Encontro-Gênero

Por Felipe Leal

“Quanto mais ele gosta de você, mais malvado será”

Como terminologia inserida no campo orbitacional do Cinema, a palavra “gênero” encontra duplo entroncamento: ora seu sentido mais veloz à mente, o conjunto de certo modo protocolar de traços estético-narrativos que caracterizam um tipo de filme, uma etiqueta classificatória que admitimos como rasa, ainda que já mais que “necessária”; ora o chamativo para a divisão entre os gêneros masculino e feminino, embora esta conotação só provoque uma segunda e fácil associação devido aos atravessamentos políticos a que o cinema se acostumou desde que virou “novo” em diversos países do globo. Porque associar-se ao político parece-nos hoje ter sido feito num estalar de dedos, pensar em gênero como divisória significativa dos estudos das forças masculinas e femininas como representações dentro da grande tela foi uma possibilidade argumentativa também sempre à vista.

Curioso, pois, que ambas as significações sejam impensáveis se dissociadas (quer juntas ou separadamente) de qualquer olhar que se empreste a Howard Hawks. Da ficção científica ao horror, da aventura ao faroeste, do policial ao melodrama, da comédia ao romance, e nas dosagens mais improváveis, mas também, e provavelmente sempre, um choque de motricidade dramática canalizado pelo encontro entre Homem e Mulher – maiúsculos. Não há escândalo jornalístico, torneio nacional, rinoceronte ou missão de guerra que não passe pelo embaralhamento inevitável entre as duas forças – não necessariamente expressas num homem e uma mulher personificados, mas sempre como uma resultante desastrosa. Aliás: diz-se logo desse encontro que ele também será invariavelmente marcado por duas outras questões estruturais: a (aparente) inconciliação entre esses dois quase fenômenos – e a subseqüente trapalhada seriada –, e a subversão espontânea dos papéis tidos como “clássicos” para os gêneros.

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Explico toda a deriva teórica: se houvesse uma cena na extensa filmografia de Hawks que pudesse conter a personificação de todo seu jocoso embate (porque o entrave, aqui, sempre acabará no mais inocente dos risos) ela estaria em Hatari! (1962), num diálogo tão absurdo quanto é o seu entendimento para a personagem que o provoca. Anna (Elsa Martinelli) pergunta a Pockets (Red Burton) por que o personagem carrancudo de John Wayne não gosta de mulheres, só para receber como resposta: “porque ele acha que elas são um problema”. Anna concorda, uma vez que esse estágio de aceitação nunca foi problemático às mulheres de Hawks: diferente dos homens, o caráter explosivo do encontro já lhes é introjetado: elas só não conseguem evitá-lo, e por conseqüência fica inferido que nunca haverá escapatória ao Homem. As inevitabilidades começam a surgir. Anna pede-o, então, que lhe fale sobre Ele – todo protagonismo masculino de Hawks será sempre uma personificação de seu ideário, ao passo que os outros homens que povoam a trama serão exemplos, decerto, mas exemplos menores. Pockets pressuriza a garota um pouco mais, é preciso fazê-la entender: diz a ela que, se ele lhe trata mal, se não é gentil com ela, é bem possível que ele esteja comendo na sua mão. “Pockets, podemos falar um mesmo idioma? Se é bom, é bom, se é ruim, é ruim”.

E antes que ele lhe diga a máxima que tornará a Questão um cristal puro de transparência e absurdo ao mesmo tempo, Hawks torce a convenção e traz outro fato incontestável à mesa: é a mulher que, paradoxalmente, na trapalhada que adiciona, também simplifica tudo. Não lhe custa ser clara e objetiva, agir de acordo com o sentimento que brota, sua práxis corre paralela ao que sente; não: dessa vez, é Ele que a confunde, que não consegue agir com congruência. É que, ainda nas palavras do infantil Pockets, “quanto mais ele gosta de você, mais malvado será”. E daí em diante, uma vez que o homem aceita, de seu lado também, o sentimento, ou seja, quando os indícios se dão a ver e ele começa a tratar sua paixão com a crueldade hilária que atesta a provocação de uma repulsa tanto interior quanto externalizada, fica instaurado, às maneiras concebidas pelo autor, o paradoxo inescapável que é a fricção entre ambos homem e mulher: ele não consegue aceitar o terreno mnemônico do sentimento, e a falta de tato fará com que aja como uma criança: emburrado diante do objeto que lhe provoca o empecilho, tampouco consegue sair de sua órbita; olha-lhe de esgueira, não dá o braço a torcer, se necessário (ou seja: quase sempre) será áspero, pragueja contra a vida por ter lhe enviado aquilo, e no entanto está lá, diante Dela, sempre.

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E fala-se do sentimento para o homem como um espaço atrelado à memória porque entre eles, os sexos, ainda haverá uma outra diferenciação primordial: ainda que não explícita, haverá sempre uma outra mulher como evento traumático, aquela mesma que lhe servirá como prova cabal de que não pode haver acordo entre os sexos, e a partir da qual ele tomará a atitude resoluta de um touro de não mais se envolver. Novamente, bem como funcionam os sinais para um infante, o homem tomará para si suas resoluções que não conseguem se mascarar: é precisamente ao se interessar por uma mulher que ele demonstrará menos agradabilidade e doçura. E mesmo que não me pareça haver protocolos para o passado das figuras femininas, posso arriscar que, ainda que a explosividade caótica do encontro sugira que aquele pode muito ser o primeiro de suas vidas, divido-me: ou parece que há certo costume inocente em tratar com aquele tipo de força bruta, ou todo homem, por mais que aparente carregar o frescor da paixão impossível e nova, será a Ela uma experiência diante qual nunca poderá haver previsibilidade ou controle. Interessa, enfim, o seguinte: da força do atrito, nascerá uma inversão de papéis já em virtualidade, e que será causa incontornável da confusão, parte porque um dos lados não consegue assumir honestamente o que lhe surge, parte porque a outra agirá exatamente como Ele deveria agir. E os exemplos infestam as imagens de Hawks.

Em A Noiva Era Ele (1949) Ann Sheridan fará Cary Grant se travestir de mulher, peruca improvisada com o rabo de um cavalo vivo, obviamente depois de um sem-número de provações quase mortais, para concretizar seu casamento, encontrando um furo no código de união entre agentes de países diferentes e deixando curiosamente dúbia a certeza sobre os gêneros, ainda que toda a burocracia dali em diante o coloque em mais intempéries; Katharine Hepburn e Cary Grant, muito possivelmente por empurrão ininterrupto dela, perseguirão um leopardo chamado ‘Baby’, floresta adentro no interior americano, nomenclatura funcionando como prenúncio da união e símbolo de qualidade da mesma: mais uma série de encrencas. No mesmo Levada da Breca (1938), segunda comédia mais afiada do realizador em quesitos de timing, ainda outras situações em ritmo screwball envolverão confusões de cárcere e furto não-planejado, tudo provavelmente impulsionado por um osso encomendado e que embalou a narrativa em seus círculos de inconciliação.

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Numa das últimas pérolas de Hawks, O Esporte Favorito dos Homens (1964), uma prova de que através das décadas o autor manteve-se, sim, como um desbravador dos gêneros, mas que a comédia é seu campo de expertise, Paula Prentiss fará – e aqui enfatizo a incapacidade do Homem de escapar das paradoxalmente ardilosas e inocentes mãos Delas – Rock Hudson, que nunca pescou na vida, inscrever-se num torneio de pesca, quase ser atacado por um urso, quase se afogar, imprensado numa bóia salva-vidas maior que seu corpo, acidentalmente precisar consertar o vestido curto e rasgado de uma loura fatal, só para acabar em meio à chuva, num colchão improvisado, boiando num lago de pesca com a mesma figura infernal e apaixonada que o colocou ali.

E esta é bem a sacada de Hawks: sem em nenhum momento trazer qualquer juízo de valor negativo sobre as figuras femininas, sobre elas recairá, contudo, a absoluta certeza de que, uma vez atrapalhadas, serão a ignição de sucessivos obstáculos à vida masculina, e no entanto nem este lado conseguirá resistir às investidas, nem ao outro será possível se conter: uma vez apaixonadas, e sempre de seu jeito atrapalhado, elas, buscando compreensão sobre a sucedânea de mal-entendidos, atiçarão, neles, a dualidade “repulsa por auto-preservação”/”atração por impossibilidade de existir sem Elas”. Uma última observação servirá de panacéia final para a estrutura bola-de-neve: atravessando o código do happy ending, essa espécie de décimo segundo mandamento da ficção até as proximidades da época em que Hawks não mais faria filmes, se à toda conclusão de sua obra romântico-cômica o final com conjunção dos dois enamorados funcionou exemplarmente, ora com uma trapalhada final que vencerá o homem por cansaço, ora por uma objetiva e direta percepção de que não há mais como conceber uma vida sem aquela mulher, apesar de tudo aquilo, quero defender, ainda, que ali não há exatamente um final, pelo menos não enquanto término absoluto. Porque ao mesmo tempo em que a luz se apaga e seu gesto é o de um encerramento, este o é apenas por convenção. Ainda que por um segundo, arrisco que todos os olhos que emprestamos para aceitar a ficção estimularam o nervo imaginativo a um verdadeiramente último ato: pensar que, a partir dali, a história daqueles que viemos acompanhando continua, e que no caso daquelas concebidas por Hawks aquele abraço ou beijo final que aparenta solucionar todo o atrito é na verdade um entre-atos, um intermezzo falsificador: o encontro entre o masculino e o feminino é insolúvel e inevitável, fonte ininterrupta de um conflito sem o qual, entretanto, é impossível estar no mundo.

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