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Mostra Internacional de Cinema de São Paulo: Cozinhar F*der Matar

Por Camila Vieira

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Para explicitar a espiral de violência perpetuada por masculinidades tóxicas dentro das relações familiares no longa-metragem Cozinhar F*der Matar (Cook F**k Kill, 2019), a diretora eslovaca Mira Fornay conduz a narrativa por sucessivos jogos de inversões de poder. A trama começa com o desespero de Jaroslav, um motorista de ambulância, que está sofrendo uma crise de relacionamento com Blanka. De início, ele parece ser o bom pai de família, que está realmente preocupado com seus três filhos pequenos, que foram deixados na casa da avó. Jaroslav alega que sua esposa o está chantageando para conseguir o apartamento da mãe, a intimidadora Dorojka, que reclama ao filho: “Não sabe cuidar de sua própria esposa, sem ela intimidá-lo?”.

Dorojka está morando com Gustav, pai de Blanka, em um mísero apartamento estreito no subúrbio, em que mulheres do bairro cercam Jaroslav e ele quase é atingido por uma jukebox que é jogada da janela de um vizinho – essa cena inclusive será repetida algumas vezes, com pequenas variações dos instantes prévios à queda do objeto. Quando Blanka é vista pela primeira vez em cena, o filme desvela quem realmente é a vítima de toda a tragédia. Gustav diz a Jaroslav que não deseja ver o genro tratar Blanka da mesma forma que ele trata Dorojka. Então, começa o relato de uma cena de violência doméstica que aconteceu no passado em que Gustav espancou a mãe de Blanka. Só que, no presente, o relato de Blanka é concretizado cenicamente como uma reconstituição em que Jaroslav é espancado por Gustav.

Gustav e Jaroslav são os agressores de Dorojka e Blanka. “Amei sua mãe, mas tinha medo dela”, diz Gustav. “Eu a amo exatamente como você amava a mãe dela”, diz Jaroslav. As duas frases declamadas pelos principais personagens masculinos de Cozinhar F*der Matar são a expressão máxima da manutenção do relacionamento abusivo, que intimida, chantageia, violenta e mata mulheres. Ao virar a chave do filme, a diretora Mira Fornay parece lançar o desejo de denúncia da estrutura de poder do patriarcado, cujas violências são perpetuadas de geração para geração (e aí faz sentido entender como o filme se modela a partir das repetições).

No entanto, é justamente por recorrer ao jogo de sucessivas cenas de agressão que o filme inclusive coloca as mulheres à mercê de encarnar no próprio corpo a monstruosidade da violência. E quando Fornay opta por fazer isso, Cozinhar F*der Matar parece estrangular a si mesmo com a própria estratégia almejada.

 Visto na 44a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo
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Mostra Internacional de Cinema de São Paulo: Suor

Por Camila Vieira

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A sequência inicial de Suor (Sweat, 2020) é a tautologia do privilégio de uma digital influencer. Em um shopping mall, Sylwia Zajark uma mulher branca, loira, magra e bela faz uma demonstração de uma aula de fitness para seu público branco que deseja ser como aquela mulher. Depois dos gritos motivacionais e selfies com sua audiência, ela respira fundo e prossegue sua jornada, ao som de “She’s got the look”, de Roxette. Ela ainda tem muito trabalho a cumprir: fazer uma live para mostrar entusiasmada que sempre usa a escada no lugar do elevador de seu prédio, apresentar um shake do Olympus Nutrition para compensar a insatisfação do patrocinador e se encontrar com seu agente que está tentando agendar sua aparição em um programa de televisão.

O diretor sueco Magnus von Horn quer mostrar com Suor que a vida de uma digital influencer também pode ser muito difícil. Longe da câmera do celular, ela não escolheu estar solteira e se sente muito triste, da mesma forma como comentou sobre tal sensação em um vídeo postado em suas redes sociais. O desabafo espontâneo imediatamente viralizou e seus patrocinadores começam a ficar preocupados com a exposição indevida de tristeza da jovem.

A partir desse deslize da personagem em meio a sua rotina de construção idealizada da imagem do bem-estar, Suor vai desvelando outras informações sobre Sylwia para que o espectador tente ser empático com suas lágrimas. A única companhia dela é seu cachorrinho Jackson. A mãe parece ser ausente e fazer pouco caso das conquistas da filha. Um stalker aparece em frente ao prédio para perturbar sua tranquilidade.

É curioso como inclusive uma cena em que a protagonista reclama ter recebido uma embalagem em caixas plásticas – para deixar claro na condução da trama que se trata da rotina de uma influencer ecologicamente responsável e que devemos nos compadecer dela. No entanto, a mesma nem questiona uma empresa grande, como a Fiat, que há bem pouco tempo foi denunciada por fabricar automóveis adulterados para burlar possíveis testes de emissões de poluentes.

O único momento em que há alguma ironia a explicitar o quanto esse jogo com o neoliberalismo deve ser realmente questionado é a sequência do aniversário da mãe de Sylwia. Ao ver a imagem da moça estampada na capa da revista Women’s Health, um dos convidados exclama: “Você parece uma estátua!” – ao que ela responde com um “obrigada” constrangedor. O outro pergunta se foi usado photoshop, ao que se sucede com a queda inesperada de um jarro de flores da mesa. Mas é apenas uma sequência de desarranjo que passa ligeiro, tanto quanto uma madrugada de abusos e violências que é administrada rapidamente pela personagem. Afinal de contas, ela precisa continuar sorrindo para seus 600 mil seguidores.

Visto na 44a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo

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Mostra Internacional de Cinema de São Paulo: Mães de Verdade

Por Camila Vieira

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Há algo nos planos de Mães de Verdade (Asa Ga Kuru, 2020), de Naomi Kawase, que traz na própria materialidade indícios do estilo da cineasta japonesa: alguns takes com movimentos suaves a filmar os corpos dos personagens; outros em que a luz estourada do sol invade os espaços; ou mesmo aqueles em que o vento balança os galhos das árvores. Fazer do invisível uma força tátil é um dos elementos que marcam a filmografia de Kawase dentro da constelação do cinema contemporâneo.

No entanto, o modo como a narrativa engendra sucessivos encadeamentos esquemáticos parece a todo custo diluir a pujança da construção das imagens e dos sons de Mães de VerdadeDepois do plano inicial do mar junto ao som da mãe que chora amalgamado ao grito do bebê que nasce, acompanhamos uma cena de bela intimidade entre mãe Satoko Kurihara e seu filho Asato. A partir daí, o que vem na sequência desaba todo o esforço de contiguidade sensorial até então conquistado em prol da amarração da trama: Asato supostamente empurrou um colega na escola e, após todo o rebuliço da mãe do menino machucado, instaura-se em Satoko a desconfiança de que seu filho possa ter realmente cometido tal ato.

Como posso duvidar do meu menino?” – a pergunta de Satoko já introduz uma suposta hesitação dentro do seu papel de mãe, que prende o filme à necessidade de jogar um flashback em que ela aparece com o marido Kiyokazu a conversar sobre a vontade de ter um filho. Desejo impossível a princípio, já que a azoospermia de Kiyokazu impede de ter filhos biológicos. O marido se desespera, lança a possibilidade do divórcio e – que milagre do acaso! – aparece um infomercial de uma agência de adoção na televisão que só falta colocar em letras garrafais que nada está perdido para o pobre casal.

Não é para pais encontrarem os filhos. É para os filhos encontrarem os pais” – eis o slogan da agência Baby Baton que convence Kiyokazu a decidir pela adoção. O casal mora no 30o andar de seu confortável e intocável prédio, enquanto é muito óbvio que Hikari, a mãe biológica de Asato, deve ser construída como a mãe jovem, que será rejeitada pela família tradicional japonesa, que se tornará uma mulher a sobreviver de trabalhos precarizados, que levará uma vida carregada de culpa e sem conforto algum.

Na medida em que o esquematismo do roteiro impõe esse imediato contraste entre mães – pasmem! -, descobrimos que Asato não empurrou seu coleguinha na escola e – ufa! – família Kurihara pode voltar para seu conforto, porque aquele suposto acidente foi só uma desculpa para forçar uma dúvida e logo depois lançar a certeza de que o menino é adotado. É necessário ainda prosseguir com as amarrações frouxas e os subterfúgios dramáticos, como trazer Hikari de volta para reivindicar o garoto e introduzir um flashback sobre a trajetória dela de sofrimento até chegar ali.

No meio desta platitude de previsibilidades, talvez seja possível encontrar algum respiro breve de suspensão em uma sequência: aquela em que Maho, uma das adolescentes grávidas da Baby Baton, celebra seu aniversário em um churrasco com a vizinhança e as amigas da ilha. Os planos voltam a ficar instáveis, escutamos uma voz off feminina a interpelar aquelas personagens em closes e vemos a sombra de uma mulher que filma com uma câmera na mão. Seria a mesma Kawase em cena a reconstituir aquele plano de sua sombra em Caracol (Katatsumori, 1999)? Mas logo o plano se dissipa e Mães de Verdade volta a ser um filme de apaziguamento do já esperado. Se em Caracol, a diretora abraça o mistério na relação com sua avó para tratar de maternidade, já não  espaço para qualquer opacidade em Mães de Verdade, porque agora o que interessa é decodificar as imagens ao bom entendimento e deixar de lado o enigma que é a própria vida. 

Visto na 44a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo

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Olhar de Cinema: Nasir

Por Camila Vieira

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Inspirado no conto A Clerk Story, de Dilip Kumar, a estrutura dramática do longa-metragem Nasir, do indiano Arun Karthick, também assume ser concentrada e compacta. É a história de um homem comum, Nasir Bhai, que trabalha em uma loja de tecidos. Ele tem uma família; dorme, se acorda e sai de casa todos os dias para trabalhar; fuma alguns bidis (cigarro local) e interage fortuitamente com personagens corriqueiros que aparecem no meio do caminho. Ele demonstra preocupação em ajudar a família: carrega potes de água para casa e entrega o almoço do sobrinho na escola.

O protagonista pertence a uma minoria muçulmana em uma comunidade predominantemente hindu. O alto-falante nas ruas anuncia que a procissão do festival hindu está perto de acontecer. Mas Nasir não se preocupa e continua a cumprir sua rotina, ainda que surjam problemas que afetam sua vida. As pessoas ao redor de Nasir também parecem viver um dia de cada vez. Os momentos em que a valorização do comum fica evidente no longa-metragem são os que mostram a interação entre os colegas funcionários da loja de tecidos. O protagonista recita para eles um de seus poemas que termina com o verso “o que é a vida senão solidão e silêncio?”

Nos trechos em que os personagens dormem, os peixes pintados nas paredes e refletidos nos abajures parecem compor a atmosfera de quem também sonha apesar do enfrentamento diário cotidiano. Mesmo que seja difícil entregar uma encomenda em um lugar distante ou guardar o pouco dinheiro que se ganha para melhorar de vida, Nasir é um personagem em constante movimento. Ele não se paralisa diante das adversidades, ainda que, ao fim de tudo, o infortúnio apareça para ameaçar sua existência.

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Olhar de Cinema: Um Filme Dramático

Por Camila Vieira

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Na cartela final de Um filme dramático, explica-se que “as ideias, as histórias e as imaginações” do filme são das crianças e pré-adolescentes creditados e que também são estudantes do Colégio Dora Maar, em Saint-Denis, subúrbio de Paris. O longa-metragem foi realizado durante quatro anos de encontros com os alunos, dentro do que o realizador francês chama de processo colaborativo, a partir de uma encomenda feita pela comissão do distrito que construiu a escola.

No entanto, o que há na operação do filme que leva o espectador a crer que seja realmente fruto de um processo colaborativo? É certo que estão ali os planos filmados pelas próprias crianças. Elas filmam relatos feitos em frente à câmera sobre os acontecimentos cotidianos (como se fossem pequenos filmes diários) ou takes com passeios pelas ruas (em que muitas vezes, a grande diversão é descobrir o efeito de um zoom). A beleza dos planos criados pelos estudantes paira justamente na câmera que treme, na voz que titubeia, na incerteza do que filmar ou não. Mas em boa parte do filme, o que vemos é uma câmera controlada, a observar o que acontece entre os estudantes na sala de aula.

Essa câmera sempre atenta que não quer vacilar e que está ali a serviço da captura dos “melhores momentos” de interação entre os estudantes foi guiada por dois diretores de fotografia, Claire Mathon e Raphaël Vandenbussche. Eles fazem parte da equipe formada por Eric Baudelaire, que também contou com a participação da montadora Claire Atherton no processo de escolha de quais imagens caberiam ou não para o longa-metragem que se vende para o mundo com a chancela de “filme colaborativo com os estudantes”.

Nestes planos controlados, acompanhamos discussões até bem interessantes entre as crianças. Em determinado momento, elas repercutem sobre os imigrantes na França e se o governo do país é ou não racista. Em outro, elas falam sobre o que pode ser um filme ou o que caracteriza um documentário. Dentro de um debate acalorado sobre a importância do registro do som, um dos estudantes explica para os outros que, se um documentário perde o som, ele se torna dramático ou ficção científica. Na mesma sequência, vemos uma menina bater uma claquete e, no início, o som está sem sincronia com a imagem e, quanto mais a garota bate a claquete, o som começa a se sincronizar. No entanto, a brincadeira de disjunção sonora é proporcionada pela edição controlada de Um filme dramático.

Eric Baudelaire quer fazer com que os espectadores acreditem que seu filme seja colaborativo com as crianças, mas ele também faz questão de assinar sozinho a direção de seu próprio filme. O que se forja na construção de Um filme dramático é a roupagem do “filme fofo com crianças que filmam” e que tem muito pouco ou quase nada de colaboração efetiva dos estudantes no pensamento criativo do longa-metragem. Se Um filme dramático começa justamente com um plano instável de um céu escuro com uma estrela flutuante a ser filmada por uma criança com a câmera na mão que diz ser preciso estabilizar aquela imagem, o gesto de Baudelaire é tornar seu filme estável o suficiente para seu prazer individual como cineasta.

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Olhar de Cinema: Canto dos Ossos

Por Geo Abreu

Alguns limites para a liberdade

“O difícil é ter que recomeçar sempre”

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Assisti Canto dos Ossos pela primeira vez na Mostra Tiradentes SP para uma semana depois rever na programação do Olhar de Cinema. Comprei o segundo ingresso no dia seguinte ao primeiro visionamento. Filmes feitos entre amigos costumam me animar, mas o que me empolgou mesmo foram as potências de invenção que se apresentam na história dos amigos Naiana (Rosalina Tamiza) e Diego (Maricota).

Acompanhar os filmes feitos por Jorge Polo, Catu Rizo e Helena Lessa (as duas últimas diretoras de fotografia de Canto dos Ossos) tem sido garantia de boas surpresas posto que eles formem uma trupe de bruxas e magos, que fazem do cinema essa mistura de elementos díspares, palavras sussurradas, conjuramento de feitiços e produção de rituais que servem aos mais diversos fins, sendo vencer o tempo a ideia que atravessa todos eles (os fins e os filmes).

Os rótulos de fantasia ou filme de terror me deixam encabulada. Tem muito mais coisa por baixo das unhas compridas cobertas de vermelho.  Chega um momento do filme que a primeira ligação que faço é com Desejo e Obsessão de Claire Denis. Acompanhamos o envolvimento entre Diego e um amigo: após um susto inicial, se estabelece uma movimentação violenta, algo de kink, de perversão consentida, experimentação de quase morte como prazer. A liberdade que se vê aqui como texto se cruza com a liberdade criativa das disjunções e dos personagens que precisamos decifrar a partir do próprio repertório e esbarram na ideia de imortalidade como prisão, na necessidade de fuga e mudança constante, na consequência de existências livres que se metem em problemas todos os dias.

Deve ser cansativo para Naiana, Diego e seus amigos, pois a cada gesto que afirma suas naturezas se esbarra em alguma força contrária, e a tensão que daí surge muitas vezes é sublimada para que se prossiga a jornada sem chamar atenção, enquanto em outras é preciso tomar partido e lançar o corpo no contra-ataque. A figura da criatura enfaixada de voz cansada e antiga pode muito bem ser um demônio à Hellraiser, uma imagem perdida em algum sonho Lynchiano ou o homem que vendeu o mundo naquela música do Bowie. Faz tanto sentido que ela seja decrépita e carcomida como a juventude possa se restaurar do combate tomando um banho de mar.

Essa mesma juventude é atraída magneticamente, os grupos se formam, convivem por um tempo e se espalham pelo mundo novamente. Velas são acesas e rituais online são necessários para manter a conexão. As verdades que eles compartilham podem servir a criação de discursos em linguagens diversas. É cômodo transmutar o sangue que se espalha nas ruas e na TV aberta em signo estético de vida em explosão, experimentação ao limite, riscos, dúvidas e beleza? Mostrar as garras passa a ser cômodo sim em algum momento e é necessário que assim seja.

A monstruosidade como figura de expansão é para mim a grande mensagem de Canto dos Ossos. O ranger de velhas estruturas, como o cinema, mascaram o desejo de que algo os faça mover para tombar, e ser testemunha desse movimento é tão precioso que me deixa feliz em meio a tanta merda concentrada no ano de 2020.

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Olhar de Cinema: Trouble

Por Camila Vieira

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Trouble começa com uma reportagem dos anos 1960 em que aparece o protestante David Coleman, aos 19 anos, em Belfast. Ele estava desempregado e prometia se casar com uma jovem católica. A união do casal desafiava os conflitos permanentes entre as duas religiões naquele território. Décadas depois, a imagem de Coleman na juventude e seu envolvimento político na capital da Irlanda do Norte conduzem a diretora estadunidense Mariah Garnett a realizar um filme sobre ele. David é o pai de Mariah e hoje mora na Áustria. A realização de Trouble foi uma forma da diretora estadunidense conhecer melhor seu pai ausente – com quem se correspondia apenas por cartas e teve o primeiro contato presencial quando ela completou 27 anos.

Ao retomar fotografias e informações do passado, David até fala bastante sobre sua família, o contexto político de Belfast e seu envolvimento como membro ativo do People’s Democracy, partido estudantil e trabalhista. Mas ele prefere relatar tudo do conforto de sua casa e recusa a proposta que Garnett faz de viajar à Irlanda para reencontrar seus amigos e familiares. A relutância do pai leva a diretora a construir uma estratégia bastante inusitada para seu filme: ela se veste tal como seu pai aparecia na reportagem e performa seus gestos e suas falas nas ruas de Belfast, como se fosse o jovem Coleman nos anos 60.

Ao preencher tais lacunas da memória com suas reconstituições históricas pela performance de seu próprio corpo em cena, Garnett brinca o tempo todo com a forma do filme e subverte a convencionalidade de um documentário de família. É um jeito queer de pensar e fazer cinema, em que o realismo dos depoimentos e das imagens de arquivo vai cedendo espaço para as divertidas encenações em que Garnett atua como o pai dela. Se desde o início já não era possível recuperar integralmente o passado de seu pai, a magia de Trouble encontra-se em assumir o artifício como estratégia de reposicionamento das falhas e das fissuras da memória e de inventar novos gestos narrativos para os códigos dos filmes biográficos.

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Olhar de Cinema: Traverser (Após a Travessia)

Por Camila Vieira

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Na Costa do Marfim, uma reza coletiva acontece em volta do túmulo do patriarca de uma família. Uma mãe e sua filha rezam, choram e retomam o caminho para casa. Na Itália, rapazes acabam de chegar e um deles é o marfinense Inza Touré, conhecido por todos como Bourgeois. Ele esteve preso na Líbia, acaba de aterrissar em território italiano e precisa chegar até a França, onde almeja melhorar suas condições de vida e conseguir sustentar sua mãe e sua família que lá ficaram na Costa do Marfim.

O documentário Traverser, de Joël Akafou, acompanha os percalços de Touré em sua rotina de sobrevivência em território europeu. Ao fazer uma chamada em vídeo para sua mãe, ele chora e ela o consola: “Diante da adversidade, você deve ser forte”. Mais tarde, ele olha para a fotografia da mãe e diz em voz alta: “Sou seu herdeiro, seu filho, seu sucesso, sua evolução. Tenho que lutar por você, mamãe”. Mas a Europa expulsa Touré a todo instante: ele não encontra oportunidades para permanecer por muito tempo em um só país. Ele pula de casa em casa e depende da benevolência de mulheres – Aminata, que pagou três vezes sua fiança na Líbia; Michelle, que o hospedou na Itália; e Brigitte, que pretende o receber na França.

Um dos amigos de Touré pede para que tenha cuidado para não enganar as mulheres que aparecem em seu caminho. “Minha vida é difícil. Estas são as condições em que sou obrigado a sobreviver”, explica Touré. A rotina como imigrante não abre novas possibilidades de escolha para Inza Touré, que mal consegue dinheiro para fazer uma travessia segura até a França. Em uma roda de conversa com outros amigos imigrantes na Europa, um deles fala: “O que estamos vivendo aqui não é uma vida! Estamos todos em um mesmo ‘barco’ na África”. A promessa de uma vida melhor na Europa é um horizonte ilusório que explicita as marcas da colonização.

Com Traverser, o diretor Joël Akafou volta a acompanhar a jornada de Touré, que também foi o personagem principal de Vivre riche, seu primeiro longa-metragem. A filmagem em cinema direto torna visível a proximidade entre quem filma e quem está sendo filmado, sobretudo quando a vida de Touré encontra paralelos com a própria experiência de Akafou como imigrante africano na Europa. A direção propõe se colocar ao lado dos anseios e das incertezas de Touré, sem julgamentos de seus atos.

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Olhar de Cinema: Na Cabine de Exibição

Por Pedro Tavares

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O cineasta e a espectadora, cada um em seu bunker, e entre eles, um corpo fragilizado pela frequente exposição – o da imagem. Este exercício minimalista de exame é muito poderoso à medida que cada suposto diagnóstico sobre os fins da imagem é criado.

Quando a jovem Maia entra na cabine de exibição e golpeia as imagens para forjá-las de acordo com suas relações imediatas a elas, é muito interessante que Ra’anan Alexandrowicz solicite um retorno. Uma segunda consulta às imagens. Os olhos de Maia, um exemplar de máquina de articulações e possibilidades, cria novas possibilidades enquanto o realizador observa suas pré-finalidades, se casam ou não com a espectadora-máquina.

As imagens estão em cheque a respeito de sua veracidade, longevidade, durabilidade e o processo de produção é de dúvida concomitante a estes tópicos; o curioso é que a potência dessas imagens nunca está em questão. Tanto Maia como Alexandrowicz, independente de suas convicções a respeito do que é ou não real ou se logo serão esquecidas, em suas discussões, inerente, está a maneira que essas imagens encontram seus espectadores e seus efeitos.

O que vem em primeiro é o desconforto perante a suspeita. E, lentamente, ambos forjam a imagem a seu gosto. Na Cabine de Exibição talvez seja dos mais frontais e potentes casos de análise de imagem provenientes de novos dispositivos, no caso câmeras de telefones celulares e hospedados no Vimeo. Um belo caso de arqueologia de “novas” imagens e que sinalizam novas possibilidades de estudo sobre seus imediatismos e funções.

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Olhar de Cinema: Responsabilidade Empresarial

Por Camila Vieira

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O dispositivo criado por Jonathan Perel para realizar Responsabilidade empresarial é muito simples: filmar as fachadas de empresas que tiveram papel ativo na repressão e na perseguição de trabalhadores durante a ditadura militar na Argentina, entre 1976 e 1983. Enquanto vemos as imagens, escutamos a voz over de Perel que lê trechos do livro Responsabilidade Empresarial por Crimes Contra a Humanidade, Repressão de Trabalhadores durante o Terrorismo de Estado, publicado em 2015 pelo Ministério de Justiça e Direitos Humanos, no final do governo da então presidenta Cristina Kirchner, hoje atual vice-presidenta da Argentina. As informações contidas no livro expõem o envolvimento de cada uma das empresas e de seus proprietários em ações criminosas contra trabalhadores, principalmente sindicalistas.

Filmados sem tripé, os planos assumem a leve flutuação da câmera na mão de quem registra – o próprio Perel – sem a possibilidade de pedir autorização às empresas (já que tal solicitação provavelmente colocaria tanto filme quanto o realizador em risco). As filmagens foram feitas dentro do carro do diretor, que acoplou os microfones na parte externa do veículo. Mas ao mesmo tempo em que há a instabilidade do take, a frontalidade de cada plano junto à narração objetiva dos dados do relatório de crimes faz do documentário um contundente documento histórico, bastante cru, incisivo, sem rodeios.

A sucessividade dos planos com detalhes de números de vítimas assassinadas, torturadas, presas, desaparecidas, sequestradas desloca o espectador do seu presumido conforto ao ver um filme em uma sessão de festival. O acúmulo de crimes relatados provoca vertigem e nos leva a pensar o que o desvelamento de um passado pode nos dizer sobre o que acontece no presente. Por mais que seja um filme que lança luz sobre o passado cruel de derramamento de sangue na Argentina e que é constantemente apagado pelas forças locais, Responsabilidade empresarial é a denúncia do jogo permanente de interesses entre Estado e empresas privadas. Diante da conjuntura de pacto neoliberalista e ascensão do reacionarismo da extrema-direita em vários países do mundo, seria interessante que o filme pudesse circular e ser distribuído para um público mais amplo e não ficasse restrito ao circuito dos festivais internacionais.

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Olhar de Cinema: O Ano do Descobrimento

Por Camila Vieira

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A textura dos planos traz a materialidade do vídeo Hi-8. O ambiente filmado é um bar/restaurante em Cartagena. Os personagens em cena vestem figurinos que parecem ter saído dos anos 90, mas eles conversam sobre o tempo presente. Eles estão vivendo os anos 2000, mas de algum modo tudo o que vivem hoje reverbera um passado não muito distante da Espanha. Em 1992, as Olimpíadas de Barcelona e a Expo Sevilha divulgavam a Espanha como moderna, desenvolvida e dinâmica para o público estrangeiro. No entanto, o país vivia uma crise interna social, política e econômica, com desempregos em massa e 127 manifestações em 180 dias. Em O ano do descobrimento, a simulação dos anos 1990 criada pela direção de fotografia de Sara Gallego e a encenação proposta pela direção de Luís Lopez Carrasco nos convoca a pensar que mesmo quem vive o presente na Espanha é atravessado pelas consequências de um passado próximo.

Com o recurso do split screen (a tela dividida em dois quadros), o diretor apresenta 45 personagens diferentes que interagem no espaço fechado de um bar/restaurante, durante as 3 horas e 20 minutos de duração do filme. Mas a montagem cria uma dinâmica bastante singular. Em muitos momentos, um close é colocado ao lado de outro, como se fosse uma conversa em que se vê o campo e o contracampo ao mesmo tempo. Em outros momentos, os closes colocados um ao lado do outro, aos poucos revelam conversas distintas com outros personagens fora de campo. Alguns olham para os lados, mas não sabemos exatamente para quem; se é ou não é para o personagem que está presente no quadro ao lado. As vozes que ressoam nos dois quadros também se interpõe e se misturam. A estratégia produz uma instigante ambiguidade temporal ao filme, sobretudo quando os planos são intercalados por noticiários e propagandas dos anos 1990.

O documentário é dividido em três partes e um epílogo. Começa com conversas entre jovens sobre seus empregos: muitos deles trabalham em jornadas longas, sem folga; outros estão desempregados e desabafam que se sentem doentes, deprimidos e sozinhos. Diferenças salariais, relação entre chefes e operários, educação pública e movimento sindical são alguns dos assuntos principais abordados. Na última parte do filme, os mais velhos acrescentam informações sobre o passado na Espanha: o histórico de lutas em Cartagena, a repressão do franquismo, os engajamentos no Partido Comunista, as crises na produção industrial que afetaram milhares de empregos, a ameaça de fechamentos de fábricas e a terceirização que culminaram em diversos protestos pelo país. “As pessoas se uniram nas manifestações, mas o conflito foi ficando duro. Esse humor se tornou medo e medo se torna raiva e raiva se torna violência”, explica o sindicalista José Ibarra Bastida. Ao contextualizar a situação da Espanha com o tempo presente de ascensão mundial da extrema-direita, ele constata de forma bastante lúcida que o capitalismo venceu.

O ano do descobrimento começa e termina com dois jovens diferentes que relatam sobre sonhos recorrentes. O primeiro narra sobre um reencontro com seus amigos de infância em um sonho, em que os rostos deles aparecem envelhecidos e, mais tarde, ele se dá conta de que todos estão mortos. O último relata que, no seu sonho, não consegue esmurrar um nazista de perto, como se sua mão deslizasse e não conseguisse dar um soco. Entre a figuração da morte e a impotência da luta, os desejos dos mais jovens parecem figurar uma fantasmagoria da estagnação. Mas é preciso mais uma vez retomar uma frase de Ibarra: “A solução não é sindicato. A solução é política”.

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Olhar de Cinema: Quem Tem Medo de Ideologia?

Por Pedro Tavares

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Originalmente um projeto dividido em duas partes, Quem Tem Medo de Ideologia? parte de uma lateralidade interessante, primeiro a pensar a força da natureza e o acordo dela com as mulheres como uma força imbatível. Desta dupla, a ideologia ganha um abrigo. A diretora Marwa Arsanios não precisa nada além dos corpos e da paisagem para que este acordo seja selado na imagem.

A partir deste reforço social-ideológico, a segunda parte dá o tom majoritário ao filme, dominado pela palavra e que é assertivo no pensamento do feminismo como a salvação de um grupo de mulheres que diariamente compete silenciosamente com os homens; se para eles a rotina de trabalho faz parte da vida, para elas evidentes e embutidas estão as injustiças oriundas do machismo e a inerente insegurança do dia-a-dia.

Quando Arsanios encontra a resposta para a pergunta “O que é estar aqui?” feita no início do filme, temos uma saída vigorosa para a resolução do tema, ainda que para isso precise de respiros para sua construção; a diretora se refugia no carro e na própria natureza. Sabe que a união é forte o bastante seguir seus olhos não acompanhem os movimentos extracampo.

Portanto, se a natureza é a ideologia e o feminismo é a solução, Quem Tem Medo de Ideologia? serve como um preparo para o enfrentamento de um mal maior e seu pilar está no alinhamento da natureza, ideologia e feminismo e como eles formam um só pensamento, um organismo ativo e que perdurará.

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Olhar de Cinema: Nardjes A.

Por Pedro Tavares

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Dois caminhos distintos guiam Nardjes A. ainda que dividam semelhanças em suas abordagens: o primeiro, uma observação da personagem que batiza o filme a partir do cunho político, como a manifestação pacífica em Argel pode movimentar milhares de pessoas em prol de único objetivo. Nele, entre cânticos e gritos de protesto, um sonho de um país livre das amarras de mais um desgoverno a vir no horizonte.

O segundo e grande ponto de declínio do filme é como a câmera do celular de Karim Aïnouz também serve como dispositivo para uma espécie de vlog-manifesto. Nele acompanhamos o dia desta protagonista e sabemos que ela está numa manifestação, mas o que importa para a câmera é como um diário é construído. É na produção de interação com as pessoas, como Aïnouz escolhe um plano que favoreça a presença da protagonista no quadro e não de uma mulher que solta gritos potentes pedindo liberdade, por exemplo. E é com a câmera que Nardjes divide seus temores, ainda que Aïnouz tente deslocar sua personagem usando a voz off como saída.

O filme cresce quando Nardjes se aproxima dos seus, cantarola ou até mesmo dá foras nos homens mais interessados em outros fins por um motivo simples: a câmera não está com a protagonista como centro. Nardjes está de costas em boa parte dessas ações e o caráter de um diário vaidoso se dilui, mas estes momentos geralmente são entrecortados por este caráter modernoso do diário da menina engajada.

Quando enfim o protesto se dispersa após a construção de uma grande comoção popular, o que resta é mesmo o rosto de Nardjes, que divide suas preocupações entre os amigos e como serão suas próximas horas. Curiosamente este espaço, uma espécie de apêndice do filme, um espaço livre, é preenchido pelo anticlímax: temos o ápice do perfil autocentrado de Nardjes A., um momento que coloca em cheque todo o percurso supostamente engajado do filme. Trata-se de um povo ou de uma só face? Apesar do filme ter um nome próprio, a dúvida segue pulsante.

Visto no Olhar de Cinema

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Olhar de Cinema: Para Onde Voam as Feiticeiras

Por Pedro Tavares

los lobos still

Há um trunfo simples e muito funcional em Para Onde Voam as Feiticeiras: a noção e intenção de desajuste. O filme de Beto Amaral, Elianne e Carla Caffé é de múltiplas abordagens e formas que notoriamente é paralelo ao seu tema. No caráter investigativo que remete aos trabalhos de Sylvain George, o filme se mistura às distintas abordagens como análise da sociedade.

Tão frontal e necessário quanto Cabeça de Nego (Déo Cardoso, 2020), também presente na seleção do Olhar de Cinema, Para Onde Voam as Feiticeiras é um filme-óvni de intensas interpelações documentais e de performance: o desejo de alguma clareza pela aproximação dos corpos – que esbarra nos transeuntes, vendedores, pregadores e moradores de rua– ao espaço delimitado para performances. Espaço este que não é respeitado, ele toma proporções maiores que uma simples delimitação para um expurgo frente às câmeras.

Neste ponto, o filme torna-se uma grande reação aos temas abordados por seus personagens: se há o espaço para alguma revisita ao passado, na mesma medida ele coloca minorias em confronto direto àqueles que os acurralam socialmente. Das imagens de arquivo às discussões sobre as reais posições na sociedade, do desejo sexual à crise que assola o Brasil, o que se vê é um panorama volumoso em temas e interpelação que reflete a complexidade de um país que afunda diariamente.

Com este sentido de um desajuste fílmico para os ditos desajustados sociais, a pulsão é vantajosa como um manifesto. É com ela que o filme abraça a posição de filme político, mas capaz de respingar no campo existencial.  Nele sim as performances fazem seu sentido verdadeiro – conhecer os personagens com mais um panorama, como uma apresentação de uma trupe. A trupe é de artistas, mas para a sociedade, são tão perigosos como uma gangue pela simples existência. “Quero acordar, existir, não ser nada, sem peso”, diz um deles. O peso demonstrado por Beto Amaral, Elianne e Carla Caffé é real e a resistência é urgente.

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