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Festival de Brasília: Mostra competitiva de curtas – Parte 1

Por Camila Vieira

 O Peixe 1O Peixe (2016), de Jonathas de Andrade

Há algo de perturbador no modo como a duração dos planos de O Peixe evoca a persistência do olhar para um gesto ambíguo de dominação e docilidade. O ritual de pescadores que abraçam os peixes logo após a pesca é encenado em posição frontal à câmera, com zoom que se aproxima dos corpos. A ambientação sonora do mangue repousa sobre a calmaria de cantos de pássaros, chiados de cigarras, barulho das águas em movimento, ruído de folhas que balançam ao vento, entre tantos outros sons da natureza que se harmonizam. De um plano a outro, a ação ritualística se repete com pequenas variações, acompanhando cada processo de morte lenta dos peixes envoltos pelos braços vigorosos de pescadores, que usam a força física para manter uma luta corporal com o animal que agoniza. É um belo filme sobre a relação homem e natureza, mediada pelo toque que produz uma pulsação erótica.

Inocentes 1Inocentes (2017), de Douglas Soares

Compor a imagem com corpos masculinos também é o foco de Inocentes, mas a partir de uma chave de aproximação com o trabalho fotográfico homoerótico de Alair Gomes. Em preto e branco, os planos contemplativos da paisagem dão lugar ao ponto de vista de alguém olhando a praia da janela de um prédio. Homens passam protetor solar, conversam, tomam banho de mar, fazem exercícios. O olhar voyeurístico acompanha o movimento dos corpos, capturados também em instantes fotográficos. Em voz off, um homem imagina narrativas a partir dos rapazes que observa à distância. Mesmo incluindo um rapaz negro – não há registro fotográfico de negros no trabalho de Alair Gomes –, existe uma beleza que Douglas procura preservar em homenagem ao fotógrafo, a partir da opção de filmar apenas jovens com padrão de corpos sarados, deixando de lado a possibilidade de um olhar mais diversificado.

Baunilha 1Baunilha (2017), de Leo Tabosa

O início de Baunilha apresenta uma explicação do mestre Brenno Furrier sobre a máscara na prática de BDSM: um objeto que despersonifica, tira a identidade e o aspecto humano de quem a usa, podendo também manter o sigilo do dominador ou do submisso. Tomando esta imagem da máscara como ponto de partida formal, o curta faz um retrato de Furrier, apenas com planos que mostram fragmentos de seu corpo, sem jamais revelar o rosto do personagem. No começo, a entrevista detalha como funciona a prática, desconstruindo o olhar do senso comum, em contraponto ao sexo baunilha (feito de maneira convencional). Quando o desvelamento do rosto de Furrier para o entrevistador acontece no fora de campo, o documentário dedica-se a um perfil do personagem, explicitando não só as motivações que o levaram a buscar o BDSM, mas também suas relações amorosas e anseios sentimentais no cotidiano.

A Passagem do Cometa 1A Passagem do Cometa (2017), de Juliana Rojas

Em comparação com outros filmes de Juliana Rojas, A Passagem do Cometa mantém um registro seco, sem elementos sobrenaturais ou de horror. Ao tratar do aborto em uma clínica clandestina como tema, o curta optou por ser econômico e direto na narrativa, contextualizada nos anos 80. Por outro aspecto, o filme aprofunda tensões desencadeadas pela própria situação: a entrega do dinheiro, a espera da amiga que chega atrasada, as perguntas da médica, o exame do corpo na maca. O procedimento cirúrgico é explicado de forma científica pela médica, mas há uma elipse que salta para o momento pós-cirurgia, quando parece haver uma sensação de vazio, de falta, sobrepondo as imagens dos objetos da sala com animações em cores neon, que figuram partes do corpo da mulher. Pontuado por um acontecimento que rompe a tranquilidade da clínica, o curta propõe uma indagação para o futuro.

Mamata 1Mamata (2017), de Marcus Curvelo

Diferente da maioria dos filmes interessados em pensar as urgências do nosso tempo histórico diante da conjuntura política brasileira, Mamata não tem a pretensão de seriedade tampouco de afirmação de uma tese. Pelos recursos da comédia e da precariedade do registro caseiro, o filme é a expressão de uma juventude em crise, que vive o próprio fracasso e aponta para o impasse do país. Curvelo se coloca em cena como este jovem solitário, sem saber muito o que fazer diante do próprio fracasso, mas rindo de si mesmo. A ironia e o sarcasmo também mobiliza a montagem inventiva do curta, a partir do uso de imagens e sons que se viralizaram na internet e que, ao serem colocados em uma só sequência, dão conta de momentos absurdos e inusitados, como o hino nacional cantado por Vanusa, junto à imagem do pato, à cambalhota do Vampeta na rampa do Planalto e o choro de David Luís na derrota do time brasileiro na Copa.

Torre 1Torre (2017), de Nádia Mangolini

Usando a técnica da animação para realizar um documentário, Torre parte dos relatos de quatro irmãos da família Gomes da Silva, cujo patriarca Virgílio é considerado o primeiro desaparecido político da ditadura militar brasileira. Os entrevistados narram o que recordam da infância e de que modo a ausência do pai e a prisão da mãe afetaram cada uma de suas vidas. Compondo com o figurativo, o traço se desfaz e se refaz a partir das lembranças que permaneceram e as que escapam. A estrutura fragmentada em quatro partes do curta é intercalada pelos nomes dos filhos por ordem crescente de idade e os blocos de narrativa vão ganhando uma progressão maior de detalhes do traço e cores mais vivas, de acordo com o que cada um consegue relatar. O que impressiona é o modo como o curta procura dar conta do desaparecimento do pai, a partir do uso expressivo do branco e de rastros que se dissolvem.

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Festival de Brasília: Arábia

Quem conta sua história?

Por Camila Vieira

O começo de Arábia (2017), de Affonso Uchoa e João Dumans, acompanha o adolescente André, andando de bicicleta em longo plano sequência. Nas cenas posteriores, a presença constante do jovem no centro da trama nos interpela como possível protagonista do filme. O garoto chega em casa, na Vila Operária, bairro próximo a uma fábrica de alumínio em Ouro Preto, Minas Gerais. Ele cuida do irmão pequeno, que está doente. A mãe só volta de viagem no fim do mês. A tia Marcia ajuda os dois nas tarefas domésticas. Ela é enfermeira em um hospital comunitário e é amiga de Cristiano, um operário que se acidenta na fábrica e acaba sendo internado. Ao encontrar um caderno deixado por Cristiano, André entra em contato com a escrita em primeira pessoa desse trabalhador e, a partir daí, a narrativa do filme se reposiciona: somos mergulhados na história de Cristiano, que se torna o personagem principal de Arábia.

Deixar André de lado e abrir a porta para acessar Cristiano, mediante sua própria voz, acena para duas estratégias: possibilitar que a vida de um personagem de origem humilde, um operário, seja narrada por ele mesmo e engrandecer o relato de alguém comum que costuma não ter importância dentro da ótica das grandes narrativas oficiais. Se antes escutamos do menino Marcos que “o mundo só tem matação, tiro, morte; não tem milagre”, a trajetória épica de dez anos de Cristiano aponta para o pequeno milagre de um operário que vivencia o cotidiano árduo do trabalho e da migração de cidade em cidade em busca de sobrevivência.

Diferente de outros tantos filmes que usam a voz off como forma de sublinhar ou reforçar o que é visto em uma cena, o relato aprofunda a subjetividade de Cristiano pela sua relação com o passado e adiciona um caráter romanesco às imagens construídas na relação direta com o real. O filme desenvolve a saga do personagem que, após sair da cadeia, não quer mais voltar ao seu bairro em Contagem. Ele decide pegar a estrada a procura de pequenos trabalhos, que lhe garantem o mínimo de trocados para seu sustento. O deslocamento de um lugar a outro faz com que Cristiano se adeque à dinâmica de cada trabalho: coletor e vendedor de mexerica, peão na construção civil, transportador de cargas, mecânico de tecelagem, operário de fábrica de alumínio.

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Em cada um dos espaços de trabalho, os encontros com outros colegas são pontuados por intervalos em que uma espécie de irmandade acontece. A conversa com o caminhoneiro produz um vínculo a ser partilhado: eles comparam qual a carga mais árdua e difícil de carregar – algo que permite ao espectador entender o quão duro é aquele trabalho. Há momentos em que todos cantam juntos, como a cena em que o grupo de operários entoa os versos de “Cowboy Fora da Lei”, de Raul Seixas. Outras músicas ajudam a dimensionar a relação afetiva do personagem com os espaços e as pessoas, em especial “Três Apitos”, de Noel Rosa, na voz de Maria Bethania; e “Raízes”, de Renato Teixeira.

Arábia parte da história de um personagem para compor um retrato do trabalhador brasileiro em uma conjuntura histórica que perpassa uma década. O interesse não é procurar entender as causas das desigualdades sociais e econômicas dentro da experiência de mundo do personagem, que antes acreditava “não ter nada de importante para contar”. O olhar da direção vai para outro caminho: aproximar-se do modo de vida desse trabalhador, das pessoas que ele conhece – inclusive Ana, o grande amor de sua vida –, e do despertar diante de sua condição como parte da engrenagem que integra a alienação do trabalho.

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Festival de Brasília: Era Uma Vez Brasília

Por Kênia Freitas

O que fazer do Era uma vez Brasília de Adirley Queirós? O filme é o sucessor evidente de Branco Sai, Preto Fica (2014) na proposta de mesclar o documentário e a ficção cientítica a partir das histórias de vida dos personagens reais da Ceilândia/DF. No entanto, Era uma vez Brasília substitui o provocativo “da nossa memória fabulamos nóis mesmos” do antecessor por algo como: “o futuro distópico já está sendo e somos nós”.

Temos assim, a partir das histórias reais de Wellington (preso por invadir um lote para construir uma casa), do Marquim da Tropa (personagem também de Branco Sai…, que levou um tiro após uma violenta batida policial e ficou paraplégico) e de Andreia (uma ex-presidiária em liberdade condicional) a ficcionalização de uma distopia que coincide também com o cenário macropolítico nacional. Nessa trama de sci-fi, Wellington será WA4, preso em 1959 por fazer um lotamento ilegal e mandando para o futuro com a missão de assassinar o presidente Juscelino Kubitschek. Sua nave perde-se no tempo e espaço e cai na Ceilândia de 2016. Nesse presente distópico, entrecortado pela narrativa real do golpe parlamentar que impediu a presidenta Dilma Roussef, WA4, Andreia e Marquim encontram-se para formar um exército.

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A forma de condução dessa narrativa porém é a da diluição da trama. Os fragmentos que nos situam e explicam o enredo estão entrecortados pelo vagar ou paralização dos corpos e das paisagens de Brasília, Ceilândia e Samambaia. Há uma escolha deliberada pela não fruição narrativa tradicional. Uma opção de negação do prazer diagético do espectador. Mais do que contato ou crença, o que Era uma vez Brasília oferece ao espectador é a frustração. Frustração dos corpos inertes, que contemplam paisagens sombrias que se repetem (a passarela, o metrô, a esplanada). Corpos despontecializados até mesmo quando em deslocamento pelo metrô ou pela nave espacial, em um vagar que não chega a lugar algum. Corpos que atiram contra o congresso e não provocam estrago algum ao poder estruturado. Temos assim, não mais a história dos que se vingam (como em Branco Sai…), mas apenas dos que não morrem.

Essa condução narrativa é imposta, longe de qualquer negociação ou jogo que perpassam os longas anteriores de Adirley Queirós. Como em uma instalação de arte contemporânea, esses corpos desolados e solitários pousam para a plasticidade da câmera e ocupam a tela em planos longos e lentos. Mas diferente da fruição dessas instalações no espaço do museu, o dispositivo cinema obriga aos espectadores permanecerem diante do filme sem respiro. Dispositivo de frustração espectatorial ampliado na exibição do filme em Brasília pelo contato direto com os curtas que abriram a sessão. Chico (dos Irmãos Carvalho) e Carneiro de ouro (de Dácia Ibiapina) são filmes que apostam no poder e na crença de novas narrativas – a do cinema negro e de favela, no caso do primeiro, e a do cinema popular, no segundo.

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Nesse dispositivo de frustração, Era uma vez Brasília aprisiona os espectadores assim como as cidades-prisões do filme aprisionam os personagens. Nesse sombrio luto de 2013, o sol não irá nascer, as balas não atingirão o seu destino, o ruído incessante não dimunuirá. Nessa distopia do presente, no último plano do filme os personagens encaram o espectador e nos jogam na pergunta que abre esse texto: o que, afinal, fazer dessas imagens e desse filme? Um encerramento que parece resumir a sua carta de intenções: Bem-vindo ao Brasil 2017: não há saída!

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Festival de Brasília: O Nó do Diabo

A origem do mal

Por Camila Vieira

A estrutura narrativa do longa-metragem O Nó do Diabo (2016), de Ramon Porto Mota, Gabriel Martins, Ian Abé e Jhésus Tribuzi, é dividida em cinco capítulos, que são separados e nomeados por anos específicos, seguindo uma cronologia decrescente do futuro até o passado. A estratégia procura pensar uma dramaturgia em que cada capítulo seguinte encadeia eventos trágicos que, de algum modo, estão conectados ao que já foi apresentado no capítulo anterior. Parece existir uma componente genealógica dentro deste esforço de alinhavar as diferentes tramas, de modo a compor uma grande narrativa em torno das relações de poder e de dominação entre brancos e negros. O espaço é uma fazenda canavieira e o tempo é o intervalo de dois séculos, em que uma espiral de acontecimentos se desdobra em torno da escravidão, do racismo e da propriedade.

Ao desenvolver os conflitos em cada um dos capítulos pela chave do oponente a ser eliminado ou exterminado, O Nó do Diabo parte da construção de dois polos dentro da dinâmica de quem ameaça e de quem se sente ameaçado. De um lado, Vieira é o branco latifundiário, que detém os títulos de propriedade da terra e a força de exploração. Ele é o único personagem presente em todos os capítulos; sua premissa é de uma entidade eterna, como um vampiro que cruza diferentes tempos. Do outro lado, os personagens negros são transitórios de um capítulo a outro, mas eles são convocados a uma força de resistência contínua que passa de geração em geração.

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Enquanto Vieira é o corpo que se mantém intacto e impermeável ao tempo, os corpos dos negros que se revoltam estão transmutados, metamorfoseados como figuras monstruosas, que carregam um mal original, o tal nó do diabo. Ao se deixar seduzir pelos códigos do gênero de horror, em especial pela construção do fantástico que apela para a iconologia da monstruosidade (os mortos-vivos, os fantasmas de olhos vermelhos, a jovem incendiária), a insurgência parece se identificar menos com uma problemática de fundo histórico e mais com uma justificativa de gênese do mal. “A terra come tudo. A alma não descansa nunca”, diz o mentor do escravo fugitivo no penúltimo capítulo.

Há eficácia no modo como é explorada a linguagem do cinema de gênero de horror, como o uso do zoom para provocar um efeito, a música com graves que enfatizam a tensão da cena, o sangue gráfico do gore. De um capítulo a outro, os mesmos códigos são pontuados, mas a necessidade de se servir deles apenas aponta para a harmonização de um todo, que não gera dissonâncias capazes de surpreender. A subversão no próprio caráter de estranhamento das figuras monstruosas parece estar inserida no mesmo grau de importância entre tantos outros elementos que o filme abarca.

Mas se existe um embotamento da subjetividade dos personagens insurgentes pelas forças do mal que eles carregam, a existência deles não está separada do tom excessivo e espetacular da perpetuação da violência em O Nó do Diabo. A eliminação do outro e o derramamento de sangue são apenas instrumentos que contribuem para o bom funcionamento e para a eficiência dos códigos do horror na economia narrativa e de mise-en-scène do filme.

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Festival de Brasília: Por Trás da Linha de Escudos

Ambição e ingenuidade

Por Camila Vieira

Por Trás da Linha de Escudos, de Marcelo Pedroso, é o fracasso de um projeto que ambicionou ser maior do que realmente é. Ao fazer um documentário dentro do Batalhão de Choque da Polícia Militar de Pernambuco, o grande desafio era encontrar uma maneira de escutar os policiais, pelo gesto de se posicionar do outro lado do front de batalha, já não mais dos manifestantes que protestam nas ruas. Se, para Jean-Louis Comolli, filmar o inimigo é de alguma forma se colocar do lado dele e compartilhar a mesma cena, Pedroso parte da mesma premissa e toma a decisão espinhosa de não partir para o confronto.

No entanto, a postura de não confrontar precisa caminhar junto com a necessidade de desmontar o inimigo em sua própria história e conseguir descrevê-lo com suas contradições para que possa aparecer como tal. Ao longo do filme, Pedroso indaga os policiais, procurando compreender suas motivações dentro da dinâmica de trabalho, enquanto acompanha os diversos treinamentos da tropa e operações habituais do exercício da função. As perguntas jamais são colocadas em tom de ataque, mas de curiosidade em relação a como funciona o efetivo. A fragilidade do filme não repousa na opção pelo não confronto, mas em não conseguir encontrar estratégias que apontem para a complexidade de ser um policial militar dentro do atual contexto histórico do Brasil.

O dispositivo de escuta de Pedroso em Por Trás da Linha de Escudos leva a dois caminhos igualmente problemáticos: a repetição exaustiva dos argumentos dos policiais dentro do discurso oficial (eles sempre respondem que estão cumprindo normas e leis, como braços do Estado, e que não existe espaço para emoção) e a observação do modus operandi dentro do batalhão na linha da aprendizagem de como se tornar um bom policial. O que se obtém nas filmagens parece seguir uma abordagem institucional ou não escapa de perguntas que a própria polícia já se acostumou a ouvir (não é a toa que o primeiro coronel entrevistado não consegue distinguir a equipe de cinema de uma equipe de imprensa qualquer).

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Se ao lado do batalhão não se produz nada além do oficialesco e do institucional, resta forçar uma pretensão crítica em outro lugar: intercalar com os registros do confronto da polícia com os manifestantes no Movimento Ocupe Estelita em 2014 e com imagens icônicas a serviço de uma certa leitura simbólica do país (a bandeira do Brasil repleta de carrapatos, bonequinhos de manifestantes e polícia em um jogo tabuleiro, o céu da bandeira que se torna escudo com a faixa de “ordem e progresso”). No entanto, o esforço de crítica é acomodado em uma sucessão de imagens que não provocam qualquer ruído no que já foi dito.

Mesmo nos trechos em que se acena um contraponto, como é o caso da sequência em que Pedroso está na ilha de edição e coloca lado a lado a foto de um manifestante sangrando e outra de uma mulher sorridente com os policiais, o olhar é apenas de ingenuidade. Parece que é aí que o cinema abdica da crença em sua capacidade de produzir desvio. O reforço da pose do diretor ingênuo e em crise com o material que tem em mãos é agravado pela arrogância de acreditar que está compreendendo o lado humano do batalhão de choque. Um dos policiais se enxerga como um cidadão comum que também sofre. Mas se o filme não se interessa em investigar isso e se limita a ouvir o policial e não a pessoa para além de sua missão profissional, a busca pelo humano fica só no discurso.

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Festival de Brasília: Café com Canela

Por Kênia Freitas

Sankofa = “Não é tabu voltar atrás e buscar o que esqueceu”

Provérbio tradicional Akan da África Ocidental (Gana, Togo e Costa do Marfim)

“Ao produzir e dirigir seus filmes, diretoras negras brasileiras têm edificado um modo de fazer cinema cuja referência é a história e a cultura dos povos negros. Seus trabalhos e suas práticas fílmicas constroem uma cinematografia fora da estereotipia, revelam visões de mundo, incentivando, assim, leituras afetivas, políticas e geográficas sedimentadas no desenvolvimento humano, na corporeidade como possibilidade de ressignificar conceitos de amor, afetos e identidade”.

Edileuza Souza da Penha

 

Dirigido por Ary Rosa e Glenda Nicácio, “Café com canela” nos joga  de início em duas imagens festivas de famílias negras. A primeira, codificada pelas dimensões mais quadradas e pelas interferências na transmissão da imagem, simula o registro videográfico amador da festa de aniversário de uma criança, Paulinho. Na intermitência desse registro encontramos a figura de Margarida, anfitriã e mãe do aniversariante. Margarida e Paulo (o seu marido) registram-se em momento de euforia. Essa simulação da imagem amadora finge organizar o transcorrer do acontecimento, ao mesmo tempo em que o reconfigura pela presença da câmera. Nesses registros do passado, o filme nos apresenta também a personagem de Violeta, menina de idade próxima a Paulinho, chamada por Margarida a compor o núcleo de proximidade familiar no momento do parabéns. A bateria da filmadora acaba e o registro interrompe-se bruscamente no auge da celebração.

A segunda imagem de festa familiar nos coloca em outro fluxo de registro, o do tempo contemporâneo do transcorrer do filme: o quadro amplia-se, as imagens estão nítidas e sem interferência. Estamos em um churrasco na casa de Violeta (agora uma jovem adulta, casada e com dois filhos). Além da sua família, estão presentes poucos amigos próximos: Cidão (a melhor amiga de Violeta), Ivan (o vizinho amigo que acaba de perder o marido, Adolfo) e Margarida (que nos informam, não está mais com Paulo).

É entre essas duas imagens de celebração familiar que a narrativa do filme transcorrerá, situando a segunda imagem de encontro festivo, a do churrasco, como o lugar de chegada, o restabelecimento de uma comunidade como núcleo familiar recomposto entre os personagens presentes. Na colagem dessas duas imagens o filme entrega já no seu começo o seu arco narrativo completo: do aniversário de Paulinho ao churrasco anos mais tarde. Café com canela propõe assim aos seus espectadores um pacto narrativo não teleológico, visto que início e fim estão desde sempre dados. No lugar, o pacto proposto é o de uma circularidade temporal, no qual as diferentes temporalidades (o passado da festa infantil, a atualidade do churrasco e o futuro daqueles personagens) estão em permanente contato e em retroalimentação. Pacto esse que é selado também no bloco inicial de apresentação do filme, no momento em que a sua câmera encara frontalmente os moradores de Cachoeira (cidade do Recôncavo Baiano na qual o filme foi gravado) e estes encaram a câmera de volta. Esse olhar implica e convida diretamente aos espectadores ao percurso narrativo circular do filme de forma não omissa.

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Esse percurso entre a imagem inicial e final já dadas, será o do reencontro e da recomposição dos afetos entre Violeta e Margarida. Encontro que não se dá apenas pelos corpos em presença das duas mulheres negras, mas também dos espaços em que esses dois corpos habitam e no qual se movimentam. Para Margarida esse espaço é o do enclausuramento de sua casa. Após a morte de Paulinho, ainda criança, ela enluta-se e se isola no lar vazio (sem o filho morto e posteriormente sem o marido que também parte, na impossibilidade de permanecer). A casa reflete e é refletida no tormento psicológico de Margarida: as paredes sangram, movem-se para confiná-la, mofam. O tempo nessa casa é o que não transcorre mais, apenas repete-se. Nessa estagnação de vida, os gestos possíveis são os da repetição cotidiana: acender o cigarro, frequentar o café, ir da mesa até o sofá, cobrir e descobrir o espelho, ir a porta do quarto do filho e nunca abri-la. Para Violeta, o espaço habitado é o da fluidez pela cidade, percorrer as ruas com a sua bicicleta vendendo coxinhas e encontrando as pessoas. Movimento contínuo de vida que transcorre ligeiro entre os filhos que vieram cedo demais, o dia a dia de correria compartilhado com o marido, o trabalho, os cuidados com a avó.

É nesse rompante do fluxo permanente que Violeta reencontra Margarida. Encontro que é a princípio violento, ainda que afetuoso. Como retribuição de um gesto de acolhimento no passado da sua então professora Margarida (no momento em que a menina tornou-se órfã dos país), Violeta não aceita aquele isolamento autoimposto. Os espaços e a pulsação das protagonistas chocam-se: as recusas insistentes da professora são respondidos pelos não menos insistentes chamados a vida: “Mas tem que respirar” da jovem. Resultando, por fim, em um primeiro movimento de aproximação de embate e vão. Se os gestos de contato, dessa vez mais sutis, de Violeta prosseguem – com as rosas deixadas em frente a porta de Margarida – é a morte (da avó de Violeta) quem religa as duas imagens (fechando o ciclo temporal e possibilitando enfim que os ritmos das protagonistas entrem em sintonia).

Esse desenvolvimento circular, a partir dos pontos iniciais e finais dados de começo e do transcorrer narrativo como percurso afetivo a ser compartilhado, dá ao filme a sua liberdade de criação. Tendo o espectador não como refém do suspense narrativo, mas como cúmplice do seu desdobrar. Inventividade que transparece em cenas como a inusitada e divertida subjetiva do cachorro, logo após a morte de Adolfo, ou como na conversa entre Violeta e Margarida sobre o que pode o cinema (que termina mais uma vez em uma interpelação direta aos espectadores do filme). Circularidade que nos faz pensar em modos de narrativas ancestrais negras e no provérbio akan Sankofa “Não é tabu voltar atrás e buscar o que esqueceu”. Um retorno ao passado que não é só possível, como é necessário para tornar-se cura. Retorno nos gestos singelos como os de finalmente ultrapassar as portas do quarto do filho morto e de saída para ganhar a rua. Retornos necessários para que a vida finalmente contamine a estagnação e torne-se dança. E necessários também para que o presente possa ser acessado, vivido, e algum futuro imaginado. Esse retorno ao passado (e as primeiras imagens do filme) que não será jamais individual, mas coletivo e compartilhado por Margarida e Violeta, e pela cumplicidade afetiva dos espectadores.

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Festival de Brasília: Construindo Pontes

Diferenças conciliáveis

Por Camila Vieira

Em determinado momento do longa-metragem Construindo Pontes, a diretora Heloísa Passos esclarece que seu documentário partiu do interesse de filmar um lugar de conflito e de convivência. A partir da relação com seu pai, a realizadora não se furta em expor as diferenças entre os dois, tanto de visões particulares de mundo quanto do pensamento sobre a política do Brasil. O pressuposto parece ser um abismo que existe entre Heloísa e Alberto, engenheiro que trabalhou em várias obras de infraestrutura durante o período da ditadura militar.

De início, Heloísa procura entender no passado as raízes do abismo com seu pai. Seu ponto de partida visual é a cachoeira de Sete Quedas, por meio de imagens registradas em Super-8 e dadas de presente pelo pai. A queda d’água desapareceu com a construção da Usina Hidrelétrica de Itaipu, uma das obras erguidas durante a ditadura, no final dos anos 70. Alberto não foi o engenheiro responsável pela construção da hidrelétrica, mas Heloísa toma o projeto como exemplo de um contexto histórico por meio do qual seu pai coordenou em 15 anos a criação de 22 obras espalhadas pelo Brasil que, segundo o olhar dele, se inserem dentro do único projeto político e econômico que trouxe benefícios para o país.

Enquanto Heloísa pede para Alberto traçar no mapa do Brasil a extensão das obras que participou e exibe imagens de arquivo com fotos da época, os conflitos entre ela e o pai vão surgindo, ainda que ela deixe claro que “a família é o não dito”. Ao tratar da situação política atual do Brasil, ela questiona a arbitrariedade de “um país sem lei”. Durante uma conversa em torno do mandato de condução coercitiva do ex-presidente Lula, Alberto insiste que ela “não se envolva emocionalmente” e reafirma que a ditatura tinha limites de corrupção, com regras rígidas de modernização a favor do sistema econômico.

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Na disputa de discursos entre pai e filha, Alberto aparenta impassividade e Heloísa mantém a postura de enfrentamento. Mas os desacordos entre os dois jamais são aprofundados e permanecem apenas na lógica do desequilíbrio perceptível de uso das palavras: “Ele fala moça. Eu falo presidenta. Ele fala revolução. Eu falo ditadura”. No momento em que Heloísa narra a história de sua saída de casa aos 22 anos, quando o pai descobriu que ela namorava uma menina, o filme parece apontar para uma ferida não conciliável entre ambos. No entanto, a presença da nova companheira, Tina, dentro da casa durante as filmagens é apenas periférica, sem resquício algum de que aquele acontecimento do passado ainda provoque qualquer incômodo ou dissenso.

Se mesmo a forma como Alberto quer interferir no filme não passa de sugestões como “ter um propósito” ou chegar a “uma concepção final”, as divergências entre ambos são sempre colocadas como exposição de pontos de vistas distintos, que jamais transbordam na constituição da cena. O propósito é a “boa sincronização” do lugar de conflito que até então tinha sido tomado como pressuposto do filme, mas que é inviabilizado pela felicidade estampada nas fotos do álbum de família e pela constatação do  “deixem que eu decida a minha vida” na voz de Belchior.

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Festival de Brasília: Pendular

Oscilar e mudar

Por Camila Vieira

Usado como instrumento para estudar o tempo e o movimento, o pêndulo é composto por dois elementos mecânicos: uma superfície imóvel e uma linha que oscila. Talvez uma forma de aproximação inicial para pensar o longa-metragem Pendular (2017), de Julia Murat, é perceber as diferentes forças que emergem de um ponto fixo. A situação já posta é a relação de um jovem casal e será desta aparente estabilidade determinada que algo irá se modificar, oscilar e produzir movimento. Os personagens sem nome já trazem em si e no próprio ofício a dinâmica do tensionamento pendular: o homem é escultor e trabalha com objetos pesados, grandes, sólidos e rígidos; a mulher é dançarina e dispõe seu corpo ao movimento, à instabilidade, à leveza.

Dentro da existência de uma desigualdade que já está colocada como base da constituição dos dois protagonistas, há um espaço que necessita ser ocupado: o galpão abandonado de uma estamparia. Para estar junto e conseguir trabalhar, o casal necessita estabelecer regras de ocupação a partir da delimitação do território por uma faixa laranja que divide o espaço. É a partir daí que a narrativa de Pendular irá se desenvolver em quatro partes, que estruturam o roteiro (escrito em parceria com Matias Mariani, marido de Murat): A Chegada de Alice, O Ímpeto, A Ação e A Contra-Ação.

Na primeira parte, a relação entre os dois parece ser iluminada e solar. Esta sensação se materializa formalmente nas cenas iniciais pela incidência de luz branca nos rostos dos dois, enquanto estão juntos na cama. Cada um é instigado pela curiosidade de observar o trabalho criativo do outro: ela o vê suspender um objeto pesado de madeira e segue a linha de aço que sai do galpão até o poste de luz. Ele diz para os amigos que não colocou uma lona para dividir o espaço, porque “a graça é poder ver ela”. A cumplicidade faz parte do jogo de olhar e ser olhado.

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O segundo momento já inicia com a redistribuição do espaço: ela precisa ceder uma parte para que ele possa ampliar seu trabalho, com o argumento de que aquele pequeno território negociado “não vai fazer falta” para ela. Enquanto fica evidente em Pendular que a estratégia de etiquetação é “passível de renovação segundo o bom comportamento”, a invasão do espaço aponta não só para quem tem o poder de ocupar em prol da sobrevalorização do próprio trabalho – o homem deseja renovar suas bases criativas, ainda que não saiba direito o que está fazendo –, mas também incide sobre quem pode dominar o corpo do outro – ele quer ter filhos e ela não quer.

Julia Murat preenche seu filme de momentos intensos da relação do corpo com o espaço (as coreografias das danças performadas por Raquel Karro), do corpo com os objetos (as vibrações sonoras no contato com objetos metálicos, o barulho de máquinas de ar e ventiladores) e dos corpos com outros corpos (as cenas de sexo). É na ênfase do próprio corpo que se coloca a questão do que fazer diante do desequilíbrio de poder e da dominação na relação a dois. A terceira parte do filme já começa com as inseguranças de cada um ao ouvir as críticas negativas de seus trabalhos artísticos. A crise criativa se mistura à ocultação de segredos, em que ele parece querer desvelar a todo custo e ela esconde para tomar decisão por conta própria. O embate irá se prolongar na última parte de Pendular e, mesmo com a tentativa de querer compreender a subjetividade do outro, há algo que se transformou pela intensidade do que foi vivido. A ruptura da estabilidade entre os dois acena para um enigma do que poderá acontecer.

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Festival de Brasília: Música Para Quando as Luzes se Apagam / Vazante

De sensorialidades e narrativas

Por Camila Vieira

Não deixa de ser curioso o longa-metragem gaúcho Música Para Quando as Luzes se Apagam (2017) estar classificado como documentário em sua ficha técnica. Se é possível absorver uma vontade evidente de aproximação com o real pela materialidade indicial dos vestígios cotidianos nas tomadas caseiras de câmeras portáteis, a composição das personagens e a relação entre elas parecem apontar para gestos ficcionais, criados pelo olhar de Ismael Caneppele, que estreia na direção de longas. Trata-se do encontro da mulher vivida por Julia Lemmertz – cuja presença jamais é identificada no filme – com a jovem Emelyn, em um jogo de incorporação da persona de Bernardo.

O interesse mútuo das duas personagens pela transmutação performativa não só reside no modo como se forja outra aparência – para uma, o ato de colocar lentes de contato, mudar a cor do cabelo; para outra, vestir-se com roupas largas e masculinas –, mas na vivência de uma experiência no mundo que é atravessada pelo borramento das fronteiras da identidade de gênero. Como o filme se liberta da rigidez identitária que poderia aprisionar as personagens, a própria estrutura narrativa não pretende deixar nada conclusivo sobre as diferentes subjetividades que se colocam em cena, constantemente reposicionadas em zonas de indeterminação. No lugar de abrir chaves encerradas de interpretação, o filme prioriza modos de estar no mundo pelo transbordamento sensorial.

O espaço em que este fiapo de narrativa se desdobra é uma pequena vila no sul do Brasil, que é dotada de uma atmosfera de melancolia e isolamento, bem próxima de Os Famosos e os Duendes da Morte (2009) – cujo roteiro é do próprio Caneppele. A emblemática frase “estar perto não é fisíco” está inclusive inscrita na parede do quarto de Emelyn, como se fosse o traço de um desdobramento daquela disposição sensorial explorada dramaturgicamente no filme de Esmir Filho. Em Música Para Quando as Luzes se Apagam, há ênfase no contato com a natureza: é nítida a amplificação de sons de grilos, sapos e cigarras nas derivas feitas à margem de pântanos. Dentro da imersão na paisagem, o filme abarca uma amplificação do potencial onírico dos encontros com outros corpos, como a longa sequência noturna com um bambolê de luzes neon.

Vazante 2

O longa-metragem Vazante (2017), de Daniela Thomas, comunga também do interesse pela sensorialidade das imagens, mas procura se ancorar na rigidez subjetiva de seus personagens, marcados por papéis sociais bem definidos, dentro do contexto histórico de um Brasil escravocrata no século XIX. Com imagens em preto e branco, a fruição sensorial de uma atmosfera carregada e caudalosa – os inúmeros planos com chuva – aliada à paisagem imponente do interior de Minas Gerais é a porta de entrada para o mergulho em uma história trágica que procura explicitar as relações de poder e de exploração econômica e racial que demarcaram a formação do povo brasileiro.

Antônio é o tropeiro de origem portuguesa que desbrava territórios em busca do lucro, carregando escravos negros. Ao voltar de uma de suas longas expedições, encontra a mulher morta após o parto. A casa grande é ocupada por Zizinha, a matriarca que, depois da morte da filha, fica em estado de letargia e recebe cuidados constantes da escrava Joana. Filho de Zizinha e irmão da falecida, Bartholomeu retorna ao casarão com a esposa e as filhas para acertar as dívidas com Antônio, que detém a pose da fazenda e precisa lidar com a crise da extração do garimpo e a possibilidade de investimento em plantações e criação de gado em sua propriedade. Bartholomeu cede a filha mais nova, Beatriz, para casamento com Antônio.

Ao alinhavar uma narrativa com poucos diálogos e construída com blocos de sequência que se sucedem pontuados por cartelas negras, Vazante prioriza elipses e silêncios, que valorizam o gestual dos corpos e os olhares dos personagens em suas disputas e tensionamentos que se avolumam ao longo da trama. No entanto, a partir do momento em que se coloca ao lado do ponto de vista da jovem Beatriz – sobretudo durante o desfecho de maior carga emocional –, o filme enlaça um nó de implicação política: o trágico da questão racial no Brasil colônia é mediado pelo olhar de uma menina branca, como se apenas por meio dela fosse possível o espectador perceber o horror do massacre dos negros.

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Festival de Brasília: Não Devore Meu Coração!

Dosar o estilo

Por Camila Vieira

Há dois pólos claramente definidos e distintos em Não Devore Meu Coração! (2017), de Felipe Bragança: os brasileiros e os indígenas paraguaios. Do lado dos brasileiros, há o predomínio da força patriarcal, marcada pela ocupação de território e pelo exercício da virilidade masculina. Do lado dos paraguaios, um povo que resiste às ameaças e valoriza mulheres como líderes guerreiras. O subtexto histórico é a memória da Guerra do Paraguai que, dentro da trama do filme, encontra reverberações nos conflitos às margens do rio Apa. Ao estabelecer diferenças radicalmente opostas entre os dois universos, a dramaturgia do filme está ancorada em uma alegoria mítica em que há uma disputa permanente entre partes que desde já são inconciliáveis.

Existe uma vontade de que algum laço seja possível entre Joca, o garoto brasileiro de 13 anos, e Basano, a menina indígena paraguaia de 14 anos. A pequena guerreira é quem rouba o coração do menino, que se apaixona e passa a procurá-la. Colocando como base o encontro entre os dois já mediado pelo fantástico, a estrutura dramática de Não Devore Meu Coração! assume uma narrativa em capítulos, onde cada desdobramento se reveste de tratamento poético grandioso. Algo já explorado desde A Fuga da Mulher Gorila (2009), primeiro longa de Bragança, em co-direção com Marina Meliande (que, neste novo filme, assina a produção), mas agora com encadeamentos que seguem uma linha menos fragmentada de narrar, procurando alinhavar os contos de Joca Reiners Terron, nos quais o filme se inspira.

Mesmo que busque uma ancoragem dramatúrgica mais tradicional e clássica, o filme é seduzido por determinados vícios formais que, se por um lado evidenciam a autoria de quem dirige, por outro acabam cristalizando intencionalidades enrijecidas. Ainda permanecem a reapropriação do gênero atravessada pelo acúmulo de referências cinematográficas (o encantatório de Apichatpong, os confrontos de faroeste, o clima de aventura de filmes juvenis dos anos 80, a iconografia dos super-heróis), a necessidade de trazer a fábula para o cotidiano, o predomínio da palavra, as atuações impostadas. Os usos de zoom in e zoom out e as ralentações das cenas são exemplos mais evidentes do esforço grandiloquente de demarcar o estilo da direção.

Não Devore 2

No entanto, há intervalos de respiro em que algo se transborda na cena e que parece ser de difícil controle. Os momentos de maior força de encenação pairam durante as reuniões do grupo de motoqueiros da Gangue do Calendário e o confronto com os adversários da República Guarani. Talvez as melhores cenas são construídas a partir do embate entre a índia Lucia e o brasileiro Fernando (a presença de Cauã Reymond parece sempre crescer nestes pequenos trechos). Em outras situações de confronto, há pouca envergadura emocional: os conselhos brutos de Fernando ao irmão Joca ou mesmo a conversa do agroboy com o pai não passam de frases prontas e ditas no automático, as distâncias e as aproximações de Joca e Basano carecem de vitalidade cinematográfica, ainda que sejam cuidadosamente construídas.

Diferente dos longas anteriores de Felipe Bragança da trilogia Coração no Fogo (A Fuga da Mulher Gorila, Desassossego e A Alegria – todos eles em parceria com Marina Meliande), é perceptível uma tentativa de construção cênica em Não Devore Meu Coração! que possa encontrar escapes às imposições do estilo de um autor. No entanto, a direção está longe de se libertar dos excessos de pretensão, que criam e acumulam estratégias formais engessadas, a ponto de apontar mais para a necessidade de marcar o filme com uma assinatura do que para contribuir na densidade do que está sendo narrado.

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EDIÇÃO ATUAL:

O CINEMA E O ENCONTRO

A Utopia do Encontro, por Arthur Tuoto

(Re)Encontros de Família: Indefinição E Redefinição da Narrativa Familiar em Zemeckis, Romero e Resnais por Bernardo Moraes Chacur

O Direito do Mais Forte por João Pedro Faro

Encontro-Gênero por Felipe Leal

O Encontro do cinema com seu onirismo, traduzido por Felipe Leal

O Encontro pelo Erotismo: Desejo e pulsão de morte no cinema contemporâneo, por Camila Vieira

Cinemas(s): Dennis Hopper e James Benning em Easy Rider, por Pedro Tavares

“Eu Não Sou Seu Negro”: Encontros e Confrontos pelo cinema, por Kênia Freitas

A Crença na Matéria, por Yuri Deriberalli

 

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A UTOPIA DO ENCONTRO

Por Arthur Tuoto

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“O que está por vir é uma história impossível”
Film Socialisme (Jean-Luc Godard, 2010)

“As palavras pertencem àqueles que as usam apenas até que alguém as roube de volta”
Hakim Bey

O encontro fundamenta a dialética fílmica em praticamente todas as suas operações. Do confronto da câmera com o ator, do espectador com o filme, da intenção com a linguagem. Concretiza-se, nesse caminho, uma engenharia de elos – tecnicistas, intuitivos, burocráticos – onde repousa a essência utópica de uma busca. Procura-se um ideal afim de transmitir a natureza daquilo que se comenta: uma história de amor, uma conversa entre dois tempos, um paralelo entre linguagens.

O que move o encontro não é a sua condição de realização e materialidade, mas um ideal inalcançável que prioriza as particularidades da sua busca; seu fracasso inevitável é a celebração preciosa de uma jornada. O idealismo de uma paixão, a peregrinação iconoclasta, a busca pela iluminação ou, em uma mesma medida, pela destruição. Quando Godard anuncia a anti-instrumentalização da imagem – as duras e várias mortes do cinema e suas convenções – essa mesma imagem, invariavelmente, renasce por suas próprias medidas. Se Clint Eastwood e Meryl Streep passaram apenas quatro dias juntos em As Pontes de Madison (1995), a extensão universal daquele encontro adquire uma potencialidade dramática de entornos eternos.

O cinema não vai morrer e Clint Eastwood e Meryl Streep não vão ficar juntos. A consequência dessas digressões são maiores que o seu fim. O encontro viabiliza o retorno por meio de uma excursão cíclica sobre seus temas. O que interessa, aqui, é uma deambulação obstinada em busca do remoto, de um oceano profundo, de uma galáxia desconhecida que não nos mostre como as coisas terminam (afinal, elas nunca terminam), mas nos aponte a dimensão do inexplorado.

O encontro não é movido pelo pragmatismo, pela assimilação daquilo que é útil, mas pela abertura ao inabitual. A paixão, o oculto, o intransitável. Articula-se não um método, mas uma política do sonho. Imediata e ardente, sua proeza não é a ordem, mas um desejo original. O encontro não é proposto a partir de delineamentos corriqueiros, mas redefine o incidente como uma poética necessária. O acaso não é somente dispositivo primário de uma união, mas o evento de uma tensão destrutiva. O encontro edifica e aniquila em uma mesma medida. A fé que materializa uma vontade, que media um elemento de divinização, é da mesma ordem do incontrolável desejo de extermínio, de extinção pelo outro. O encontro com a vida se dimensiona pelas mesmas forças do encontro com a morte.

Ressiginificar é reencontrar. Tensionar um material já existente é continuar a sua busca, prolongar a sua investigação e, consequentemente, alimentar sua essência utópica. O resultado atinge não uma forma definidora, mas performática, herdeira de uma ideia a ser reiterada ou questionada. O encontro ratifica ou nega, restaura ou enterra. A integração entre a herança e o novo escolhe a preservação ou o abandono. Filia-se, rejeita-se ou simplesmente expõe-se a partir de um novo lugar. Apropriar é performar um outro.

O encontro reposiciona, desequilibra, reconduz a harmonia através de um ânsia pelo oposto. Descontínuo, dualista, contrário, a conciliação não acontece de maneira instrucional, mas é movida pelo fluxo dos fenômenos. Uma órbita particular que, ora inesperada, ora previsível, conduz uma natureza narrativa que é dependente dessa inconciliação. O contar não é um relato, mas um oráculo de possibilidades variadas onde o final é apenas um detalhe, mal necessário que ensaia um prólogo para o eterno.

Se o que vemos na tela é um último beijo, uma trapalhada final, um fracasso irremissível ou a morte, simplesmente, a conclusão não significa um êxito. O sucesso do encontro independe da formalidade do seu meio. O que um filme procura, outros procuraram e mais um tanto procurarão. O propósito, ao mesmo tempo que se vale dele mesmo, é parte de um macrocosmo de intenções realizadas e não realizadas. O encontro promete e descumpre, apresenta e esconde, executa e ilude, sua irrealização é a nossa experiência em si, sua mentira, nossa verdade mais sagrada.

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(Re)encontros de família: indefinição e redefinição da narrativa familiar em Zemeckis, Romero e Resnais.

Por Bernardo Moraes Chacur

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Quatro ideias prontas:

  1. Filmes americanos possuem alta carga ideológica.
  2. Filmes americanos são ingênuos, logo simples.
  3. Um certo cinema europeu rompe com os padrões hollywoodianos.
  4. Romper com o padrão hollywoodiano implica em ausência de padrão, aleatoriedade.

São generalizações bem difundidas, apesar de contraditórias entre si (1 e 2) ou superficiais (3 e 4). Inconsistências pouco aparentes a princípio, mas demonstráveis a partir da análise de três encontros de família, que exemplificam diferentes relações entre o cinema e a narrativa.

I.

Narrar não é observação passiva da ‘realidade’ ou dos ‘fatos’, é uma atividade de reconfiguração. Estabelecer relações entre causas e consequências, definir o que merece recordação, atribuir responsabilidade a indivíduos ou deslocá-la para forças que os transcendem (sejam sociais, naturais, sobrenaturais etc.). É erigir um mundo, mantê-lo de pé ou desestabilizá-lo. A narrativa não se restringe à ficção. Também está presente na historiografia, na psicanálise, no jornalismo diário e no cinema, de forma indissociável.

Nem sempre foi assim. Termos como filmes de mostração ou de atrações costumam ser utilizados para definir as primeiras décadas de produção cinematográfica. De certa maneira, a narração sempre esteve ali: decodificar a saída dos empregados da fábrica Lumière exigia uma compreensão mínima das ações (são funcionários partindo após a jornada de trabalho) e do contexto (trata-se de um local onde se executa jornada remunerada em uma cidade moderna do ocidente etc.) representados naquela película de 1895. Mesmo os loops projetados nos cinetoscópios Edison (como o execrável Electrocuting an Elephant, de 1903) poderiam apresentar início, meio e fim discerníveis, o germe narrativo.

Mas nada disso se compara à sofisticação narrativa conquistada após o advento da montagem e o desenvolvimento de Hollywood como indústria e linguagem, já no final da década de 1910. A transição entre exibir e narrar foi central para a aceitação da nova mídia. A mostração de lutas de boxe ou esquetes de vaudeville era considerada entretenimento vulgar, enquanto a boa ficção seria capaz de educar moralmente as massas (vide as discussões sobre a utilidade da literatura e da arte, no mesmo período). E de que moral estamos falando?

Lembremos algumas convenções desse cinema: contar uma estória, com lógica causal bem definida, focada em indivíduos com motivações compreensíveis e resolução clara dos conflitos apresentados. Qual representação de mundo é inseparável dessa maneira de organizar a informação? De modo geral, é a crença na liberdade do ser humano e na efetividade da ação: o protagonista é o agente de seu próprio destino, capaz de intervir nos rumos de sua vida e, se necessário, nos rumos de sua sociedade. Essa concatenação nem sempre é otimista: nos noirs, como em algumas tragédias clássicas, a vontade dos personagens pode ser insuficiente ou até mesmo engendrar sua derrocada. Ainda assim, na superação ou na queda, prevalece a iniciativa do self-made man e a trama raramente abandona a província do explicável. São convenções fortes, que mantém-se efetivas mesmo em histórias de viagem no tempo e realidades alternativas.

O que nos traz ao primeiro dos nossos três encontros familiares, a trilogia De Volta para o Futuro (Robert Zemeckis, 1985/89/90), em que o personagem principal reescreve a própria biografia, a de seus pais e filhos. Cada desenlace é diretamente associável a uma origem específica (a covardia paterna que se arrasta desde os tempos de colegial; o fracasso do Marty de meia-idade, cuja origem está no acidente automobilístico etc.) e, logo, admite intervenção. O efeito de cada ação é aferível, seja no retorno a 1985 ou através dos objetos que se modificam às vistas do herói (o retrato de família, os jornais, a carta de demissão). O mesmo vale para toda a cidade de Hill Valley, que se converte em distopia quando McFly comporta-se irresponsavelmente (à semelhança da Bedford Falls alternativa em A Felicidade Não se Compra, privada de seu pilar-da-comunidade). Trata-se enfim, do mito hollywoodiano em estado de arte.

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Falando em mitos, é comum apontar o componente edipiano no filme de Zemeckis. Também valeria compará-lo à Odisséia: no princípio das duas histórias, o solar da família encontra-se em desordem (assolado ora por Biff, ora pelos pretendentes de Penélope). Ambos os protagonistas reentram incógnitos em seus lares: Odisseu transfigurado, Marty irreconhecível em 1955. O ‘disfarce’ lhes concede tanto a liberdade de ação quanto a observação indiscreta de seus familiares (como as esposas, mães e descendentes se comportam durante a ausência do filho/marido?). Após um ciclo de peripécias, a ordem é instituída pela ação dos heróis, com alguma ajuda externa (Atena, o Dr. Brown). São (dentre outras leituras possíveis) duas jornadas de salvaguarda da linhagem paterna, belíssimas articulações de ideários regressivos – mas de forma alguma “simples” ou “ingênuos”. Em nível mais geral, testemunham a crença no poder do indivíduo e suas escolhas, ainda um corolário dos manuais de roteiro. Situação diversa da que veremos a seguir.

II.

Nos tempos da Hollywood clássica, o Terror era o gênero mais afeito ao pessimismo e à incerteza. Durante a década de 70, em conformidade com o malaise prevalente, essas duas tendências se disseminaram por boa parte do cinema americano. Nem sempre uma tendência favorecia a outra, afinal o pessimismo pode redundar em explicações bastante restritas, eliminando dessa forma a incerteza. Ocasionalmente, a dinâmica entre essas duas forças era estimulada pela influência do cinema europeu. São questões ilustradas por Martin (George Romero, 1978), nosso segundo encontro de família.

Quando a trama se inicia, o personagem título está a caminho da casa de parentes, onde causará divergências: Para seu velho guardião, o recém-chegado encarna uma maldição sobrenatural que os persegue desde a Lituânia, o vampirismo. Martin, por sua vez, atribui a suposta monstruosidade a causas genéticas, enquanto a prima mais nova crê que o hóspede é apenas um jovem confuso, capaz de transcender as neuroses familiares. O filme não solucionará inequivocamente a questão, embora indique uma resposta mais plausível.

Em qualquer hipótese, Martin é um assassino. As perseguições, que visualiza de acordo com o clichê vampírico, redundam em estupro e assassinato, perpetrados desajeitadamente. Se De Volta para o Futuro é homérico, entramos agora em terreno quixótico: um homem tentando encaixar o mundo no gênero literário/cinematográfico. Coincidência importante: o papel idealizado das donzelas em perigo, tanto nos romances de cavalaria quanto na fantasia vampiresca.

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A estrutura do filme é episódica, assim como em Cervantes. Há frouxo encadeamento entre acontecimentos e os ‘heróis’ realizam muito pouco. Para Quixote, a Dulcinéia jamais se materializa. Martin, por outro lado, se envolve com uma dona-de-casa e o sexo real começa a suprimir os impulsos de sanguessuga. Ao contrário do fidalgo manchego, vislumbra uma vida além do delírio, até ser punido pelo crime que não cometeu. É a inversão dos valores do roteiro clássico: o indivíduo não domina seu destino e não se descobre satisfatoriamente no decurso da trama. Inversões, no entanto, se relacionam ao modelo: o pessimismo à New Hollywood ainda sustenta alguma causalidade (Martin é destruído pela incompreensão do tio e pelo peso moral das transgressões cometidas) e a sua ambiguidade é, no mais das vezes, solucionável (ele quase certamente não é um vampiro).

Nesse filme, Romero utiliza técnicas narrativas popularizadas pelo cinema europeu das duas décadas precedentes, que buscava outras maneiras de representar a realidade, o tempo e a ação (enxergo pontos de contato com Melville, Godard e Antonioni). A meticulosidade com que os ataques de Martin são encenados torna-os o verdadeiro centro do filme, ao invés de elos em uma cadeia de eventos. Seu ‘realismo’ torna indisfarçável a violência e feiura usualmente destinadas a elipses. O confronto com a idealização é temático e, ao mesmo tempo, exprimido cinematograficamente.

III.

Em Muriel, ou o Tempo de um Retorno (Alain Resnais, 1963), nosso terceiro encontro, a linearidade é sistematicamente desconstruída. Desta vez, não estamos diante de uma família tradicional: Alphonse é acolhido por um antigo amor, a viúva Hélène, com quem poderia ter se casado. A viúva mora com um rapaz, Bernard, à primeira vista seu filho, na verdade enteado. Alphonse chega acompanhado da jovem Françoise, que apresenta como sobrinha e de quem é, na realidade, amante. Cada relação de parentesco está irremediavelmente truncada.

Alphonse e Hélène se conheceram e separaram durante a ocupação nazista naquela mesma cidade. Placas e buracos de bala rememoram o conflito, que, no entanto, permanece obscuro para os antigos participantes, incapazes de lembrar o número e a identidade dos mortos (ou diferenciá-los dos vivos, convenientemente esquecidos). Bernard é assombrado pelas memórias da Guerra da Argélia, jamais esclarecidas, reativadas a partir de fragmentos: diários, fotografias, filmes de 8mm. O apartamento da viúva é também um antiquário: móveis aparecem e desaparecem cena a cena, sedimentos instáveis de passado.

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Walter Benjamin observou que os combatentes da 1ª Guerra, “voltavam mudos do campo de batalha; não mais ricos, e sim mais pobres em experiência comunicável”. Parte das funções da narrativa – explicar, tornar os eventos suportáveis – havia sido “desmoralizada” pela sua inadequação ante os traumas vividos. O mesmo pode ser dito a respeito dos discursos oficiais sobre a República de Vichy e a colonização francesa na África. Os personagens de Muriel vivem sob o peso dessa desagregação e submetê-los à narração tradicional seria outra violência, a justificação do injustificável.

A representação adequada desse ceticismo não é obtida aleatoriamente. Exige, pelo contrário, o questionamento de cada premissa da lógica linear e, consequentemente, da gramática do cinema. As regras de boa edição recomendam motivações diegéticas e invisibilidade nos cortes, ditames assiduamente desrespeitados por Resnais. Não se trata de exibicionismo formal, há consistência notável entre escolhas e temática: imagens de presente e passado justapõe-se, como em nossa memória e à nossa revelia. Pontos chaves da trama ultrapassam a ambiguidade para permanecer indecidíveis. Em Martin, não obstante a incerteza, Romero ainda fornecia suporte para inferências. Em Muriel, Resnais suprime deliberadamente os elementos que elucidariam os mistérios centrais.

Aludimos ao cânone ocidental na discussão dos filmes anteriores. Para Resnais, nesse período, o precedente literário mais direto seria o nouveau roman, igualmente dedicado a questionar os limites e a ética da Forma (vale lembrar que o diretor adaptou ou colaborou com dois de seus luminares: Marguerite Duras e Alain Robbe-Grillet). Tais experimentos – no cinema ou na literatura – são frequentemente mal interpretados. Costumam ser acusados de incompreensibilidade, esteticismo, desvio da ficção ‘natural’. Há um indisfarçável autoritarismo nessa argumentação: desacreditar as narrações alternativas é sustentar que apenas a versão predominante seria admissível, o único modo de organizar a informação e o mundo, apesar da ampla evidência histórica sugerindo o contrário. Abandonar a estrutura tradicional não implica em ausência de estrutura: recusar as identidades e ordenações pré-estabelecidas pode ser um ato de resistência.

***

De acordo com o estereótipo, partimos do cinema simples de nosso primeiro exemplo e avançamos gradualmente até sua contraparte mais sofisticada, embora tenhamos retroagido algumas décadas durante o percurso (dos anos 80 aos 60). Sinal de declínio cultural? Ou poderíamos inverter a tendência a partir da escolha de três outros filmes? Considerando o nível de articulação, observável em cada caso, entre ideias e expressão cinematográfica, seria adequado descrevê-los em termos de maior ou menor complexidade? Ou seria mais produtivo refletir sobre as possibilidades abertas (ou desconsideradas) em qualquer narração?

Em tais discussões, precisamos nos ater à forma/conteúdo do texto? Ou deveríamos reconhecer igualmente o papel desempenhado pela leitura na produção de sentido? Exemplificando: os paralelos apontados aqui entre filmes e literatura emanaram naturalmente de uma recorrência de arquétipos ou são resultado de uma linha argumentativa? Concluo este texto com outra ideia pronta: convém não esquecer que a crítica, os ensaios e teorias também fazem parte da narrativa.

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Agradecimentos a Arthur Tuoto, Guilherme Gaspar e Marcus Martins

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O direito do mais forte

Por João Pedro Faro

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Na abertura de Querelle, enquanto soldados armados num pôr-do-sol teatral observam marinheiros trabalhando, o narrador já impõe um paralelo entre um conceito assassino e o conceito de sexualidade, como se a manifestação de um desses tivesse necessariamente como consequência o outro. Essa colocação, comprovada posteriormente no filme, se reafirma recorrentemente enquanto elemento central da filmografia do Fassbinder.

O encontro é sempre o ponto inicial dessas manifestações, que ocorre muitas vezes por acasos naturalmente pervertidos: uma ida ao bar, a saída secreta com um amante, a decisão de pagar por sexo. O primeiro passo para um caminho condenável se completa na relação que surgirá a partir dele. Um relacionamento criado nessas condições não poderá ter nenhum destino além da tragédia, sendo no momento inicial a prosperidade do sexo e uma euforia juvenil apenas a base para um impacto maior na destruição futura. As relações assumem um agente dominante, que fará o outro (geralmente esse outro sendo o protagonista, o herói vítima, uma das heranças mais diretas do melodrama que Fassbinder manifesta) transformar-se na própria decadência, o último estágio da condenação do relacionamento maldito.

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Sendo fruto de um cinema irreverente, existe uma tendência de que a relação dominante-dominado acabe numa inversão de papéis. O comandante que se torna dependente de seu subordinado por um tesão enrustido (Querelle, que estabelece dominações na própria condição homossexual passiva ou ativa), a criança que domina o adulto por uma malandragem perversa (Roleta Chinesa) e até todos os senhores da casa se renderem ao escravo negro atraente (Whity, quase uma versão western de Teorema). Indo além e assumindo essas dominações destrutivas, surge ainda o desejo por ser o lado submisso (As Lágrimas Amargas de Petra von Kant). Enquanto Petra é lentamente desmantelada pela crescente indiferença da mulher que ama, sua empregada se conforma com seu estado devoto à sua patroa. Um dos lados reafirma sua força na humilhação de seu parceiro, acabando com sua integridade. Em casos como o de Num Ano de 13 Luas, um simples deboche torna-se o começo para o destino condenado de rejeições à Erwin. Ao descobrir-se mulher após tentar ser aceito por seu antigo colega de trabalho hétero, além de entrar na perigosa vida de um transgênero, torna-se dependente dessa reciprocidade de atração sexual. O colega, ao continuar rejeitando-o, mantém a posição de mandante. É um dominador clássico, o loiro alemão rico que habita o alto de uma das grandes torres comerciais de Berlim (melhor não começar com certas metáforas fálicas aqui e deixar isso para outro momento).

Nesses tons, Fassbinder requer algumas segundas páginas, principalmente quando trata da burguesia e sua pretensa posição de eterna dominadora. É de costume que a alta classe, polida e refinada, não se mantenha nessa pose ao cair nas graças de algum marginal bem dotado. Costumeiramente politizadas, relações na Berlim do interminável fantasma da guerra (existe jogo de dominação maior que esse?) são satirizadas no erotismo de Fassbinder e suas trocas de poder malignas. O que varia é se essa sátira se encerra com a decadência de um marginalizado ao fim do relacionamento (se tornando denúncia) ou no simples escárnio com as classes altas. Num ano de 13 Luas e Fox and His Friends são ambos encerrados com a morte do protagonista vítima dessa burguesia, sendo esse último um caso de diversas inversões. Fox é esperto e começa achando muita graça das regras no novo ambiente em que se instala após ganhar na loteria. Vira a paixão de um burguês e logo essas etiquetas se tornam um meio de dominação. É um sujo, um mal-educado que não merece estar com aquelas pessoas (por mais que, enquanto objeto sexual, ainda seja aproveitado). O malandro de rua é trapaceado pelos ricos, humilhado por aquele meio até perder tudo e se encontrar beirando a morte no chão de uma estação de trem.

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Agora, em obras como Roleta Chinesa, exemplo da segunda possibilidade de encerramento das relações destrutivas de Fassbinder, é a própria burguesia que se autodestrói. Num acaso onde um casal vai para uma casa de campo com os respectivos amantes, estabelece-se um encontro em meio pervertido. Com a chegada da filha de um dos casais na casa, cria-se nesse caso um terceiro membro que é o dominador. Este faz com que a honestidade se torne o movimento mais hostil, a jovem filha humilhando todos os outros no jogo de roleta chinesa, que expõe coisas que não deveriam ser expostas. O assassinato a sangue frio surge, por fim, como resposta ao pavor deste grupo de ser dominado.

Engraçado como a obra mais famosa de Fassbinder, O Medo Consome a Alma, seja um dos exemplos mais curiosos dessa relação justamente porque traz um equilíbrio constante de forças numa paixão genuína. A reimaginação de All That Heaven Allows, o relacionamento entre uma idosa alemã e um negro mulçumano, apresenta uma crise nesse romance pelos momentos em que o domínio de um dos lados se faz presente. O do negro Ali é a clara força física e o vigor de sua juventude. Ali pode trair sua esposa com uma outra jovem do bar e ainda se impor com sua altura e seus músculos. Já a sexagenária Emmi, sendo viúva de nazista e tendo todos os traços germânicos acentuados, é a própria figura de uma Alemanha nacionalista, traz a força de uma etnia que sempre se impôs sobre qualquer outra, chegando a se envergonhar do novo marido em dado momento por uma pressão de seus iguais. Mas aqui o encerramento não é trágico, por mais que tenha a iminência de uma tragédia Fassbinder permite que o último momento de seu casal na tela mantenha esse tão custoso equilíbrio.

Então, assumindo a linha crescente (ou seria decrescente?) dos relacionamentos que se inicia no contato sexual e se encerra na tragédia, passando pelo abuso da força, o moralismo inerente a esses estágios parece existir quase contradizendo a irreverência natural do diretor. Mas logo fica claro que esse moralismo só existe para fortalecer o ideal máximo de Fassbinder, que é a provocação. Um elemento que só poderia existir pela já citada herança de Douglas Sirk. São os próprios mandamentos do melodrama que criam o ciclo de danação dessas relações, é dele que vem os domínios, as paixões que não morrem por nada e o charme desmistificado de uma nobreza. Claro que Fassbinder pode provocar sendo mais extremo em suas situações e podendo ser mais gráfico do que Sirk poderia nos anos 50 (enquanto ele tinha que se contentar com a metáfora singela da Dorothy Malone masturbando uma pequena torre de petróleo pensando no Rock Hudson ao final de Written on the Wind, Fassbinder já pode colocar seu protagonista deitado num falo gigante no pôster do filme). Isso é o que está claro, porém o que está entranhado na escaleta consegue ser muito mais forte. Nada é mais provocativo do que um cinema de marginalizados com bases conservadoras, manifestada num arquétipo consistente da jornada desses personagens do submundo essencial ao autor.

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Encontro-Gênero

Por Felipe Leal

“Quanto mais ele gosta de você, mais malvado será”

Como terminologia inserida no campo orbitacional do Cinema, a palavra “gênero” encontra duplo entroncamento: ora seu sentido mais veloz à mente, o conjunto de certo modo protocolar de traços estético-narrativos que caracterizam um tipo de filme, uma etiqueta classificatória que admitimos como rasa, ainda que já mais que “necessária”; ora o chamativo para a divisão entre os gêneros masculino e feminino, embora esta conotação só provoque uma segunda e fácil associação devido aos atravessamentos políticos a que o cinema se acostumou desde que virou “novo” em diversos países do globo. Porque associar-se ao político parece-nos hoje ter sido feito num estalar de dedos, pensar em gênero como divisória significativa dos estudos das forças masculinas e femininas como representações dentro da grande tela foi uma possibilidade argumentativa também sempre à vista.

Curioso, pois, que ambas as significações sejam impensáveis se dissociadas (quer juntas ou separadamente) de qualquer olhar que se empreste a Howard Hawks. Da ficção científica ao horror, da aventura ao faroeste, do policial ao melodrama, da comédia ao romance, e nas dosagens mais improváveis, mas também, e provavelmente sempre, um choque de motricidade dramática canalizado pelo encontro entre Homem e Mulher – maiúsculos. Não há escândalo jornalístico, torneio nacional, rinoceronte ou missão de guerra que não passe pelo embaralhamento inevitável entre as duas forças – não necessariamente expressas num homem e uma mulher personificados, mas sempre como uma resultante desastrosa. Aliás: diz-se logo desse encontro que ele também será invariavelmente marcado por duas outras questões estruturais: a (aparente) inconciliação entre esses dois quase fenômenos – e a subseqüente trapalhada seriada –, e a subversão espontânea dos papéis tidos como “clássicos” para os gêneros.

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Explico toda a deriva teórica: se houvesse uma cena na extensa filmografia de Hawks que pudesse conter a personificação de todo seu jocoso embate (porque o entrave, aqui, sempre acabará no mais inocente dos risos) ela estaria em Hatari! (1962), num diálogo tão absurdo quanto é o seu entendimento para a personagem que o provoca. Anna (Elsa Martinelli) pergunta a Pockets (Red Burton) por que o personagem carrancudo de John Wayne não gosta de mulheres, só para receber como resposta: “porque ele acha que elas são um problema”. Anna concorda, uma vez que esse estágio de aceitação nunca foi problemático às mulheres de Hawks: diferente dos homens, o caráter explosivo do encontro já lhes é introjetado: elas só não conseguem evitá-lo, e por conseqüência fica inferido que nunca haverá escapatória ao Homem. As inevitabilidades começam a surgir. Anna pede-o, então, que lhe fale sobre Ele – todo protagonismo masculino de Hawks será sempre uma personificação de seu ideário, ao passo que os outros homens que povoam a trama serão exemplos, decerto, mas exemplos menores. Pockets pressuriza a garota um pouco mais, é preciso fazê-la entender: diz a ela que, se ele lhe trata mal, se não é gentil com ela, é bem possível que ele esteja comendo na sua mão. “Pockets, podemos falar um mesmo idioma? Se é bom, é bom, se é ruim, é ruim”.

E antes que ele lhe diga a máxima que tornará a Questão um cristal puro de transparência e absurdo ao mesmo tempo, Hawks torce a convenção e traz outro fato incontestável à mesa: é a mulher que, paradoxalmente, na trapalhada que adiciona, também simplifica tudo. Não lhe custa ser clara e objetiva, agir de acordo com o sentimento que brota, sua práxis corre paralela ao que sente; não: dessa vez, é Ele que a confunde, que não consegue agir com congruência. É que, ainda nas palavras do infantil Pockets, “quanto mais ele gosta de você, mais malvado será”. E daí em diante, uma vez que o homem aceita, de seu lado também, o sentimento, ou seja, quando os indícios se dão a ver e ele começa a tratar sua paixão com a crueldade hilária que atesta a provocação de uma repulsa tanto interior quanto externalizada, fica instaurado, às maneiras concebidas pelo autor, o paradoxo inescapável que é a fricção entre ambos homem e mulher: ele não consegue aceitar o terreno mnemônico do sentimento, e a falta de tato fará com que aja como uma criança: emburrado diante do objeto que lhe provoca o empecilho, tampouco consegue sair de sua órbita; olha-lhe de esgueira, não dá o braço a torcer, se necessário (ou seja: quase sempre) será áspero, pragueja contra a vida por ter lhe enviado aquilo, e no entanto está lá, diante Dela, sempre.

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E fala-se do sentimento para o homem como um espaço atrelado à memória porque entre eles, os sexos, ainda haverá uma outra diferenciação primordial: ainda que não explícita, haverá sempre uma outra mulher como evento traumático, aquela mesma que lhe servirá como prova cabal de que não pode haver acordo entre os sexos, e a partir da qual ele tomará a atitude resoluta de um touro de não mais se envolver. Novamente, bem como funcionam os sinais para um infante, o homem tomará para si suas resoluções que não conseguem se mascarar: é precisamente ao se interessar por uma mulher que ele demonstrará menos agradabilidade e doçura. E mesmo que não me pareça haver protocolos para o passado das figuras femininas, posso arriscar que, ainda que a explosividade caótica do encontro sugira que aquele pode muito ser o primeiro de suas vidas, divido-me: ou parece que há certo costume inocente em tratar com aquele tipo de força bruta, ou todo homem, por mais que aparente carregar o frescor da paixão impossível e nova, será a Ela uma experiência diante qual nunca poderá haver previsibilidade ou controle. Interessa, enfim, o seguinte: da força do atrito, nascerá uma inversão de papéis já em virtualidade, e que será causa incontornável da confusão, parte porque um dos lados não consegue assumir honestamente o que lhe surge, parte porque a outra agirá exatamente como Ele deveria agir. E os exemplos infestam as imagens de Hawks.

Em A Noiva Era Ele (1949) Ann Sheridan fará Cary Grant se travestir de mulher, peruca improvisada com o rabo de um cavalo vivo, obviamente depois de um sem-número de provações quase mortais, para concretizar seu casamento, encontrando um furo no código de união entre agentes de países diferentes e deixando curiosamente dúbia a certeza sobre os gêneros, ainda que toda a burocracia dali em diante o coloque em mais intempéries; Katharine Hepburn e Cary Grant, muito possivelmente por empurrão ininterrupto dela, perseguirão um leopardo chamado ‘Baby’, floresta adentro no interior americano, nomenclatura funcionando como prenúncio da união e símbolo de qualidade da mesma: mais uma série de encrencas. No mesmo Levada da Breca (1938), segunda comédia mais afiada do realizador em quesitos de timing, ainda outras situações em ritmo screwball envolverão confusões de cárcere e furto não-planejado, tudo provavelmente impulsionado por um osso encomendado e que embalou a narrativa em seus círculos de inconciliação.

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Numa das últimas pérolas de Hawks, O Esporte Favorito dos Homens (1964), uma prova de que através das décadas o autor manteve-se, sim, como um desbravador dos gêneros, mas que a comédia é seu campo de expertise, Paula Prentiss fará – e aqui enfatizo a incapacidade do Homem de escapar das paradoxalmente ardilosas e inocentes mãos Delas – Rock Hudson, que nunca pescou na vida, inscrever-se num torneio de pesca, quase ser atacado por um urso, quase se afogar, imprensado numa bóia salva-vidas maior que seu corpo, acidentalmente precisar consertar o vestido curto e rasgado de uma loura fatal, só para acabar em meio à chuva, num colchão improvisado, boiando num lago de pesca com a mesma figura infernal e apaixonada que o colocou ali.

E esta é bem a sacada de Hawks: sem em nenhum momento trazer qualquer juízo de valor negativo sobre as figuras femininas, sobre elas recairá, contudo, a absoluta certeza de que, uma vez atrapalhadas, serão a ignição de sucessivos obstáculos à vida masculina, e no entanto nem este lado conseguirá resistir às investidas, nem ao outro será possível se conter: uma vez apaixonadas, e sempre de seu jeito atrapalhado, elas, buscando compreensão sobre a sucedânea de mal-entendidos, atiçarão, neles, a dualidade “repulsa por auto-preservação”/”atração por impossibilidade de existir sem Elas”. Uma última observação servirá de panacéia final para a estrutura bola-de-neve: atravessando o código do happy ending, essa espécie de décimo segundo mandamento da ficção até as proximidades da época em que Hawks não mais faria filmes, se à toda conclusão de sua obra romântico-cômica o final com conjunção dos dois enamorados funcionou exemplarmente, ora com uma trapalhada final que vencerá o homem por cansaço, ora por uma objetiva e direta percepção de que não há mais como conceber uma vida sem aquela mulher, apesar de tudo aquilo, quero defender, ainda, que ali não há exatamente um final, pelo menos não enquanto término absoluto. Porque ao mesmo tempo em que a luz se apaga e seu gesto é o de um encerramento, este o é apenas por convenção. Ainda que por um segundo, arrisco que todos os olhos que emprestamos para aceitar a ficção estimularam o nervo imaginativo a um verdadeiramente último ato: pensar que, a partir dali, a história daqueles que viemos acompanhando continua, e que no caso daquelas concebidas por Hawks aquele abraço ou beijo final que aparenta solucionar todo o atrito é na verdade um entre-atos, um intermezzo falsificador: o encontro entre o masculino e o feminino é insolúvel e inevitável, fonte ininterrupta de um conflito sem o qual, entretanto, é impossível estar no mundo.

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