Pode Recordar Suas Vidas Passadas, filme de Apichatpong Weerasethakul (ou simplesmente Joe), pode ser pensado como esse cinema. Nele, vivos e mortos (ainda que seja difícil estabelecer esse dualismo) convivem tranquilamente em um ambiente que é um limiar entre realidade e fantasia. Se quisermos encontrar algum gênero para o filme, precisamos ir à literatura latino-americana e classificá-lo como Realismo Mágico, já que nele se cria uma junção desinibida entre o absurdo e o banal.

Essa ambientação, saturada de realidade e fantasia, acaba por revelar relações (extra)humanas tolerantes e amáveis, justamente porque cria um elo em que vida e morte são representadas sob o mesmo valor existencial, como se fosse possível encontrar o sentido ético da vida (e da morte) através de um encontro com um espírito. Esse campo aberto não apenas une vivos e mortos, mas converte o humano em macaco, como acontece com Bongsong que se tornou aquilo que perseguia com uma máquina fotográfica; da mesma forma que faz surgir um bagre falante e com poderes mágicos. É como se toda a natureza, orgânica e inorgânica, fosse capaz de se integrar em um mesmo nível de vida e consciência, ideia reforçada pelas matas e cabanas que ambientam o filme. 

Por outro lado, esse naturalismo fantástico não apenas nos coloca diante do inusitado em relação aos personagens e suas interações, mas contamina todo o filme com uma aura mágica em que a presença do espectro, da penumbra, do extremamente escondido e do extremamente iluminado surgem também como imagem primitiva e essencial. Por isso a luz e a escuridão são tão importantes no cinema de Apichatpong, elas parecem querer sintetizar o poder do contraste diante dos nossos olhos, um jogo com as bases elementares que constituem o cinema: luz e escuridão. Nesse sentido, tão importante quanto os personagens é a luz que recai sobre eles, ou a escuridão que os oculta.

E Tio Boonmee não está de todo despossuído de uma narrativa, aquilo que é narrado, para além da evidente ternura de um cotidiano, também se desenvolve como discurso político, todo ele relacionado a essa realidade fantasmática: passado, memória, destruição e recomeço. A encarnação e a lembrança de vidas passadas, dado pertencente ao universo mítico tailandês e de uma cultura apartada do mundo ocidental; a presença da fábula (um gênero de um passado literário) que evidencia a busca de uma beleza que nos faz pensar na opressão da estética do Belo instituída pelo ocidente; do exército do futuro, capaz de fazer qualquer um desaparecer com sua máquina de projeção, mais uma possibilidade de pensar sobre o olhar colonizador que se apropria e refaz a história segundo a sua própria cultura. 

Esses aspectos, ainda que desenvolvidos sob algumas referências diretas, como acontece com os soldados do futuro que remete ao conflito entre Tailândia e Laos, ocorridos entre 1987 e 1988, estão embebidos por esse olhar que converte o místico em algo comum, nos fazendo pensar em um cinema que tem na imagem o seu fundamento primeiro, deixando que uma nova forma de vida (e de morte) se manifeste livremente no plano. Todas as formas fantasmáticas estão presentes e convivem de maneira quase que com total naturalidade, como se tudo pudesse se integrar porque, afinal, são apenas fantasmas, apenas luz sobre a escuridão, apenas cinema, e por isso não precisam representar o realismo da vida, não há mais essa obrigação, aliás, nunca houve. 

O cinema é a morte não no sentido de algo que se perdeu para sempre, mas de uma ausência que se faz presente e que se torna suficiente como aparição, como imagem. Consciente disso, Apichatpong constrói um cinema de fantasmas, de seres místicos, de entrecruzamento e dobras porque sabe que o cinema é o único espaço em que isso pode acontecer plenamente enquanto imagem, já que é, por essência, projeção-fantasma do mundo, de um mundo submetido a estritas leis naturais, mas que se desdobra e se refaz diante da objetiva. Ao romper com a natureza do mundo, o cinema de Joe cria uma nova natureza para os nossos olhos, um campo em que se é livre porque não se tem medo da morte. 

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Fisionomia do apocalipse (A máquina infernal, 2021)

Por João Paulo Campos

Saber exatamente o que este som (ou esta imagem) vem fazer aqui.

Robert Bresson. “Notas sobre o cinematógrafo”.

A máquina infernal (Francis Vogner dos Reis, 2021) é uma fábula sobre o universo laboral e existencial do operário sob as forças do capitalismo contemporâneo. Trata-se de um curta-metragem cujos recursos formais nos levam tanto ao universo do cinema de horror norte-americano quanto ao teatro épico brechtiano. A obra aposta na construção de uma atmosfera de terror rarefeita capaz de nos fazer sentir a ruína dos corpos e espaços em cena. Mas como isso ocorre na prática?

Em correspondência com cineastas como John Carpenter e George A. Romero, sobretudo os universos apocalípticos de filmes como The thing (John Carpenter, 1982) e The crazies (George A. Romero, 1973), para ficar com apenas dois exemplos, o filme de Francis Vogner dos Reis elabora de forma extremamente sofisticada um inimigo invisível e inominável – verdadeira força do extra-campo que assombra a fábrica e seus trabalhadores. Fantasma cuja presença nos é comunicada pelos seus efeitos na mise en scène, este inimigo vai tomando conta da narrativa aos poucos, até efetuar a completa implosão dos corpos e máquinas. Uma das aparições mais emblemáticas da obra é, sem dúvidas, a convulsão que acomete os personagens na escuridão da fábrica.

Frames de A máquina infernal (2021)

Este é um filme sobre o apocalipse da classe trabalhadora, o que significa também a destruição de seu ambiente de trabalho. Em termos narrativos, isso quer dizer que a obra vai tecendo aos poucos a destruição dos personagens e das máquinas que, em cena, gritam de agonia – um sofrimento visceral nos é dado a sentir no decorrer do curta. O desespero se impõe através do inimigo que navega entre os trabalhadores, possuindo seus corpos para dilacerar suas entranhas num processo mudo – o que distancia essa obra de, por exemplo, O exorcista (William Friedkin, 1973). Este é, com efeito, um filme sobre as entranhas do mundo do trabalho contemporâneo sob a égide do filme de horror.

Há no mínimo cinco elementos do filme que contribuem para sua beleza inestimável. O primeiro diz respeito à fotografia de Alice Andrade Drummond e Bruno Risas. A máquina infernal é um filme de fisionomias – humanas e maquínicas -, o que o aproxima da forma com que Robert Bresson explora a plasticidade de seus personagens ou, em seu vocabulário, seus modelos. O filme de Francis Vogner dos Reis estabelece uma relação de superfície – o que não quer dizer que esta é superficial – com o cinema de Bresson. A máquina infernal apresenta um esmero bressoniano a partir do qual tudo possui o seu lugar na fatura da obra, pois todos os elementos estão bem inseridos nas malhas do filme. Na sessão, o público pode compreender, para voltar à epígrafe deste ensaio, o que cada som e cada imagem veio fazer aqui.

A forma de filmar os corpos e os espaços da fábrica nos leva a pensar que o importante, nesse filme, é a interação entre os dois elementos, o que faz da fábrica decadente muito mais do que um mero cenário. A relação tecida entre corpos e máquinas elabora a ideia da fábrica como uma das protagonistas do filme – lócus do horror e destruição. Os closes dão substância aos personagens que, na penumbra, adquirem uma beleza sorumbática. Além disso, as escolhas de decupagem deixam com recorrência um ponto de fuga no quadro, o que cria imageticamente o caminho para imaginarmos as ações do espectro demoníaco que ataca pelo fora de campo. 

O som produz o medo. É primeiramente pelos ruídos que o demoníaco vai marcando sua presença no filme. Há uma cena em que assistimos uma assembleia entre os trabalhadores da fábrica e os patrões. Estes apresentam uma proposta de trabalho inaceitável aos primeiros, o que gera a rebelião de alguns operários. Escutamos os discursos inflamados dos personagens, mas o bate-boca é interrompido por um ruído monstruoso em crescendo. O barulho vai tomando conta da cena. Isto incomoda os personagens que, diante da paisagem sonora desenhada na escuridão, tapam os ouvidos num gesto defensivo, ainda que ineficaz. É também pelo trabalho de sonoplastia realizado por Guile Martins, portanto, que a atmosfera de horror e destruição é tecida, trazendo para perto as distâncias demoníacas do fora de campo. 

Frames de A máquina infernal (2021)

Trata-se de um filme de ecos e interrupções. Um bom exemplo disso é a forma com que o autor trabalha o desejo sexual na obra. A cena em que o homem do braço mecânico se engaja numa pegação com sua colega no carro é realizada através dessa orientação cênica. A mão robótica acaricia a mulher enquanto assistimos os beijos do casal. Amor ciborgue – corpo e máquina se entrelaçando calorosamente diante de nós. No entanto, a montagem efetua uma interrupção brusca do tesão em cena para voltarmos ao claro-escuro das relações laborais entre os trabalhadores.

Outro importante recurso da obra é a sobreposição de imagens. Quando o primeiríssimo plano da protagonista é sobreposto à imagem de uma fábrica sendo demolida, o curta cristaliza um sentimento de ruína que atravessa o filme e, também, termina por fundir o rosto da personagem com a fábrica destruída. Por meio dessa operação corpo e espaço se transformam em uma só aparição compósita. 

Frame de A máquina infernal (2021)

    Mais do que simples dispositivo narrativo, a possessão adquire um caráter reflexivo na obra. No início do texto mencionei que A máquina infernal é o encontro do cinema de horror norte-americano com o teatro épico brechtiano. As convulsões dos personagens, em ressonância com os corpos em agonia de Copacabana Mon Amour (Rogério Sganzerla, 1970), estão intimamente ligadas ao contexto sócio cultural do qual o filme é expressão. No entanto, no filme de Rogério Sganzerla a convulsão que acomete os atores tem a ver com o transe de gira de candomblé dos morros cariocas, enquanto o filme de Francis Vogner dos Reis apresenta a possessão como somática e demoníaca no contexto das relações de trabalho de operários do ABC paulista.

Os personagens são possuídos pelo mal estar terceiro-mundista num período de desindustrialização e fim do trabalho fabril. O apocalipse de A máquina infernal é, portanto, conectado com este contexto de crise global do trabalho. Tudo se passa como se a possessão constituísse verdadeiro gestus social brechtiano: os corpos e máquinas se destruindo provocam um distanciamento que desvela a situação social supracitada. Mesmo sem ordenado e sob condições precárias, os operários seguem trabalhando até apodrecerem vítimas do espectro indomável, gesto que torna esse universo social intolerável quando a projeção se encerra. A fábrica se torna, portanto, o inferno do proletariado. O fim é agora.

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À sombra do híbrido biológico mecânico

Por Geo Abreu

Uma das principais alegorias do humano moderno pode ser resumida à cena em que Charles Chaplin aperta parafusos na linha de produção de uma fábrica em Tempos Modernos. Essa automatização ligada a movimentos repetitivos e condições ultrajantes de exploração seria o começo de uma linha evolutiva que muito em breve encontraria com a humanidade no estágio de completa transformação de ser biológico em máquina segundo as projeções de fantasmagoria da época.

O conceito de antropoceno trouxe para essa matéria novas questões e o cinema como lugar de elaboração das projeções humanas vem explorando os fantasmas do antropoceno como em Pajeú, filme de Pedro Diógenes ou Fog Dog, filme de Daniel Steegmann Mangrané. As contaminações químicas do solo e da água perpetradas por resíduos industriais tratados de maneira irresponsável, além das camadas de substâncias tóxicas que compõem a atmosfera provenientes da indústria química, tem contribuído para o desaparecimento de diversas espécies como também para o surgimento de híbridos ainda não classificados. 

A pergunta que nos assombra hoje é: de que formas essa combinação de elementos exógenos é capaz de nos afetar? Sugiro mantermos essa pergunta em mente enquanto encontramos com Titane, o longa dirigido por Julia Ducornau.

O encontro 

Arisco, o filme não entrega muita explicação para o que se desenrola na tela. Em dois atos bem marcados, acompanhamos a saga de uma figura híbrida que trava com o mundo embates extremamente violentos. Sua fúria expõe o drama que a atravessa: compreender as razões que movimentam as pessoas comuns. Titane, como o próprio título sugere, carrega consigo algo de extraordinário, um segredo, do qual o filme vai nos revelando apenas aspectos parciais, embalados em signos que podem ser facilmente lidos como adesão a assuntos que estão em alta no debate público.

Sem oferecer qualquer elemento que configure a exterioridade daquela personagem – nem estrangeira, tampouco extraterrestre – a primeira parte de sua história gira em torno da sua pouca adesão ao projeto humano expressa por uma curiosidade mórbida sobre os limites do corpo e das relações intraespecíficas. 

Desde pequena a jovem Titane esgarça a convenção da empatia, levando ao extremo todas as relações que trava, testando cada uma delas a partir de balizas muito próprias. Da tentativa de chamar a atenção do pai, provocando assim um acidente que lhe deixa uma marca profunda, até a performance provocativa em cima do carro – que atrai a primeira vítima que conhecemos -, suas atitudes desafiam a ideia de que sentimentos como dor e amor são condições inerentes à nossa natureza. 

Apostando no horror biológico como em filmes anteriores seus –  Júnior e RAW – Ducornau segue explorando o assombro que nosso corpo e suas constantes mutações são capazes de produzir, se aproximando pelo uso do neon e das parábolas cristãs a Divino Amor de Gabriel Mascaro. Indo um pouco além, a diretora projeta esse futuro de híbridos biológicos mecânicos cujos primeiros exemplares estão prestes a chegar.

Sangue e óleo

A jornada de Titane então é a da busca pela porção de humanidade que a compõe. Consciente de sua raridade, expressa sua sexualidade de forma predatória, com fluidez por escolhas às mais diversas a fim de explorar as possibilidades, como numa pesquisa de ordem urgente da qual depende a própria continuidade de sua existência. e aqui fica a certeza de que ela poderia assumir a forma de qualquer coisa de aspecto maquínico: mulher, homem, carro. Árvore, nunca.

À medida que as escolhas da protagonista se radicalizam e ela decide assumir a identidade de outra pessoa o filme se transforma, seguindo o movimento da personagem. Acolhida por um homem solitário e carente, Titane passa então a projetar-se num ambiente extremamente masculino, guiado pela figura desse pai que não mede esforços para inseri-lo em sua rotina. 

Desconhecendo os segredos do filho reeencontrado, o pai estabelece uma curiosa relação entre sua família recém reunida e a santíssima trindade: ele, no centro da corporação que comanda, atuando como um deus para seus subalternos; o filho, como jesus (e maria ao mesmo tempo); e um “milagre” que parece ser a verdadeira chave dessa história. 

A partir de então acompanhamos o sofrimento do protagonista frente a sua atual condição e os mistérios que carrega: a barriga que cresce e precisa ser escondida e o óleo que escorre pelas tetas e ferimentos, reforçando a distância entre ele e os meros mortais. Uma alegoria interessante para esse tipo novo que parece gerado a partir de fluidos inócuos, incapazes de carregar em seus genes informações básicas e ancestrais sobre o que seja humano. 

Assim caminhamos para o final que está longe de ser a redenção da espécie, senão apenas daquele pai que finalmente encontra um filho para chamar de seu. Diferente do caráter milagroso assumido pela criança nascida ao final de Divino Amor, o que Titane nos apresenta é uma pessoa que parece ser a primeira de uma série, aquela que consolida a fusão humano-máquina depois de todo petróleo e demais substâncias tóxicas às quais temos sido expostas. Um tipo novo, um híbrido biológico-mecânico do qual pouco sabemos.

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Exorcismo Permanente

Por João Pedro Faro

Do cemitério só voltam os vivos. Eles são as sombras que cruzam o primeiro plano de Vitalina Varela, arrastando os pés pelo chão de rocha, para logo irem assombrar a casa da viúva. Ela, que veio de longe, fazendo o caminho inverso do colono e retornando de Cabo Verde para Portugal, chegou atrasada para o funeral do marido. Sua casa não é sua, os camaradas do marido morto não param de tocar à porta. Ficam no limite das portas, como vultos; sussurram entre si, pelos cômodos, histórias dessa vida passada que ali já não mora mais. São espectros de uma inabitação, verdadeiros assombros que à nova moradora recordam a origem das manchas nas paredes e das rachaduras no telhado. Não há fantasma de morto algum, o que existe é a presença, marcada por todo o barraco, de um prévio habitante que não permite uma mudança tão simples, que incita, por todos os rastros que deixou em vida, a expulsão de um intruso . Vitalina decide permanecer.

Seu nome surge duas vezes escrito na tela, primeiro como título e depois, ao final, como atriz. Vitalina Varela é uma personagem em excesso, do tipo que parece circundada por tantos caminhos de criação, que fica difícil aproximar-se com uma leitura sem a sensação de estarmos deixando de lado muitas outras possibilidades. Falemos do que se vê: seu rosto nos incita, num primeiro momento, a concentrarmo-nos em seus olhos. É justo, são olhos difíceis de evitar, enchem a interpretação de perigo nos momentos mais instáveis (sempre que o barraco parece estar à beira de cair, ou quando mais um sujeito se infiltra em sua residência sem pedir para entrar) e nivelam a altura da câmera quando a personagem precisa estabelecer sua presença (a perceber como eles se fixam no escuro durante os monólogos com o marido que não está lá).  A compreensão sobre esses olhos pode ser resumida ao notarmos que, em vez de Vanda Duarte como um tipo Miriam Hopkins, Vitalina está bem mais próxima de Joan Crawford. 

Por outro caminho, parece ainda mais impressionante sua capacidade de permanecer rígida em cena. Não se trata da mesma rigidez dos que firmam seus pés nas marcações dos quadros, como os vizinhos da favela ou as visitas indesejadas. Vitalina se estabelece ante a lente, por toda a extensão de sua figura, com a placidez de um concreto. Como no quadro iluminado pela luz do sol em um dos seus primeiros dias no barraco, em que se contorce à beira da cama a ponto de encaixar nos quatro cantos da tela, ou nas imagens que a centralizam violentamente (no banheiro, na cama, na sala), quando ela se torna o tronco de todas as ramificações de sombras e luzes que justificam o enquadramento. Que um filme que leva no título o nome de sua principal intérprete ocupe a maior parte de seu tempo procurando diferentes maneiras de encaixá-la no quadro, não se trata de nenhum espanto; mas sua execução certamente precede um conjunto de composições difíceis de equivalerem a outra atriz tão concêntrica quanto Vitalina.

Em conjunto, sua voz tonaliza toda a criação da personagem. Ela é suficiente para, com apenas um mando de livramento, expulsar o conglomerado do barraco; e para convencer, com determinadas pausas e determinadas entonações, um padre sem fé a rezar uma missa. A língua crioula, tão essencial ao som do filme quanto as misturas do extracampo da favela, fornece duas importantes cimentações: a da distância, da vinda de um outro lugar que recusa a osmose completa ao plano presente, e a da insistência, de uma decisão de imutabilidade que torna Vitalina a transformadora de todo o resto, e não o contrário. 

A contraparte de sua interpretação vem de Ventura, o tal padre em desespero com o plano terreno — culpa de um céu escurecido. Ventura, um ator mais do que calejado, é o oposto da rigidez e da firmação de Vitalina, é um personagem trêmulo, indisposto, desistente, quebrado. Diferente de quando interpretava uma mitificação mais particular de sua imagem, em Vitalina Varela sua desolação não é pela vida que ainda precisa viver, e sim pelas vidas que se foram. Igualmente, sua crise não é política ou habitacional, é precisamente espiritual. Nessa nova jornada de desespero, enquadrá-lo parece um ato comum ao realizador, e mesmo que lhe sejam entregues alguns dos mais definidores planos do filme (pensemos naquela única panorâmica que conecta dois becos estreitos, ou naquela grade desgastada que lhe serve de auréola), é fácil perceber que o seu papel é o de moldar, ao lado de todos os outros intérpretes, o ambiente a ser conquistado por Vitalina.

É justamente na pouca sutileza (ou quase grosseria) de um personagem como o de Ventura que o filme demonstra o alcance da sua encenação, plástica e método. Para além de trabalhos anteriores, as Odisseias de Ventura inclusas, Vitalina Varela configura uma transparência aterradora de criações com os sujeitos (passos, movimentos, respirações, olhares) e os cenários (as luzes quadradas, as imagens nas paredes, as curvas dos becos), que demonstram vivacidade pela via do falsário, da construção, dentro de uma trilha inevitavelmente dramática. Não só isso, como ainda não teme banalidades e explicitações (antes mesmo do título aparecer, já temos sangue e lágrimas em tela), apresentando seus personagens como disposições dessas idiossincrasias. Ou seja, trata-se de uma dramaturgia altamente cenográfica. Chamá-lo de melodrama seria uma canalhice, mas é difícil dizer que o filme não invoca sentimentos desestabilizantes bastante objetivos pela formação de um mundo calculado pelas sensações.

O que é preciso ser lembrado sobre as formulações das ruínas e habitações da favela, além da igreja, do cemitério e do bosque que dão palco ao filme, é que nunca se trata de um cinema feito por locações. O propósito é transformar esses lugares em verdadeiros estúdios cinematográficos, erguimentos feitos especialmente para serem resguardados pelo quadro. É assim que o fundo das imagens pode, por vezes, se abster por completo de iluminação, mergulhando os intérpretes no escuro total e apagando os limites da janela reduzida, experimentando com a forma quadrada que acaba por transformar-se em janelas circulares (o túnel, a grade) ou até verticais (com a câmera escondida por trás das paredes das vielas). Também pode redesenhar toda a paisagem, até que ela não se pareça com nada real, como acontece, em mais de uma ocasião, com o céu (a sequência da tempestade no telhado não estaria fora do lugar, se presente em qualquer uma daquelas produções de outrora, que faziam suas paisagens com tinta na parede ).

Mas esse ambiente de criações não está a serviço apenas do campo estético. O que está em jogo é a possibilidade narrativa de cada plano de Vitalina Varela, onde nunca se abriga um corte sem que nele se encerre um gesto ulterior. A narrativa dos planos geralmente é a da travessia, personagens que cruzam a tela de um canto a outro ou percorrem seu centro, se esgueiram pelas beiradas, se arrastam do escuro para a luz, etc. Quando filma diálogos, a narrativa do plano se atém a movimentações macroscopicamente dramáticas. O melhor exemplo deve ser o da personagem que, após acender um cigarro com uma vela ao falecido, aparece no plano seguinte iluminada por um círculo de luz na porta. Ao abandonar a tentativa de conversa com o seu noivo, que logo invade o canto do plano, ela transita para o escuro, deixando a luz pendurada na porta solitária. E o plano só vai cortar quando Vitalina fecha a porta de casa, deixando os problemas conjugais dos outros para fora do barraco (ou seja, para fora do enquadramento). 

A estrutura que permite com que cada plano tenha sua narrativa é também uma estrutura de tensão. Depois de um tempo começa a ficar claro que a imagem não vai cortar antes que o personagem encerre um gesto, parte do que torna a experiência constantemente engajada com cada ação em cena. Sendo Vitalina Varela circundado pela necessidade de expurgo de sua intérprete, é condizente que o estado das coisas seja o da apreensão. Como explica o Padre, em um de seus breves momentos de ciência, “o medo também leva ao céu

Vitalina, apesar de não estar em busca de salvação, utiliza-se do medo como uma forma de exorcismo do barraco do marido morto.  Que outra forma de enfrentar um espaço que se decidiu assaltar, senão pela exposição de todos os sentimentos que a perpassam dentro daqueles assombrosos limites? Ela esclarece às paredes que não perdoa o morto, ao mesmo tempo em que resguarda suas memórias e compreende suas mentiras. Também teme a queda do telhado enquanto deixa que os tijolos lhe caiam na cabeça, não aceita falar o português enquanto lê as tiras de jornal coladas pela cozinha. Por estar a par de suas contradições e feiuras, por insistir ser parte de sua insalubridade e reconhecer esse lugar que não lhe pertence como terreno de conquistas, Vitalina vence o barraco para si. Uma colonização individual que carrega toda a violência da palavra.

É um processo que não se encerra por completo e deve continuar dependendo de sua insistência e de suas aberturas ao concreto falho, por sua rigidez contra a instabilidade de uma habitação inabitável e inabitada. As memórias de sua antiga casa em Cabo Verde, que construiu com o morto, penetram o presente como mais uma firmação indesejada no barraco, mais um exorcismo. O domínio de um espaço nunca é permanente, isso filmes anteriores já estabeleceram; o que Vitalina consegue é tornar aquelas ruínas como sendo suas, pela intimidade que assalta dos mofos, das infiltrações e das rachaduras. Não é que a casa esteja livre de espíritos, ela só está abarcando novas assombrações. 

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Paris Nos Pertence

Por Gabriel Papaléo

É um trem, ou um metrô, que nos traz à cidade. E quando chegarmos é possível sentir no ar o ponto de convergência entre a paranoia política e o niilismo que paira por Paris sob os signos dos intelectuais. Dali em diante, testemunharemos encontros de almas à procura de sentido, a experiência de dobrar um texto às suas vontades (e também limitações), as disparidades culturais na forma de expressar suas dialéticas, e as intrigas e amarguras passadas que vem com a necessidade de conviver num círculo social no qual os rostos, e sobretudo os desejos, se repetem insistentemente.

Jacques Rivette, interessado nos jogos místicos, na performance humana diante dos astros, na fronteira do ludismo mágico e sombrio cujos canais habitantes do realismo se tornam metafísicos, começa seu primeiro longa com personagens espalhados pela dramaturgia, sem curso específico, focado totalmente em comportamento. É a partir das discussões sobre o suicídio de Juan, um elo misterioso entre os tipos que conhecemos, que começa a investigação dessa deturpada sensação de desarranjo que podemos chamar de transição dos tempos. A encenação então coloca Anne pra procurar pelo fantasma de Juan em busca de respostas emocionais para sua desaparição, indo de pessoa a pessoa ouvir seus relatos e impressões, porque à margem de respostas há de se entender esse estranho sabor do suicídio entre os artistas ao seu redor. A investigação pela melodia de Juan se torna uma dialética travada, quase um mapa de influências que o personagem exercia, para descobrir – ou intuir, já que não há respostas unas – onde reside o segredo da alma de quem foi interpretado pelos outros de formas tão distintas. Existe um fantasma à solta, e não sabemos se é o espírito de Juan, ou uma conspiração muito maior. A carpintaria dramatúrgica de Rivette é interessada nos labirintos e nas teorias ocultas, e na forma de dar corpo a essas abstrações é que encontra novas formas de fantasmagoria. Que essa arquitetura se traduza em imagens desconfiadas é uma característica fundamental para que os votos místicos do diretor criem vida.

Ao investigar a morte de Juan, Anne conhece a consciência incomunicável da cidade, e a rigorosa encenação de Rivette parte de interações cotidianas, da declamação da peça encenada por Gerard às confissões ao pé de ouvido nos apartamentos dos personagens, para se concretizar num oblíquo jogo de sedução com o não-dito. A cidade é um coral misterioso, e ocasionalmente interessa ao diretor que acessemos, sempre que breve, esse estado flutuante dos habitantes que desconhecemos – como na sequência em que Phillip narra o nome, idade e ocupação dos seus vizinhos, até Anne o interromper quando reconhece uma das vizinhas.

Essa escolha de retrato fugidio da cidade não vem sem percalços, e se reflete diretamente na arriscada identificação de Rivette com Gerard, o diretor teatral. A forma que o cineasta compra as palavras do diretor, em especial na cena da conversa com Anne na ponte, sublinha muito do sentido do filme sem que haja nessa opção uma fricção narrativa entre os personagens que a justifique. Em imagens e sons percebemos o fio narrativo entrelaçado pela música destoante, pela estrutura dos encontros, a sensação palpável do desarranjo da vida refletido na cidade. É um personagem complexo porque é o único que parece progredir no filme, no processo abrasivo de sua adaptação de Péricles de Shakespeare diante da investigação convoluta de Anne, presa na teia de contradições e paranoias de seus encontros. Quando Rivette compra sua visão de mundo, a do artista em busca de autonomia, não é sob as lacunas fantásticas de alguma obra posterior como Duelle; parece a vontade de tornar discurso falado o que a dramaturgia já dá conta. Paris nos Pertence exala a ansiedade jovem, a pulsão de organizar ideias estimulantes e as deixar acumular sem necessariamente ter precisão, verborrágico e disposto a buscar perguntas além do bom senso; dentro de suas aspirações, um filme jovem, enfim.

Por acaso, ou por tremenda boa vontade do cineasta em se manter aberto ao acúmulo romanesco de comportamentos dos sujeitos que filma, a estrutura dramatúrgica de falência do personagem acompanha diretamente o movimento de desaparições com a cidade. A amargura toma conta do encantamento, contaminada pelo dinheiro, pela influência, pelo exercício do poder até mesmo no mais modesto proscênio; o niilismo se infiltra no místico.

O que é niilismo na França pré-1968 – e vale lembrar como o filme sintoniza movimentos políticos posteriores – também é paranoia diante da necessidade de fuga dos perseguidos políticos; a figura de Phillip Kaufman, escritor aclamado e exilado político, habita Paris como fugitivo da América sem trocar o modus operandi do acossado. Sua relação com Terry, sua ex que também é a viúva de Juan, é marcada pela desconfiança e pela amarga herança do relacionamento. Seu comportamento aos poucos o obriga a se isolar, a duvidar das amizades dali, da hospitalidade antes insuspeita do país que o acolheu. O isolamento e a paranoia andam juntos, mas é na criatividade e na imaginação onde reside a verossimilhança da intriga que alguém propõe para convencer ao mundo da soberania desse comportamento; alguém definido como “brilhante escritor, ganhador do Pulitzer” pelo círculo intelectual que o abriga pode ter em mãos a influência dos deuses.

E o que Rivette imagina é uma profunda e detalhada descrição do fim do mundo, que apaga as luzes dos cômodos confortáveis, que reduz subitamente a importância dos conflitos internos, que traz a urgência da destruição. Terry profetiza nos seus graves monólogos, Phillip destila sua paranóia, e em algum momento a imagem – e irrevogavelmente nós espectadores – passa(m) a acreditar nisso; através da palavra organizações secretas operam nas sombras com suas ferramentas e meandros desconhecidos.

Como se imagina a presença da cidade-título diante da constante sensação de perigo à espreita, refém de forças ocultas, quando a cidade parece exigir ser evitada? Pensemos em Godard em Acossado e Truffaut em Os Incompreendidos, para ficarmos nos exemplos próximos em época, contexto, e de base teórica similar ao cineasta. O esforço de filmar na rua, os personagens transitando por Paris, a esmo ou com objetivos fixos, parte do encanto com as possibilidades da locação, do que o movimento das ruas tem a oferecer para essas novas abordagens estéticas que se ensaiam: em Godard, uma Paris do embate entre o charme do criminoso que pensa a dominar com a turista à procura das aventuras que uma visão distanciada de cidade tem a oferecer; em Truffaut, uma Paris de juventude, de pequenas descobertas, de lugares a frequentar, hábitos a construir, rituais a sedimentar. O que une os dois, a disposição benjaminiana de andar pelos corredores claros e escuros da capital europeia planejada à exaustão.

No entanto, flanar não é uma opção tão viável para Rivette da forma que era para seus companheiros de Cahiers du Cinema. Seus personagens começam ocupando Paris com sua juventude, andando pelas pontes, sentando-se em seus bancos, ensaiando peças ao ar livre. Mas aos poucos, Paris se torna ameaça, e todos os acossados se tornam paranóicos, seja essa paranoia herdada do outro lado do Atlântico Norte ou pela própria articulação pessimista de pensamento doméstica; o filme começa a se tornar um jogo de internas, de conversas em apartamentos, e todo o emocional investido por essas relações veste uma desvelada clausura. A reiteração do estado de paranoia toma conta do filme, na cidade que aos poucos vai sumindo, as internas que se espalham, o mundo dos soberbos consumado até o sufocamento.

A necessidade de se sentir perseguido gerando a tensão do fim do mundo, principalmente na boca de Terry, retorce o místico sob a encenação do cotidiana caro ao diretor. Não são poucas as vezes que se sente que algo está observando a todos, e nisso Paris nos Pertence parece mais uma adaptação mais sisuda, fantasmagórica e realista de Phillip K. Dick que filmes que referenciam o autor diretamente – como Southland Tales, por exemplo. Na magistral ficção-científica de Richard Kelly, aliás, a conspiração política também abraça a farsa e as profecias, sempre buscando na crença no místico e no mágico um lastro para as paranoias de seus personagens – mesmo que o diálogo de Kelly seja com o tresloucado humor satírico e as viagens interdimensionais de Alan Moore e Grant Morrison (como lembrado por Filipe Furtado em seu texto [1] sobre o filme). Kelly retrata estrelas de cinema, policiais e atrizes pornô, com a vulgaridade que se espera de Los Angeles, enquanto Rivette filma Paris com a solenidade na qual os intelectuais que a habitam encaram a cidade.

Diferente de Southland Tales, no final de Paris nos Pertence não há conspiração alguma; é consequência direta de que, para os eleitos gênios da arte filmados por Rivette, como um personagem certa hora classifica, é sem dúvidas mais trivial colocar a causa de suas desventuras no mundo e nas organizações que controlam secretamente as vontades e cursos do planeta que assumir o impacto pelas formas que afetou os que estão ao seu redor.

Que existam tais pessoas, as quais foi concedido o imenso poder da influência cultural e de serem representantes quase oficiais da articulação sociopolítica burguesa, é menos o problema para Rivette que o fato de que é preciso responsabilidade na hora de atrair pessoas para seu círculo, para sua gravidade, o cuidado exigido quando for cuspir profecias por aí. Nunca se sabe quem pode estar ouvindo, e a Paris de 1961 e o Rio de Janeiro de 2021 não tem cenas artísticas tão discrepantes quanto eu gostaria. Não que isso importe; como Peguy diz ao abrir o filme, essas cidades não pertencem a ninguém. É importante lutar por elas.

[1] – https://boxd.it/1ex4gn

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Homem-aparelho: entrevista com Wilson Oliveira Filho

Para a edição “Imagens Fantasmas” considerei um papo com Wilson Oliveira Filho muito importante pensando em sua área de atuação com as salas de cinema e meios tecnológicos. Um novo espectro toma esse espaço e Wilson, em tempo, mostra seu projeto de expansão de atividades para novas leituras e, claro, releituras do espaço através da arqueologia dos meios.

  • O projeto que pensa a sala de cinema do campus João Uchoa da UNESA para usos e reusos toca, entre diversos sentidos, um ponto crucial: o da sala como laboratório da sociedade e da comunidade científica. Quais são planos para tornar estes planos acessíveis ao público a pensar que o projeto lida com um espaço privado?

Por se tratar de um projeto de extensão, esse pensar já se dá com a comunidade como um todo. Não só para com os alunos, mas para com o entorno. A extensão universitária é uma grande “sala de aula sem paredes” para lembrarmos o que McLuhan pensava sobre o cinema. Tentamos nos aproximar dos antigos frequentadores de salas de cinema, além de, com os discentes e funcionários do campus, pensar a formação de público que salas em espaços como Universidades podem e devem (re)despertar. A sala de cinema no campus João Uchoa sempre foi aberta ao público. O que meu projeto amplia é a possibilidade de outros usos para manifestações audiovisuais contemporâneas como o live cinema e outras performances audiovisuais e assim pensar as potências dessa economia criativa que vai ainda e por muito tempo precisar de salas de cinema

  • Este mesmo projeto toca na memória das salas de cinema de rua – o que nitidamente separa da experiência do filme como uma parte do consumo em um passeio no shopping center. Um grande “trauma”, a citar Benjamin. Como trabalhar a sala de cinema, neste espaço acadêmico, e reativar o hábito de ida ao cinema?

Essa é uma parte importante uma vez que a sala possivelmente deixará de existir enquanto tal, já que o campus sairá daquele local. Mas suas memórias estão impressas em diversos momentos da sala. Nessa sala mediamos debates com Nelson Pereira dos Santos, Walter Carvalho, exibimos dezenas de filmes universitários e experimentais (creio que a vocação desse tipo de sala em seu uso mais tradicional seja o de exibir o que não tem lugar para a exibição). Nesse espaço, no entanto, vimos não só filmes ou debates, mas performances audiovisuais como o belo trabalho “Cinema das atrações”, de Raimo Benedetti. E aqui usar mediamos e vimos é afirmar uma configuração da memória coletiva. Acho que uma experiência em sentido benjaminiano, mais do que esse trauma, essa fratura que o cinema fora do lugar que lhe conferiu tradição e dentro dos templos de consumo mencionando por você é o que de mais importante fica. E tentamos justamente isso: trabalhar dentro da Universidade hábitos (também no plural), entender novas espectatorialidades e potências desses lugares de memória para usarmos a expressão de Pierre Nora. É nesse sentido que acho que podemos trabalhar salas de cinema em espaços como a Universidade. No futuro, acho que cursos de cinema precisarão ter disciplinas que lidem com a sala como um ambiente; a sala como ecologia das mídias.

  • Em tempos de consumo de novos materiais audiovisuais e a proposta de oferecer o espaço da sala de cinema para uma espécie de contragolpe da relação postura-memória. Como se dá essa relação? Como estes novos materiais digitais ajudam a manter uma tradição que envolve a sociabilidade e articula contra o declínio das salas de rua?

Primeiro pelo entendimento arqueológico dos meios. Aqui sua questão se torna crucial. Essa sala dentro do campus João Uchoa conta com dois projetores analógicos em uma cabine e um projetor digital fora da cabine. Aí acho que já há toda uma perspectiva a ser analisada. O hábito do cinema ainda em tempos da sala e a sala agora aberta (o projetor não mais atrás das nossas cabeças como no velho e bom hábito cinema para destacarmos a expressão de André Parente e Kátia Maciel), mas também acima das nossas cabeças ligado a computadores, videogames, celulares (rompendo justamente o hábito e, seguindo ainda André e Kátia, criando uma outra situação cinema, estendendo a concepção de Mauerhofer). Tentamos pensar “sessões” nesse sentido. Uso as aspas, pois não sei se estamos diante do mesmo fenômeno. A exibição por exemplo de uma sequência de gifs direto do meu celular problematiza a ideia de exibição e curadoria (e aqui meu projeto toca no seu projeto de mestrado creio, mas isso já daria outra conversa…).

  • Logicamente falamos de um espaço fantasmagórico envolvido pela memória, pela nostalgia que hoje são tomados por igrejas, farmácias e lojas de departamentos. Inclusive a sala está localizada no bairro que hospedava o Cinema Apolo (fechado em 1949).  Há alguma ideia que se relacione diretamente com a história das salas de cinema neste projeto?

Na pesquisa inicial que levou ao projeto busquei informações sobre o Apolo que até pouco tempo era uma academia de ginástica. Entrei no lugar como faço em diversas salas que se tornaram outra coisa e não obtive informações. A fachada  deve ser a mesma de outrora e no bairro poucos se lembram da sala. Há já aí algo que passeia pela nostalgia, pela nostalgia das ruínas como já abordou Andreas Huyssen. De forma mais direta comecei a pensar em um curta sobre essa sala no Rio Comprido (uma sala com mais de 400 lugares), mas é algo que segue ainda só nos planos. Muitos filmes sobre salas específicas vêm surgindo, mostras dentro de festivais etc.

  • Há uma ligação com a experiência completa envolvendo a coleção de memórias ao utilizar o espaço completo como o hall de entrada, a aparelhagem e, claro, a tela. Como este projeto pensa em construir um novo público que hoje não acostuma a consumir imagens? Hoje o consumo me parece uma experiência solitária através da TV, do celular, torrents, etc.

Novamente você toca em outra questão central. Como conviver o espaço com novas formas (e certamente solitárias) de consumo audiovisual. Fazendo, creio eu, o radical entendimento do reuso. Tratando os ambientes que compõem uma sala como o lócus de fato em sua totalidade. Recuperar a sociabilidade que uma ida ao cinema cria, provoca com novas atrações. Escrevi com Márcia Bessa sobre isso em artigo apresentado na Socine em 2019. Segue para quem se interessar. https://www.socine.org/wp-content/uploads/anais/AnaisDeTextosCompletos2019(XXIII).pdf (pp.1231-1235)

  • Nesta proposta de ter novas utilidades à sala me vem o pensamento de equilíbrio que Benjamin fala sobre as funções sociais do filme envolvendo o ser humano e a aparelhagem. Como esta proposta equilibra estas funções?

Aliando o aparelho (analógico/digital) ao cidadão.

Wilson Oliveira Filho é professor da Unesa desde 2005. Foi coordenador entre 2012 e 2021 dos cursos de Cinema, Fotografia e Produção Audiovisual no campus João Uchoa. Atualmente é extensionista com o projeto “A sala de cinema no campus João Uchôa: usos e reusos para Economia Criativa”. Foi pesquisador do programa Pesquisa Produtividade entre 2013 e 2020. Autor de McLuhan e o cinema ( editora Verve, 2017) e artista multimídia com o DUO2x4 em parceria com a professora, cineasta e pesquisadora Márcia Bessa.

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Editorial: Ouvir um Filme

Por Camila Vieira

“Imagens e sons como pessoas que se encontram em uma jornada e não podem mais se separar.”

Robert Bresson – Notas sobre o cinematógrafo

No cinema, a escuta é tão importante quanto o olhar. A percepção dos sons de um filme acontece com a percepção das imagens. Em um filme, imagens e sons constroem dinâmicas e fluxos. Ao analisar filmes por meio de textos, raramente abordamos algo a partir das nossas percepções sobre o som e, no entanto, imagem e som fazem parte da integralidade fílmica. Como críticos de cinema, somos bastante oculocêntricos e deixamos de lado considerações pertinentes ao som dos filmes. Colocamos a visualidade em primeiro plano de análise e esquecemos a sonoridade. 

Ao final do longa-metragem português “Aquele querido mês de agosto” (2008), o realizador Miguel Gomes questiona o diretor de som Vasco Pimentel sobre sons fantasmas que foram registrados em alguns planos e que não deveriam existir no filme. “Como é possível haver sons que não estão lá?”, pergunta Miguel Gomes. Vasco responde que tecnicamente isso é impossível, porque ele registra os sons que quer. “Eu sou diferente de você”. O embate entre os dois alude à forma como a materialidade sonora de um filme envolve a escolha entre sons desejáveis e descartáveis.

Em determinados filmes, as dinâmicas da escuta tornam-se elementos constitutivos da narrativa, como é o caso da franquia Um lugar silencioso, que Felipe Leal analisa em um dos textos desta edição da Multiplot. Os sons podem acentuar ou reforçar o que é visto nas imagens, mas efeitos sonoros e temas musicais também podem criar tempos e espaços imaginados apesar da tela, como argumenta Chico Torres em texto sobre Blue (1993), de Derek Jarman. 

Nem sempre o acoplamento do som à imagem resulta em uma codificação unívoca de sentidos dentro da estrutura narrativa. A fala como elemento sonoro não se sustenta apenas por meio do diálogo, mas sobretudo a partir de seus instantes silenciosos. No ensaio “Por um cinema falado” – traduzido nesta edição pelo Bernardo Moraes Chacur -, Éric Rohmer afirma ser “necessário que a palavra desempenhe um papel condizente à sua natureza de signo, ao invés de figurar apenas como um componente privilegiado entre os elementos sonoros, mas de importância secundária com relação ao elemento visual”.

É possível também pensar o som fora da ideia de correspondência à imagem ou de vínculo com a representação por uma forma propositiva de disjunção entre olhar e escuta. A partir dos anos 50, Stan Brakhage recusa o uso do som em seus filmes experimentais, por afirmar que as imagens em si mesmas já continham sonoridades. A sugestão sonora estaria na cadência, no ritmo, na pulsação das imagens. Pensar as frequências sonoras de um filme teria a ver com pensar a montagem das próprias imagens. 

Em suas múltiplas possibilidades, o som no cinema pode estabelecer vínculos diretos com as imagens ou pode transbordar os limites da visualidade. A nova edição da Multiplot propõe aguçar nossos sentidos para as escolhas das sonoridades dos filmes que escolhemos falar. 

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Sem Sol: Via Dupla

Por Pedro Tavares

No final dos anos 70, enquanto retornava aos projetos pessoais, Chris Marker fez uma série de viagens pelo mundo e a partir delas captou alguns signos da existência além de puras imagens. Sem Sol (1983) é uma espécie de mapeamento em via dupla – som e imagem – sobre a humanidade. E com esta via, um filme que se ouve para tomar um rumo e que se vê, para tomar o outro. É um jogo profundo e inerentemente político entre a natureza desta arte e seus aspectos técnicos.

Como um filme seminal que embaça fronteiras entre o filme-ensaio, documentário e ficção, Sem Sol é uma intensa colagem de sintomas. Colagem esta que levanta questões semelhantes aos efeitos do Atlas Mnemosyne, de Aby Warburg, ao tirarmos ou colocarmos uma imagem – ou as mudarmos de lugar. Enquanto constrói ideias acerca de um futuro distópico com imagens que registram ou emulam o ordinário através do cotidiano no Japão, Cabo Verde, Estados Unidos, Guiné-Bissau e Islândia, os comentários-carteados feitos por Sandor Krasna tomam corpo pela voz de Florence Delay. Krasna, no entanto, não existe. É um personagem para representar as emoções de Marker. 

É através dela que o filme dá passos para trás, como um respiro necessário para acompanhar as imagens e com novos códigos, dar um novo significado, como uma readaptação ao pensamento de Farocki que não precisamos usar novas imagens e sim dar novos significados às existentes. Há uma conjuntura aqui, pois Marker utiliza de imagens de terceiros e sente-se livre para citar e ressignificar filmes e diretores como Hitchcock, Tarkovski, Vincent Minnelli e a si mesmo, mas também coloca questões sobre o jogo de poder envolvendo a câmera e o personagem e a ética no gesto da captura e na reprodução de qualquer imagem.  

Esta elaboração entre imagem e palavra e seus caminhos divergentes coloca em xeque até mesmo o valor de cada natureza. Enquanto exibe um produtor de games como um inerente comentário sobre o futuro, Marker salienta que só o eletrônico pode tratar o sentimento, a memória e a imaginação, desta vez com a voz da narradora. Estes embates que trazem diferentes valores entre fundamentos cinematográficos reforçam a ideia de uma construção de coerência entre ambos como um idealismo, um pensamento não anacrônico enquanto cada ponta segue para o desencontro. 

Quando Deleuze pensa em Foucault e simboliza seus encontros com o professor por “rachar coisas e palavras” e, num compêndio acidental com o filme Marker, também usa uma carta para se comunicar com o crítico Serge Daney, o filósofo e teórico francês a batiza de “Otimismo, pessimismo e viagem”. Deleuze fala de uma nova função da imagem, a da pedagogia da percepção e da espiritualização da natureza; a natureza da imagem, portanto. É interessante pensar nestas rachaduras e na pedagogia da percepção aplicadas ao filme de Marker e como o diretor levanta questões sobre a “ética do dispositivo” enquanto o mundo encontra um norte nebuloso.  Marker faz das cartas, das palavras, um diário-manifesto oral e com a força que se ouve o êxtase sobre o campo social, uma decodificação poderosa sobre a existência e anula a possibilidade de castração deste panorama com o sistema de fluxo tirânico de imagens complementando o agenciamento de expressão. 

Sem Sol, portanto, é um filme que exige acompanhamento bifurcado, de certas revisitas a como se lê e relê uma frase em um livro. A voz que se ouve na leitura é a voz de Delay, Krasna, Marker e também a nossa como uma simples convergência entre vida e filme. E é de Deleuze, em entrevista a Claire Parnet, novamente falando sobre Foucault, um resumo acidental de Sem Sol: “(…) É preciso que as forças do homem (ter um entendimento, uma vontade, uma imaginação, etc.) se combinem com outras forças; então uma grande forma nascerá desta combinação, mas tudo depende da natureza dessas forças com as quais do homem se associam”. Como a concepção de memória, que cria sua própria ficção dentro das lacunas a fim de complementar a noção de mundo e vivência, Sem Sol é um filme que configura seus próprios espaços na diferença de percepção. Nos diferentes códigos de compreensão do real e sentidos, Marker faz dois filmes distintos: duas narrativas, dois olhares, duas histórias a ouvir.

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Ressonâncias e (Não)Escutas: Sementes: mulheres pretas no poder (Éthel Oliveira e Júlia Mariano, 2020) e #eagoraoque (Jean-Claude Bernardet e Rubens Rewald, 2020) 

Por Kênia Freitas

Ouvir é, nesse sentido, o ato de autorização em direção à/ao falante. Alguém pode falar (somente) quando sua voz é ouvida. Nesta dialética, aqueles(as) que são ouvidos(as) são também aqueles(as) que “pertencem”. E aqueles(as) que não são ouvidos(as), tornam-se aqueles(as) que “não pertencem”.

(Grada Kilomba)

Não serei interrompida! Não aturo o interrompimento dos vereadores dessa casa, não aturarei de um cidadão que vem aqui e não sabe ouvir a posição de uma mulher eleita!

(Marielle Franco)

Cosmopoética não é nem um fetiche nem uma marca registrada, apenas um termo, um modo entre outros de apontar para uma outra relação com o mundo que privilegie a escuta – o sentido de ressonâncias e de correspondências – mais do que a visão.

(Dénètem Touam Bona)

As cenas iniciais de Sementes: mulheres pretas no poder (Éthel Oliveira e Júlia Mariano, 2020) são fotografias e imagens em branco em preto de uma grande manifestação no centro do Rio de Janeiro cobrando justiça pelo assassinato da vereadora Marielle Franco. O bloco é também composto pela montagem de áudios de jornais sobre a execução da vereadora e do motorista Anderson Gomes, assim como por manchetes que destacam mulheres pretas ocupando posições de poder. Essa montagem estabelece a prerrogativa do filme de Éthel Oliveira e Júlia Mariano: o trauma causado pelo assassinato de Marielle Franco e os desdobramente políticos desse trauma – com o aumento significativo de candidaturas de mulheres autodeclaradas negras a cargos legislativos nas eleições de 2018.

Prerrogativa posta, o filme entra em sua jornada acompanhando as campanhas e posses (no caso das eleitas) de seis mulheres pretas: Mônica Francisco, Rose Cipriano, Renata Souza, Jaqueline de Jesus, Tainá de Paula e Talíria Petrone – candidatas a deputada estadual ou federal pelo estado do Rio de Janeiro por partidos de esquerda (PSOL, PT e PCdoB). A partir daí, o tom histórico e mais distanciado dá lugar a um documentário observativo filmado de forma íntima e cúmplice com as personagens e os seus posicionamentos políticos. Uma cumplicidade que se desdobra na câmera presente e de escuta atenta, nos momentos banais (deslocamentos nos carros, os cabelos sendo trançados, as compras no supermercado para o novo apartamento) e nos mais marcantes (grandes manifestações, a apuração dos votos e a posse) das campanhas.

Além da câmera observativa, a composição do filme é atravessada de materiais de texturas e origens midiáticas diversas: o registro amador de abordagens policiais abusivas, os videoclipes de campanha e o seu making off, os bastidores de uma entrevista para uma equipe internacional, stories do Instagram e posts do Twitter das candidatas. Materiais montados a partir do protagonismo compartilhado pelas seis candidatas em uma estrutura de fluxo contínuo e linear estabelecida pelo passar dos meses.

A pluralidade do título informa assim a coletividade posicional que interessa ao filme como organizadora da ação – as mulheres pretas de esquerda atuando na política partidária. Ainda que ao longo da narrativa, a singularização de cada uma das candidatas possa ser perceptível (por suas trajetórias, locais de atuação e formas de se expressar), o trabalho que as diretoras se propõem política e esteticamente é o de amalgamar essa vivências em um corpo multifacetado mas único.

Dessa forma, a apresentação das candidatas vai enfocar momentos de encontro e comunhão, como Mônica Francisco (que é pastora) no culto da Nossa Igreja Brasileira, Tainá de Paula no lançamento da pré-candidatura aberta por uma apresentação de dança afro, Rose Cipriano, Renata Souza e Talíria Petrone participando da 4ª Marcha das Mulheres Negras. Nesses encontros, a escuta se volta tanto para o discurso das candidatas, quanto para vozes, músicas e sons dos ambientes – tambor, orações e abraços.

Como uma boa parte do filme se faz dentro das fronteiras desse corpo coletivo – entre rodas de conversa da militância, reuniões das equipes de campanha e atos de esquerda -, a entrega dos santinhos faz chocar esse corpo com outros, com um fora. Sequências cruciais na constituição desse corpo comum pela repetição de gestos e modos de falar, e também pela repetição de experiências menos controladas – encontros às vezes breves e felizes, e outras vezes desencontros e não escutas. Isso culmina na cena em que uma ambulante diz para Jaqueline de Jesus que já tem candidato e ele é do Partido Novo e o diálogo se encerra de imediato com um “boa sorte!”. De ambas as partes, não há o que dizer – da parte do filme cúmplice também. 

Nesse sentido, Sementes é um filme sobre a criação de um novo pertencimento (o político partidário para as mulheres pretas) a partir do trauma. Um pertencimento que se faz, no filme e para fora, centrando a posicionalidade dessas mulheres pretas como ponto de vista e de escuta. Dentro desse corpo coletivo tudo ressoa e germina, o fora dele (os “novos”, a família Bolsonaro e os quebradores de placa) é uma contagem de votos que emudece os comitês estarrecidos. 

Politicamente #eagoraoque (Jean-Claude Bernardet e Rubens Rewald, 2020) se situa no mesmo momento em que Sementes (Éthel Oliveira e Júlia Mariano, 2020), ambos próximos a avassaladora vitória da extrema direita nas eleições de 2018. O ponto de partida do filme de Bernardet e Rewald é da crise da esquerda – do “esgotamento profundo dos modos de organização das lutas e das mobilizações” ou da sua “incapacidade de sair da reatividade e propor pautas” – como diagnostica o artigo escrito por Vladimir Safatle e lido por Bernardet no começo do filme. A estratégia narrativa do filme passa longe da cumplicidade e da criação de pertencimento, sendo a de incitar e ampliar essa crise e os seus efeitos de incertezas. A pergunta “e agora o que?” do título é ao mesmo tempo um ponto de partida e um ponto de chegada para filme que se firma na impossibilidade de qualquer resolução.

Estratégia já posta na própria forma do filme – uma auto-ficção ou ficção feita a partir de personagens reais (bem no estilo Bernardet de jogar com os limites entre ficção, documentário, filme experimental e ensaio). Vladimir Safatle interpreta o intelectual paralisado pela crise; Bernardet seu pai, um militante saudosista e Palomaris Mathias a interlocutora política da dupla. A partir disso, o filme passa a propor uma série de situações e encontros – mais ou menos estruturados, às vezes totalmente ficcionalizados e outras atravessados pela não ficção – para provocar ainda mais a situação de crise.

Essas situações são em grande parte atravessadas pela impossibilidade de comunicação entre os diversos grupos dentro da esquerda – grupos de geração, de gênero, de classe, de raça, etc. Uma comunicação impossibilitada não pela ausência da fala (os muitos trechos de entrevistas, palestras e discursos públicos de Safatle incorporados ao filme ressaltam a eloquência verborrágica do filósofo), mas marcada sobretudo pela incapacidade de escuta. Uma não escuta encenada de inúmeras maneiras no filme: a impassividade de Safatle com a performance perturbadora do ator do Teatro Oficina que grita na sua cara; na cena em que o trio de protagonistas finge normalidade enquanto tem a sua conversa atravessada pela faxineira que liga o aspirador de pó; a briga com a filha estudante universitária pela recusa do intelectual em crise de participar da assembleia.

Ancorando-se na incapacidade de ouvir desse intelectual em crise, a não-escuta é assumida pelos diretores como uma performance estética e política para o filme. A performance da não-escuta da personagem principal parece inicialmente uma estratégia auto-depreciativa para questionar a posicionalidade normativa do seu protagonista – homem, branco, cis, hétero, de classe média alta. Isso sobretudo quando essa não escuta é assumida enquanto encenação – a cena da reunião com a enceradeira, o comentário aleatório da atendente no café, o embate entre pai e filha ou pai e filho. 

No entanto, mais do que a auto-depreciação, o que ocorre neste dispositivo fílmico é o centramento desse homem, cis e branco. A coletividade “esquerda” que o filme apresenta em crise e para a qual lança a pergunta “E agora o que?” mostra-se na narrativa menos atravessada por uma multiplicidade de raça, gênero e classe dos personagens reais e ficcionais que passam pelo filme, e mais alicerçada nessa experiência normativa do homem branco como o ponto de vista e de (não) escuta. Ao mesmo tempo em que ancora, essa experiência apaga a existência de sua própria posicionalidade.

Nesse sentido, a decisão de não identificar de maneira explícita no filme ou nos créditos quem são as personagens reais e as personagens fictícias que os atores interpretam não equaciona de forma anônima os participantes. Ao contrário, reforça as desigualdades de status sociais e de notoriedade pública previamente existentes. Uma cena que marca a decisão deliberada de não posicionalidade do protagonista é do recital de piano, em que após apresentação o intelectual encontra seus pares (outros homens e mulheres brancos de classe alta) e começa a fazer perguntas constrangedoras e hostis sobre posicionamentos políticos e financeiros que os seus pares estruturam. Como o indagador impertinente, o personagem se coloca fora do seu pertencimento de classe e raça.

Em termos narrativos, a invisibilização dessa posicionalidade específica parece contar com a associação automática da experiência do homem branco com a do sujeito neutro e universal – o seu pertencimento não precisa ser criado, foi herdado. E, isso posto, as premissas que atravessam o filme são reforçadas: a não-escuta vira não diálogo, a incapacidade de conversar vira reatividade da esquerda, que vira falência generalizada dos processos de organização e luta.

    Não por acaso, o filme se encerra na conversa tensa entre Safatle e os moradores do Capão Redondo, em que os militantes da quebrada recusam a aliança proposta pelo intelectual – “nós aqui e vocês lá”, diz um dos jovens. De um ponto de vista narrativo, essa seria a cena que poderia sustentar a hipótese do não diálogo e da reatividade da esquerda fraturada pelo identitarismo neoliberal individualista. Porém, se a escutarmos a partir da afirmação de um “nós” e um “vocês”, a recusa pode ser ouvida não como uma aversão ao diálogo, e sim como um dissenso à persistência da naturalização da posicionalidade normativa (branca, cis e masculina) como neutra e universal.

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Por um cinema falado

Éric Rohmer[1]

Tradução: Bernardo Moraes Chacur

O cinema passou mais de trinta anos aprendendo a prescindir da palavra. É natural que, dezoito anos depois[2], ele ainda não tenha encontrado a forma de utilizá-la. Estou me referindo à desconfiança, disseminada entre os melhores diretores, com relação a esse poder da linguagem que lhe é essencial, o de significar. Se o filme falado é uma arte, é necessário que a palavra desempenhe nele um papel condizente à sua natureza de signo, ao invés de figurar apenas como um componente privilegiado entre os elementos sonoros, mas de importância secundária com relação ao elemento visual. Ainda é muito difundida a crença de que o valor de um filme seria proporcional à sua independência das palavras e de que uma obra cinematográfica digna desse nome perderia muito pouco ao ser assistida sem dublagem por um público estrangeiro. Pode-se admirar o excelente Farrapo Humano porque Billy Wilder consegue iluminar as intenções mais sutis de seus personagens com métodos puramente visuais – ou sonoros. Mas lamenta-se, enfim, que eles falem. A palavra ou é supérflua ou indispensável. Não se pode adicioná-la sem necessidade ou subtraí-la sem prejuízos.

Farrapo Humano (The Lost Weekend, Billy Wilder, 1945)

Em resumo, não é exagero dizer que, até hoje, há apenas um cinema sonoro. O erro dos cineastas de 1930 foi acreditar que somente a questão do tratamento cinematográfico do som era importante, enquanto a solução para o problema secundário da palavra (a introdução de um modo autônomo de significação, que é a linguagem, em uma arte de expressão visual) seria encontrada como decorrência lógica da primeira. Todos os esforços posteriores conduziram ao enfraquecimento da potência própria à palavra. Logo compreendeu-se que a palavra era som antes de ser signo e admitiu-se que ela deveria ser tratada como um modo de ser e não de revelar. A fala de cinema não se apoia somente sobre os diálogos que a precedem ou que a sucedem, ela está no tempo e não no texto. Simples instante no desenrolar de um filme, ela requer a sustentação de outros instantes, inclusive dos silenciosos. “O problema principal para os roteiristas”, escreveu André Malraux, na Verve em 1940, “é saber quando os seus personagens devem falar”.

Não se trata de trapacear. O problema do cinema falado não é apenas de encenação e o papel cada vez mais especializado que, na maioria dos casos, é relegado aos diretores, é certamente uma das causas desse equívoco. Eu sei que alguns dialoguistas compreendem muito bem que devem escrever para as telas de modo diferente do que fariam para o teatro ou para a página impressa. Pode-se inclusive repreendê-los por introduzir modificações absolutamente desnecessárias em suas adaptações, sob o pretexto das exigências próprias ao cinema. Mas esses remanejamentos se concentram muito mais sobre os modos de apresentação do que sobre o sentido. A maioria dos diálogos escritos para o cinema até aqui podem ser definidos como falas de teatro ao estilo de romance. Em geral, sob a forma escrita, eles pediriam naturalmente o “disse ele”, que, em um romance, delimitaria as frases dos personagens a um intervalo específico de tempo. Ainda assim, seu conteúdo jamais atinge a naturalidade dos diálogos dos romances americanos, por exemplo. Estes, conforme suficientemente demonstrado pela experiência, não podem ser transpostos para as telas sem perdas. Tais diálogos só são eficientes, aliás, porque conseguem trazer à vida todo um mundo à sua volta. No cinema, esse mundo existe. A frase pronunciada não precisa evocá-lo, mas somente encaixar-se nele e, desse modo, possuir uma densidade de sentido capaz de salvá-la da destruição. Os dialoguistas com aptidão para o cinema tentaram viabilizar de diversas maneiras essa junção entre palavra e mundo filmado. O texto de Prévert costuma ser um comentário poético ou humorístico sobre a imagem, mas o erro é precisamente confundir a imagem com um elemento do filme, como se fez tantas vezes desde o começo do cinema falado. Griffith, Sjöström, os expressionistas alemães, Chaplin, Gance e Eisenstein criaram – por meios muito diferentes – uma linguagem que se mostrou quase tão rica e sutil quanto a fala. É compreensível que a palavra tenha surgido como um elemento parasita, a ser mantido sobretudo às margens, e que a presença simultânea das duas linguagens tenha enfraquecido consideravelmente a capacidade expressiva de ambas. Não apenas a palavra foi tratada como som, conforme já mencionado, mas também a imagem foi reduzida a simples quadro ou cenário. A imagem nunca foi tão intrinsecamente bela, tão amorosamente trabalhada por seus especialistas quanto nos anos entre 1930 e 1940, uma verdadeira era de ouro para esses profissionais, sobretudo na França. No período, os diretores legavam a esses especialistas a maior liberdade possível com relação à determinação da posição dos atores no quadro e à distribuição das massas de sombra e luz.

Em nossa opinião, a relação entre o elemento visual e a palavra deve se estabelecer de forma totalmente diferente. Vários filmes permitem entrever como a linguagem poderia recuperar sua verdadeira função, precisamente aqueles que, passada quase uma década, indicam o rumo para uma nova concepção de decupagem. Talvez devamos exigir menos dos dialoguistas do que dos próprios diretores, que frequentemente tratam os diálogos como um material desimportante, enquanto aplicam toda a sua engenhosidade à procura de ângulos de câmera ou de um ritmo sutil nas transições entre planos e contraplanos. Não será, tampouco, com personagens enunciando máximas de La Rochefoucauld enquanto consertam rádios ou dirigem por vias engarrafadas, entrecortando seus discursos com interjeições e balbucios, que se falará a uma autêntica linguagem de cinema. A arte da direção não existe para obscurecer o que os personagens dizem, mas, pelo contrário, para permitir que não percamos nenhuma palavra. Os melhores diálogos de Cocteau estão em As Damas do Bois de Boulogne, assim como os melhores de Prévert estão em O Crime de Monsieur Lange, porque Bresson e Renoir só lhes permitiram incluir o essencial à compreensão do filme (e não estou me referindo à sua dimensão anedótica). Com o uso do plano-sequência, tal exigência se torna ainda mais evidente e o ponto fraco de Cidadão Kane, é que nele a palavra ainda é tratada como barulho. Em Soberba (que considero superior), por outro lado, até a palavra mais breve tem peso, porque ela nos revela aspectos dos personagens ainda não evidenciados pela narrativa. Os dois melhores exemplos são sem dúvida o plano fixo na cozinha e o longuíssimo travelling ao longo da rua. Um jogo entre plano e contraplano teria certamente enfraquecido o caráter expressivo de ambos. A imobilidade do ritmo (caso possa-se assim dizer), a fixidez obstinada dos dois personagens, o “não coma tão depressa”, da tia, desempenham um papel bem oposto ao realismo mundano que o cinema costuma oferecer com condescendência. Retomando a distinção clássica, eles estão ali por necessidade e de forma alguma por verossimilhança. O travelling ao longo da rua, por sua vez, exprime pelo seu desenrolar monótono o vazio de uma conversa que não será concluída. Não é com a imagem que a palavra mantém uma relação, mas com um elemento totalmente cinematográfico: a dinâmica do plano, ainda que nesses dois casos, ela seja obtida por uma tensão na imobilidade.

Soberba (The Magnificent Ambersons, Orson Welles, 1942)

Assim, é preciso encontrar uma maneira de integrar a palavra ao filme e não ao mundo filmado, seja ao plano em que ela é enunciada ou à uma sequência anterior ou subsequente. Na cena do hangar em Portas da Noite, a falha do texto de Prévert (no diálogo entre Yves Montand e Nathalie Nattier) é evocar um imaginário exterior ao filme, como em uma narrativa teatral.  Já a sequência de O Crime de Monsieur Lange, na qual René Lefèvre relata a Maurice Baquet como passou sua manhã de domingo, é excelente pela dupla razão de aludir diretamente a uma outra cena e porque esse relato é mentira. Não se mente o suficiente no cinema, exceto talvez nas comédias (pode-se considerar que René Clair, Lubitsch e Capra dirigiram os filmes de maior valor do período entre 30 e 40, as raras obras que não nos forçam à nostalgia pelo cinema mudo). Para atenuar ou controlar a potência formidável da palavra não é necessário, como se acreditou, tornar a sua significação indiferente, mas enganosa. No teatro, nunca se mente. Isto é, seja na tragédia ou na comédia, a palavra nunca é simplesmente modo de ação de um personagem sobre os demais e sempre possui um valor intrínseco – ou atemporal se preferirem. Não há lugar no teatro para aquela ambiguidade própria aos diálogos de Dostoievski, Balzac ou Faulkner. Por outro lado, encontramos essa ambiguidade nos melhores filmes realizados nos últimos dez anos: A Regra do Jogo de Renoir, As Damas do Bois de Boulogne de Bresson/Cocteau, na obra de Preston Sturges, em alguns policiais americanos como O Falcão Maltês de Huston/Hammett ou À Beira do Abismo de Hawks/Faulkner. Em Orson Welles, esse hiato entre a significação da palavra e a do elemento visual, o contraponto entre texto e película (que é totalmente diferente do contraponto sonoro outrora preconizado por Pudovkin e Eisenstein) tende a seguir a via do comentário. Nos últimos anos, diretores muito diversos têm usado com frequência esse procedimento – talvez um pouco simplório – evidenciando a inegável necessidade de restituir à palavra a sua função legítima dentro de um filme.

As Damas do Bois de Boulogne (Les Dames du bois de Boulogne, Robert Bresson, 1945)

A distinção que podemos estabelecer entre o cinema e o teatro não recai de forma alguma sobre a importância respectiva que cada um confere à palavra. Temos, sobre os cineastas de 1930, a imensa vantagem de não sermos mais assombrados pelo espectro do teatro filmado e será possível, de agora em diante, dedicar toda a nossa atenção ao problema essencial: escrever diálogos realmente feitos para o filme no qual terão lugar. Isto pressupõe, da parte dos dialoguistas, um conhecimento perfeito da linguagem visual com a qual o diretor pretende se expressar e, da parte do segundo (caso não sejam a mesma pessoa, como desejável), a disposição para considerar a palavra como parte constitutiva de sua obra.

Até tempos recentes, enquanto se contentava em adaptar de forma mais ou menos hábil os procedimentos que outrora compensaram a ausência das palavras, não se podia dizer que havia um verdadeiro estilo do cinema falado. Para a elaboração desse estilo, deverão ser aproveitadas as explorações das vanguardas dignas desse nome, apesar das dificuldades materiais. Já esperamos demais pela prova de que a era do cinema falado já começou.

Le Temps Modernes, setembro de 1948 (Retirado da coleção Le Goût de la beauté, Cahiers du cinéma, 2004)                              

Conto de Verão (Conte d’été, Éric Rohmer, 1996)


[1] Na verdade, o artigo é assinado por Maurice Schérer, que só passaria a usar ‘Éric Rohmer’ a partir de 1955, já na Cahiers du Cinéma.

[2] O texto foi originalmente publicado em 1948.

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Mu, a terra da impossibilidade sonora – sobre Abismu, de Rogério Sganzerla

Por Gabriel Papaléo

“Quem sabe a ameaça vem mais dos silêncios que dos ruídos?”

Ítalo Calvino, Um rei à escuta, em Sob o sol-jaguar.

O cinema caseiro pede anistia, e, indo até as ruas, com imaginação podemos achar as vontades dos deuses. Já no início de O Abismu, o primeiro longa de Rogério Sganzerla pós-Belair, nos deparamos com um interesse e uma proposta de transcendência do diretor: estamos convidados a procurar embates místicos com as paisagens do Rio. É onde está a cidade de Mu, uma terra lendária e perdida à espera do despertar de seu portal mágico, cujos habitantes usaram dos cartões-postais da cidade para construir seu portal. A civilização maia ficcionalizada e transformada para o Brasil do fim dos anos 70, a agonia da espera por dias mais livres, a elegia para uma cultura que não tem mais a estrutura que comporta suas ideias.

Sganzerla e Renato Laclete prendem a câmera ao carro da Madame Zero, vivida por Norma Bengell com um charuto enorme e vão à procura de uma nova religião, andando de carro a esmo, encarnando arquétipos vários, deixando-a desorientada pelo sincretismo. Nessa mesma frequência de luta entre forças místicas aparece a participação de José Mojica Marins como o professor cientista louco, um dos imaginários de ficção-científica cinquentista mais caros à Sganzerla, como um maníaco ganancioso a tentar conquistar o espaço, os portais, as fronteiras, e por que não os corpos. É importante que a cultura popular esteja impressa nos personagens de O Abismu porque, para Sganzerla, o que está em jogo com a invasão de Mu é todo um pesadelo linguístico de exceção cultural – que se assimile tudo que o Brasil tem direito de reclamar para si como identidade antes que os gringos venham tomar essa fronteira mitológica.

Nesse retrato à mão-livre, como pequenas vinhetas de pessoas que entraram em contato com esse divino alienígena quase incompreensível, muito dessa não-linearidade se percebe pelos dispositivos técnicos que Sganzerla usa. Quase tudo é rodado em câmera na mão, as bitolas gastas do 16mm parecem abraçar só a luz natural, e o grão forte e expressivo dá ao filme um teor caseiro que só reforça que Sganzerla está interessado em uma profecia em primeira pessoa, mais íntima, de pequenos contos fantasiosos desse filme-ensaio sobre misticismo, religião, e fé no desconhecido.

E como é o som dessa nova religião em formação? Qual o som egresso de outro mundo? O Abismu é um filme de paisagens e profecias, e a sujeira da imagem encontra no som uma nova oportunidade de agressividade. Sugerem-se barulhos de motor, ruídos descontínuos, diálogos que flutuam pelos ares do Rio sem casar necessariamente com o acúmulo narrativo, bem à forma de manchetes, de quadrinhos, das quais Sganzerla abraça com fervor. Na cena na qual a Madame Zero de Bengell canta de branco, parece que sua voz é de uma consciência alheia, de um som que paira sem controle e sem autor pelo vento. Quase não há diálogos claros em O Abismu, muito porque é um retrato de profetas e de charlatões, de Mojica Marins convocando “os boçais do mundo” a se unir, de Jorge Loredo versando sozinho em meio aos morros. Na unidade sociocultural imposta não existe conversa, existe proclamações, existe monólogos disparados ao vento, e a ousada proposta de som de Sganzerla parece lembrar que “unidade” também pode ser supressão do específico – e não há clareza possível de palavras diante dessa ebulição da consciência diante de contatos místicos.

Os ruídos e distorções são a regra de som e imagem em O Abismu, e talvez a única linha clara sonora é a da guitarra (distorcida) de Jimi Hendrix. Seria essa escolha intencional? O estado do som nos filmes brasileiros sempre leva a dúvida: nossos filmes mal-tratados tiveram o som captado dessa maneira precária ou foram as exibições na sala de cinema (e as subsequentes telecinagens) que não fizeram jus ao meticuloso trabalho sonoro? É dolorosamente comum acharmos cópias de filmes brasileiros num estado bem precário de imagem, mas mais comum ainda é acharmos cópias com o som prejudicado – o que gera a impressão de que o normal para “o filme brasileiro”, essa instituição una e insuficiente, é um som mal cuidado e por vezes de diálogos incompreensíveis. 

Quem procura ver online hoje filmes como “Um Homem sem Importância”, de Alberto Salvá, e “Bang Bang”, de Andrea Tonacci, só os encontra com diálogos estourados, uma mixagem pouco cuidadosa, e passagens sonoras bem confusas para a compreensão da narrativa. São filmes que se propõe abertos ao diálogo com a marginalidade cara aos realizadores brasileiros à época, que entendiam os comos e porquês de num sistema com pouca estrutura para se praticar cinema, o improviso e a possibilidade serem nossas maiores armas de invenção. Nesse movimento, as sementes do que foi desenhado como “cinema experimental” foram plantadas nesse período, que demonstrou que esse cinema, como o curta-metragem é e o digital também se revelou ser, é realizável.

Convencionou-se colocar o franco descaso de certos filmes com som sob a confortável coberta do “cinema experimental”, o estímulo à picaretice que faz com que grandes cineastas que utilizam do som precário para passar sua poética caiam no mesmo saco de oportunistas que pouco se importam com linguagem. Com Sganzerla não é diferente, e o som ambicioso, captado em meio aos ventos do Rio, aos ruídos no diálogo, nos lembra o tempo inteiro que estamos diante de um retrato caseiro, como ensaios filmados – a fina linha entre a “tosquidão” como manifesto estético dita por Paulo Emílio Salles Gomes, e a legítima falta de infraestrutura destinada ao cinema brasileiro e sua técnica. E Sganzerla constroi um cataclisma com isso, mesmo sob modestas pretensões – pelo menos para a abrangência de suas reflexões. Estamos diante de um filme que só foi possível em 1977 dessa forma. E isso passa também pela cuidadosa jornada sonora poluída do filme.

Não por acaso é com a guitarra distorcida de Hendrix em Monterey que Sganzerla termina o filme, embalando a destruição vista por imagens de outros filmes, a chegada de raças alienígenas com suas máquinas transformando o tecido da realidade em cores e líquidos que tiram nosso fôlego e nos absorvem. Mas diferente das músicas do inglês que atravessam o filme, em dado momento ouvimos a voz de Hendrix dublada, retorcida para encaixar na narrativa de Sganzerla, dizendo o quanto “todos vocês me inspiram”, falando sobre a expansão espiritual – a típica profanação misturada com homenagem tão comum ao método do diretor. Hendrix dá seu recado e dali em diante sabemos que estamos diante das trombetas do paraíso, finalmente reconhecendo o contato interplanetário que quem testemunhou tanto o Rio de Janeiro quanto às músicas do guitarrista inglês intuitivamente já experimentou inúmeras vezes.

N. do E.: Apesar do cartaz apresentar o nome do filme como O Abismo, no filme aparece O Abismu, com “u”.

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Do jogo de incontinência à mania da origem

Por Felipe Leal

    Na língua inglesa, quiet vem a traduzir tanto aquilo que está “quieto”, no sentido da pouca vibração, digamos, molecularmente falando, como também significa a ação que se faz num volume baixo, discretamente, em oposição ao que é loud, barulhento – de forma que estes Um Lugar Silencioso (A Quiet Place, 2018) e Um Lugar Silencioso: Parte II (A Quiet Place Part II, 2020) remetem inicialmente a uma forma de território inóspita, como veremos, a) no que diz respeito a uma lógica avessa ao manuseio “pesado” de qualquer objeto, situação dramática ou rotina de existência, e b) no que é preciso desenvolver de uma linguagem particular de sinalizações para crescer enquanto família. 

Aviões de brinquedo, os gestos da cozinha, a repreensão de um filho: desde que a misteriosa avalanche de monstros cuja visão está no barulho invadiu aquela incerta dimensão de mundo, o que se assiste como estando resumido, a princípio, à sobrevivência de uma família, está cercado e plenamente dependente de um jogo entre a vida e o som. Vida além do fator biológico; vida sob a régua da concepção, da expectativa que solda hábitos.   

    Às cegas sobre o futuro, continuamente em busca de sinais de vida alheia ou de uma sobrevivência mais bem equipada, e vendo seu microcosmo ruir em nome destas ausências mesmas, aquela família composta de quatro membros (melhor diríamos “cinco menos um”) não viveu sempre num território de inexplicáveis bestas com superforça e supervelocidade. Isto nos será atestado, em inteligente lance de economia diegética, por alguns jornais de conteúdo premonitório, profilático e massivamente emergencial, e pelos quadros simplificados com informações parcas e pouco úteis sobre os tais inimigos inumanos, ambas as formas de comunicação “coletiva” não fazendo mais do que duplicar, em palavras frias e gordurosas, a desesperança que os consome no “dia 89” ou no “dia milésimo” de um calendário já apocalíptico. 

Horror, então, de fim de mundo? Suspense de gatilhos sonoros? Ficção científica ou filme-dispositivo? Talvez, mais do que estes compossíveis, um só, contendo todos os outros: um exemplar family movie

Pois o que sabemos, agora, depois desta continuação minimamente ineficaz, ser a “franquia do lugar silencioso” não fez por seus andamentos e tesouradas diegéticas senão elaborar o slogan nuclear uma vez proferido pela senhora Abbott (Emily Blunt) em uma série de artimanhas paternas e maternas para educar aqueles dois filhos através dos ensinos extremos da proteção calculada. Em outras palavras: de uma ascese pelo som “de dentro”, pela ausência de som (esperança) que deve ser aceita e reelaborada no mundo da quietude que é agora seu lar. E como é comum às éticas televisiva e cinematográfica, hoje, que toda a sabedoria de certos antepassados seja invocada como um poder da boa persistência obsessiva edipiana, o que se poderá dizer de qualquer expectativa de continuidade aos filmes, que de fato despontaram numa premissa requintadamente original para as sensações, é que a marcha do amadurecimento filial é longa e patética o suficiente para aniquilar qualquer engajamento que ultrapasse dois pulinhos de horror.  

 “Quem somos nós, se não pudermos protegê-los?”, ela pergunta ao marido, e entremeados aos procedimentos de sobrevivência estarão tentativas de uma transmissão de sabedoria que consiste, por exemplo, em fazer o filho vê-lo pescar com as mãos, gesto em teoria escandalosamente barulhento, no limite de um “não-estresse do ambiente”, como se lhe pedisse para entender o som-do-peixe, o peixe tão-somente pelo que ele não será perceptível – e não temer o possível urso. 

No primeiro dos filmes, em particular, precisamente pela conquista de um frescor auditivo capaz de determinar o ouvido sobre a visão, e portanto criando o aberto no fechado, a exigência de um tipo específico de corpo espectatorial como pré-requisito para a duração integral da obra é sem dúvidas o maior dos triunfos, se pensamos num enraizamento para o gênero do horror como localizado no desenho sonoro, mesmo ali quando nos filmes do primeiro cinema o acompanhamento de orquestrações era matéria pensada mais ou menos em conjunto à fílmica. O que chamamos, na dimensão prática da confecção, de foley, a replicação de uma sonoridade a partir da captação de um barulho não necessariamente vinculado a seu “objeto de origem” – um crânio esmagado, por exemplo, se produz com uma melancia, uma porrada, um microfone –, constitui, mais do que o acesso ao filme, o próprio terreno da experiência pela qual estamos, de alguma forma, atados àqueles outros acontecimentos invisíveis, in-anunciáveis, monstruosos.

Literalmente incluídos numa malha codificada de regras, na singular posição do estrangeiro que cala para deixar a sobrevivência perceptível e em fogo médio, vemos ser quicada uma espécie de linguagem que opera não exclusivamente pelo entendimento, mas por velozes avaliações dos pesos envolvidos na união, que é a viva metáfora celular, racional, ontogenética do familiar. A máquina do filme – ou melhor, a máquina-filme – extrapola o “acontece-ali”, e esse organismo propriamente coordenado, no que um time de futebol americano se assemelha às trupes de dança, quando se trata de fascinar nossos olhos, esse organismo acrescenta ao imprevisível um grau de ESPÍRITO DE EQUIPE. Os itens de supermercado ganham relevos semi-eróticos, pois é necessário da ritualística do toque para alcançá-los, mais do que simplesmente consumi-los. Disto todos sabem, ainda que a lição deva ser repassada e repassada.

A linguagem se dá entre o sinal e o sussurro. Os gritos estão abolidos, as peças do mundo que disparam altas frequências ainda mais proibidas. Pode-se dizer que, em surpreendentes 90 minutos, o seu, o meu corpo humano acostumam-se com um mundo externo baseado em pegadas, abafados, roçares de gramíneas, tecidos, sutis reverberações de barulhos ocos. Que a mão corte o ar para “escrever” “você ficará bem”, antes da partida do filho para os treinamentos com o chefe-pai, as coisas só podem receber um literal desenho sonoro, porque não demorará muito para que quem assiste ao filme se aperceba destacado, a lápis, de onde está, para estar no que centenas de yoguis nos suplicariam, em vida, para que sentíssemos: o estar-na-atenção. Na fabricação do estado falso de repouso para o qual tudo se OUVE em sua propriedade particular. 

Mesmo que a retórica da família familiar tente se reintegrar aos ocorridos todos, dando-lhes o todos-por-um necessário para que o gênero amplie a suspensão do suspense (sob o custo do batido drama sacrificial), aqui, exatamente no que John Krasinski desenvolveu com outros dois roteiristas um plano legislativo de onde as regras partem, não se poderá negar que é inédito o poderio do cinema em recriar as máquinas corpóreas. O que eles sabem por ostensiva precaução, nós simultaneamente descobrimos e vivenciamos no ouvido (não esqueçamos que, para o corpo, a ótica ainda é o sentido de significação majoritário), por um desejo de antecipação do visto no que se ouve. 

Esse truque da densificação entre um caractere sabido e um outro, antecipável, sempre em “latência de”, tão bem cristalizado no Festim Diabólico (Rope, 1984), de Hitchcock, Krasinski leva ainda à outra dobra de confusão. Pois não é o prego pontudo e acidentalmente erigido na escada do porão onde eles habitam que irá engatilhar o urro de dor, mas a bolsa estourada que anuncia o parto, que traz como consequência a saída inventada pelo núcleo familiar para abafar um dos episódios mais barulhentos da vida, e, em especial, a previsão de que eles estarão unidos para dar cabo ao plano

Mulher sentada em frente a espelho

Descrição gerada automaticamente com confiança média

    Cinema, arte da desunião aditiva. Mais da metade do filme, dali em diante, tratará do estado emergencial do barulho, ponto em que todo o inesperado se desova numa caixa de Pandora partida ao chão. Pode-se dizer que há uma sequência inteira, uma provação só, unindo todas as não desejadas. A mais especial delas fica sob responsabilidade do filho, que, mais unido à escolástica materna, mune-se da sabedoria de dizer ao próprio pai que é preciso que ele DIGA, à filha, do amor que sente por ela. O professar, neste caso implícito na tentativa de criar para ela um aparelho de aumento de audição, deve ser atado a um praticar ainda mais sacrificial. Mas tentar apaziguá-la do problema auditivo já não era suficiente? Não nos parece ficar posta em evidência a suposição de que nem a mais pornográfica das caridades é suficiente, se parte dos olhos do pai para aqueles de um filho? 

É um filme, afinal, de morais. E para as morais perderá o horror. 

“O que o papai fez – está em você”, passa a ser o mesmo outro lema do segundo capítulo da franquia. Sabemo-la uma franquia, aliás, por isto: o evidente é transferido para o final, para uma catarse paupérrima de complexo edipiano cuja função já foi proferida por dezenas de vencedores de Oscar: “nós vendemos histórias”, o poder de atravessamento que uma superação provoca no indivíduo que precisará se superar, mas primeiro moralmente, abaixando-se ao poder que deve lhe servir de fonte. Não tratarão mais de uma ética do som espraiada nos acontecimentos de um jogo com (agora) quatro jogadores fragmentados, nem de uma estratégia do contra-ataque condizente com a SAÍDA de uma primeira etapa do silencioso, mas encontrarão na obsessão pela origem esse mesmo espírito de encarnação familiar que se espera “do vizinho”, politicamente falando. O vizinho estenderá ou não, a ajuda? Quando cessar os cadernos do passado, quando não enumerar mais os mortos e não contabilizar mais seus desesperos, ele ainda será o bom Emmett (Cilian Murphy)? O bom vizinho? 

A mania de origem, de encontrar o agora no passado, presenteia-nos com um prólogo inteiro dedicado ao que já se esperava que o espectador “qualquer” tivesse lido na tática dos jornais, no filme anterior. Uma entrada, convém explicitar, menos sobre a família, menos sobre as regras ou sobre os horrores adaptativos “do começo”; menos sobre o começo de tudo, em si, e mais sobre o caráter colecionável e industrial da cosmogonia. A que ela serve?, tampouco poderíamos responder. O que é definitivo ao filme é que o som, de ausência cultural, torna-se falação, do mesmo modo que as grandes sagas eventualmente se tornam bonecos, quebra-cabeças, camisas, canecas. A ambição é a de identificá-los com maior profundidade ao tipo de heroísmo que se prova ininterruptamente, em tudo e em todos os dias, e que para tal apenas precisa rememorar a bravura-pai. O passado é a Ideia que se amarra com a fita da boa lembrança, a Única.

Se tivesse argúcia o suficiente para beirar a crise de deus, este estaria envelopado perfeitamente na ética do pai-ressuscitado-que-por-nós-deu-tudo. No professar praticado desta ética. Do começo ao fim, o que se acusa, PRATICAMENTE, é que o armamento inventado por aquela família, a perturbação nervosa causada nos monstros pelo borrão sonoro dos transmissores, tão-somente recebe um dado extra de transmissão, advinda de um acontecimento do fundo do peito. É o fenômeno do rádio no Lugar Silencioso, e também o fenômeno da conversão filial – fim. É como descobrir que uma xícara levemente quebrada pode servir de cinzeiro, e ver neste um santo. E como a apoteose final é uma irrupção da dimensão pela qual eles se munem contra um número (só aparentemente) cada vez maior de monstros, quem sabe a saga não precise de dezoito continuações para que eles cheguem a algum encontro à altura do descanso e da troca de inteligências. O som, o conceito do som, o espaço extrassensível imantado pelo som, sabe-se lá se não encontra, adiante, uma maneira menos letal de ressuscitar também a Wi-Fi. 

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A voz, essa sobrevivente

Por Rubens Fabricio Anzolin

Começo pelo princípio: o verbo. Capitu e o Capítulo (2021), assim como boa parte dos filmes recentes de Júlio Bressane, é uma obra falada. Ou melhor dizendo: uma obra declamada. Uma obra em que qualquer respingo de verdade irá se revelar senão através da encenação, elemento inerente a qualquer ruído sonoro que a escrita antropofágica de Bressane privilegie. Em Capitu e o Capítulo, ouvimos o barulho do mar, que sobrevoa soberano as paredes de uma casa depauperada. Há também um piano afiado, no interstício das cenas picotadas dos outros filmes do cineasta. Por fim, temos ainda o violino, tocado com esplendor por um músico fleumático, em riste, enquanto os pensamentos de Bentinho (Vladimir Brichta) encontram-se cada vez mais e mais em direção ao delírio. Nenhum destes ruídos, no entanto, é capaz de dar conta da realidade, são todos sons de um mesmo fingimento, de uma mesma peça de arte amorfa que é Capitu e o Capítulo. Aliás, o grande trunfo do cinema de Bressane talvez repouse justamente nesse distanciamento moral com o mundo, muito político, por sinal, em que o cinema de tão irreal e alastrado torna-se cada vez mais verdadeiro. À parte o desvio, voltemos à Capitu, e principalmente ao  que interessa: a voz de Capitu. É somente na voz, aquela mesma que sai da boca afiada de Mariana Ximenes e do clamor exotérico de Enrique Diaz (Casmurro) em que podemos confiar. Em um filme como este, cerceado por estímulos tão deformados, a voz é a única verdade da mentira de Bressane.

Existe uma cena, logo no início do filme, em que dois homens são vistos de cima, conversando, apenas através de seus chapéus. Neste ínterim, nada se escuta, e tudo o que nos é proposto pela imagem é exatamente isto: a suposição. Algo muito parecido se dá logo a seguir, quando Capitu circula com um giz na parede a sombra do rosto do marido. Isto é: para Capitu, o que importa é menos a imagem real de Bentinho, mas sobretudo a imagem projetada pela luz que atinge o marido. No universo de Bressane, a sombra sempre foi um portal para o enlevo, o desatino, já que ela, mais que tudo, é um atributo da escuridão, local onde tudo pode se formar à face do olho, a partir da incerteza da luz. Pensemos no monólogo de fundo vazio de Sedução da Carne (2019), interpretado por Mariana Lima, ou mesmo no Casmurro/Machado de Enrique Diaz, rarefeito às fantasmagorias de uma literatura brasileira fadada ao apodrecimento precoce (como Junqueira Freire ou Castro Alves). Personagens regados ao invisível do preto, à liberdade das masmorras, e que são por isso formas não-absolutas, um tanto quanto indecifráveis. Se em Capitu e o Capítulo Mariana Ximenes contorna o perfil das sombras de Bentinho, idealizando um objeto em falso, é justamente porque a sombra não é Bentinho, mas sim sua projeção, sua deformidade. 

Tal projeção, aliás, concebe-se finalmente neste contraste de uma imagem sem voz: Vladimir Brichta pode elucidar a insanidade que acomete Bentinho: sua voz sobrevive à deformação da pele, aos olhos arregalados, à suposição da traição que o ator encarna. Já a sua sombra (aquela que Capitu projeta) permanece como sendo silente – eis uma voz em falso, uma miragem. A sombra de Bentinho é muda, inane, resultado exclusivo do que se projeta a partir do seu rosto. Sua sombra não tem voz, coisa que permite ao desenho sonoro de Capitu e o Capítulo contornar o imaginário de seus personagens na mesma medida em que Júlio Bressane cria costuras de sonoplastia nos entre-lugares: as cenas de seus filmes anteriores, a praia carioca, as orquestras que permeiam muito mais o imaginário do filme do que o filme em si. A partir daí, assimilar que Capitu prefere enxergar não a Bentinho, mas à sua sombra, é essencial: pois gradativamente o personagem vai aderindo à perturbação de sua própria imagem, de sua altivez sonora – coisa que a cena do corvo, mais ao final do filme, dá conta de comprovar, quando o delírio enfim toma desdobramentos reais, num esgoelar-se a si mesmo violento que os olhos não podem ver – apenas supõem, com os ruídos do animal fazendo as vezes da garganta do personagem. Quando se perde a imagem da mentira, nem mesmo o campo sonoro resiste à tentação de também querer-se um enganador.

Há muito tempo, inclusive, que me parece que o cinema de Júlio Bressane passa por essas paredes da suposição, jogos teatrais enigmáticos e espaciais que revelam sobretudo aquilo que transborda a mente de quem vê. Um local em que apenas a voz é imune ao delírio, pois nela reside a certeza da fala. Coisa parecida já tinha sido fabricada nos teatros de guerra de Cleópatra (2008) e Beduíno (2016), à base de monólogos, e que retorna de modo fulminante em um filme mais silencioso como Garoto (2015), quando as sombras das pedras e a melodia da natureza dão o tamanho da tensão do mundo.

Diante de tais formulações frequentes no universo do cineasta, o imprescindível está no fato de que a camada sonora invade o mundo na ausência da imagem, na presença da escuridão. A partir do momento em que nada se vê – ou que aquilo que se vê também se perde, se indiferencia – a melodia passa a fazer parte da bagunça, restaurando a desordem natural do mundo. Enfim, soa-me ser este o resultado final do procedimento bressaniano: se o fundo é o vazio, se as imagens chocam-se constantemente, a sonoplastia funciona para adulterar ainda mais esta bagunça, forjando à fórceps um imaginário caótico. No entre-meio destes jogos de delírio, dessas brigas de casais e das reconciliações inesperadas está a voz, esta sobrevivente. Por isso mesmo é curioso que um filme como Beduíno (2016), por exemplo, seja basicamente uma grande DR: pois tudo que se imagina e repele no outro está no campo da indefinição, da deformação e do ruído, enquanto tudo aquilo que é capaz de conciliar os dois amantes pertence apenas ao coro da declamação, ao que nasce com o ator, ou seja, à voz.

É nesse sentido que Capitu e o Capítulo dá continuidade a um ciclo de cinema que cada vez mais se interessa por uma arte da mancha, uma arte do ruído. Investigar no plano as deformações da imagem, do rosto, dos corpos. Afinal, se Dom Casmurro sempre foi sobre o distúrbio emocional que é o ciúme – sobretudo acerca daquilo que as imagens e os sons do ciúme produzem no inconsciente, de maneira quase elementar -, Capitu… é um pouco sobre esse distúrbio que está na imagem, no rumor, nos espelhos distorcidos, na pintura de olhos (que remetem tanto à mãe de Bentinho quanto a uma miragem de Capitu) que vigia e rege tudo ao redor. Uma mesma sensação que, inclusive, encontra-se no pseudo-narrador de Enrique Diaz (que interpreta Casmurro e assina como Machado), numa espécie de piscadela de olho de Bressane em fazer um dois de um, como se fosse ele todo, enfim, uma coisa só. E como se o torpor que emerge de Vladimir Brichta fosse exatamente fruto daqueles papéis destroçados de Diaz/Casmurro/Machado, resultado de uma noite incólume, banhado nas incertezas da escuridão de uma poesia brasileira já ferida e derrotada, encolhida em um sono de morte.

Em síntese, Capitu e o Capítulo é antes de mais nada um filme sugestivo, lacunar, de portas abertas, mas que mais e mais se anula e imbrica na mesma medida em que existe. Um pouco como o narrador de Dom Casmurro, mais sugestivo que acertivo, mais especulativo que taciturno, que quanto mais projeta mais se perde na própria miragem, transformando culpa e desejo em coisa única, indistinta, fundamental. Mecanismo deveras similar, vale lembrar, à relação dupla que estabelecem Sancha (Djin Sganzerla) e Capitu, seja pela fisionomia ou pelos cabelos louros que facilmente se confundem aos olhos de Bentinho. No cerzir dos panos, depois de toda a deformidade, depois de todas as lacunas lacunas, depois da imagem perder os sentidos, os contornos, depois de virar pintura, transe, sombra, retornaremos à voz, à declamação, à poesia maldita de Álvares de Azevedo que Diaz tão lindamente refaz. Pois o que unicamente permanecerá no cinema de Bressane será sempre a voz, ilesa aos enganos, aos desvios sorrateiros da imagem, às flores murchas que tomam conta do cenário, ao espelho deformador. 

Quando enfim Sancha colocar um véu sobre a câmera, como quem borra aquilo que se vê de uma briga de casal, como quem produz a mentira, ficaremos não com a sombra de Capitu, não com seu perfil errático, desmedido, mas sim com a sua voz, inane à mentira, certeira nas palavras, limpa e clara como no cinema dos grandes cineastas, que fazem da poesia sobretudo aquilo que se escuta como resultado do corpo, como se o cinema fosse um livro que pudesse ser visto. Ficaremos com Capitu, mas na certeza de que toda ela é uma aberração, um monstro, um desvario, um objeto indefinido ao mesmo tempo que é tudo. 

E depois não restará mais nada. Nem mesmo os créditos. Entrará um samba agudo, uma câmera na mão, e Júlio Bressane derrubará ao chão toda a nossa fantasia, todo teatro de fantoches. Já que, afinal, o cinema é apenas uma mentira. Das boas, é verdade. Mas ainda assim uma bela de uma mentira.

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A conquista do barulho

Por João Pedro Faro

Como as cartelas de texto no cinema silencioso, a trilha de som em À lombre de la canaille bleue (1985) existe paralelamente às narrativas estritamente visuais. Da mesma forma, quando lhe interessa, irrompe a desconjunção em que se insere para colar com as imagens. Diálogos ora são ignorados por ela e preenchidos pela música incessante, ora acabam por serem dublados (estando sempre descolados dos lábios dos personagens). São falas que se explicitam narrativamente, mas permanecem em um outro tempo, em uma outra linha de construção (onde o som direto não existe). Isso não significa que som e imagem estejam em guerra, está mais para um convulsivo desencontro onde tanto o que se vê quanto o que se ouve percorre uma trilha paralela de imprevisibilidades que acabam por formar, no processo do tempo de tela, um filme sísmico e barulhento.

Pierre Clementi, realizador, ator, cinegrafista, saxofonista e incendiário, estabelece sua câmera Beaulieu como que em uma autoritária livre-associação de registros por Paris (aqui rebatizada de Necrocity), o que quer dizer que tudo pode ser filmado ao mesmo tempo em que se fixa sobre personagens teatrais e tramas futurísticas mirabolantes com a precisão de um furor narrativo. Não à toa, o personagem que interpreta em cena é o próprio canalha a quem o título se refere, uma espécie de autoridade máxima que trabalha para manter a cidade de Necrocity a mais caótica possível. Nessa trama, ininteligível em termos típicos, mas concentrada e linear para padrões vanguardistas, um grupo de personagens destrutivos (que vão de líderes de organizações criminosas até viciados proféticos) transita e persegue-se por entre espaços urbanos altamente ficcionalizados. São como as figuras que Lang aprisiona em Spione (1928), revestidas por couro e habituadas à correria, mas na estetização junkie de uma sociedade não mais estruturada pelos poderes, mas pelos desejos. 

O que os persegue é essa trilha de som incessante, pertinentemente ruidosa, que combina improvisações musicais pós-punk com a linha de narração declamada por Clementi, e alguns restos de diálogos dublados fora do tempo. Essa amálgama sonora derrete as imagens ao longo da projeção, desafia constantemente qualquer concepção diegética para evidenciar processos alternativos de realização decididos a não se conformarem, a irem por caminhos difusos que rumam para as combinações mais violentas. São instrumentos metálicos que se associam a guitarras em reverberação e sons indecifráveis, sobrepostos pelo ritmo das palavras de Clementi. 

As palavras, de um texto críptico que oferece grande parte do extracampo à encenação ficcionalizada, apontam para diversos signos policialescos e futurísticos que expandem o que discorre pela estrutura entorpecente do filme, sem nunca interromper o fluxo do indecifrável. Ou seja, a pronúncia de frases que determinam personagens por títulos – Seringue para uma viciada em heroína, ou Inspetor Bastão para um dos algozes – os posiciona nesse cosmo teatral de definições popularescas, ao mesmo tempo em que os mantém em uma abordagem de indefinições e incompreensões: um furor lírico fortificado por palavras declamadas em voz firme e imagens que as oferecem mutações caracterizadas. Enquanto narra as confusas ocorrências de um mundo inventado, a voz de Clementi é soturna e controlada, dedicando a cada frase o tempo de um verso transmutado para uma tirinha dominical aventuresca.

O que ocorre, portanto, é uma construção sonora decididamente narrativa, que se comporta esteticamente pela fruição de suas raízes ulteriores à imagem. Ao passo em que lhe permite remembrar os registros através de uma narração que lhes dê escopo, também o inconforma com caminhos para além do que se vê, ou então, que define as imagens mais do que elas próprias, por conferir todo o sentimento à encenação. Não por acaso, a rítmica musical do longa quase nunca se encaixa com a duração dos planos, elas não convergem temporalmente, pois o tempo da música está interessado em aglutinar-se com o ritmo das texturas e dos ruídos imagéticos que perpassam as imagens. Especialmente nas sequências internas e, mais ainda, nas internas dos apartamentos arruinados dos junkies distópicos, as texturas sonoras e imagéticas encontram um compasso raro nas andanças da obra. Nos caminhos noturnos pela cidade, é tarefa das luzes de bares e faróis aglutinar-se à melodia dos metais, gerando essa sensorialização espacial e ambiental que é, acima de tudo, narrativa.

A máquina de Pinball, uma das imagens recorrentes de À l’ombre de la canaille bleue, acaba por ser um signo para certa elucidação da experiência: um composto vulgar de pequenas caracterizações que funcionam para que um centro de interesse (a bola, ou no caso, a câmera) passeie por luzes cintilantes e barulhos agudos (por vezes, até enfadonhos) por esse gesto quase lúdico de momento. Os cantos atingidos por esse meio de captação colecionam ideias de ficção científica, política, erotismo e aventura pelo gosto da acumulação, onde está toda essa carga de berros, palavras, ruídos e deformações sonoras construídos pelas deixas dos registros imagéticos que encenam (e também sobrepõe) personagens, cenários e situações sem começo ou fim, apenas acumuladas nessa perseguição por reverberações fílmicas que se amontoam para inventar um mundo próprio onde tudo que restou são as sensações. 

Se o cinema sonoro inventou o silêncio, dá para dizer que o produto cinematográfico de Clementi é uma conquista de invenção do barulho, onde ele é o definidor estético e dramatúrgico. Quanto mais alto, maior é a euforia, quanto mais distante, maior a devassidão. O barulho, aqui, é todo um rumor de combinações entre o concreto e o nebuloso, tendendo sempre à incompreensão, em que os sentidos do ouvinte são avidamente sequestrados por suas modulações, e onde as tramas das imagens encontram não apenas o sentimento (que não está delimitado pelas performances dos atores), mas também as dimensões dos cenários, o eco das cores e o alcance das luzes.

Termina sendo lógico que a última palavra que Clementi declama, antes de ler os créditos da produção, seja justamente “ficção”. Enquanto a única trilha, que reina por 80 minutos como composição fílmica sem interrupções, monta e remonta as encenações presentes na imagem, o que há de constante, em um filme onde a instabilidade de seus processos é o pilar da estrutura, é a capacidade de fabulação do disforme, do arranhado e do ensurdecedor. 

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Às mulheres que seguem, ignorando o falatório

Por Geo Abreu

Grata surpresa conhecer Imo, de Bruna Schelb Corrêa, três anos após sua estreia na Mostra de Cinema de Tiradentes, em 2018. Ignorante das críticas feitas ao filme nesse primeiro momento, passei por ele, feliz em testemunhar os exercícios de experimentação e a clara adesão ao surrealismo como escolha nas representações, fato raro no cinema feito por mulheres no Brasil dos anos 2000.

De cara, o som em Imo chama atenção. Ele transforma a atmosfera de uma casa no interior de Minas Gerais em fundo plural de vozes que alteram a qualidade do silêncio desejado (ou imposto?) às personagens. Através do uso do som diegético, da edição de som e foley, o filme apresenta diálogos que não são pautados por texto e incorporam à encenação as diferentes expressões de vida ao redor daquela casa, apresentando cenas nas quais o que está no centro da ação são os animais ou objetos com os quais se relacionam aquelas mulheres.

Som de passos na sala de estar, na qual estão presentes apenas um canário e uma samambaia. O canário cumprimenta a mulher que chega alterando o espaço e pondo a samambaia, velhinha e de folhas amareladas, na cadeira de balanço. O pássaro, inquieto, faz perguntas e é ignorado. Sua voz e presença perturbam a atmosfera que está para ser criada: um cômodo com paredes esquecidas em que o principal ponto de cor é o corpo da mulher em frente ao espelho a se observar cuidadosamente. O peru, com seu vozeirão, faz um comentário do lado de fora da casa, algo que soa como reprimenda. A mulher tenta seguir com seu ritual e ignora o falatório.

A escolha formal da ausência de diálogos tem sido apontada em vários textos sobre o filme como alusão às táticas de opressão aos feminismos no mundo cisheteronormativo. Muito pouco se falou a respeito das necessidades das mulheres que apreciam o silêncio. Ou, como o filme demonstra, se não há silêncio, pois tudo é vida e pulsa ao redor, será que podemos gozar de períodos na ausência de voz e julgamentos humanos?

O telefone toca. A mulher observa o desespero por atenção e não o atende. Ao invés disso, bate com os tamancos no chão a fim de tirar uma música qualquer daquele dia. No plano em que Mc Xuxu está à mesa cortando maçãs enquanto é cercada por diversas mãos, que surgem do nada para perturbar sua tarefa de ignorar o telefone, lembramos Jeanne Dielman e a performance do cotidiano capaz de transmitir verdades indizíveis. Nessa mesma sequência, passamos de Chantal Akerman a Luís Buñuel entre as diversas tentativas que finalmente promovem o encontro entre o fio da faca e a mão que, decepada, se transforma em lembrança em uma caixa. Alguma mudança no comportamento da mulher enclausurada em casa é produzida a partir dessa associação, na passagem da aceitação repetitiva das tarefas domésticas à violência encenada como absurdo nesse corte que figura a raiva acumulada de séculos. É assim que Imo explora referências fílmicas e a vivência feminina do mundo, apresentando ações cotidianas em tons absurdos e conduzidas ao clímax em performances de violência envolvidas numa aura de irrealidade e signos reconhecíveis, aliados ao usos cruzados de referenciais clássicos.

Só na terceira visualização percebi que a moça que se oferece em banquete pode ser vista como profissional do sexo. Ou não. Pode ser apenas uma mulher curiosa: “Como deve ser estar nua na mesa com aqueles quatro homens ao meu redor?” Nunca saberemos onde Bruna Schelb quer chegar e ainda assim aquele conjunto de performances nos atravessa. O envenenamento do grupo no último ato faz pensar na redistribuição do trauma, feridas abertas, vulnerabilidade e violência no espaço da intimidade; histórias que quase nunca viram conversa e seguem seu ciclo se transformando em rancores que vão se acumulando em nossos corpos e envenenando a todes que nos tocam.

O casarão de aspecto abandonado parece sinalizar estruturas falidas, pactos rompidos. Nos três atos, observamos as personagens presas àquela estrutura colonial que, mesmo desgastada, perdura como um lugar fora do tempo e expõe continuamente quem o habita às suas armadilhas. A diferença se fará sempre que, conscientes dessas repetições, as mulheres escolham responder aos desafios de maneiras inesperadas, como em um jogo quando optamos por um movimento não calculado, que altera o rumo previsto e incita a próxima jogada da inteligência artificial e a instauração de uma outra margem. A abertura de novas quebras é habitada nessa lenta, contínua e aparentemente inesgotável guerra de posições.

Na tentativa de marcar posição no debate crítico e se opor à norma vigente na recepção de filmes realizados por mulheres em circuitos de presença majoritariamente masculina, outras normas parecem estar sendo definidas para classificar o cinema feminino hoje. Falo aqui a partir de alguma recepção de Imo após a exibição em Tiradentes. Apesar de recebido como boa surpresa no âmbito do cinema de experimento, o primeiro longa de Bruna Schelb acabou alvo de críticas a respeito do uso de figurações de um feminismo que se apontou como anacrônico e raso (a ambientação doméstica das ações e o silêncio; a encenação do corte da mão masculina como gesto fraco do que se poderia entender como uma ruptura com o patriarcado; a fonte do sangue que envenena as pessoas no último ato, etc) A recorrência no uso destes signos ligados à opressão feminina não os tornam menos eficientes, principalmente se a eles forem ligadas imagens que denotam a agência daquelas personagens e a possibilidade de desestabilizar os jogos de poder ao optar por caminhos e soluções inesperados. 

A dúvida aqui é se todo filme realizado por mulheres hoje deve necessariamente atender às demandas dessa outra norma: estar em dias com a agenda do debate feminista atual para ser considerado “válido”. Aliás, válido para quem? Ressalto que essa atualidade das teorias é informada por pesquisas acadêmicas que levam o tempo das diversas mediações necessárias até se tornarem de conhecimento público e, portanto, apontar anacronia no uso dessa ou daquela figura que porventura tenha sido superada no âmbito dos estudos de gênero desqualifica a vivência cotidiana das opressões, que tal como na cena da mão decepada, não desaparecem apenas porque desenvolvemos outras formas discursivas de abordá-las. Então, em quais parâmetros éticos se baseia a abordagem de uma produção como Imo, partindo de suas fragilidades formais ou de repertório para justificar uma adesão fraca do filme a um discurso de expressão dos feminismos existentes?

É difícil acompanhar realizadoras brasileiras que tenham a oportunidade de mergulhar em suas pesquisas, partindo de erros e acertos para amadurecer um estilo. É preciso ser livre para experimentar por experimentar, sem que pese sobre a realização uma agenda a cumprir, o que não significa dizer que cinemas engajados e militantes não sejam importantes. Cada uma deve se sentir à vontade para localizar as lutas feministas em seus discursos e formas, e escrevendo essa frase me sinto estúpida por sublinhar algo tão óbvio. É patente que a cada marcador, cada categoria ligada à realização de filmes classificados como feministas, realizado por mulheres, que performam a luta feminina por igualdade de direitos, outros muitos filmes tão importantes quanto para a representação das mesmas causas ganhem menos visibilidade em mostras, festivais e circuitos de exibição devido às formas não tão óbvias de apresentação de suas lutas pela expressão/representação feminina no mundo. A que serve, afinal, essa patrulha?

Imo, filme de experiência, de tatear mundos mais do que impor qualquer ideia fechada sobre como devem ser as representações a partir de um outro olhar, é o tipo de filme que me interessa ouvir e dar olhos, encorajar a continuidade da pesquisa, o amadurecimento do estilo, esperar pelo próximo.

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