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Festival de Brasília: Os Jovens Baumann (Bruna Carvalho Almeida, 2018)

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Exumação

Por Pedro Tavares

Os Jovens Baumann abre com uma sequência de momentos que o coloca entre os filmes-diário de viagem de João Pedro Rodrigues e a cartografia nostálgica de Andrea Tonacci em Já Visto, Jamais Visto. Este conjunto de cenas de jovens numa fazenda é interrompido por uma entidade maior que a câmera. A voz, a direção. É dela, a investigadora literal das imagens que afirma a condição real desses jovens.

Parte-se deste ideal a outro: se estes jovens foram anunciados como mortos já no início do filme, o outro ideal é a fantasmagoria do dispositivo no qual são filmados. A câmera VHS, referência máxima das décadas de 80/90 aqui sinaliza a aura que se registra. O horror é sugestivo. O cotidiano de jovens ricos na fazenda da família a aproveitar as férias nada mais é que a exumação de seus corpos – fantasmas no registro do tempo. É o diálogo direto do dispositivo ao espectador, portanto.

A Bruna Carvalho Almeida cabe montar estas imagens supostamente aleatórias, como se retiradas de um saco de fitas embolorados, e montar a lápide de cada um desses jovens. Não há tempo para qualquer identificação maior com esses personagens – o que interessa mesmo ao filme é o seu tempo: a simulação do intocável, ou seja, do passado. A nostalgia, no caso, é um sentimento e também uma manifestação. São corpos a vagar em uma dimensão enquanto a câmera registra outra: a vida. Movimentos, vozes, gargalhadas. Tudo aqui está empilhado em forma de imagem, pronta para enterrá-los novamente.

Exumar esses corpos em forma que os aproxime da realidade – ou da existência – coloca Os Jovens Baumann antes de tudo como um filme sobre o lugar que se filma: a ampla fazenda é um local que é fértil não só para o plantio de café. São pistas muito singelas, boa parte delas em forma de diálogo, que Bruna Carvalho Almeida aponta para onde o filme vai. E se a voz sempre foi o suporte principal, é ela que desvenda quando o epílogo se aproxima. Mais uma forma de transformar epitáfio em espectros de um dispositivo que delimita tão bem linguagem e tempo – novamente estamos diante dela, a nostalgia.

Visto no 51º Festival de Cinema de Brasília

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CineBH: Cocote (Nelson Carlo de Los Santos Arias, 2017)

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Que seja visto

 Por Felipe Leal

“El nombre poderoso de Jesús”

 

Em Cocote (2017), plano após plano, a acumulação de algo que pode vir a ser decisivo em demasia, só podendo a paixão explicá-lo: filmes podem ser revoluções, e se está diante de uma. Não chaves, ideias experimentadas, maquinários ou estampas de um processo revolucionário que seja, mas estruturas sintáticas e fechadas, concentradas e transbordando de um estilo (um modo de ser, raison d’être) cuja existência mesma, sua exibição, seu contato com os olhos, é capaz de fazer rachar o presente do que se sabia, do como havia sido feito previamente, das possibilidades de arriscar que ainda podemos estipular, empurrando mais as bordas… do real? Estamos diante da prova de que não foi suficiente nosso faro investigativo, endiabrado, para atravessar espaços com microscopias, como relances. É um choque. Pode-se sair da sala escura com um gosto inversamente proporcional ao fim do palato, daqueles tão minúsculos e fugidios que a fome para replicá-lo e estar à espreita por novos é quase uma possessão, uma necessidade. Aqueles cento e seis minutos podiam ser uma vida, na verdade contém algumas num estado limítrofe de selvageria: há um mundo, um em que o governo dos sujeitos é lançado às feras e os homens se veem atravessados por rasteiros poderes; diante deste mundo, simples, é preciso reagir.

Essa é talvez a história de Alberto, um homem enlaçado aos quatro membros por cavalos de desespero, vingança, passagem e poder. Seu pai morre pelas mãos de um homem influente e seus familiares – irmãs – causam-lhe problemas de incongruência religiosa, crença e querela pessoal. Estar no mundo sendo homem, melhor dizendo. Porque uma coisa é o seu luto, o de um homem convertido ao evangelismo, uma outra são os urros de libertação espiritual e os rituais afro-antilhanos que as irmãs e locais promovem em nome do morto. Mas este deve ser vingado para seguir em paz – ou eles, também, não terão paz. Não falta muito para que os cavalos se enfureçam e galopem. Ele será reduzido a nada? Alberto precisa reagir. Então o leitor deve saber duas coisas de antemão, a) que este texto é um bastante passional em relação a Cocote, ou ainda uma defesa, caso assim se prefira, e b) que por assim sê-lo, tomará algumas licenças formais para ser justo a tal sentimento, sendo a explicitação deste diálogo uma delas.

Uma teoria: o olho humano segue em cansaço de espírito (de humor?, de inspiração?) o número de imagens cumulativas com que entra em contato na trajetória de sua duração? Adultos são menos impressionáveis, menos inclinados à surpresa e ao desejo iconoclasta por conta da repetência das ações, do trabalho, dos anos? Porque, num gozo absoluto de coerência e articulação, todas as imagens de Cocote, dizemos todos os seus quadros, alguns inclusive em graus impossível e inconcebivelmente sublimes, só podem ser aproximadas não de planos, mas de proposições visuais com magnitudes de revirar um campo em 360º. Do primeiro serpentear, num preto e branco atemporal, de uma cobra de fumaça em 16mm, uma colisão fértil e quase ao rosto de uma palpabilidade neorrealista e boca de lixo, até suas últimas imagens, que são um retorno ao império de palmeiras, ladrilhos e sol à beira da apolínea piscina, um tableau de profundidade de campo tamanha que só pode remeter aos primeiros cinemas – juntas, em todas as linhas e corpos que relançam numa chicotada incendiária de mise-en-scène, estas imagens só podem ser comparadas, em recepção, em proposta de uma luz que vai incidir para logo depois nos devolver ao escuro, comparadas somente à intensificação dos nervos receptivos de um recém-nascido para quem tudo é a primeira vez. É assim que se o sente.

Mas este é definitivamente um mundo de adultos. Adultos são aqueles a quem é necessário comportar, carregar e lidar com significados estabelecidos; fazer. Sua idade anterior os cria, mais ou menos livre. Às crianças é reservado peculiar espaço em tela. Uma única cena pode resumi-lo bem e já ofertar a visão de algumas linhas da rachadura: Alberto parece cochilar em sua cama. A superfície da parede simples é de um azul simulado, quase claro. Uma conversa infiltra a janela e parece convergir no centro de suas sobrancelhas; talvez ele não durma. Palavras da morte do patriarca que correm para Cesarín, sobrinho, e se transformam em gritos e passos estridentes, e o garoto entra como um zumbido escuro ao quarto. A câmera, que do corpo de Alberto promovia um giro completo pelo recinto, pacienta em mostrar, des-cre-ver as imagens de santas, velas, contornar os tons de azul que se misturam à luz, e logo quando a porta é captada, entram em sincronia som de uma realidade externa e “realidade”, a do visível-filmado, o movimento do fora converge e à sombra veloz do garoto se segue Karina, irmã, armada de gritos e um chinelo. A criança é impossível. Mas, esperem, antes ainda que o círculo se feche, saem Alberto e Cesarín. Não somos permitidos a ver o último. O giro foi uma armadilha. É menos uma fobia que um jogo de encenação simultâneo a seu desdobrar narrativo. Numa outra cena com a outra irmã, à beira de um riacho, os infantes ressurgem, felizes, mas nunca devem perturbar aquilo que já está perturbado. Esta irmã também grita, ela contesta e gesticula, assim como a outra, a realidade, aquela em que o Deus dele não serve para nada, mas menos que isso: “seu Deus é o Diabo”. E(maiúscula divina)le não está no meu coração, eu que também sinto dor e não sou hipócrita como são seus servos, como o é você? Então Alberto reza, mas não sente, e ainda não fez nada.

Dizer que também é próprio das tomadas dessa cena a formação de um dispositivo interno que amplie, desafie ou suplemente a interação pressurizada do contado, é talvez assumir que todas as outras não encabeçam uma retomada de fôlego nesse vigor impetuoso de fazer ver sempre diferente. E aquele que vê elenca e se deixa atravessar por suas “favoritas” – não esqueçamos, filmes são sobretudo e ainda um quesito de gosto. Mas há duas coisas, dois eventos de ecceidade, que seu diretor filma de modo a tornar hiper-presentes, mais que próximos, um sendo uma entidade natural, o outro as manifestações físicas do espiritual na matéria. São: o mar e a dualidade do sincretismo religioso latino-americano. Para os teoristas do vermelho como sendo o pigmento que mais causa linhas de força e desejo com o olho, Nelson Carlo de Los Santos Arias faz do azul caribenho uma mémoire involontaire extensa: é ora imprensado por blocos de sombra e parece a própria água de um paraíso ainda não visto, ora traz consigo a fragilidade de um postal perdido, de um documento de outrora cujo reencontro anos depois aciona mais do que o corpo pode sustentar. É quase um documentário momentâneo sobre o azul: nós o queremos, queremos dele tudo saber, viver com algo que possa dele sobrar.

Atenção: um nome completo foi mencionado. Nelson Carlo de Los Santos Arias. Ele não pode ser esquecido, tampouco sua completude, a maneira que vem, sua apresentação. Dos fatos, é o menos perceptível (porque um dos menos controlados?, ele simplesmente é?) e o mais “atestável”. O leitor, se de olhos e ouvidos cicatrizados pela américa-latinidade de sua América Latina, conhece seus Silvas e Santos – metonimicamente falando, talvez tão bem quanto conhece o populismo e o sofrimento. Eles cruzam os territórios quase inteiros e levantam sua poeira de invisibilidade maculada. Sofrimento: é isto que o nome próprio comporta? Porque sabemos que alguns não chegam mesmo às equações e dados que nos dão rosto e pertença dissimulada. Não se está sendo político, político é o ato de cobrir a política dos vivos com uma história única, a sobre a qual estamos falando o tempo inteiro, de uma família destroçada pela miséria que é o desgoverno cataclísmico. E, no entanto, não há nada de “pobre” ali; no entanto, não é tão-somente a história de Alberto. Um nome como esse lançaria perspectivas, e um filme é para todos sem jamais, palavrão horrendo, “cosmetizar”. Esta câmera não o faria: o sofrimento não está adormecido nem implícito, está ali como a mãe está para Norman em Psicose: abertamente lá, o tempo inteiro lá, ainda que assuma outro corpo.

Um outro corpo e estamos de volta ao quadro, à célula que, de tanto se ler como parte de um todo, esquece-se que é também Citologia. A despeito do que é da ordem do dito em cada um deles – como se fosse possível separar verbo de imagem, mas faremos este esforço –, o que se faz com essas quatro arestas ainda não foi antevisto. Como inserir arestas num texto sem de seus interiores nada dizer, mesmo porque seria impossível fazê-lo sem beirar a convulsão literária? Alguns dirão que é tarefa de Sísifo, mas também greco-trágica, do crítico (ainda falamos do filme, porque aquele que filma é também aquele que arranja, um crítico). E a tarefa inicial do cineasta é transpor de sua tela “mental” uma ordem outra, a partir de uma primeira. Obras são transposições. Dizer “realidade” seria tolo, e não por todos os motivos teóricos possíveis: diz-se “ordem” porque são as ordens do corpo a que ele escolhe obedecer, e justo quando evitávamos os vocábulos da teoria eles ressurgem. Lateja algo de Titicut Follies (Wiseman, em 67), de um tronco observacional e resguardado do braço documental, naquele fluxo cênico que inevitavelmente saberemos ser de atores. É decerto passível de interminável discussão o recorte e a organicidade do mundo físico no documentário, mas, interceptado pela objetiva, há um novo e inumano elemento ao qual reagir, e o corpo muda, adapta, transforma. Chegamos a uma suposição mais rochosa: àquelas figuras que berram, xingam e entram em transes de expurgo, houve algo de pedido e algo de regência. Algo se afeta de certo modo e (coisas separadas, separáveis) convergiu para o quadro de ainda um outro.

Falávamos de algo que é “mais que próximo”, quando do mar e dos rituais. O que é isto que representa uma sobrecarga espacial? Só agora podemos elaborá-lo: poderá pagar pela boca aquele que considerar Cocote obra de ficção, porque ela não é nem isto nem de seu outro gênero, talvez no máximo um travestimento, e dos dois lados. Algo que, de tão familiar, não pode ser interpretado, que de tão episódico, da ordem dos feitos, não pode se servir assim de documentos compilados. Um embuste, uma farsa, uma atrocidade divina fazer com que uma das irmãs, “somente” para expressar que também sofre, e muito, numa das nove rezas, como um sol, magnetize para em torno de si alguém que lhe esfregue o peito violento, que lhe segure a mão, outras várias num coletivo ressoante, místico, entoando as palavras de dor e cura, que seu próprio corpo se levante, trema, delire, recue e recaia com brusquidão, quase um veículo, um intervalo de entrega em que ele lhe seja destacável. E como sabemos, como chegamos a afirmar isso? Ora, alguém que estava o tempo inteiro olhando por nós. Um aparato, quando bem manuseado, torna-se prótese, estiramento o órgão. O que o órgão vê? Vê diferente, numa logística do chão e do movimento para a qual se sujeita ao evento, o protagonismo peculiarmente se transfere para a ação, sendo que esta já é aquela que foi iniciada: o filho pródigo a casa torna. Machete em mãos, ele vai fazer algo. Sob o efeito do poderoso nome de Jesus ou não, porque a insistência maníaca do culto evangélico praticamente nos convenceu, queremos acreditar para que a força sintática daquela pastora também nos atravesse e converta, um só nome capaz de libertar e extrair desse mundo toda a imundície – Machete firme num plano que é puro tronco decidido e sanguinolência aos dedos, como se ele fosse o produto da alternância louca dos dois cultos que lhe atravessam o espírito (paz) com um demônio desconhecido, ele vai…

Seria possível que também insistamos nas obras enquanto majoritárias questões de linguagem porque algumas delas deixam-nos exatamente numa vacuidade dos sentidos, numa impossibilidade de sobre aquilo (que aconteceu) algo dizer? Daí que os métodos, passagens, operações tenham de ser traduzíveis, codificáveis, que, por exemplo, isso que chamamos de exercícios devam ser gramaticalmente quase causas e consequências, o olhar sobre as histórias meros aproveitamentos, reduções ou aditivos pautados em origens? De todo modo, tudo o que foi dito até agora pode, recomenda-se, ser “jogado fora”. Cocote, ao menos tentamos defender, é precisamente a experiência cálida e revolucionária de dispensar palavras. E este texto devia ter sido uma carta. Ainda assim, se um pouco crítico também puder ser: pode-se dizer sem exagero que muitas coisas não existiam antes de Cocote.

Alguns filmes surgem prontos e seu decurso só os prontifica mais; outros vêm a ser, sendo. Pintura se desenrolando como um pergaminho de uma sociedade com que nossa ciência ainda não tinha estabelecido contato. Cada ligamento, cada cisão alimenta um mistério e estala mesmo depois do primeiro segundo do novo. Ela não cria sem germinar. É uma droga, ansiar pelo diferente, pelo intenso, e simultaneamente se saber cego ao que virá, querendo que venha e rompa a cegueira – esta a das coisas que não tinham sido vistas, pensadas daquela forma. Poucos se moveram durante a projeção, a não ser para rir da irmã que “viraria homem, se fosse necessário”, porque Alberto, até então, não fez nada. Ninguém saiu. Se, aparentemente, foi necessário dizê-lo, a você que lê, das estatísticas de movimento dentro da sala, é porque, semelhante ao que aconteceu dentro dela, dentro daquele mundo, o corpo é o único lugar possível ao sentimento. Portanto, de volta à carta: querido leitor, se o diálogo das sombras vizinhas interessou, foi apenas para confirmar que, exatamente como quem escreve ou como a criança que cora à descoberta íntima e por outros imediatamente compartilhada e violada, também os outros estavam excitados e imóveis, e assim permaneceram até que os olhares se entrecruzassem. Mas uma luz já estava acesa.

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Festival de Brasília: Calypso (Rodrigo Lima, Lucas Parente, 2018)

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Deterioração

Por Pedro Tavares

No campo de análise de uma situação política (não em total pureza), é necessária alguma distância. Em Calypso, filme de Rodrigo Lima e Lucas Parente, essa distancia é física. O Rio de Janeiro, à distância, em decomposição, é campo para diversas reflexões sobre a história recente do estado e a perda de identidade. Nos limites justos do filme – não só por seus 60 minutos, mas no espaço que filma e nas poucas evidencias de abordagem, há um campo vasto de alusões políticas e existenciais.

Curiosamente, há diálogo indireto com filmes recentes de dois integrantes da equipe do filme: A Origem do Mundo de Moa Batsow e Garoto de Júlio Bressane. Os três filmes unem performances e matéria como campo ideal para discorrer sobre um mundo em crise, cada um a seu modo, evidentemente. No caso de Calypso, a língua que não é mais a nossa, os elementos como terra, fogo e ar, as idas e vindas dos aviões que se aproximam da Baía de Guanabara e principalmente as imagens de arquivo cimentam um estado de perplexidade, sobre não mais reconhecer o lugar em que se vive.

Em primeira visita, Calypso parece uma amplificação do sentido de O Espelho, primeiro longa de Rodrigo Lima: um lugar, diversos sentidos. Aqui o caos não é crescente e já instaurado no lugar filmado. Seu tratamento literário dá mais espaço à vitalidade misteriosa freudiana da imagem viva através da montagem e da manifestação. São traços alusivos aos fantasmas que nunca seguirão raciocínios lineares como um reflexo direto ao caos da metrópole do outro lado da baía. Um raciocínio que distribui força às alegorias de modo justo – dos corpos à natureza, todos terão o mesmo valor e impacto.

De aura urgente, Calypso pode ter a estirpe de um filme instigante, mas seus métodos são naturais ao gênero vigente. Cabe mais o diálogo de uma realidade sufocante que uma provocação estética, já que nunca será possível questionar o que as imagens realmente querem, pois a imagem seguinte dará as respostas de maneira palatável. É uma forma de articulação considerável, consciente, que dispensa o fetichismo da beleza da imagem – o último plano do filme deixa claro como a contemplação nesse sentido estará em segundo lugar – para entronizar a mensagem e não o meio.

A possibilidade de reverberação do momento em que vivemos no filme serve como um legado tão pertinente quanto qualquer aventura estritamente narrativa e/ou estética. Juntá-las em sua não integralidade e coloca-las em equilíbrio – mesmo que seja como via de acesso para um raciocínio simples: o exílio é a solução. Ache o seu exílio.

Visto no 51º Festival de Brasília.

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CineBH: Mata Negra (Rodrigo Aragão, 2018)

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Mad Max: “Black” Forest?

Por Felipe Leal

Nota: o texto pode conter spoilers sobre a trama.

Muito se fala de uma safra do horror em nosso cinema, um temporal de um dos gêneros dos mais codificados e de cujos códigos nos apropriamos com particularidades ainda não mensuráveis. Há estudos de caso em restaurantes microcósmicos e com uma heterogeneidade de variáveis que fariam Buñuel estranhar, lobisomens sob luas pálidas e fabulares na metrópole e que cintilam debaixo daquele perolado gigantesco. Beleza e breguice dançam em trocas expressivas. E os espécimes vêm, eles continuam mascando a goma de nossa espiritualidade extensa; nessa historiografia ainda verdejante, nem mesmo o Diabo, literalmente o demo, o capiroto, ficaria ausente. Ele tem chifres e ruge, nasce de um caderno rabiscado de esferográfica. Para nossa surpresa, é claro, como todo texto puxa seu alvo até as bordas, e todo alvo de um texto deve conter algum (sub)texto-limite, um algo para tornar problema, o problema foi longe demais, mas tão demais que os advérbios de nossa língua não podem contê-lo. Dos males, o tinhoso só atinge o malefício de um cacarejo: Mata Negra (2018) é o conto assustador da prolífica impossibilidade de impor limites ao místico. É mais do que qualquer um possa encontrar em seções bibliotecárias. É tão meticuloso em sua carnificina que só precisa apelar ao susto uma única vez, e portanto um susto ele mesmo: qual a espinha de seu horror?, melhor perguntado, porque ele não para de ser horroroso, no sentido mais atuante do termo.

Há uma garota, um amor, por mais relampejante que seja, e uma série mortífera, e poderíamos pular suas pontuações inicias, se essa vila d’um lugar qualquer (os arredores de um horror sempre lhe são mais que preciosos) não fosse um laboratório apressado em que todo gotejar em solução tem o efeito desejado. Nada respira. Tudo morre, e deve fazê-lo logo, em nome da intensificação e andamento do desfecho. Suas criaturas são aparições, mas, diferente da maioria destas, ao menos das sobreviventes, em que o relato das visões, sedimentado e recontado, garante a pujança de sua imagem/imaginário, os zumbis, amaldiçoados e paladinos do Bem são, aqui, meros momentos, protocolos, protelações. Eles não são “parte de”, mas peões, explícitos utensílios que valem pela historiografia pobre que os dota de superfícies e resoluções à tensão mesma que os faz brotar. Os nomes de sua própria sacralidade, que nunca deixa de ser solo, pronunciados como uma criança que lembrará, do arcabouço mágico, o abracadabra e o coelho da cartola. Envolvida com magia negra por inocência e por desespero circunstanciais, a garota lê o livro de feitiços como se em suas páginas estivesse escrito com sangue um power point de palavras-chave da teosofia e mitologia universais: Cipriano!, Hécate!, Amon! (Chriss Angel chega a fazer falta), e os mortos viverão e os vivos estarão marcados daquelas palavras em diante.

Não é inteiramente um problema de mítica. É comum ao cinema genérico, a grande parte de todo ele, na verdade, que obstáculos atravessem jornadas. Não porque o herói precisa superar a si mesmo – é uma outra questão. Ao horror, este fato do heterológico que replica as situações em fantasmas de sua raiz será precioso. Talvez por inevitável interposição daquilo que é estranho, talvez por naturalidade adversativa do mundo, o bom narrador saberá o fazer. Quiçá até jogue junto, embora a este gênero seja quase certeiro que grande parte da turbulência se dê de maneira a surpreender seu herói. E de surpresas a garota tem mãos cheias, sua face é um quadro de bocas e sobrancelhas – isso quando o rosto não está insuportável de tanto sangue, o que acontece com, digamos, frequência excessiva. Devemos, enfim, ultrapassar os códigos, e bem o discutiríamos, mas Aragão é um gênio do fôlego. “Esfrega” o livro e repentinamente lhe saem mais três percalços. Será trabalho voluntarioso e hercúleo do espectador procurar e se acalentar com uma cena que não seja imediatamente seguida ou borrada, ainda nesta interioridade nuclear, por uma desgraça recaída. Literalmente, não há paz. O que devia ser uma significação pluralizada do plano inicial se ramifica tanto que não é preciso chegar à metade do filme para se encontrar perdido. Qual era o impulso primordial? O desatar de que sortilégio traria redenção àquela errância juvenil? “A terra castiga quem tem sentimentos”, diz o amado, sem saber que a tradução de seu ditado seria um desvario camaleônico.

Podemos perdoar a solenidade daquele que, por aparência inicial de um desenrolar mágico das costuras dos eventos, desejava ser fiel ao ar longinquamente familiar dos contos de fada – “Ah, minha fia…”, “Ah, painho…” multiplicados por mil: o mundo nasceu emperrado? –, podemos saltar a percepção estagnante de que a garota oscila entre tão corajosa bruxa e tão indefesa virgem. Podemos, até, vendar os olhos diante das caricaturas ressecadas do bom moço, do bandido, do evangélico, do casal infeliz de roça. Mas, “de repente”, um nervo subcutâneo escapa ao previsto, ao natural do corpo (fílmico). A pele inteira treme, a superfície mais palpável, a do decurso, do cena-após-cena, é estuprada por reviravoltas dignas de um único apelido: mágicas. De repente, aquele livro, dos fundos de uma mata sub-explorada, é o antiquíssimo grimório buscado por gerações de sedentos e gananciosos; aquele ovo, que serviu de jura amarrada numa cena de épicas proporções de inutilidade do obstacular, é tanto uma licença para lançar um galo ao ar e fazê-lo simplesmente interromper, gratuitamente, e jorrar mais sangue, sangue, sangue, quanto é o desenlace futuro de um monstro cuja única função é, também, produzir o cômico e sujar. Afiada direção de arte, esta que fez do filme cinquenta-variações-para-ensanguentar-corpos.

É comum aos filmes de horror que acabem por ser hilários pelo verniz esfregado de sua feitura? É uma liberdade ou um acontecimento “involuntário” e peculiar, quando tal acontece?  Um momento previsto e mais ou menos ensaiado ou um derrape? A questão, que parece irrelevante e propícia à cada qual que dela participa, ou seja, assiste, se torna uma de todos, ou seja, novamente de código, e geral porque à medida que cada intensificação desse feitiço inicial vem tanto afastar o desfecho quanto propor-lhe uma vereda infernal, também o espectador tem de lidar com o cesto quente lançado ao colo. Ele – o “assistinte” – é, particularmente no terror, misturado ao jogo de saberes e surpresas que a trama cospe.

E o que temos é (reitera-se o caráter “repentino” com que tudo irrompe), tão logo: um amante a ser ressuscitado, dois bandidos, um dos quais precisa de um certo despacho, um fazendeiro em encruzilhada biológico-matrimonial, uma cabeça (para quê, não se sabe mais, e não somos culpados), um saco de ouro, uma manada icônica e paupérrima de religiosos de alcance vocal adequado a uma centena de aleluias e obediência canil, zumbis, aliás vários deles, como árvores ilustrativas numa peça campestre, a própria morte, travada como um boneco, o Diabo ele mesmo, invocado num passe de palavras de automatismo característico de quem lê uma bula em meio a um acesso de raiva. E uma garota. No meio de tudo, a garota contra as forças do mal, que não são nada menos que cada passo dado. Não há instante de tranquilidade, pulmões, felicidade que não sirva de catapulta ao trágico – não que precisem existir, mas porque a ideia de Aragão de horror deve ser uma de distopia descendendo ininterruptamente.

E ela entra numa espiral tão possessa que o futuro inteiro a solapa. Era uma missão subterrânea da história falar de um encaminhamento distópico e selvagem do mundo, daquele mundo erigido de tantos, para não dizer exclusivamente, perigos e tormentas de quem brincou com fogo? Tornar uma protagonista um redutível ao zero e subserviente ao ideal de viagem. E nós reconhecemos aqueles personagens, eles são os rostos familiares dos sortudos sobreviventes (será?), e algo a mais, um bônus referencial inesperado. Este aditivo é o nome de um outro filme, título de duas palavras, e está incrustado naquela fenda desértica que um plano se distanciando vem revelar ser um castelo em meio ao fogo em meio ao fim do mundo em meio à desesperança. Rostos pintados, lanças antiquadas, vestimentas de pano e um linguajar típico do caçador cada-um-por-si. É Mad Max! E com licença para franquia renovada e breve. Não por muito tempo, claro, porque a virgem deve continuar escrava da trama, a trama que só faz ampliar seus círculos até que o futuro pareça, dos impossíveis, o menos preocupante.

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CineBH: Abaixo a Gravidade (Edgard Navarro, 2017)

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Dos autores e dos casos clínicos

Por Felipe Leal

Alguns filmes fedem a seus autores. Não se confunde um Haneke, uma Chytilová, um Linklater ou um Naruse, sejamos francos. É mais que uma marca; talvez uma questão persistente ou quem sabe um conjunto de signos totalizantes fora de nosso alcance, mas que invariavelmente se imprimem. Outros filmes, ainda, são quase que produtos de uma cissiparidade das moléculas do próprio autor: pode-se dizer que são quase ele, não fossem as diferenças de meio. Apesar da linguagem um tanto figurada, isto não é um exagero, e pelos mais variados motivos, que costumam variar da defesa ideológica ferrenha ao ensaio performativo de si, alguns indivíduos fazem da subjetividade que lhes é singular e de um fora que é a técnica mais propícia de si um poderoso dispositivo de descobertas vibráteis. Tampouco essa parcela de linguajar deve parecer abstrata: o que quer que exista na arte e que ainda não a fez se tornar toda um círculo cancerígeno de esferas ego-cêntricas separadas é o seu poder de ecoar num corpo (vibrar, desvelar), sendo a alquimia dos que “melhor” a “fazem” um enigmático estudo do si diante/para/a despeito/impreterivelmente do/o/ao outro.

Nosso caso, se mostrará, é infinitamente mais mesquinho. Um desses motivos para elencar o objeto em questão como essa colisão entre autor e seus espelhos-crias rugiu sem timidez à introdução de Abaixo a Gravidade (2018), a ocasião sendo a pré-estreia nacional do filme num pequeno palco de Belo Horizonte, ironicamente no interior do Cine Humberto Mauro, que se um dia já foi acusado de regurgitar preceitos morais sobre suas histórias, ao menos narrou diante dos deuses. Mas sobre essa anedota vivaz falaremos em breve.

Em princípio, nada surpreende ou se encrespa num relevo que agite o típico plano misto entre a dormência da câmara escura e a excitação iniciais. Já o vimos dezenas e dezenas de vezes, uma câmera rodopiar, sobreposições vistas de baixo se misturarem, vozes aludindo a um excesso prévio àquele devaneio, o personagem revira os olhos (deve olhar sempre para cima, segundo a tábula básica do transe) e, ao menos narrativamente, porque em estilística de tela nossa submotricidade responde bem, algo foi feito: se alguém aqui surta, isto que vemos deve ser um porvir. Há, então, uma queda, e é ela que acompanharemos. Curioso que exista uma outra anedota advinda do continente americano e que diz Pulp Fiction (1994) ter inaugurado o bloco inicial de uma obra como prelúdio-ruptura temporal entre futuro-presente. Mas se o assalto “any of you fucking pricks move, and I’ll execute every mother fucking last one of you”, seguido de Dick Dale and His Del-Tones, enquanto anedota, faz rir aqueles que assistem à crítica buscar origens e partidas aos eventos cinematográficos, comparado à engenhoca temporal de Edgard Navarro, segundo a qual apenas extraímos que o porvir é tosco e faz seguir um presente ainda mais incompreensível, é como colocar Federico Fellini e Miguel Falabella numa balança. Ninguém nunca ousaria supô-lo.

Everaldo Pontes, que nos seus mais de vinte e cinco títulos, não importando o grau de acompanhamento de todo o resto da obra, sempre foi uma força da natureza, torna-se aqui uma presença pura. Maravilhosamente xamânico, mas como que reduzido a um eco; uma carga reprodutora de iconicidade particular pela tensão de seu físico, mas que não deixa de produzir por outrem, em nome dele. As pistas já foram entregues, a anedota, ainda tolhida. Então, uma confusão se segue e permanece. Dividido num aparente binômio miserabilidade-epifania-sofrimento/abundância-egocentrismo-boa vida, e só “aparente” porque tudo de fato insiste em se embaralhar, Bené (Everaldo) é o asceta perfeito. É digno de destaque: ele mal precisaria abrir a boca para chafurdar num enunciado mais comercial que a bandeira de seu autor pode suportar, não fosse seu filme um certo atestado de um delírio preocupante. Em suas estantes, Osho, em sua mesa, cestos, paladar, ações, relações, tudo é melancias, leguminosas orgânicas, yoga, caridade. Mas eis que não, não basta que tudo já esteja explícito. Cai-se na própria armadilha, e com a boca arreganhada: os diálogos parecem impressos de uma pós-sessão de Reiki ou culto espírita ou evangélico – nunca se sabe bem, a suspeita é que ele de fato seja um comercial da Benetton –, ou melhor, um cartão-postal vivo de qualquer dessas manifestações espirituais. E por que não, se também a trilha sonora, uma vez compilada, bem seria o melhor tracklist da heterogeneidade brasileira para se importar ao exterior?

Quase a absoluta (do filme inteiro) plenitude de quase todas as cenas – veja bem, agora não do efeito de todo das cenas do filme, mas do interior completo, minutagem cronometrada, de cada uma destas cenas – é infestada de um arranjo musical desfilando como perfeito acompanhante do espírito da vez. Há uma embalagem clara e vital, e nos dois primeiros sentidos que a palavra pode suscitar. Se ele (sempre Bené, sempre Navarro, sempre Deus) faz um despacho, irrompem as vozes de mães-de-santo e a batucada (?) em volumes lancinantes e mixagens respiratórias, porque o falatório sagrado decorado também precisa de espaço sonoro; quando pratica técnicas asiáticas, os címbalos e cítaras tremulam até os interiores de igrejas (?). A qualquer momento um axé poderia ter rasgado o ar nas ladeiras de Salvador, e não teríamos nos surpreendido. Só que o mundo de Navarro é perfeito além disso, ele se lhe espelha numa precisão assombrosa, tanto em montagem quanto em cálculo teórico. Cortinas de um apartamento luxuoso ascendem e revelam uma imensa favela de camadas e contornos. É o apartamento de MYSELF, apelido de seu psicanalista, que por sinal fala conosco diversas vezes, “de saco cheio” e berrando improprérios (palavrões!!!) à câmera, um genioso ato de quarta parede e de irritação.. cênica? com o analisado.

MYSELF surge quase literalmente do nada, complemento desse mundo cristalino de todos os ricos que são necessariamente ególatras e dos pobres que são precisamente miseráveis, artistas inevitáveis e, claro, alvos do coração caridoso de Bené e da câmera “antropológica” de seu autor. O que une os polos desse mundo problematizado é, pasmem, o dinheiro, esse demônio que uma vez extraído do mundo nos pulverizaria de todas as moléstias (suma, McDonald’s!), mas também, pasmem, as calças e fraldas com um filete de excreção. Sim, por um fino subtexto de próstata e doença, a epifania encontra seu signo em derrières: os vovôs se sujaram. A este ponto de, digamos, projeção – perigoso não cair em duplos, logo quando eles seguem agora -, de uma narrativa que, a bem da verdade, espelha sua tese e personas de maneira simetricamente estruturada, e por isto inocente, a este ponto, se o espectador não engoliu uma porção estranha de incongruências e misturas e não introjetou para si que tudo que é dito precisa ser urgentemente mostrado, e vice-versa, ele certamente já supôs, e o fará ainda melhor diante da anedota um tanto dúplice que agora deve ser reproduzida do modo mais fiel, mesmo porque curto, ele já supôs, enfim, que Bené e todo o seu horizonte/eixo possível de ações e representações é um manifesto límpido e afetado do próprio Navarro. Não perdamos tempo, então, com o penoso maquinário chacoalhante que vem trazer qualquer manifestação dessas mesmas diversas religiões – são dignos de cosplayers de primeira exibição. Direto às provas.

Pedido a introduzir Abaixo a Gravidade defronte ao palco supracitado, ao qual compareceu expansivo e alegre juntamente com produtora executiva e montadora, o microfone em mãos mal consegue conter um peculiar êxtase aparentemente vindo dos fundos de seu ser. Só que estamos enganados, ele se diz artista, e também diz dos artistas (dele), que “captam a energia das estrelas”. Mais que isso, ele afirma, agora a si e de si mesmo: “(sou) cavalo dos Deuses, de Exu, de Oxóssi (aponta e ergue pano da camisa, ilustrativa do último)”. Descobrimos que o artista pode (decidir) ser muitas coisas. Os turbulentos ideários de artistas concebidos por Woody Allen ficariam escandalizados com tamanha expressão e expressividade. Não se surpreendam, ainda estamos falando estritamente do filme, só que o de fora. O microfone é passado à última mulher da equipe, tão responsável e autora quanto ele, mas o artista interrompe sua fala uma, duas, três vezes, em beijos, declarações. Há de ser um caso clínico, porque ele vem de assalto para dizer que vai chorar, não consegue não o dizer, “gentileza gera gentileza” estampados na camiseta de sua persona ego-trip, todos os slogans da obra, vociferados na calmaria de um “gratidão”, se entrechocam num feixe de verdadeira iluminação, aquela dos que assistem boquiabertos. Eureka! Deve ser de fato um mistério, o lugar de onde descende o emissário para nos irradiar. Deve ser assim tão típico do artista… Mas chorar por quem? Já não é mais complexo ter certezas. É, afinal, um espetáculo que se consiga incendiar tamanhos entusiasmos nessa usina de produção autorreflexa. Sintomas conjunturais?

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A Mulher dos Cachorros (Laura Citarella e Verónica Llinás, 2015)

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A vida do intervalo

Por Felipe Leal

Aviso: os dois últimos parágrafos do texto podem conter spoilers sobre a trama.

Breves palavras antes que se chegue à obra, que é A Mulher dos Cachorros (La mujer de los perros, 2015): “depois que uma história é contada”, comenta Anne Carson, poetisa/ensaísta canadense, “há alguns momentos de silêncio”. É uma reflexão, dizemos sem medo, sobre términos. O mesmo serve para o cinema: o que acontece quando um filme é contado? Ele termina. Seu prolongamento, talvez, não. A vida continua, decerto, e se o faz já manchada pelo suplementar, esse misto de reconhecimentos, despertares e desapontamentos, o cordão permitiu que algo fosse transmitido. Há, então, uma diferença só superficialmente simples entre antes e depois. Quão conscientes estamos nós e os fabricantes desse espaço chamado “durante”? Um mínimo!, se prontificariam em alertar muitos, como se o efeito de uma obra pudesse ser medido em quantidades. Teorias de espectatorialidade, especulação de malabares translúcidos que não param de se multiplicar nas mãos de quem deseja perguntar e se depara com intermináveis variáveis, as veredas de apreensão se bifurcam e bifurcam – e não chegamos a respostas. Afinal, não temos que. Carson, no entanto, propõe uma: [o que acontece quando uma história termina é que] “meus olhos estão às suas costas”.

O método é puro, simples em sua abertura ao complexo. Como a produtora, como suas ações, estamos diante “de uma maneira de tomar decisões e de viver”, palavras de Citarella. Três anos dispersos em finais de semana de filmagens. Os fabricantes: cinco mulheres, doze cachorros, um lema-protocolo lançado com doçura por uma das realizadoras, filha aos braços em comentário pré-sessão (ela não havia começado?!), posto que são duas no ferro da direção, também só superficialmente, e uma delas tomará a tela como a Mulher (aquela dos cães). Detenhamo-nos, então, sobre o título, ele já lança pares de olhos. A Mulher dos Cachorros. Ela pertence a eles? É uma identificação, um atrelamento, e, se sim, feito por quem? Eles lhe servem como complemento ou reflexo simbólico? Jamais. Ela está no meio deles ao ponto de devir-cadela? Nosso tatear aterrissa em preciosa mina. Porque o que temos com certeza é a passagem das estações para aquela que vive da terra, do “lixo” e contra a chuva; variações cromáticas de tamanha iridescência que o céu se destaca e parece composto em degraus de verdade; o decurso dos dias, que também podemos chamar de tempo, a foice e o cultivo que assolam a pele e o vivido, da cadela ao industrial… esse cotidiano é, enfim, um que se faz. Nada está dado, ainda que alguns se adiantem com impressionantes ferramentas.

Engana-se quem pensa estar diante de uma estilística puramente temporal, sendo tão subsequente quanto notória a apelidação “cinema de fluxo”. O arrastar é apenas um desdobramento, há dezenas de outros implodindo na tela, e o cansaço de alguns é mais ato-reflexo de um fora sistêmico do que de uma lógica interna. O cinema tem e não tem tudo a ver com a impaciência. Mas o tempo, se maior letra da equação, densifica-se em todos os corpos, precisa descer em respostas – tudo o que fazemos, ainda que engolindo certa futilidade feita transparente e pouco incômoda, não é contra ele? E em face da necessidade de respostas, que só a ponta da matéria vem confirmar serem mais ou menos automáticas, a Mulher é indubitavelmente um quase ininterrupto ponto de contato com os cães, sem no entanto deixar de ser humana, “bruta”. A perspectiva inicial, entre os cipós, troncos e galhos e a Mulher que caça, é a dos cachorros, e repentinamente, como se se entrelaçassem, também a do espírito. “Ele” assiste às suas costas de tempo sedimentado, “eles” farejam, a física motora ameaça ir à todas as direções ao mesmo tempo, há dezenas de possíveis fazeres face o objetivo, o desejo. Há uma verdade sobre estar á espreita: tudo pode acontecer, acontecendo.

Não comandamos cães. A domesticidade é, deles, apenas um aspecto. A selvageria, romantizada, não contempla um viver em eterno alerta. Por isso Citarella e Llinás não tratam de duplos. Nas zonas de contato, é o quesito das ações que batalha com o tempo. E como se encadeiam, há também um devir-cão se impregnando na montagem: em momento algum se sabe onde as ações iniciadas neste quadro vão culminar, nem muito menos o que se faz, porque o que se faz é composto. Não há respostas simples, mas, pior, porque essa incompletude desmontada e refeita cintila bem nas armadilhas, gambiarras e coletas, mas explode quanto aliada aos bichos: entre a morte enquanto acontecimento (morrendo, não “morrer”) e o lidar dos vivos, nesse intervalo astuciosamente trabalhado pela atriz e nos cachorros, não há jogo mais intricado que as fabricantes possam simular que não aquele das decisões quaisquer e aparências.

O cachorro abandonado morre, e nem Ela nem nós o sabemos ainda. Se suspeitamos, o deslize da lente ao lendário rosto da Mulher afasta tal acontecimento do centro. No último plano, o indiscernível volta a se instalar, só para que se possa rir de todo o desejo de ordem que é nossa civilização e que a Mulher escolhe estar à margem. Ela entende os médicos, divide da companhia de uma amiga(s), reconhece que rouba objetos, mas o mundo da mulher não é, não tem de ser, porque o cinema trata de possíveis, o das gorduras e ingestão de líquidos, o dos impostos, tampouco o do matrimônio. É algo muito além de uma questão moral. O último plano é um de infinito. Aquilo que pensávamos morto escolheu repousar. Talvez os cachorros o soubessem – nós não, não somos os “espectadores dos cachorros”. Uma possível tristeza, quer compartilhada com o vizinho ou não, se torna outra coisa. As mulheres criam uma situação-limite, o espectador se vê com uma resposta-assalto.

Mas ainda é preciso falar do rosto da Mulher (Verónica Llnás). Diversas vezes ele carrega uma interrogação cálida tão difícil de comportar quanto extasiada de partilhar. Queremos que dure. Em que ela pensa?, é também se perguntar por que os rostos de quase todos os homens pouco interessam, e por que se fez, se produziu, que o de quase todas as mulheres contivessem mistérios. Porque, de fato, contém? Já falamos de olhos antes. Mas estes guardam uma diferença, ela, também, montada, desfeita como os fios de um novelo cuja última repuxada revela o rosto não de uma ovelhinha, mas de um cão, e ele estira a língua. O par esverdeado da Mulher é todas as coisas que não compreendemos, mas que têm seu lugar. Ela não precisaria esboçar um semi-sorriso para criar tais linhas. Os olhos são anteriores à boca, e talvez aqueles signifiquem a placidez momentânea da não-ação. É nisso que ela difere dos cachorros. É também aí que, aos nossos [olhos], é a mais fiel e verdadeira das cadelas. Fiel ao mundo se fazendo, à redução do epitélio e da energia cinética ao gerúndio. Que este mesmo mundo possa tratá-la como aquém ou em paralelo com os cães é uma, aliás duas tristes  outras histórias.

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CineBH: Sol Alegria (Tavinho Teixeira, 2018)

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Neorrevolução, ou a fadiga dos princípios

Por Felipe Leal

No princípio – estamos falando desta obra de particular e polissêmico nome “Sol Alegria” (2018) – dois estouros: 1) uma glória e 2) um tempo já suficientemente alardeado para não se representar com inerente sobrecapa um tanto engessada, sintomática, cansada. O presente de hashtags e neofascismos enquanto distopia atual – o futuro acinzentado já se enraizou aqui e está à espreita, como bem reitera sua cultura de palavriados resumidos e revoluções tornadas signos ao ar. Como bom esteta, Tavinho pinta-o bem. Chegamos, então, à glória: um travelling de prostitutas e travestis em despedida num porto no mínimo fassbinderiano. À luz escarlate desse tempo devasso e de ruínas implícitas, parecem santas em desfile imperial. Vão à Dubai e se despedem numa comicidade quase realista, o mundo do trabalho e o da sexualidade colidindo aos olhos de cobiça e travessura dos marinheiros internacionais de outrora-agora. Não há menores e maiores, todos são pulsantes pelos gestos que encarnam e torcem. Um inglês afetado, falado e interpretado ao ouvido risonho, atiça o pictórico de delírio já quase literalmente atmosférico. Há algo de Ray, de Fuller, dirão alguns.

Dito simplesmente: (só que) o sonho cai. Ou melhor: sobe em exageros ao olimpo dourado da utopia dentro da distopia. Como num slogan que não precisa mais se entrelaçar ao artifício, porque o enunciado agora é o próprio artefato replicado, tudo acaba por não só parecer, mas desejar o repetitivo do “hino” que já encapsula qualquer política ou ideal ou estética, dito de forma cada vez mais histérica. Há, claro, antes do Eldorado, uma fuga, neste caso da caretice, como não vem a surpreender também por escolha da repetição em dela se distanciar a todo custo. Todos riem abertamente o tempo inteiro, como se para espantá-la. Ainda no decurso de seu início, num frenesi de louras, luvas, maletas e tapa-olhos, até mesmo os planos, sobretudo eles, vibram nesse traço verdadeiro de uma liberdade que é não precisar anunciar sua própria expansão. Mas o motivo da queda repentinamente se revela, e numa outra queda semi-simbólica que é o último instante de vida não autoafirmada aos berros. A família à la Bonnie & Clyde, tendo os cadáveres de um pastor e piloto às costas, salta de paraquedas ao Sol Alegria das freiras e do solo fértil de maconha, pistolas e espingardas. Pode-se logo pensar que a questão que se impõe é uma de caricatura, mas, a bem da verdade, pouco importaria se esses ícones religiosos traficassem cinco outras drogas, órgãos, fadas ou literaturas proibidas. Permanece que a podridão do solo seja uma de não amadurecimento.

Outros pensarão que os ombros do próprio cinema também já pesam com seu histórico de tais signos cristãos pervertidos e desmontados em exímias “máquinas de guerra” (o termo é o brado final de Sol Alegria, não por acaso aplicado aos corpos), e poderíamos culpá-los em revirar os olhos? Não deveria importar, digamos, a facilidade trêmula de alguns e o escandaloso sísmico de outros? Pasolini, Ferrara, Powell & Pressburger, Norifumi Suzuki, Russell, Fellini, muitos de fato já fizeram o signo falar, e do vulgar esgarçado ao febril possessivo. E, no entanto, aqui, parece às freiras que lhe exigiram que atuassem como adolescentes recém-descobertos num universo de sensações cannábicas.

Distante sequer de qualquer binarismo “aquém/além” que possa colocar-lhe em perspectiva, se comparado ao efeito da materialidade de qualquer espécime de nosso cinema boca de lixo, Tavinho e Mariah, para criar um filme que se assume enquanto criador de alegria diante de tamanho momento de seriedade e conservadorismo circundantes, acabam como o estalo eventualmente irritante de um disco emperrado: a não ser que a esquizofrenia impotente, multiforme e colorida sirva de epifania estética, as cenas se seguem numa rota sem liga (é possível, hoje, afirmar assim tão facilmente que a liberdade do conteúdo extravasando para a forma, se mais arroubada por enunciados e justificada pela altura do grito do que propriamente tensionada, é suficiente para sustentar a teoria do filme louco de amor?). Pode-se até supor, com leveza, que todas as cenas foram criadas ali, no instante de uma euforia induzida de festividade e de riso diante de figuras estas também já cansadas. Por trás de toda comicidade deve haver algo de brutalmente sério na intenção, ou nem o circo mais encantado se sustenta.

Girando em torno de si mesmo em sucessivas reencenações de um espetáculo de quatro membros livres e pregadores da revolução pelo cu, pelo… pelo… livre?, pela arte, mesmo que poucos minutos antes tenha ele mesmo contrariado um demônio chamado art pour l’art, porque aparentemente ainda não conseguiu superar 1) uma ideia de sexualidade enquanto grande vernáculo, campo minado e resposta para todas as transformações mundiais, e 2) esse pestilento discurso que hoje podemos afirmar que sempre retornará, ele que diz que, uma vez permitidos todos os corpos para trepar e “ser o que quiserem” (são), e com quem bem entenderem, os sujeitos então se tornarão automaticamente libertos e felizes diante de si mesmos e para outros – porque ainda não superou toda uma sintomática infantilóide, ainda que pertinente na origem de seus apelos, Sol Alegria não consegue fazer outra coisa que não poetizar eternamente o sexo e o ar respirável, a juventude enquanto lugar de retorno e única e obrigatória potência criativa. O grande louro adornando a cabeça de seus jovens, os filhos, é a insistente oralidade sexual em belos contornos de vermelho e verde, como se ainda tentando resgatar o neon eternizante que reifica o apolíneo nos corpos – mas, mais uma vez, só belo, estéril –, de um lado, e do outro, uma porção de frases e vestuários que, tão logo se mostram expressivos e verborrágicos, não há como dizê-lo de outro modo, se exaurem, porque só resguardam a espetacularização da troca perpétua.

Está talvez tudo posto às clarezas: o filme é um eterno apregoar do camarim, do não-pronto, do carnavalesco, e ao eletrizar o passar de seu tempo entre a própria multidireção desnorteante que lhe é ontogênica e o vocabulário que, mal vomitado da boca, só consegue fazer cócegas nas rochas contra as quais batalha, assim se encerra: uma brincadeira entusiasmada e rica de termos para formulação, mas frágil em montar novos significados. Riem, riem, riem, beijam até que o corpo reaja seco. E o rear projection é esse símbolo derradeiro de um espelho incongruente. Reflete em transições e jogos cheios de artifícios dinâmicos, mas o que a face mostra são os rostos mastigados, remastigados, cuspidos e reaproveitados do bon vivant que não cria para ninguém além de si mesmo.

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Festival de Brasília: O Pequeno Mal (Lucas Camargo de Barros e Nicolas Thomé Zetune, 2018)

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Por Pedro Tavares

Uma conversa telepática entre o Godard pré e o de pós maio de 68. O Pequeno Mal é um filme-diagnóstico que está sempre no limiar da intimidade e do manifesto. Com isto, fica a inevitável associação por signos que legitimam o caos que vivemos. A escolha dos diretores Lucas Camargo de Barros e Nicolas Thomé Zetune é de transformar o filme numa reação automática ao que se vê e vive. O caos urbano, a sufocante rotina e o desespero para se amar e ser amado.

A construção mística de um sentido é a catapulta para o confronto com o real – é possível remeter a Rivette e Hal Hartley no ideal cosmológico, mas o modo de viver a vida é godardiana. Um filme que está sempre para o corte como amparo desses signos da desordem: a impossibilidade de estabilização – em diversos sentidos – que ganha forma de trauma. Não há um só caminho que não leve a ele. Pertinente à direção pessimista que nunca se descontrola, O Pequeno Mal apenas ensaia uma variedade de abordagens com o apoio da linguagem – o corte – como uma sugestão anárquica ao que se conta. É o confronto da situação pronta versus os personagens à deriva, andando em círculos que reconhecemos como rotina.

É o fim da utopia da forma mais curiosa possível – a bricolagem que sufoca a radicalidade como reflexo de um mundo de desarmonias. Este pedido de atenção e submissão à imagem ao mesmo tempo em que se testemunha sua consumação reverbera um sentido comum no cinema brasileiro contemporâneo, entrelaçando a distância e a capacidade de síntese de argumentos puramente sociais. Diminuir ou acabar com o abismo que separa a existência e a ideologia e coloca-los na mesma linha pela ilusão; não há espaço para as duas em cena, portanto a solução de Lucas Camargo de Barros e Nicolas Thomé Zetune é a fusão, como uma ponte que soluciona – supostamente – problemas locomotivos em uma cidade.

Em primeira visita, O Pequeno Mal é um filme que apenas sugere seu sentido pelo reordenamento e reencenação – a troca de lugar, gostar do que não se gosta, etc. É o caso de concretizar o que é flutuante pelo simbólico e manusear a certeza, um claro princípio do cinema, como uma constante. A famosa cachoeira de Humberto Mauro aqui chega intervalada, como uma possibilidade cognitiva sobre a vida na cidade. E não deixa de ser uma operação relevante.

 

Visto no 51º Festival de Brasília.

 

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SEJA PADRINHO

Criada em 2008 no formato de blog, a Multiplot! tinha a intenção de preencher lacunas no acervo crítico online em língua portuguesa. De 2008 a 2011, diversos dossiês de diretores foram publicados, cobrindo a filmografia completa de nomes como Werner Herzog, Anthony Mann, Max Ophüls, entre outros. Elevado a site em 2011, a equipe de críticos passou por mudanças e o site ganhou novo foco: coberturas de festivais, críticas de filmes em cartaz e de acervos e entrevistas com realizadores e assim seguiu por cinco anos e teve contribuição de redatores como Tiago Macedo Corrêa, Vladimir Lazo, Kênia Freitas, Fernando Mendonça, entre outros.  Em 2016 o desejo dos redatores Pedro Tavares e Arthur Tuoto saiu do papel com ajuda do ex-editor Daniel Dalpizzolo. De lá pra cá a Multiplot se tornou uma revista e lançou cinco números. Hoje a revista é editada por Camila Vieira e Pedro Tavares e teve contribuições de nomes como Nadin Mai, Scott Barley, Adrian Martin, entre outros.

Para manter a revista online, precisamos de padrinhos. Além dos números, a Multiplot! publica coberturas de festivais e entrevistas. Os custos de servidores, divulgação e gastos adicionais de logística são altos e nenhum editor ou redator recebe para tal função. Contamos com a ajuda dos leitores para manter a revista no ar! Como contrapartida, faremos sorteios esporádicos de recompensas como livros de teorias de cinema e ingressos.

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A ONTOLOGIA DA IMAGEM PARTINDO DA HEURÍSTICA DO RECONHECIMENTO NO CINEMA DE LISANDRO ALONSO

Por Diogo Serafim

Os dois dialogantes não haviam percebido a solidão que os rodeava. As salas de aula tinham ficado vazias, pelos corredores o silêncio se estendia como uma serpente. Sentado num banco, numa solidão que se tornava inoportuna por seu realce, Foción observava os gestos, as modulações da voz no desenvolvimento, a intensidade do olhar que viajava com as palavras. Ouvia como um espectador ocupado apenas com a reconstrução de uma imagem interior?

José Lezama Lima, Paradiso

 

    Não há como abrir-se para um filme como Jauja (2014) fora do escopo da heurística do reconhecimento, a matéria fílmica sendo absorvida e amalgamada em minhas memórias, um processo de anamnese sensível, perdendo-se entre a realidade e a mitologia, o cinema como potência desestabilizadora não apenas metalinguística, mas também psicossomática, um fluxo de imagens que aos poucos me apodera fisiologicamente, uma matéria que resiste para além da morte, em um campo idealista que se estrutura por um viés materialista até atingir seu potencial transcendental. Há poucas palavras melhores para definir o cinema de Lisandro Alonso além desta: transcendental, a transposição de fronteiras, seja do retrato à fábula, do estático ao dinâmico, da matéria ao espírito, da imagem à vida.

    O que associa a odisseia do engenheiro em busca de sua filha nos sertões da Patagônia no século XIX à derradeira sequência da jovem dinamarquesa retomando certos elementos anteriormente apontados no filme? Como esse conflito temporal por sua vez se associa ao subtexto colonialista do massacre indígena na Patagônia? No filme Carta Para Serra (2011), como o lenhador Misael se encontra com os outros personagens e como esse encontro metatemporal dialoga com sua metalinguagem constituinte? A mitologia do cinema de Alonso é oblíqua, rigorosa em sua execução, mas sempre nos escapa, permitindo lacunas, interstícios hermenêuticos que se encontram em constante expansão.

    Ao ser indagado acerca da origem do título de seu filme Liverpool (2008), Alonso afirma que foi devido a uma mulher que ele viu pedindo dinheiro durante o concerto de uma banda cover dos Beatles chamada Sounds of Liverpool. Nas palavras do diretor, as imagens dessas duas coisas vieram juntas e se recusavam a ir embora. Ele fez assim uma associação entre Liverpool como uma cidade portuária e cidades portuárias na Argentina, chegando finalmente em Ushuaia, que possui um histórico com imigrantes ingleses. Conclui o comentário afirmando categoricamente que o cinema é sobre essas associações ilusórias. Seriam apenas associações no processo de confecção ou estas associações poderiam de alguma forma exercer uma influência definitiva na matéria? A transposição de um estado de espírito para um fluxo de imagens por um terceiro permite a apreensão de um intruso na torrente emocional e pessoal embutida em uma matéria particular?

    É assim estabelecida uma dúvida salutar sobre o estatuto da imagem, esta existe simplesmente como representação do que retrata (seja na sua ontologia ou no seu valor narrativo) ou possui na sua constituição alguma propriedade que lhe confere esse potencial ascético, o deslumbre que ela provoca pode ser originado de uma simples abstração ou este vem de uma impressão da imagem no meu espírito? Essa dúvida pode até soar excessivamente metafísica, mas ela se mostra pertinente devido a uma característica facilmente percebida no cinema de Alonso: o deslumbre que este provoca não é proveniente pura e simplesmente de uma proeza estética (por mais que seus planos sejam cuidadosamente construídos e desenvolvidos) nem de um processo de identificação propriamente, tendo que o seu cinema se estrutura em uma lógica de distanciamento, existindo por si próprio, alheio a mim, em um regime epistemológico absoluto que parece ter um funcionamento fora da minha consciência. Se esse deslumbre não tem uma ontologia própria definida pelos predicamentos essenciais da nossa apreensão empírica na nossa constituição neurológica, como pode este apresentar-se de forma tão potente para mim? Como se dá essa transcendência de espectro senão pelas faculdades fisiológicas que os limites de minha mente estabelecem?

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    O cinema de Alonso se estabelece aí, nesse ponto de inflexão analítico, onde o que compreendo do que está sendo mostrado é subvertido em prol da sensibilização que essa matéria provoca. Se a ascese não é originada por meios convencionais, não aparentando ser sequer consequência daquele fluxo de imagens, ela deve surgir de algum outro lugar: de mim mesmo. A matéria do cinema em perpétuo devir, pois ela se altera conforme minha própria psicologia se transforma, partindo de uma ontologia muito particular que fundamenta a imagem como uma confluência do meu espírito com o espírito de quem a decupou além do evento que está efetivamente sendo mostrado. Daí surge a natureza conflitante do cinema, entre o real e o psicológico, este segundo partindo de duas origens distintas. Entre o racional e o empírico, uma estrutura aberta como um sintoma de rasgadura, onde algo me provoca arrebatamento não apenas pelo que me é apreendido de forma mais ou menos definida, mas também por aquilo que me escapa.

liverpool

    Filmes como Os Mortos (2004) e Liverpool (2008) partem de uma ambiência narrativa simples – a história de um homem fazendo uma jornada de volta para casa – para se estabelecerem como espetaculares romagens espirituais. Através do aspecto contemplativo das imagens, o cinema de Alonso se traduz como puro movimento, seja da câmera ou dos elementos efetivamente apresentados em cena. Dado o caráter conflitante das imagens de Alonso (entre o perfeitamente retratista e o arrebatamento fabulista), traduz-se uma aporia entre o incontestável e o transcendental. No ínterim da matéria, um sintoma fleumático de desestabilização, quando tudo que me é inicialmente tomado como banal ou puramente contemplativo se traduz como instável, fabular, despertando infinitas associações possíveis.

Se A Liberdade (2001) aparenta enganosamente partir de um viés documental, emulando a lógica baziniana de salvar o ser pela aparência através de um retrato fiel do seu cotidiano, a famosa cena final é aqui contestar o que há de objetivo na imagem. O que é realidade e o que é fabulação? O que me é proposto como garantia, o que pode ser definido como alicerce da imagem?

A Liberdade (2001) talvez seja o filme de Alonso em que essa investigação acerca da ontologia da imagem mais fortemente se associa com uma ontologia natural. O filme não aparenta intentar nenhuma mediação mais objetiva com relação às suas possibilidades temáticas, tudo é subordinado à fenomenologia. As possibilidades vão se acumulando, contradizem-se e se complementam, em um eterno percurso de elevação espiritual que vai se assimilando e se recontextualizando conforme progride.

O argumento para Jauja (2014) partiu da morte de uma amiga do diretor nas Filipinas. Alonso afirma que a provável maneira que ele encontrará para lidar com a perda de alguém querido é reimaginar esse alguém no tempo e espaço ao seu redor, preservando de alguma forma a sua existência. Partir da matéria para o infinito, com a fé de que o gesto persiste para além da sua fisicalidade.

jauja1

jauja2

aliberdade

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ALBERT SERRA E A MORTE REAL

Por Carla Oliveira

O nome do cineasta catalão Albert Serra é citado já nos primeiros postulados sobre slow cinema. Matthew Flanagan, em 2008, ao apontar as bases estéticas desse cinema (categorizado, em 2003, por Michel Ciment), alude aos longos planos utilizados por Serra na estruturação da narrativa de seus segundo e terceiro longas-metragens — Honra de Cavalaria (2006) e O Canto dos Pássaros (2008) — como exemplos de um dos principais traços de uma corrente de cinema caracterizada pela contemplação da passagem do tempo, enredo enxuto e composição formal rigorosa. A longa caminhada pelo deserto dos três reis magos em busca do Messias recém-nascido em O Canto dos Pássaros é referida como típica, assim como a redução da grandiosa e aventuresca obra de Cervantes a uma pequena variação abarcante de um trecho da vida de Quixote, quando, envelhecido, contempla os ideais da cavalaria e a perspectiva de seu próprio fim em Honra de Cavalaria. Parte da galeria de personagens históricos, literários ou míticos presentes no cinema de Serra, como Dom Quixote, Sancho Pança, os reis magos e Casanova, está em franca e lenta trajetória rumo à morte. Figuras tidas por eternas, como o Drácula e Jesus, cruzam alguns de seus caminhos. Em sua última e melhor obra, A Morte de Luís XIV (2016), que fez parte da seleção oficial do Festival de Cannes e recebeu o prêmio Jean Vigo no mesmo ano, é o agonizante fim da figura real o foco de sua atenção.

bloin e os médicos de paris

Em seu célebre ensaio Ontologia da Imagem Fotográfica, André Bazin expõe bases e referências de sua complexa concepção de realismo (tantas vezes citada e revitalizada nos textos sobre slow cinema): a criação de um universo ideal à imagem do real, dotado de destino temporal autônomo; a busca da expressão dramática no instante (não apenas a expressão das formas) e a constatação de que a imagem das coisas é também a de sua duração (o que o cinema torna possível) são algumas delas. Ressalto que o termo “real” será usado neste texto sobre a obra de Serra em referência ao rei e à realidade/verdade que se busca retratar com realismo (na maior parte das vezes, sem a intenção de gerar ambiguidade). No referido ensaio, Bazin escreve que “Luís XIV não se faz embalsamar: contenta-se com seu retrato, pintado por Lebrun.” Ao contrário dos faraós, soberanos também identificados com o sol, o rei francês não manifesta o desejo de conservar sua aparência na própria carne. Amante das artes e criador da sua própria imagem de poder, cerca-se em sua corte de renomados artistas, como Charles Lebrun, que, além de retratar o rei em seu apogeu, é responsável, junto ao paisagista André Le Nôtre e os arquitetos Louis Le Vau e Jules Hardouin-Mansart, pela criação de um de seus maiores símbolos de seu poder: o Palácio de Versalhes. O compositor Jean-Baptiste Lully, o dramaturgo Molière e o escritor Louis de Rouvroy — o duque de Saint-Simon — também frequentam a corte. É a partir das extensas Memórias de Saint-Simon, registradas com obstinação no intuito de fixar a realidade de um tempo no papel, que Serra e o produtor Thierry Lounas adaptam o roteiro de A Morte de Luís XIV, debruçando-se na análise dos seus últimos dias, vividos em 1715, quando o rei contava com 77 anos.

com o herdeiro luis XV

Seus anos de juventude, dedicados à construção da própria imagem, são muito bem retratados no cinema em O Absolutismo: A Ascensão de Luís XIV (1966), filme de Rossellini, neorrealista preferido de Bazin. Ciente de que aparência e poder estão intimamente ligados, o rei constrói cenários faustosos e os decora com pompa. Com intenção de manter a nobreza controlada, cerca-se, em Versalhes, de cortesãos de quem exige lealdade, etiqueta, maquiagem e bons figurinos. Protagonista absoluto, submete seus atores secundários e figurantes a um roteiro exaustivo e rigorosamente decupado, onde cenas de suas aparições públicas são intercaladas pela exaltação de sua rotina em incansáveis cerimônias palacianas. Mise-en-scène real filmada por Rossellini.

Em A Morte de Luís XIV, o cenário, fotografado com elegância por Jonathan Ricquebourg, já está rigorosamente composto. O quarto real do Palácio de Versalhes é reconstituído e iluminado com velas, o que confere sobriedade ao ambiente recoberto de ouro e sumptuosidade, onde se sobressaem quadros e um busto de um rei jovem (sabe-se que Luís XIV teve um busto esculpido em mármore por Bernini pelo qual nutria grande apreço) e o ruído de um relógio, assinalando a inexorabilidade do tempo. Em seus filmes anteriores, Serra havia trabalhado com atores não-profissionais para dar a ilusão de realidade e também por uma escolha moral, com a intenção de se manter afastado do sistema capitalista de produção fílmica (resolução típica dos realizadores do slow cinema). Aqui, em seu primeiro filme falado em francês, cria um espaço tão cheio de detalhes e realismo que favorece ainda mais a assombrosa interpretação de Jean-Pierre Léaud (admirado por Serra por sua pureza e incorruptibilidade) de um rei em agonia após extenso reinado. O ator, que estreou no cinema como um menino em Os Incompreendidos (1959), filme de Truffaut dedicado à memória de Bazin, impressiona na caracterização da velhice — nos tremores e trejeitos de um rosto enrugado, com grandes bolsas sob os olhos e emoldurado por uma espantosa peruca grisalha, nos típicos ruídos feitos com a boca, na rabugice e teimosia em manter o rigor na etiqueta e no cerimonial (o que é observado até o final) — e, principalmente, na manifestação do sofrimento decorrente da progressão de uma gangrena na sua perna esquerda. A expressão da dor, a gemência, a ofegância, os gritos e súplicas em voz débil e trêmula são gigantescos. Tanto o sublime quanto o grotesco são caros a Serra. O sorriso do rei é visto apenas um vez, ao brincar com seus cães logo após um passeio pelos jardins do palácio na sua única aparição em cenário natural durante todo o filme. Sutis sinais de contentamento também surgem ao escutar os oboés e tambores em comemoração ao dia de São Luís, quando uma imagem da paisagem francesa é mostrada através de uma janela. No mais, não se sai do quarto, da intimidade real. Serra não tem intenção de fazer comentários políticos ou sociais. A moral cortesã apenas transparece sutilmente em momentos em que o rei recebe assessores pretendendo angariar fundos de forma suspeita ao propor edificações ou quando ele pergunta detalhes íntimos das cortesãs ao seu médico, que acaba comentando sobre a nudez e o comportamento de suas pacientes.

bloin e os médicos de paris

.Os médicos são as principais figuras em torno do rei, assim como Blouin (Marc Susini), seu fiel valet de chambre. Luís XIV confia na ciência. O cargo de Primeiro Médico do Rei, ocupado por Fagon (Patrick d’Assumçao) é de grande prestígio na corte. Maréchal (Bernard Belin) é o cirurgião que o acompanha. Valem-se de unguentos, faixas, massagens, considerações sobre a dieta na tentativa de tratar a doença do rei. Frente à inocuidade de tais medidas, Blouin sugere a intervenção dos médicos da Universidade de Paris. Fagon rechaça a ideia, argumentando que, segundo Molière, os médicos são mais perigosos quando em grupo. Molière foi um crítico feroz da classe médica, satirizada em sua célebre peça O Doente Imaginário (1673), dedicada pelo dramaturgo a Luís XIV. Serra não se apropria do escracho ou mesmo da crítica, mas de uma fina ironia e observação, que torna por humanizar os médicos em seu erro. Não há má intenção, Fagon e Marechal permanecem o tempo inteiro junto ao rei e são solidários ao seu sofrimento, mas hesitam no diagnóstico e na tomada da conduta que poderia se mostrar resolutiva: a cirurgia na perna gangrenada do rei. Os médicos de auditório — os da Universidade de Paris na definição de Fagon — examinam, enfim, o rei, assim como um charlatão de Marselha. A sangria proposta pelos primeiros e o elixir preparado pelo segundo também não surtem nenhum efeito. A putrefação, a febre, a dor e a náusea desfiguram o rei.

Presença constante no aposento real é também a da envelhecida Madame de Maintenon (Irène Silvagni), a esposa secreta de Luís XIV, cujo nome ele pronuncia ao final de um plano longo, estático, esteticamente perfeito, onde sua imagem quase inanimada nos comove ao som do Kyrie da Missa em Dó Menor de Mozart. Ao pressentir a proximidade de sua morte, chama também seu pequeno herdeiro, o futuro Luís XV, para lhe aconselhar a evitar construções, guerras e a se aproximar da religião. Há tempo e espaço para arrependimentos. Le Tellier (Jacques Henric), padre jesuíta, confessor de Luís XIV, é igualmente uma personalidade estimada: é à sua ordem que Luís XIV deseja que seu coração — único órgão a ser mumificado — seja entregue. Após sua morte, o corpo de Luís XIV é cortado e examinado em partes que não correspondem a sua figura. Na necrópsia do rei, a imagem que se sobressai é a do pesar de Fagon.

com fagon e bloin

Apesar de ter uma gênese conceitual apontada no pensamento de Bazin e no cinema europeu moderno surgido no pós-guerra, o slow cinema não é uma simples continuidade do neorrealismo. O uso da tecnologia digital torna o método de fazer filmes distante do purismo. Serra acumula centenas de horas de filmagens, usando várias câmeras digitais. É apenas durante a edição que a forma de seu filme começa a surgir, transformando-se no processo. Particular de Serra é também a inspiração na literatura, de onde capta a essência de um evento vital, de uma narrativa. Registros históricos, memórias e imagens eternizaram a vida e a morte de Luís XIV. O quadro que o imortalizou no campo pictórico foi realizado por Hyacinthe Rigaud e mostra sua imagem envelhecida, porém altiva. O filme de Serra, com seus longos planos contemplativos dos últimos e penosos dias de um rei interpretado de forma tão genuína por Léaud, nos dá a melhor representação da figura real vulnerável, mortal, tomada de humanidade.

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IMAGEM ENQUANTO GESTO E GESTO ENQUANTO POTÊNCIA

Por Alan Campos

Tsai Ming-liang conheceu Lee Kang-sheng, seu principal colaborador, em um arcade de jogos eletrônicos (cenário principal de seu primeiro longa-metragem para cinema, Rebeldes do Deus Neon, 1992) no final dos anos 80, quando o último trabalhava na manutenção das máquinas. Nas vésperas do início de uma grande parceria, que iria render mais de 10 longas metragens e alguns curtas ao longo de mais de 20 anos, Lee não era ator e Tsai mal havia começado sua carreira.

A gramática cinematográfica de Tsai Ming-liang é quase compartilhada com muitos cineastas que ascenderam nos anos 90 e início dos anos 2000 e que ficaram conhecidos como integrantes de um slow cinema. Uma tendência contemporânea feita por diretores com afinidades pelo plano longo, por uma montagem que à primeira vista era desprovida de artifícios, por não atores e pela escassez de trilha sonora não diegética. Realizadores que priorizam um novo tempo com a imagem em movimento, tais como Lisandro Alonso, Apichatpong Weerasethakul, Kelly Reichardt, Naomi Kawase, Béla Tarr, Pedro Costa e James Benning, são alguns dos principais personagens desse cenário cinematográfico. No geral, são filmes que se utilizam das ferramentas apresentadas para desenvolver um cinema que diminua um senso de narrativa clássica. O slow cinema* prioriza outro tipo de ritmo com as imagens, um que não chegue às conclusões explícitas e que nos coloque a vagar pelo plano em um contato mais próximo e corporal com aquelas imagens, como se estivéssemos lá, experimentando o tempo ao lado dos personagens.

Tais cineastas compartilham desse interesse, mas de maneira alguma seria possível reduzi-los à dimensão de suas ferramentas cinematográficas. Não nos cabe diluí-los a uma investigação desvinculada dos efeitos que essas escolhas adquirem no projeto individual de cada cineasta. No caso do cinema de Tsai Ming-liang, o esgarçamento do plano longo, o ritmo mais contemplativo e quieto é direcionado ou, até mesmo, construído em função da corporeidade de Lee Kang-sheng. O não-ator fez urgir a necessidade da invenção de uma linguagem.

O próprio Tsai Ming-liang chegou a admitir a importância do ator para a composição de seus filmes, afirmando um desejo em não desviar seu olhar do rosto de Lee**. O impacto de um encontro reverberaria por toda a filmografia. A recorrente falta de expressão no rosto do ator conduz o espectador para um caminho não óbvio pelo cinema de Tsai Ming-liang.

No cinema, já existiram casos de uma parceria diretor/ator com um mesmo personagem ao longo de vários filmes, entretanto, o caso de Tsai com Lee se destaca tanto pelo número de filmes em que o ator/personagem aparece, como pela abordagem de pouquíssimos diálogos por parte do protagonista – em que as situações muitas vezes são apresentadas com ele imóvel em cena ou fazendo gestos corporais, à primeira vista, sem sentido aparente. Filmar o ator se tornou a marca do diretor; Lee é sinônimo para o cinema de Tsai.

O estilo de um cineasta foi adequado ao corpo de um ator. Tal corpo se tornou a marca de uma cinematografia por mais de vinte anos, portanto a experiência de olhar se torna um caso exemplar na história da sétima arte. Do jovem Lee Kang sendo um jovem adulto carregado de fúria juvenil em Rebeldes, passando para o adulto cada vez mais melancólico de Viva o Amor (1994), ao morador de prédio solitário de O Rio (1997) que se torna ator pornô em O Sabor da Melancia (2005) e que termina (?) como pai e morador de rua no angustiante Cães Errantes. Dessa maneira, o cinema de Tsai registra uma verdadeira experiência de vida de um rosto (e corpo) masculino inserido em um contexto urbano.

Em geral, os personagens de Tsai estão fora de ritmo com a paisagem urbana, sempre se colocam em uma espécie de não sintonia com a vida na cidade. Muitas vezes, são marginalizados ou possuem empregos banais que os fazem sentir o peso do isolamento que o capitalismo contemporâneo é capaz de proporcionar. Personagens que sempre parecem à beira de entrarem em colapso. A desestruturação familiar é um tema recorrente, bem como a insatisfação sexual e as condições precárias dos menos abastados. Tsai explora tais temáticas a partir do corpo, em direção aos gestos. Há algo que escapa de um sentido unilateral. Existe sempre uma transbordação do quadro, uma potência que é própria do gesto.

Mas há dois tipos de gestos no cinema do autor. Um que só se revelou inteiramente em Cães Errantes, um gesto de sua imagem enquanto ato. O outro é relativo à Lee, ao seu corpo no cinema, gestos expressos enquanto potências que extrapolam as dimensões do quadro. Tratemos do primeiro, por ora.

Indo de Rebeldes até No No Sleep, Tsai buscou um afrouxamento de sua narrativa em pouco mais de vinte anos, a criação de um ritmo que buscasse dentro de suas cenas sua própria vida, iniciando em si e colocando em si um ponto final ao cortar para uma nova cena. Em meio a elipses temporais ou cortes que interrompem a cena para outro contexto de personagens ou cenários, Tsai buscou criar imagens que se erguem por si, interessando bem mais ao realizador o presente de tais momentos e não sua união em prol de subtextos narrativos.

Em Cães Errantes, é possível ver esse processo em estágio bem avançado e sendo totalmente abarcado em sua duração fílmica. Sua estrutura é simples: Pai (interpretado por Lee), filhos, e ocasionalmente uma figura feminina (a mãe?), fazem diversas atividades pela Taipei moderna. Em situação de extrema miséria, o pai trabalha embaixo da ponte, enquanto os filhos exploram a praia, o supermercado. São cenas de um único plano e que não são difíceis de serem descritas: o pai se alimenta, as crianças e o pai escovam os dentes, o pai trabalha como anunciante de imóveis. Enquanto gesto fílmico, levando em consideração a imagem enquanto ato, Cães é semelhante aos primeiros filmes dos irmãos Lumière. Tenhamos em mente A Saída dos Operários da Fábrica Lumière (1895) e A Chegada do Trem a Ciotat (1895) que existem unicamente em um plano, potencializando a experiência da imagem em movimento pela força embutida nele e não por um truque de montagem. O interesse desses filmes é o registro de uma ação com a menor quantidade de artifícios possíveis. Portanto, o acontecimento existe, é capturado, e o filme cessa de existir ao seu término. Existe a excitação pelo dispositivo cinematográfico como mídia capaz de captar diversos gestos em movimento, em reproduzir banalidades como pessoas saindo de uma fábrica, trens chegando em estações, etc. A imagem enquanto gesto em Tsai caminha para uma direção cujo enfoque varia de cena em cena. O gesto de seu cinema desenvolveu-se rumo aos pequenos acontecimentos, às energias próprias dos gestos corporais embutidos, o que leva ao interesse por outro tipo de gesto.

Ao redimensionar seu cinema ao corpo de Lee Kang, Tsai conferiu aos gestos do corpo do ator, bem como os de outros autores, o motivo condutor de seu cinema. Partindo do esgarçamento temporal enquanto ferramenta que potencializa as emoções gestual, Tsai Ming-liang fez com que a quietude de seus filmes fosse experimentada sob a presença corporal de seu protagonista.

Em Rebeldes, Lee Kang não tem mais que algumas linhas de fala ao longo de mais de 100 minutos. Sua presença como adolescente frustrado, minado por não ter o que deseja (algo que nunca assume uma condução explícita), o corpo dos outros, em especial o de Ah Tze (Chao-jung Chen) – ser que se porta à margem do universo de Lee, de suas frustrações sexuais e sociais. Em um gesto conflituoso de fascínio e repulsa/inveja por Ah Tze, Lee destrói sua moto e picha “AIDS” na sua lateral. O que se segue são imagens de um corpo em ebulição (em contrapartida ao seu caráter reservado ao longo da narrativa), queimando em sua própria alegria secreta de apreciar seu rival descobrindo o estrago causado por um sujeito que lhe é oculto.

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Libertar-se por meio dos gestos íntimos e expressivos na imagem. Nesse momento, tais gestos não são exclusivos do personagem; são indícios de um arcabouço mais amplo, de um imaginário relativo a uma sensibilidade própria de adolescentes revoltados e entediados. O gesto cravado no corpo, quase livre de roupas, no intuito de se colocar para além de uma realidade que exige a dominação desse corpo e que só o liberta no momento dessas pequenas “vitórias”, por mais ambíguas que elas sejam, pois o corpo não pode ser inteiramente reduzido à significação clara e exata. Tal gesto não surge no intuito de “cena chave” que joga a narrativa rumo a novas direções. A aparição do gesto se dá mais em um contexto que retira o corpo da dimensão em que ele é frequentemente inserido, nesse caso, uma rotina entediante, e o joga em uma realidade nova: a alegria efêmera. Tal momento inicia e termina em si, com a mesma estrutura estilística, sendo uma espécie de suspiro do próprio filme. O cinema de Tsai Ming-liang é carregado de momentos como esse.

Corta-se para o corpo do mesmo ator em O Rio (1997), dessa vez, se debatendo em desconforto e angústia na forma de uma dor no pescoço que vai chegando a proporções cada vez mais alarmantes. Recorre-se à ajuda espiritual (seria obra de um espírito invasor?), bem como a médicos convencionais em uma tentativa em vão. Mas o filme não é apenas preocupado com Lee, sua história corre em paralelo com as narrativas do pai – personagem que busca conforto em flertes com outros homens em saunas – e da mãe – que se relaciona em seus momentos livres com um diretor de vídeos pornôs. Três histórias que mal se cruzam, que existem como núcleos isolados de uma família instável.

    Em determinado momento, Lee vaga pelo hotel com sua habitual dor de pescoço, com a cabeça em espasmos nervosos, até encontrar uma sauna. Ele caminha pelos corredores escuros com homens saindo e entrando, quase como uma realidade paralela ou um deslocamento desnorteado, até que ele entra em uma das salas e se senta. De olhos fechados, ele é tocado por uma mão. Em um primeiro momento, com dor e receoso do contato, ele hesita. Com os minutos se passando, vai se desenvolvendo uma relação sexual quando a mão começa a acariciar o peito de Lee e a masturbá-lo. Revela-se que é o pai de Lee no final da cena, fato que ambos desconhecem até então. A dor vai se transformando em prazer e, no final, tem-se a imagem de uma Pietà secularizada do pai segurando seu filho. O gesto novamente escapa a Tsai Ming-liang, vai em direção a uma cultura visual mais ampla que o filme. Entretanto, se opera outro gesto nesse momento: a imagem funde duas narrativas distintas do filme, a dor do personagem e o desejo do pai por corpos masculinos. O filme entrelaça tais dimensões de mundo, separadas à princípio, mas que se imbricam em uma nova realidade imagética. O plano longo, que antes estava à serviço específico de um dos três personagens, agora brinca com eles em suas particularidades em prol da criação de um novo sistema sensível entre esses corpos.

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Algo semelhante ocorre em Viva o Amor (1994), onde em meio a encontros e desencontros em um apartamento à venda, três estranhos se esbarram em um triângulo amoroso nunca inteiramente concretizado, apesar de dois deles fazerem sexo constante nesse espaço neutro. Desenvolvem-se momentos ora irônicos, ora íntimos entre eles, que decidem ocupar tal casa como refúgio de suas vidas. Apesar do filme nunca inteiramente definir do que eles fogem. Entre rotinas marcadas por empregos banais (a personagem feminina anuncia imóveis) e fugas para o apartamento vazio, os personagens pouco revelam no contraste do espaço público com o privado. Como imagem, o filme coloca a disparidade dessa duplicidade quando sua protagonista caminha por várias minutos em um parque durante o amanhecer da cidade – onde pessoas começam a sair para as ruas, carros começam a surgir nas avenidas –, em determinado momento a câmera solta-se da personagem e filma a cidade acordando, para segundos depois voltar à protagonista. Ela se senta em um banco e começar a chorar diante de tal paisagem. Durante vários minutos, ela chora, soluça, fuma um cigarro e volta a chorar.

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O gesto da imagem aqui, consiste em unir duas formas de cinema que até então estavam separadas. Ao diluir-se, ao permitir que o íntimo seja despertado pelo espaço público por vários minutos, Tsai Ming-liang desmonta sua realidade e a reconstrói em uma nova forma de vida. Seu gesto liberta-se de um registro simples e desinteressado para uma potência emocional – aquilo posto para fora do eu – que transborda do gesto de chorar.

Um cinema do gesto que chega ao seu ápice na sequência final de seu derradeiro longa metragem, Cães Errantes: observam-se dois personagens por cerca de 14 minutos sem cortes. Cena de pouca movimentação e com gestos escassos. A mulher olha para fora do quadro e Lee se posiciona atrás dela durante todo o tempo de duração do plano. Ele busca tocá-la, desejando um contato físico com o corpo dela, se sentindo visivelmente nervoso em como proceder e vai andando lentamente em direção a ela – que mantém sua visão para fora do quadro. Em mais de dez minutos, a cena não se torna mais do que é: um homem buscando se aproximar de uma mulher.

O leitmotiv de um cinema é redimensionado em sua simplicidade: o desejo pelo toque, o gesto receoso ou atrofiado de um personagem que nunca foi, sempre esteve à margem de seus sentimentos. Um momento entre pintura e cinema, entre estabilidade e movimento. A persistência de uma imagem com pouca movimentação em um único plano tende a suspender o tempo inserido nela, ocasionando uma imagem carregada de estranhamento em seus movimentos. A experiência estética da imagem em movimento infecciona-se pelo ato de estar diante de uma pintura. Curiosamente, a figura da mulher está encarando uma pintura paisagista na parede. A experiência cinematográfica de Tsai é posicionada no gesto da mulher em observar passivamente a paisagem bucólica, em ser afetado por ela a ponto de chorar, em paralelo à busca incessante de seu protagonista pelo toque. Nesse momento, o gesto da imagem se confunde com o gesto simbólico de uma cinematografia-protagonista, reconfigurando um encontro que não poderia resultar em outra coisa que não um fim. O confronto de duas realidades em resultados, sempre, não claros. Ao final, só resta a imagem na tela de concreto, ambígua, persistente, à mercê do tempo. Fim do cinema.

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KELLY REICHARDT E OS ACUMULADOS DE TEMPO NO GÊNERO

Por Gabriel Papaléo

“Meus filmes são sobre pessoas que não tem um porto seguro.”

Kelly Reichardt

Das principais bases narrativas do cinema de gênero, de trabalhar com estruturas consagradas e arquétipos de personagens para criar mundos cujas ideias se renovam justamente no rearranjo de elementos conhecidos, é o controle de ritmo. Estabelecer em montagem o exercício de ritmo na qual um filme transcorre é das características do terror, da ficção-científica, do faroeste, do suspense. A suspensão da tensão até a catarse.

E quando essa velocidade não propõe uma progressão de eventos, e sim acumulados? O que acontece quando o tempo da ação de gênero não é o que interessa, mas as reações psicológicas dos personagens nela inseridos? O cinema de Kelly Reichardt busca algumas dessas questões à medida que controla o tempo com precisão para alterar as dinâmicas de poder e especialmente relações nos personagens que cronica. O movimento, a ação, como matérias-primas e alteradores de mundo dos personagens de Reichardt como em qualquer filme de ação, de terror, ficção-científica – mas a forma, e principalmente o tempo, em que as ações transcorrem se pautam mais pelo acúmulo de situações e pela reflexão através da mediação entre sujeitos e menos pela urgência de objetivos. Se cineastas como John Woo e John Carpenter estruturam seus contos a partir da urgência da informação, da gravidade das situações, Reichardt estrutura através das trocas pessoais, das conversas ao pé de ouvido. A montagem privilegia silêncios, porque o movimento é raro e, por isso, tão importante. Mas como nos pares mais tradicionais do gênero, é o deslocamento espacial que faz o status quo ser alterado.

Ao longo de sua filmografia, Reichardt usa da estrutura do trânsito, do road movie, desde sua estreia em River of Grass (1994) – e de certa forma todos os filmes da norte-americana são filmes de estrada, sediando suas ações em fronteiras e lugares a pertencer e esquecer. Entre Wendy e Lucy (2008) e Certas Mulheres (2016), seu filme mais recente, a diretora enveredou-se pelos seus discursos mais frontais na aproximação com uma tradição de gênero no cinema: o faroeste de travessia em O Atalho (2010) e o thriller político em Movimentos Noturnos (2013).

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O contexto histórico de O Atalho já é dado pela cartela inicial, bordada como as roupas das mulheres do comboio que acompanhamos. O Oregon de 1843 ainda é um ambiente hostil, deserto, e já conhecemos o comboio com eles perdidos ao tomar o atalho de Stephen Meek do título original. O espaço já fala por si nos quadros 1.33 de Reichardt, mas a diretora aposta na bela fusão que mescla a água do rio com o deserto para antecipar a escassez do recurso durante a narrativa – e também para demonstrar a dimensão fantasma que opera o mito do cowboy desbravador, do pioneiro, aqui uma miragem fervendo à distância. O processo de andar, a sobrevivência, retornar ao rumo com promessa de desbravamentos torna-se o objetivo primário.

É como se os filmes de Reichardt fossem localizados nas elipses do gênero, no procedimento até a ação. O ambiente árido tende à repetição cujos labirintos trazem uma lisergia que atravessa o filme e, para desafiar as percepções desses ambientes similares, acompanhamos a câmera registrar as poucas particularidades de cada espaço através da escala, da altura de quando existe uma montanha ao redor. Vemos escalas diferentes, os homens menores no quadro vasto de terra, pequenos diante de seus objetivos que em discurso abrangem tanto essa conquista – a impotência. Não é um libelo de conflito humano vs. natureza, como as descidas ao inferno de Herzog em Aguirre (1972) e Friedkin em Comboio do Medo (1977). Reichardt é atenta às dinâmicas pessoais que desabrocham de uma jornada para o nada que evoca mais um cansaço, um esgotamento do tempo, do corpo, do que necessariamente uma febre.

Portanto a escala de espaço é fundamental para intuir o comando do comboio. Temos os homens que criaram essa grandiosidade pra si através do discurso oral (como Meek) ou através da retórica civilizatória (como Gatlesby). As mulheres sempre estão à distância, ouvindo as conversas decisivas em baixa voz, nunca tendo acesso ao poder de decisão, passando a água de mão em mão enquanto os pioneiros discutem seus rumos. O valor revisionista do faroeste de travessia da diretora e do roteirista Jon Raymond aqui é também na destruição do mito do cowboy pioneiro e especialmente nas mortes utópicas de desbravamento. Emily, a personagem de Michelle Williams, começa como uma das mulheres cujo papel resume-se a costurar e dar apoio aos maridos e demonstra um senso de coletividade mais forte que de qualquer homem ali.

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Isso logo causa a dúvida em Meek, com seus contos de glória, o homem dos mitos, dotado de histórias e alteradores de realidades passadas, mas que não se prova na ação. Com a chegada do elemento mais forte do extracampo misterioso do filme, o indígena vivido por Rod Roundeaux, Emily encontra um semelhante a quem respeita para conduzir. Não por acaso, quando o personagem faz um de seus rituais religiosos, a dúvida é colocada no mito do indígena por Meek, o homem que perpetua os mitos de cowboy. A aproximação que Reichardt faz é do relato como algo religioso, que dá forma à curiosidade, mas que traz respeito e confiança apenas quando aliado à capacidade de agir em coletivo.

O indígena, surgindo como o verdadeiro íntimo da terra, quem sabe das rotas, é quem gera a empatia de Emily não apenas pela disposição para a ação como também pela empatia de ambos serem vítimas da incomunicabilidade com os homens brancos – ele pelo idioma, ela pela distância espacial das conversas de decisão. Como em Wendy e Lucy, a protagonista testa seus limites no trânsito, na impossibilidade utópica – antes pela crise financeira, agora pela inexistência da conquista de assentamento. Emily representa assim esse arquétipo do faroeste, do protagonista cuja disposição à ação lhe traz destaque diante de um grupo, para Reichardt desconcertá-lo ao colocar a mulher no comando. É sobretudo uma mudança no registro do tempo – como Emily vê o mundo, paciente, tomando cuidado, de olho nos arredores e sem desejos de resoluções no cano quente do revólver.

As estruturas de poder são questionadas de forma mais direta quando surge a travessia das diligências, o mais próximo de sequência de confronto e ação que Reichardt concebe, objetivo palpável de superação de um obstáculo. É quando surge a primeira câmera na mão de todo filme, como se a diretora e o fotógrafo Christopher Blauvelt sinalizassem a urgência sentida nessa cena em detrimento da jornada lisérgica do tédio da sobrevivência dos personagens abandonados pelos mitos de Meek à própria sorte e competência diante das adversidades.

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Se a passagem de bastão da condução da diligência é o que importa a Reichardt, não a interessa uma solução concreta e, portanto, a busca não termina com o desfecho prometido, mas com a esperança de sobrevivência. Uma árvore que sinaliza a presença de água, longe do oásis prometido por Meek, suficiente em manter a dúvida do destino por perto. É quando o mito baixa a guarda para quem age, para Emily, que a partir daí dá as ordens para seguir ou não a jornada – um poder adquirido pela sobrevivência, pelas desventuras, não pela conquista, mas pela capacidade de diálogo com a terra, com o outro. Quando percebe que a liderança do comboio está em boas mãos, o indígena parte para sua jornada pessoal, entendendo que a empatia pode ser agradecida apenas com uma troca de olhares, de pessoas cujo laço emocional fora forjado na morte de utopias construídas pela tradição oral dos pioneiros, mais interessada em perpetuar opressões masculinas brancas que em transmitir a cultura adquirida pelos corpos e mentes que por ali passaram antes de nós.

Já em Movimentos Noturnos, a aproximação com o thriller político é mais convencional, mas não por isso menos potente: a estrutura do roteiro foca na apresentação de três personagens com o objetivo claro de explodir uma represa como ato de ecoterrorismo. Os diálogos do roteiro de Reichardt com seu parceiro habitual Jon Raymond focam tanto no cotidiano quanto na exposição, com informações diretas entre os personagens para permitir a câmera enfatizar o conflito não-dito: a paranoia do personagem vivido por Jesse Eisenberg.

A primeira hora se concentra nos detalhes do atentado com foco procedural. Dena é a mais jovem, Josh o líder introspectivo, e Harmon o mais experiente. As dinâmicas de relação entre os personagens são mostradas especialmente por olhares, uma vez que o texto é quase devoto apenas de trocas sobre o planejamento do atentado. Enquanto Josh maquina os planos e não faz questão de interações sociais mais explícitas, Dena lida com a provação da mulher no mundo – e na cena da compra de fertilizantes precisa se provar diante dos homens mais velhos para executar o plano.

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O ambiente americano de espaços vazios, como em Old Joy e Wendy e Lucy, traz a fantasmagoria presente nas cidades registradas pela diretora, mas aqui no registro de suspense – o que era calmo e de certa forma pacífica nesses dois filmes vira uma tensão, instaurando-se como penumbra no escopo solar do filme. O respeito de Josh por Dena medido pela forma que ela se preocupa com detalhes, um sinal de paranoia que ditará a segunda metade.

O tempo da sequência da explosão é o mais próximo de um ideal consagrado de suspense, investindo em conflitos baseados nos erros não-previstos, na capacidade de improvisação dos personagens e em uma atenção aos rostos apreensivos enquanto a situação de risco é instalada. A diretora organiza essa sequência com rigor, privilegiando o ponto de vista do barco dos personagens e insistindo nele para estabelecer uma tensão que deriva justamente da distância espacial entre conflitos. Interessante ver a diretora e o fotógrafo Blauvelt se enveredarem pelo terreno do mais franco suspense e sair bem dele, quando sua carreira experimentava com a observação dos dramas cotidianos.

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É após a explosão, ademais, que Reichardt sinaliza timidamente que está interessada mais nas consequências do ato: o plano fixo dos três personagens andando no carro, durando por mais de um minuto, para focar no alívio de cada um após o objetivo cumprido. A dinâmica de planos mais ágil em relação a Old Joy, Wendy e Lucy e mesmo O Atalho é o que dita as sequências que culminam nesse clímax. É quando Reichardt puxa o tapete do espectador ao encerrar o conflito em uma hora de filme que sua câmera revela as intenções apenas através do tempo: inicia a segunda metade apenas com um travelling lento, por cerca de um minuto e meio, contemplando os objetos da casa de Josh – que não tínhamos visto até então.

A concentração no estudo psicológico de Josh torna difusa aquela concisão da montagem até o atentado, porque a visão de mundo agora é paranoica, misteriosa, como a do personagem que agora acompanhamos. Não existe a visão de mundo compartilhada do início, o registro agora é do cotidiano que sucumbe à paranoia, da ansiedade de não encontrar o outro, de mitos se instalando como propostas narrativas pela pura falta de comunicação.

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A opção pelo díptico revela muito desse tempo dilatado proposto ao gênero por Reichardt. O gênero é responsável pelos mecanismos narrativos na primeira metade e o tempo dilatado da diretora pelas reações da segunda. Se existem dúvidas entre a potência da conciliação do chamado slow cinema, com suas elipses e ritmo cênico difusos e a agilidade do cinema de gênero, Reichardt as encara com a propriedade de quem entende que ambas as vertentes teóricas dependem essencialmente do rigor formal, do controle do tempo narrativo – e quem as domina consegue transitar entre dispositivos narrativos com personalidade e desafios recompensadores.

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