À sombra do híbrido biológico mecânico

Por Geo Abreu

Uma das principais alegorias do humano moderno pode ser resumida à cena em que Charles Chaplin aperta parafusos na linha de produção de uma fábrica em Tempos Modernos. Essa automatização ligada a movimentos repetitivos e condições ultrajantes de exploração seria o começo de uma linha evolutiva que muito em breve encontraria com a humanidade no estágio de completa transformação de ser biológico em máquina segundo as projeções de fantasmagoria da época.

O conceito de antropoceno trouxe para essa matéria novas questões e o cinema como lugar de elaboração das projeções humanas vem explorando os fantasmas do antropoceno como em Pajeú, filme de Pedro Diógenes ou Fog Dog, filme de Daniel Steegmann Mangrané. As contaminações químicas do solo e da água perpetradas por resíduos industriais tratados de maneira irresponsável, além das camadas de substâncias tóxicas que compõem a atmosfera provenientes da indústria química, tem contribuído para o desaparecimento de diversas espécies como também para o surgimento de híbridos ainda não classificados. 

A pergunta que nos assombra hoje é: de que formas essa combinação de elementos exógenos é capaz de nos afetar? Sugiro mantermos essa pergunta em mente enquanto encontramos com Titane, o longa dirigido por Julia Ducornau.

O encontro 

Arisco, o filme não entrega muita explicação para o que se desenrola na tela. Em dois atos bem marcados, acompanhamos a saga de uma figura híbrida que trava com o mundo embates extremamente violentos. Sua fúria expõe o drama que a atravessa: compreender as razões que movimentam as pessoas comuns. Titane, como o próprio título sugere, carrega consigo algo de extraordinário, um segredo, do qual o filme vai nos revelando apenas aspectos parciais, embalados em signos que podem ser facilmente lidos como adesão a assuntos que estão em alta no debate público.

Sem oferecer qualquer elemento que configure a exterioridade daquela personagem – nem estrangeira, tampouco extraterrestre – a primeira parte de sua história gira em torno da sua pouca adesão ao projeto humano expressa por uma curiosidade mórbida sobre os limites do corpo e das relações intraespecíficas. 

Desde pequena a jovem Titane esgarça a convenção da empatia, levando ao extremo todas as relações que trava, testando cada uma delas a partir de balizas muito próprias. Da tentativa de chamar a atenção do pai, provocando assim um acidente que lhe deixa uma marca profunda, até a performance provocativa em cima do carro – que atrai a primeira vítima que conhecemos -, suas atitudes desafiam a ideia de que sentimentos como dor e amor são condições inerentes à nossa natureza. 

Apostando no horror biológico como em filmes anteriores seus –  Júnior e RAW – Ducornau segue explorando o assombro que nosso corpo e suas constantes mutações são capazes de produzir, se aproximando pelo uso do neon e das parábolas cristãs a Divino Amor de Gabriel Mascaro. Indo um pouco além, a diretora projeta esse futuro de híbridos biológicos mecânicos cujos primeiros exemplares estão prestes a chegar.

Sangue e óleo

A jornada de Titane então é a da busca pela porção de humanidade que a compõe. Consciente de sua raridade, expressa sua sexualidade de forma predatória, com fluidez por escolhas às mais diversas a fim de explorar as possibilidades, como numa pesquisa de ordem urgente da qual depende a própria continuidade de sua existência. e aqui fica a certeza de que ela poderia assumir a forma de qualquer coisa de aspecto maquínico: mulher, homem, carro. Árvore, nunca.

À medida que as escolhas da protagonista se radicalizam e ela decide assumir a identidade de outra pessoa o filme se transforma, seguindo o movimento da personagem. Acolhida por um homem solitário e carente, Titane passa então a projetar-se num ambiente extremamente masculino, guiado pela figura desse pai que não mede esforços para inseri-lo em sua rotina. 

Desconhecendo os segredos do filho reeencontrado, o pai estabelece uma curiosa relação entre sua família recém reunida e a santíssima trindade: ele, no centro da corporação que comanda, atuando como um deus para seus subalternos; o filho, como jesus (e maria ao mesmo tempo); e um “milagre” que parece ser a verdadeira chave dessa história. 

A partir de então acompanhamos o sofrimento do protagonista frente a sua atual condição e os mistérios que carrega: a barriga que cresce e precisa ser escondida e o óleo que escorre pelas tetas e ferimentos, reforçando a distância entre ele e os meros mortais. Uma alegoria interessante para esse tipo novo que parece gerado a partir de fluidos inócuos, incapazes de carregar em seus genes informações básicas e ancestrais sobre o que seja humano. 

Assim caminhamos para o final que está longe de ser a redenção da espécie, senão apenas daquele pai que finalmente encontra um filho para chamar de seu. Diferente do caráter milagroso assumido pela criança nascida ao final de Divino Amor, o que Titane nos apresenta é uma pessoa que parece ser a primeira de uma série, aquela que consolida a fusão humano-máquina depois de todo petróleo e demais substâncias tóxicas às quais temos sido expostas. Um tipo novo, um híbrido biológico-mecânico do qual pouco sabemos.

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