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Mu, a terra da impossibilidade sonora – sobre Abismu, de Rogério Sganzerla

Por Gabriel Papaléo

“Quem sabe a ameaça vem mais dos silêncios que dos ruídos?”

Ítalo Calvino, Um rei à escuta, em Sob o sol-jaguar.

O cinema caseiro pede anistia, e, indo até as ruas, com imaginação podemos achar as vontades dos deuses. Já no início de O Abismu, o primeiro longa de Rogério Sganzerla pós-Belair, nos deparamos com um interesse e uma proposta de transcendência do diretor: estamos convidados a procurar embates místicos com as paisagens do Rio. É onde está a cidade de Mu, uma terra lendária e perdida à espera do despertar de seu portal mágico, cujos habitantes usaram dos cartões-postais da cidade para construir seu portal. A civilização maia ficcionalizada e transformada para o Brasil do fim dos anos 70, a agonia da espera por dias mais livres, a elegia para uma cultura que não tem mais a estrutura que comporta suas ideias.

Sganzerla e Renato Laclete prendem a câmera ao carro da Madame Zero, vivida por Norma Bengell com um charuto enorme e vão à procura de uma nova religião, andando de carro a esmo, encarnando arquétipos vários, deixando-a desorientada pelo sincretismo. Nessa mesma frequência de luta entre forças místicas aparece a participação de José Mojica Marins como o professor cientista louco, um dos imaginários de ficção-científica cinquentista mais caros à Sganzerla, como um maníaco ganancioso a tentar conquistar o espaço, os portais, as fronteiras, e por que não os corpos. É importante que a cultura popular esteja impressa nos personagens de O Abismu porque, para Sganzerla, o que está em jogo com a invasão de Mu é todo um pesadelo linguístico de exceção cultural – que se assimile tudo que o Brasil tem direito de reclamar para si como identidade antes que os gringos venham tomar essa fronteira mitológica.

Nesse retrato à mão-livre, como pequenas vinhetas de pessoas que entraram em contato com esse divino alienígena quase incompreensível, muito dessa não-linearidade se percebe pelos dispositivos técnicos que Sganzerla usa. Quase tudo é rodado em câmera na mão, as bitolas gastas do 16mm parecem abraçar só a luz natural, e o grão forte e expressivo dá ao filme um teor caseiro que só reforça que Sganzerla está interessado em uma profecia em primeira pessoa, mais íntima, de pequenos contos fantasiosos desse filme-ensaio sobre misticismo, religião, e fé no desconhecido.

E como é o som dessa nova religião em formação? Qual o som egresso de outro mundo? O Abismu é um filme de paisagens e profecias, e a sujeira da imagem encontra no som uma nova oportunidade de agressividade. Sugerem-se barulhos de motor, ruídos descontínuos, diálogos que flutuam pelos ares do Rio sem casar necessariamente com o acúmulo narrativo, bem à forma de manchetes, de quadrinhos, das quais Sganzerla abraça com fervor. Na cena na qual a Madame Zero de Bengell canta de branco, parece que sua voz é de uma consciência alheia, de um som que paira sem controle e sem autor pelo vento. Quase não há diálogos claros em O Abismu, muito porque é um retrato de profetas e de charlatões, de Mojica Marins convocando “os boçais do mundo” a se unir, de Jorge Loredo versando sozinho em meio aos morros. Na unidade sociocultural imposta não existe conversa, existe proclamações, existe monólogos disparados ao vento, e a ousada proposta de som de Sganzerla parece lembrar que “unidade” também pode ser supressão do específico – e não há clareza possível de palavras diante dessa ebulição da consciência diante de contatos místicos.

Os ruídos e distorções são a regra de som e imagem em O Abismu, e talvez a única linha clara sonora é a da guitarra (distorcida) de Jimi Hendrix. Seria essa escolha intencional? O estado do som nos filmes brasileiros sempre leva a dúvida: nossos filmes mal-tratados tiveram o som captado dessa maneira precária ou foram as exibições na sala de cinema (e as subsequentes telecinagens) que não fizeram jus ao meticuloso trabalho sonoro? É dolorosamente comum acharmos cópias de filmes brasileiros num estado bem precário de imagem, mas mais comum ainda é acharmos cópias com o som prejudicado – o que gera a impressão de que o normal para “o filme brasileiro”, essa instituição una e insuficiente, é um som mal cuidado e por vezes de diálogos incompreensíveis. 

Quem procura ver online hoje filmes como “Um Homem sem Importância”, de Alberto Salvá, e “Bang Bang”, de Andrea Tonacci, só os encontra com diálogos estourados, uma mixagem pouco cuidadosa, e passagens sonoras bem confusas para a compreensão da narrativa. São filmes que se propõe abertos ao diálogo com a marginalidade cara aos realizadores brasileiros à época, que entendiam os comos e porquês de num sistema com pouca estrutura para se praticar cinema, o improviso e a possibilidade serem nossas maiores armas de invenção. Nesse movimento, as sementes do que foi desenhado como “cinema experimental” foram plantadas nesse período, que demonstrou que esse cinema, como o curta-metragem é e o digital também se revelou ser, é realizável.

Convencionou-se colocar o franco descaso de certos filmes com som sob a confortável coberta do “cinema experimental”, o estímulo à picaretice que faz com que grandes cineastas que utilizam do som precário para passar sua poética caiam no mesmo saco de oportunistas que pouco se importam com linguagem. Com Sganzerla não é diferente, e o som ambicioso, captado em meio aos ventos do Rio, aos ruídos no diálogo, nos lembra o tempo inteiro que estamos diante de um retrato caseiro, como ensaios filmados – a fina linha entre a “tosquidão” como manifesto estético dita por Paulo Emílio Salles Gomes, e a legítima falta de infraestrutura destinada ao cinema brasileiro e sua técnica. E Sganzerla constroi um cataclisma com isso, mesmo sob modestas pretensões – pelo menos para a abrangência de suas reflexões. Estamos diante de um filme que só foi possível em 1977 dessa forma. E isso passa também pela cuidadosa jornada sonora poluída do filme.

Não por acaso é com a guitarra distorcida de Hendrix em Monterey que Sganzerla termina o filme, embalando a destruição vista por imagens de outros filmes, a chegada de raças alienígenas com suas máquinas transformando o tecido da realidade em cores e líquidos que tiram nosso fôlego e nos absorvem. Mas diferente das músicas do inglês que atravessam o filme, em dado momento ouvimos a voz de Hendrix dublada, retorcida para encaixar na narrativa de Sganzerla, dizendo o quanto “todos vocês me inspiram”, falando sobre a expansão espiritual – a típica profanação misturada com homenagem tão comum ao método do diretor. Hendrix dá seu recado e dali em diante sabemos que estamos diante das trombetas do paraíso, finalmente reconhecendo o contato interplanetário que quem testemunhou tanto o Rio de Janeiro quanto às músicas do guitarrista inglês intuitivamente já experimentou inúmeras vezes.

N. do E.: Apesar do cartaz apresentar o nome do filme como O Abismo, no filme aparece O Abismu, com “u”.

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Do jogo de incontinência à mania da origem

Por Felipe Leal

    Na língua inglesa, quiet vem a traduzir tanto aquilo que está “quieto”, no sentido da pouca vibração, digamos, molecularmente falando, como também significa a ação que se faz num volume baixo, discretamente, em oposição ao que é loud, barulhento – de forma que estes Um Lugar Silencioso (A Quiet Place, 2018) e Um Lugar Silencioso: Parte II (A Quiet Place Part II, 2020) remetem inicialmente a uma forma de território inóspita, como veremos, a) no que diz respeito a uma lógica avessa ao manuseio “pesado” de qualquer objeto, situação dramática ou rotina de existência, e b) no que é preciso desenvolver de uma linguagem particular de sinalizações para crescer enquanto família. 

Aviões de brinquedo, os gestos da cozinha, a repreensão de um filho: desde que a misteriosa avalanche de monstros cuja visão está no barulho invadiu aquela incerta dimensão de mundo, o que se assiste como estando resumido, a princípio, à sobrevivência de uma família, está cercado e plenamente dependente de um jogo entre a vida e o som. Vida além do fator biológico; vida sob a régua da concepção, da expectativa que solda hábitos.   

    Às cegas sobre o futuro, continuamente em busca de sinais de vida alheia ou de uma sobrevivência mais bem equipada, e vendo seu microcosmo ruir em nome destas ausências mesmas, aquela família composta de quatro membros (melhor diríamos “cinco menos um”) não viveu sempre num território de inexplicáveis bestas com superforça e supervelocidade. Isto nos será atestado, em inteligente lance de economia diegética, por alguns jornais de conteúdo premonitório, profilático e massivamente emergencial, e pelos quadros simplificados com informações parcas e pouco úteis sobre os tais inimigos inumanos, ambas as formas de comunicação “coletiva” não fazendo mais do que duplicar, em palavras frias e gordurosas, a desesperança que os consome no “dia 89” ou no “dia milésimo” de um calendário já apocalíptico. 

Horror, então, de fim de mundo? Suspense de gatilhos sonoros? Ficção científica ou filme-dispositivo? Talvez, mais do que estes compossíveis, um só, contendo todos os outros: um exemplar family movie

Pois o que sabemos, agora, depois desta continuação minimamente ineficaz, ser a “franquia do lugar silencioso” não fez por seus andamentos e tesouradas diegéticas senão elaborar o slogan nuclear uma vez proferido pela senhora Abbott (Emily Blunt) em uma série de artimanhas paternas e maternas para educar aqueles dois filhos através dos ensinos extremos da proteção calculada. Em outras palavras: de uma ascese pelo som “de dentro”, pela ausência de som (esperança) que deve ser aceita e reelaborada no mundo da quietude que é agora seu lar. E como é comum às éticas televisiva e cinematográfica, hoje, que toda a sabedoria de certos antepassados seja invocada como um poder da boa persistência obsessiva edipiana, o que se poderá dizer de qualquer expectativa de continuidade aos filmes, que de fato despontaram numa premissa requintadamente original para as sensações, é que a marcha do amadurecimento filial é longa e patética o suficiente para aniquilar qualquer engajamento que ultrapasse dois pulinhos de horror.  

 “Quem somos nós, se não pudermos protegê-los?”, ela pergunta ao marido, e entremeados aos procedimentos de sobrevivência estarão tentativas de uma transmissão de sabedoria que consiste, por exemplo, em fazer o filho vê-lo pescar com as mãos, gesto em teoria escandalosamente barulhento, no limite de um “não-estresse do ambiente”, como se lhe pedisse para entender o som-do-peixe, o peixe tão-somente pelo que ele não será perceptível – e não temer o possível urso. 

No primeiro dos filmes, em particular, precisamente pela conquista de um frescor auditivo capaz de determinar o ouvido sobre a visão, e portanto criando o aberto no fechado, a exigência de um tipo específico de corpo espectatorial como pré-requisito para a duração integral da obra é sem dúvidas o maior dos triunfos, se pensamos num enraizamento para o gênero do horror como localizado no desenho sonoro, mesmo ali quando nos filmes do primeiro cinema o acompanhamento de orquestrações era matéria pensada mais ou menos em conjunto à fílmica. O que chamamos, na dimensão prática da confecção, de foley, a replicação de uma sonoridade a partir da captação de um barulho não necessariamente vinculado a seu “objeto de origem” – um crânio esmagado, por exemplo, se produz com uma melancia, uma porrada, um microfone –, constitui, mais do que o acesso ao filme, o próprio terreno da experiência pela qual estamos, de alguma forma, atados àqueles outros acontecimentos invisíveis, in-anunciáveis, monstruosos.

Literalmente incluídos numa malha codificada de regras, na singular posição do estrangeiro que cala para deixar a sobrevivência perceptível e em fogo médio, vemos ser quicada uma espécie de linguagem que opera não exclusivamente pelo entendimento, mas por velozes avaliações dos pesos envolvidos na união, que é a viva metáfora celular, racional, ontogenética do familiar. A máquina do filme – ou melhor, a máquina-filme – extrapola o “acontece-ali”, e esse organismo propriamente coordenado, no que um time de futebol americano se assemelha às trupes de dança, quando se trata de fascinar nossos olhos, esse organismo acrescenta ao imprevisível um grau de ESPÍRITO DE EQUIPE. Os itens de supermercado ganham relevos semi-eróticos, pois é necessário da ritualística do toque para alcançá-los, mais do que simplesmente consumi-los. Disto todos sabem, ainda que a lição deva ser repassada e repassada.

A linguagem se dá entre o sinal e o sussurro. Os gritos estão abolidos, as peças do mundo que disparam altas frequências ainda mais proibidas. Pode-se dizer que, em surpreendentes 90 minutos, o seu, o meu corpo humano acostumam-se com um mundo externo baseado em pegadas, abafados, roçares de gramíneas, tecidos, sutis reverberações de barulhos ocos. Que a mão corte o ar para “escrever” “você ficará bem”, antes da partida do filho para os treinamentos com o chefe-pai, as coisas só podem receber um literal desenho sonoro, porque não demorará muito para que quem assiste ao filme se aperceba destacado, a lápis, de onde está, para estar no que centenas de yoguis nos suplicariam, em vida, para que sentíssemos: o estar-na-atenção. Na fabricação do estado falso de repouso para o qual tudo se OUVE em sua propriedade particular. 

Mesmo que a retórica da família familiar tente se reintegrar aos ocorridos todos, dando-lhes o todos-por-um necessário para que o gênero amplie a suspensão do suspense (sob o custo do batido drama sacrificial), aqui, exatamente no que John Krasinski desenvolveu com outros dois roteiristas um plano legislativo de onde as regras partem, não se poderá negar que é inédito o poderio do cinema em recriar as máquinas corpóreas. O que eles sabem por ostensiva precaução, nós simultaneamente descobrimos e vivenciamos no ouvido (não esqueçamos que, para o corpo, a ótica ainda é o sentido de significação majoritário), por um desejo de antecipação do visto no que se ouve. 

Esse truque da densificação entre um caractere sabido e um outro, antecipável, sempre em “latência de”, tão bem cristalizado no Festim Diabólico (Rope, 1984), de Hitchcock, Krasinski leva ainda à outra dobra de confusão. Pois não é o prego pontudo e acidentalmente erigido na escada do porão onde eles habitam que irá engatilhar o urro de dor, mas a bolsa estourada que anuncia o parto, que traz como consequência a saída inventada pelo núcleo familiar para abafar um dos episódios mais barulhentos da vida, e, em especial, a previsão de que eles estarão unidos para dar cabo ao plano

Mulher sentada em frente a espelho

Descrição gerada automaticamente com confiança média

    Cinema, arte da desunião aditiva. Mais da metade do filme, dali em diante, tratará do estado emergencial do barulho, ponto em que todo o inesperado se desova numa caixa de Pandora partida ao chão. Pode-se dizer que há uma sequência inteira, uma provação só, unindo todas as não desejadas. A mais especial delas fica sob responsabilidade do filho, que, mais unido à escolástica materna, mune-se da sabedoria de dizer ao próprio pai que é preciso que ele DIGA, à filha, do amor que sente por ela. O professar, neste caso implícito na tentativa de criar para ela um aparelho de aumento de audição, deve ser atado a um praticar ainda mais sacrificial. Mas tentar apaziguá-la do problema auditivo já não era suficiente? Não nos parece ficar posta em evidência a suposição de que nem a mais pornográfica das caridades é suficiente, se parte dos olhos do pai para aqueles de um filho? 

É um filme, afinal, de morais. E para as morais perderá o horror. 

“O que o papai fez – está em você”, passa a ser o mesmo outro lema do segundo capítulo da franquia. Sabemo-la uma franquia, aliás, por isto: o evidente é transferido para o final, para uma catarse paupérrima de complexo edipiano cuja função já foi proferida por dezenas de vencedores de Oscar: “nós vendemos histórias”, o poder de atravessamento que uma superação provoca no indivíduo que precisará se superar, mas primeiro moralmente, abaixando-se ao poder que deve lhe servir de fonte. Não tratarão mais de uma ética do som espraiada nos acontecimentos de um jogo com (agora) quatro jogadores fragmentados, nem de uma estratégia do contra-ataque condizente com a SAÍDA de uma primeira etapa do silencioso, mas encontrarão na obsessão pela origem esse mesmo espírito de encarnação familiar que se espera “do vizinho”, politicamente falando. O vizinho estenderá ou não, a ajuda? Quando cessar os cadernos do passado, quando não enumerar mais os mortos e não contabilizar mais seus desesperos, ele ainda será o bom Emmett (Cilian Murphy)? O bom vizinho? 

A mania de origem, de encontrar o agora no passado, presenteia-nos com um prólogo inteiro dedicado ao que já se esperava que o espectador “qualquer” tivesse lido na tática dos jornais, no filme anterior. Uma entrada, convém explicitar, menos sobre a família, menos sobre as regras ou sobre os horrores adaptativos “do começo”; menos sobre o começo de tudo, em si, e mais sobre o caráter colecionável e industrial da cosmogonia. A que ela serve?, tampouco poderíamos responder. O que é definitivo ao filme é que o som, de ausência cultural, torna-se falação, do mesmo modo que as grandes sagas eventualmente se tornam bonecos, quebra-cabeças, camisas, canecas. A ambição é a de identificá-los com maior profundidade ao tipo de heroísmo que se prova ininterruptamente, em tudo e em todos os dias, e que para tal apenas precisa rememorar a bravura-pai. O passado é a Ideia que se amarra com a fita da boa lembrança, a Única.

Se tivesse argúcia o suficiente para beirar a crise de deus, este estaria envelopado perfeitamente na ética do pai-ressuscitado-que-por-nós-deu-tudo. No professar praticado desta ética. Do começo ao fim, o que se acusa, PRATICAMENTE, é que o armamento inventado por aquela família, a perturbação nervosa causada nos monstros pelo borrão sonoro dos transmissores, tão-somente recebe um dado extra de transmissão, advinda de um acontecimento do fundo do peito. É o fenômeno do rádio no Lugar Silencioso, e também o fenômeno da conversão filial – fim. É como descobrir que uma xícara levemente quebrada pode servir de cinzeiro, e ver neste um santo. E como a apoteose final é uma irrupção da dimensão pela qual eles se munem contra um número (só aparentemente) cada vez maior de monstros, quem sabe a saga não precise de dezoito continuações para que eles cheguem a algum encontro à altura do descanso e da troca de inteligências. O som, o conceito do som, o espaço extrassensível imantado pelo som, sabe-se lá se não encontra, adiante, uma maneira menos letal de ressuscitar também a Wi-Fi. 

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Vigilância e ruído em Hacked Circuit (2014) de Deborah Stratman

Por Natália Reis

“Such a satisfying idea – noise annoys – at once

simple-to-grasp kernel and yet capable of inflation into

the most grandiose theories of subversion. But… who

is there to be annoyed and in what ways?”

Simon Reynolds

Astro Noise foi o nome dado por Edward Snowden ao arquivo encaminhado à jornalista Laura Poitras em 2013 contendo os documentos que atestavam uma série de violações de privacidade cometidas por inteligências governamentais nos EUA pós 11 de setembro. A designação é uma referência ao fenômeno descoberto acidentalmente na década de 1960 pelos astrônomos Robert Wilson e Arno Penzias, conhecido como cosmic microwave background radiation (radiação cósmica de fundo em micro-ondas) – um tipo de “eco” ancestral do big bang captado através de um ruído constante nos equipamentos do Bell Labs e cuja radiação pode ainda ser detectada numa porcentagem ínfima da estática da TV. Em um curto ensaio para o catálogo da exposição artística de Poitras (também nomeada “Astro Noise”), Snowden compara a “canção secreta das estrelas” e a aleatoriedade com que pôde ser descoberta às técnicas de criptografia e descriptografia, que refletem tanto a proteção quanto a possibilidade de exposição de nossos dados. 

O ruído por vezes é tido como sinônimo de erro, poluição, um fator externo de intromissão, não categorizável. Musicalmente falando, o crítico Simon Reynolds diz ser possível defini-lo como “interferência, algo que bloqueia a transmissão, atrapalha o código, impede que o sentido seja feito. (…) ocorre quando a linguagem é rompida, é um estado de afasia no qual nossa própria constituição corre perigo.”. Se em algum nível o ruído também pode ser compreendido em termos subversivos, a figura do whistleblower é potencialmente ruidosa quando expõe e desestabiliza um sistema perverso de vigilância e controle. Em Hacked Circuit (2014), filme dedicado a Edward Snowden e ao montador e sonoplasta Walter Murch, a realizadora Deborah Stratman explora a natureza dissonante do ruído para trazer à tona, num plano sequência de quase 14 minutos, procedimentos ocultos da sonorização cinematográfica ao mesmo tempo em que percorre sorrateiramente o espectro paranoico que tomava de assalto o cidadão comum após as revelações de Snowden.  

Já nos primeiros segundos do curta-metragem, somos levados a uma espécie de estado de vigília. O tema musical de A Conversação (Francis Ford Coppola, 1974), um piano solitário e repetitivo composto por David Shire, parece controlar o ritmo com que o cinegrafista avança lentamente por uma rua escura e deserta com o steadicam. Aos poucos, a trilha dá lugar a um tipo de operação acusmática na qual sons de objetos pesados chacoalhados, estampidos e baques em superfícies de metal e madeira podem ser escutados, mas não localizados. Um zumbido persistente se mistura à campainha de um telefone e a uma voz masculina abafada enquanto a câmera prossegue em sua trajetória pela calçada até entrar em um edifício bem iluminado. Até esse ponto não existe nada que indique uma pista do ambiente, nenhum sinal da intenção por trás desse movimento perscrutador.   

Os ruídos cessam para dar lugar à sonorização diegética, que emerge diante da visão de um homem no interior do local servindo café de uma cafeteira. Ele sai de quadro e uma panorâmica lentamente vai revelar o que até agora se manteve incógnito na imagem, mas presente no desenho de som: num estúdio (que mais tarde descobriremos se tratar do Sound Satisfaction, Inc. em Burbank, Califórnia), equipado com uma mesa de sonoplastia, um operador (o mesmo homem que vimos na antessala) observa nos monitores à sua frente Gene Hackman como Harry Caul, o protagonista de A Conversação, ao passo em que um artista de foley do outro lado da mesa acompanha com atenção suas movimentações. 

A cena exibida em quatro telas de tamanhos diferentes retrata os momentos derradeiros do filme de Coppola. Nela, Harry Caul, um especialista que presta serviços privados de espionagem, colapsa ao contemplar a possibilidade de estar sendo submetido aos mesmos métodos de vigilância que empreende diariamente. O personagem de Hackman passa a buscar por dispositivos de escuta até destruir completamente seu apartamento, mergulhado na degradação das certezas que mantinha sobre sua privacidade. Lançado ainda no calor do escândalo de Watergate, e com Walter Murch responsável pela edição de som, A Conversação é uma obra que se apoia de forma substancial nos seus aspectos sonoros para estabelecer um clima delirante de vulnerabilidade e desconfiança. O que Stratman faz em Hacked Circuit é deslocar desse contexto um ponto crítico e desmontá-lo como quem exibe o esqueleto metálico de um mecanismo. O circuito é exposto, desvendado. 

Numa coreografia quase orgânica e ao mesmo tempo cautelosa, a câmera se movimenta pelo estúdio testemunhando as técnicas empregadas pelo artista de foley, que troca instruções com o operador da mesa enquanto reencena, fazendo uso de diferentes objetos – um gesto que  revela ainda outro aspecto do som, para além da comprovação: a dissimulação –, todo o episódio final de aniquilamento. O steadicam atravessa o ambiente e sai pela porta de trás num movimento de recuo, os sons são projetados para fora e o cinegrafista volta para a rua escura. O tema de Shire reaparece em meio a uma profusão de ruídos cada vez mais altos, reconhecemos a calçada, a esquina, reavistamos a entrada do edifício. Nesse movimento circular, o circuito se fecha e um pacto é selado. Cabe a nós como detentores do segredo desconfiar do que vemos e ouvimos a partir de então. Encerrar o filme “com pedidos de desculpas, gratidão e admiração” a Snowden e Murch é reafirmar a necessidade de atenção aos sistemas que se desenvolvem longe dos olhos, sejam eles de dedicação artística às paisagens sonoras, sejam eles de repressão. 

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A voz, essa sobrevivente

Por Rubens Fabricio Anzolin

Começo pelo princípio: o verbo. Capitu e o Capítulo (2021), assim como boa parte dos filmes recentes de Júlio Bressane, é uma obra falada. Ou melhor dizendo: uma obra declamada. Uma obra em que qualquer respingo de verdade irá se revelar senão através da encenação, elemento inerente a qualquer ruído sonoro que a escrita antropofágica de Bressane privilegie. Em Capitu e o Capítulo, ouvimos o barulho do mar, que sobrevoa soberano as paredes de uma casa depauperada. Há também um piano afiado, no interstício das cenas picotadas dos outros filmes do cineasta. Por fim, temos ainda o violino, tocado com esplendor por um músico fleumático, em riste, enquanto os pensamentos de Bentinho (Vladimir Brichta) encontram-se cada vez mais e mais em direção ao delírio. Nenhum destes ruídos, no entanto, é capaz de dar conta da realidade, são todos sons de um mesmo fingimento, de uma mesma peça de arte amorfa que é Capitu e o Capítulo. Aliás, o grande trunfo do cinema de Bressane talvez repouse justamente nesse distanciamento moral com o mundo, muito político, por sinal, em que o cinema de tão irreal e alastrado torna-se cada vez mais verdadeiro. À parte o desvio, voltemos à Capitu, e principalmente ao  que interessa: a voz de Capitu. É somente na voz, aquela mesma que sai da boca afiada de Mariana Ximenes e do clamor exotérico de Enrique Diaz (Casmurro) em que podemos confiar. Em um filme como este, cerceado por estímulos tão deformados, a voz é a única verdade da mentira de Bressane.

Existe uma cena, logo no início do filme, em que dois homens são vistos de cima, conversando, apenas através de seus chapéus. Neste ínterim, nada se escuta, e tudo o que nos é proposto pela imagem é exatamente isto: a suposição. Algo muito parecido se dá logo a seguir, quando Capitu circula com um giz na parede a sombra do rosto do marido. Isto é: para Capitu, o que importa é menos a imagem real de Bentinho, mas sobretudo a imagem projetada pela luz que atinge o marido. No universo de Bressane, a sombra sempre foi um portal para o enlevo, o desatino, já que ela, mais que tudo, é um atributo da escuridão, local onde tudo pode se formar à face do olho, a partir da incerteza da luz. Pensemos no monólogo de fundo vazio de Sedução da Carne (2019), interpretado por Mariana Lima, ou mesmo no Casmurro/Machado de Enrique Diaz, rarefeito às fantasmagorias de uma literatura brasileira fadada ao apodrecimento precoce (como Junqueira Freire ou Castro Alves). Personagens regados ao invisível do preto, à liberdade das masmorras, e que são por isso formas não-absolutas, um tanto quanto indecifráveis. Se em Capitu e o Capítulo Mariana Ximenes contorna o perfil das sombras de Bentinho, idealizando um objeto em falso, é justamente porque a sombra não é Bentinho, mas sim sua projeção, sua deformidade. 

Tal projeção, aliás, concebe-se finalmente neste contraste de uma imagem sem voz: Vladimir Brichta pode elucidar a insanidade que acomete Bentinho: sua voz sobrevive à deformação da pele, aos olhos arregalados, à suposição da traição que o ator encarna. Já a sua sombra (aquela que Capitu projeta) permanece como sendo silente – eis uma voz em falso, uma miragem. A sombra de Bentinho é muda, inane, resultado exclusivo do que se projeta a partir do seu rosto. Sua sombra não tem voz, coisa que permite ao desenho sonoro de Capitu e o Capítulo contornar o imaginário de seus personagens na mesma medida em que Júlio Bressane cria costuras de sonoplastia nos entre-lugares: as cenas de seus filmes anteriores, a praia carioca, as orquestras que permeiam muito mais o imaginário do filme do que o filme em si. A partir daí, assimilar que Capitu prefere enxergar não a Bentinho, mas à sua sombra, é essencial: pois gradativamente o personagem vai aderindo à perturbação de sua própria imagem, de sua altivez sonora – coisa que a cena do corvo, mais ao final do filme, dá conta de comprovar, quando o delírio enfim toma desdobramentos reais, num esgoelar-se a si mesmo violento que os olhos não podem ver – apenas supõem, com os ruídos do animal fazendo as vezes da garganta do personagem. Quando se perde a imagem da mentira, nem mesmo o campo sonoro resiste à tentação de também querer-se um enganador.

Há muito tempo, inclusive, que me parece que o cinema de Júlio Bressane passa por essas paredes da suposição, jogos teatrais enigmáticos e espaciais que revelam sobretudo aquilo que transborda a mente de quem vê. Um local em que apenas a voz é imune ao delírio, pois nela reside a certeza da fala. Coisa parecida já tinha sido fabricada nos teatros de guerra de Cleópatra (2008) e Beduíno (2016), à base de monólogos, e que retorna de modo fulminante em um filme mais silencioso como Garoto (2015), quando as sombras das pedras e a melodia da natureza dão o tamanho da tensão do mundo.

Diante de tais formulações frequentes no universo do cineasta, o imprescindível está no fato de que a camada sonora invade o mundo na ausência da imagem, na presença da escuridão. A partir do momento em que nada se vê – ou que aquilo que se vê também se perde, se indiferencia – a melodia passa a fazer parte da bagunça, restaurando a desordem natural do mundo. Enfim, soa-me ser este o resultado final do procedimento bressaniano: se o fundo é o vazio, se as imagens chocam-se constantemente, a sonoplastia funciona para adulterar ainda mais esta bagunça, forjando à fórceps um imaginário caótico. No entre-meio destes jogos de delírio, dessas brigas de casais e das reconciliações inesperadas está a voz, esta sobrevivente. Por isso mesmo é curioso que um filme como Beduíno (2016), por exemplo, seja basicamente uma grande DR: pois tudo que se imagina e repele no outro está no campo da indefinição, da deformação e do ruído, enquanto tudo aquilo que é capaz de conciliar os dois amantes pertence apenas ao coro da declamação, ao que nasce com o ator, ou seja, à voz.

É nesse sentido que Capitu e o Capítulo dá continuidade a um ciclo de cinema que cada vez mais se interessa por uma arte da mancha, uma arte do ruído. Investigar no plano as deformações da imagem, do rosto, dos corpos. Afinal, se Dom Casmurro sempre foi sobre o distúrbio emocional que é o ciúme – sobretudo acerca daquilo que as imagens e os sons do ciúme produzem no inconsciente, de maneira quase elementar -, Capitu… é um pouco sobre esse distúrbio que está na imagem, no rumor, nos espelhos distorcidos, na pintura de olhos (que remetem tanto à mãe de Bentinho quanto a uma miragem de Capitu) que vigia e rege tudo ao redor. Uma mesma sensação que, inclusive, encontra-se no pseudo-narrador de Enrique Diaz (que interpreta Casmurro e assina como Machado), numa espécie de piscadela de olho de Bressane em fazer um dois de um, como se fosse ele todo, enfim, uma coisa só. E como se o torpor que emerge de Vladimir Brichta fosse exatamente fruto daqueles papéis destroçados de Diaz/Casmurro/Machado, resultado de uma noite incólume, banhado nas incertezas da escuridão de uma poesia brasileira já ferida e derrotada, encolhida em um sono de morte.

Em síntese, Capitu e o Capítulo é antes de mais nada um filme sugestivo, lacunar, de portas abertas, mas que mais e mais se anula e imbrica na mesma medida em que existe. Um pouco como o narrador de Dom Casmurro, mais sugestivo que acertivo, mais especulativo que taciturno, que quanto mais projeta mais se perde na própria miragem, transformando culpa e desejo em coisa única, indistinta, fundamental. Mecanismo deveras similar, vale lembrar, à relação dupla que estabelecem Sancha (Djin Sganzerla) e Capitu, seja pela fisionomia ou pelos cabelos louros que facilmente se confundem aos olhos de Bentinho. No cerzir dos panos, depois de toda a deformidade, depois de todas as lacunas lacunas, depois da imagem perder os sentidos, os contornos, depois de virar pintura, transe, sombra, retornaremos à voz, à declamação, à poesia maldita de Álvares de Azevedo que Diaz tão lindamente refaz. Pois o que unicamente permanecerá no cinema de Bressane será sempre a voz, ilesa aos enganos, aos desvios sorrateiros da imagem, às flores murchas que tomam conta do cenário, ao espelho deformador. 

Quando enfim Sancha colocar um véu sobre a câmera, como quem borra aquilo que se vê de uma briga de casal, como quem produz a mentira, ficaremos não com a sombra de Capitu, não com seu perfil errático, desmedido, mas sim com a sua voz, inane à mentira, certeira nas palavras, limpa e clara como no cinema dos grandes cineastas, que fazem da poesia sobretudo aquilo que se escuta como resultado do corpo, como se o cinema fosse um livro que pudesse ser visto. Ficaremos com Capitu, mas na certeza de que toda ela é uma aberração, um monstro, um desvario, um objeto indefinido ao mesmo tempo que é tudo. 

E depois não restará mais nada. Nem mesmo os créditos. Entrará um samba agudo, uma câmera na mão, e Júlio Bressane derrubará ao chão toda a nossa fantasia, todo teatro de fantoches. Já que, afinal, o cinema é apenas uma mentira. Das boas, é verdade. Mas ainda assim uma bela de uma mentira.

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A conquista do barulho

Por João Pedro Faro

Como as cartelas de texto no cinema silencioso, a trilha de som em À lombre de la canaille bleue (1985) existe paralelamente às narrativas estritamente visuais. Da mesma forma, quando lhe interessa, irrompe a desconjunção em que se insere para colar com as imagens. Diálogos ora são ignorados por ela e preenchidos pela música incessante, ora acabam por serem dublados (estando sempre descolados dos lábios dos personagens). São falas que se explicitam narrativamente, mas permanecem em um outro tempo, em uma outra linha de construção (onde o som direto não existe). Isso não significa que som e imagem estejam em guerra, está mais para um convulsivo desencontro onde tanto o que se vê quanto o que se ouve percorre uma trilha paralela de imprevisibilidades que acabam por formar, no processo do tempo de tela, um filme sísmico e barulhento.

Pierre Clementi, realizador, ator, cinegrafista, saxofonista e incendiário, estabelece sua câmera Beaulieu como que em uma autoritária livre-associação de registros por Paris (aqui rebatizada de Necrocity), o que quer dizer que tudo pode ser filmado ao mesmo tempo em que se fixa sobre personagens teatrais e tramas futurísticas mirabolantes com a precisão de um furor narrativo. Não à toa, o personagem que interpreta em cena é o próprio canalha a quem o título se refere, uma espécie de autoridade máxima que trabalha para manter a cidade de Necrocity a mais caótica possível. Nessa trama, ininteligível em termos típicos, mas concentrada e linear para padrões vanguardistas, um grupo de personagens destrutivos (que vão de líderes de organizações criminosas até viciados proféticos) transita e persegue-se por entre espaços urbanos altamente ficcionalizados. São como as figuras que Lang aprisiona em Spione (1928), revestidas por couro e habituadas à correria, mas na estetização junkie de uma sociedade não mais estruturada pelos poderes, mas pelos desejos. 

O que os persegue é essa trilha de som incessante, pertinentemente ruidosa, que combina improvisações musicais pós-punk com a linha de narração declamada por Clementi, e alguns restos de diálogos dublados fora do tempo. Essa amálgama sonora derrete as imagens ao longo da projeção, desafia constantemente qualquer concepção diegética para evidenciar processos alternativos de realização decididos a não se conformarem, a irem por caminhos difusos que rumam para as combinações mais violentas. São instrumentos metálicos que se associam a guitarras em reverberação e sons indecifráveis, sobrepostos pelo ritmo das palavras de Clementi. 

As palavras, de um texto críptico que oferece grande parte do extracampo à encenação ficcionalizada, apontam para diversos signos policialescos e futurísticos que expandem o que discorre pela estrutura entorpecente do filme, sem nunca interromper o fluxo do indecifrável. Ou seja, a pronúncia de frases que determinam personagens por títulos – Seringue para uma viciada em heroína, ou Inspetor Bastão para um dos algozes – os posiciona nesse cosmo teatral de definições popularescas, ao mesmo tempo em que os mantém em uma abordagem de indefinições e incompreensões: um furor lírico fortificado por palavras declamadas em voz firme e imagens que as oferecem mutações caracterizadas. Enquanto narra as confusas ocorrências de um mundo inventado, a voz de Clementi é soturna e controlada, dedicando a cada frase o tempo de um verso transmutado para uma tirinha dominical aventuresca.

O que ocorre, portanto, é uma construção sonora decididamente narrativa, que se comporta esteticamente pela fruição de suas raízes ulteriores à imagem. Ao passo em que lhe permite remembrar os registros através de uma narração que lhes dê escopo, também o inconforma com caminhos para além do que se vê, ou então, que define as imagens mais do que elas próprias, por conferir todo o sentimento à encenação. Não por acaso, a rítmica musical do longa quase nunca se encaixa com a duração dos planos, elas não convergem temporalmente, pois o tempo da música está interessado em aglutinar-se com o ritmo das texturas e dos ruídos imagéticos que perpassam as imagens. Especialmente nas sequências internas e, mais ainda, nas internas dos apartamentos arruinados dos junkies distópicos, as texturas sonoras e imagéticas encontram um compasso raro nas andanças da obra. Nos caminhos noturnos pela cidade, é tarefa das luzes de bares e faróis aglutinar-se à melodia dos metais, gerando essa sensorialização espacial e ambiental que é, acima de tudo, narrativa.

A máquina de Pinball, uma das imagens recorrentes de À l’ombre de la canaille bleue, acaba por ser um signo para certa elucidação da experiência: um composto vulgar de pequenas caracterizações que funcionam para que um centro de interesse (a bola, ou no caso, a câmera) passeie por luzes cintilantes e barulhos agudos (por vezes, até enfadonhos) por esse gesto quase lúdico de momento. Os cantos atingidos por esse meio de captação colecionam ideias de ficção científica, política, erotismo e aventura pelo gosto da acumulação, onde está toda essa carga de berros, palavras, ruídos e deformações sonoras construídos pelas deixas dos registros imagéticos que encenam (e também sobrepõe) personagens, cenários e situações sem começo ou fim, apenas acumuladas nessa perseguição por reverberações fílmicas que se amontoam para inventar um mundo próprio onde tudo que restou são as sensações. 

Se o cinema sonoro inventou o silêncio, dá para dizer que o produto cinematográfico de Clementi é uma conquista de invenção do barulho, onde ele é o definidor estético e dramatúrgico. Quanto mais alto, maior é a euforia, quanto mais distante, maior a devassidão. O barulho, aqui, é todo um rumor de combinações entre o concreto e o nebuloso, tendendo sempre à incompreensão, em que os sentidos do ouvinte são avidamente sequestrados por suas modulações, e onde as tramas das imagens encontram não apenas o sentimento (que não está delimitado pelas performances dos atores), mas também as dimensões dos cenários, o eco das cores e o alcance das luzes.

Termina sendo lógico que a última palavra que Clementi declama, antes de ler os créditos da produção, seja justamente “ficção”. Enquanto a única trilha, que reina por 80 minutos como composição fílmica sem interrupções, monta e remonta as encenações presentes na imagem, o que há de constante, em um filme onde a instabilidade de seus processos é o pilar da estrutura, é a capacidade de fabulação do disforme, do arranhado e do ensurdecedor. 

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Às mulheres que seguem, ignorando o falatório

Por Geo Abreu

Grata surpresa conhecer Imo, de Bruna Schelb Corrêa, três anos após sua estreia na Mostra de Cinema de Tiradentes, em 2018. Ignorante das críticas feitas ao filme nesse primeiro momento, passei por ele, feliz em testemunhar os exercícios de experimentação e a clara adesão ao surrealismo como escolha nas representações, fato raro no cinema feito por mulheres no Brasil dos anos 2000.

De cara, o som em Imo chama atenção. Ele transforma a atmosfera de uma casa no interior de Minas Gerais em fundo plural de vozes que alteram a qualidade do silêncio desejado (ou imposto?) às personagens. Através do uso do som diegético, da edição de som e foley, o filme apresenta diálogos que não são pautados por texto e incorporam à encenação as diferentes expressões de vida ao redor daquela casa, apresentando cenas nas quais o que está no centro da ação são os animais ou objetos com os quais se relacionam aquelas mulheres.

Som de passos na sala de estar, na qual estão presentes apenas um canário e uma samambaia. O canário cumprimenta a mulher que chega alterando o espaço e pondo a samambaia, velhinha e de folhas amareladas, na cadeira de balanço. O pássaro, inquieto, faz perguntas e é ignorado. Sua voz e presença perturbam a atmosfera que está para ser criada: um cômodo com paredes esquecidas em que o principal ponto de cor é o corpo da mulher em frente ao espelho a se observar cuidadosamente. O peru, com seu vozeirão, faz um comentário do lado de fora da casa, algo que soa como reprimenda. A mulher tenta seguir com seu ritual e ignora o falatório.

A escolha formal da ausência de diálogos tem sido apontada em vários textos sobre o filme como alusão às táticas de opressão aos feminismos no mundo cisheteronormativo. Muito pouco se falou a respeito das necessidades das mulheres que apreciam o silêncio. Ou, como o filme demonstra, se não há silêncio, pois tudo é vida e pulsa ao redor, será que podemos gozar de períodos na ausência de voz e julgamentos humanos?

O telefone toca. A mulher observa o desespero por atenção e não o atende. Ao invés disso, bate com os tamancos no chão a fim de tirar uma música qualquer daquele dia. No plano em que Mc Xuxu está à mesa cortando maçãs enquanto é cercada por diversas mãos, que surgem do nada para perturbar sua tarefa de ignorar o telefone, lembramos Jeanne Dielman e a performance do cotidiano capaz de transmitir verdades indizíveis. Nessa mesma sequência, passamos de Chantal Akerman a Luís Buñuel entre as diversas tentativas que finalmente promovem o encontro entre o fio da faca e a mão que, decepada, se transforma em lembrança em uma caixa. Alguma mudança no comportamento da mulher enclausurada em casa é produzida a partir dessa associação, na passagem da aceitação repetitiva das tarefas domésticas à violência encenada como absurdo nesse corte que figura a raiva acumulada de séculos. É assim que Imo explora referências fílmicas e a vivência feminina do mundo, apresentando ações cotidianas em tons absurdos e conduzidas ao clímax em performances de violência envolvidas numa aura de irrealidade e signos reconhecíveis, aliados ao usos cruzados de referenciais clássicos.

Só na terceira visualização percebi que a moça que se oferece em banquete pode ser vista como profissional do sexo. Ou não. Pode ser apenas uma mulher curiosa: “Como deve ser estar nua na mesa com aqueles quatro homens ao meu redor?” Nunca saberemos onde Bruna Schelb quer chegar e ainda assim aquele conjunto de performances nos atravessa. O envenenamento do grupo no último ato faz pensar na redistribuição do trauma, feridas abertas, vulnerabilidade e violência no espaço da intimidade; histórias que quase nunca viram conversa e seguem seu ciclo se transformando em rancores que vão se acumulando em nossos corpos e envenenando a todes que nos tocam.

O casarão de aspecto abandonado parece sinalizar estruturas falidas, pactos rompidos. Nos três atos, observamos as personagens presas àquela estrutura colonial que, mesmo desgastada, perdura como um lugar fora do tempo e expõe continuamente quem o habita às suas armadilhas. A diferença se fará sempre que, conscientes dessas repetições, as mulheres escolham responder aos desafios de maneiras inesperadas, como em um jogo quando optamos por um movimento não calculado, que altera o rumo previsto e incita a próxima jogada da inteligência artificial e a instauração de uma outra margem. A abertura de novas quebras é habitada nessa lenta, contínua e aparentemente inesgotável guerra de posições.

Na tentativa de marcar posição no debate crítico e se opor à norma vigente na recepção de filmes realizados por mulheres em circuitos de presença majoritariamente masculina, outras normas parecem estar sendo definidas para classificar o cinema feminino hoje. Falo aqui a partir de alguma recepção de Imo após a exibição em Tiradentes. Apesar de recebido como boa surpresa no âmbito do cinema de experimento, o primeiro longa de Bruna Schelb acabou alvo de críticas a respeito do uso de figurações de um feminismo que se apontou como anacrônico e raso (a ambientação doméstica das ações e o silêncio; a encenação do corte da mão masculina como gesto fraco do que se poderia entender como uma ruptura com o patriarcado; a fonte do sangue que envenena as pessoas no último ato, etc) A recorrência no uso destes signos ligados à opressão feminina não os tornam menos eficientes, principalmente se a eles forem ligadas imagens que denotam a agência daquelas personagens e a possibilidade de desestabilizar os jogos de poder ao optar por caminhos e soluções inesperados. 

A dúvida aqui é se todo filme realizado por mulheres hoje deve necessariamente atender às demandas dessa outra norma: estar em dias com a agenda do debate feminista atual para ser considerado “válido”. Aliás, válido para quem? Ressalto que essa atualidade das teorias é informada por pesquisas acadêmicas que levam o tempo das diversas mediações necessárias até se tornarem de conhecimento público e, portanto, apontar anacronia no uso dessa ou daquela figura que porventura tenha sido superada no âmbito dos estudos de gênero desqualifica a vivência cotidiana das opressões, que tal como na cena da mão decepada, não desaparecem apenas porque desenvolvemos outras formas discursivas de abordá-las. Então, em quais parâmetros éticos se baseia a abordagem de uma produção como Imo, partindo de suas fragilidades formais ou de repertório para justificar uma adesão fraca do filme a um discurso de expressão dos feminismos existentes?

É difícil acompanhar realizadoras brasileiras que tenham a oportunidade de mergulhar em suas pesquisas, partindo de erros e acertos para amadurecer um estilo. É preciso ser livre para experimentar por experimentar, sem que pese sobre a realização uma agenda a cumprir, o que não significa dizer que cinemas engajados e militantes não sejam importantes. Cada uma deve se sentir à vontade para localizar as lutas feministas em seus discursos e formas, e escrevendo essa frase me sinto estúpida por sublinhar algo tão óbvio. É patente que a cada marcador, cada categoria ligada à realização de filmes classificados como feministas, realizado por mulheres, que performam a luta feminina por igualdade de direitos, outros muitos filmes tão importantes quanto para a representação das mesmas causas ganhem menos visibilidade em mostras, festivais e circuitos de exibição devido às formas não tão óbvias de apresentação de suas lutas pela expressão/representação feminina no mundo. A que serve, afinal, essa patrulha?

Imo, filme de experiência, de tatear mundos mais do que impor qualquer ideia fechada sobre como devem ser as representações a partir de um outro olhar, é o tipo de filme que me interessa ouvir e dar olhos, encorajar a continuidade da pesquisa, o amadurecimento do estilo, esperar pelo próximo.

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A Poesia Sonora de Blue

Por Chico Torres

Blue (1993), de Derek Jarman, é uma obra composta de fragmentos sonoros-textuais que se conflitam e se complementam, em uma interpenetrabilidade constante. A força dessa contradição produz a unidade estilística do filme e o preenche de humanidade. Todos os riscos de Blue, suas mudanças bruscas, seus saltos narrativos, suas múltiplas atmosferas ganham um relevo homogêneo devido a essa energia que unifica forças ambíguas: temos, então, vida e morte, céu e inferno, sublime e banal amalgamados através de uma unidade poética que oscila como o badalo de um sino que produz dois sons que se separam e se unificam ao mesmo tempo.  

A narração, os diversos efeitos sonoros e os temas musicais funcionam não apenas como criação não visual de um tempo-espaço que precisa ser imaginado. Eles também cumprem essa função, mas não determinam o tom do filme. Blue não pode ser visto como uma obra cinematográfica que “perdeu” sua imagem e que agora tem na narração, nos efeitos sonoros e na música os elementos que devem sustentá-la, deixando que as imagens sejam produzidas individualmente, em nossa subjetividade. Pelo contrário, a obra cria uma série de fragmentos sonoros-textuais que podem ou não determinar um tempo-espaço, mas que também são poesia, discurso, manifesto, ensaio etc. Tal multiplicidade narrativa e sonora que se apresenta diante da tela azul, portanto, não apenas sugere imagens, mas, sobretudo, sensações, muitas delas de caráter abstrato ou contemplativo.  

O filme possui uma estrutura narrativa cubista. A princípio, a narração, sempre estabelecida como monólogo interior, se estrutura em diferentes ambientações: uma voz que evoca, através da poesia, a beleza sublime do azul; um homem em situação de guerra que vive suas mazelas; e o relato do próprio Jarman e sua experiência com o HIV e a perda da visão. Essas vozes, à medida que se repetem, se misturam e surgem como que contaminadas por todas as ambiências que fazem parte da obra. Essa multiplicidade de vozes, afinal, representa a interioridade do próprio Jarman, seja em forma de poesia, de metáfora ou da mais crua e terrível realidade. Aqui ele se apresenta, com a mesma intensidade, como poeta, pensador e ser humano consciente de sua finitude, expondo sem melindres a aspereza que essa consciência pode provocar. 

Toda a sonoridade do filme acompanha sua narrativa, sempre através do equilíbrio entre suas tensões. Se temos a evocação poética acompanhada por uma música barroca, uma elegia ao azul, temos, por outro lado, elementos sinistros que se estabelecem não só através da música, mas também de ruídos e ambientações sonoras. A diversidade musical e sonora é imensa: temas musicais que se sustentam por si mesmos ou são um paralelo daquilo que é narrado; paisagens sonoras que cumprem funções narrativas, poéticas e sensoriais; elementos sonoros que presentificam o personagem que narra (os sons do bar do homem que vive a guerra; os sons dos aparelhos médicos, das ondas do mar etc). Ainda que esses elementos possam surgir separadamente, há um esforço constante de mesclá-los, de modo que os elementos sonoros se complexificam junto à multiplicidade narrativa. À medida que o filme avança, aprofunda-se a fusão dessas vozes e desses sons, havendo a unificação entre o celeste e o demoníaco. Desenha-se, assim, a alma do criador, em conflito constante, nos proporcionando sensações ambíguas, sendo possível, por exemplo, sentir calma e angústia ao mesmo tempo. 

Blue, enquanto um filme-ensaio, extrapola a estrutura autobiográfica e memorialista baseada no formato diário/monólogo interior. É a poesia que contamina todo o filme, não apenas em sua presença explícita em seu tom propositadamente exagerado, mas também em suas incursões disruptivas, em sua maneira não convencional de fundir sensações e ambientações. Ainda que pese toda crueldade do mundo real, com a presença da morte e da maldade em suas múltiplas formas, Blue é também sobre a beleza, sobre uma beleza profunda e ao mesmo tempo superficial, que corre sobre os ouvidos e que é simples como o azul que insiste sobre a tela. Uma obra múltipla, polifônica, que entende a contradição como a estrutura da vida e da subjetividade humana. É assim que Jarman compôs o seu testamento, nos entregando a força de sua angústia, de seus pensamentos e, sobretudo, de sua poesia.

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Rio, 360 Graus (Rio Babilônia, Neville D’Almeida, 1982)

Por Anita Gonçalves

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Em “A Frente Fria que a Chuva Traz” (2015), longa mais recente de Neville D’Almeida, o desmantelamento do Rio de Janeiro “Cidade Maravilhosa” se faz por via do tempo fechado, tapando qualquer brecha de luz solar, qualquer eventual perspectiva de esperança naquele espaço trágico e arruinado. Em contraste, “Rio Babilônia” (1982), realizado mais de quatro décadas antes, também partilha da dissolução do estatuto de cidade-paisagem idílica e harmoniosa, mas, dessa vez, através do Sol, irradiante: ao mesmo tempo que queima e incendeia o asfalto, incide sobre e ilumina tudo aquilo que, em ebulição, se vê fora das limitações de uma representação estática, despovoada e sóbria de “cartão-postal”.

Como ponto de partida em “Rio Babilônia”, existe tal imagem do “Rio de Janeiro cartão-postal”, enquadrado perfeitamente através da janela do edifício da Companhia Nacional de Relações Públicas: é o Rio de exportação, disciplinado e devoto aos gringos, fonte geradora dos lucros e luxos dos que ganham com a venda de tal representação de cidade. Mas essa paisagem postal, imaculada e despovoada, será justamente convulsionada, corrompida e superada, havendo, em contrapartida – e que passa a ser central, revelado pela luz do Sol de 40 graus – tudo aquilo que essa imagem pura de “Cidade Maravilhosa” necessariamente esconde. Em um momento de diálogo entre Marciano (Joel Barcellos) e o excelentíssimo Doutor Liberato (Jardel Filho), quando este, aparentemente gozador de um estatuto público de prestígio e imponência, em uma espécie de elogio, diz que a cidade caminha ao progresso, querendo exaltar a paisagem polida e virginal com a qual se depara quando vai ao clube e sobrevoa o mar e os prédios de helicóptero, Marciano rebate: “construíram aquele prédio e esconderam a favela que tem ali atrás”.

Opondo-se a esse ato de “esconder”, “Rio Babilônia” é um filme que repudia o privado e celebra o público, operando primordialmente por meio de uma qualidade, baseada na luz e frontalidade, que impede a existência do privado e obstrui qualquer ensejo de sigilo. O Rio de Janeiro de contrastes e contradições – complexo e diversificado, e sobretudo desigual, ocultado pelos prédios, indústrias, empresas e (especialmente) cartões-postais – é fulcral, sendo aquilo que se desejaria esconder e privar, aqui, o coração das imagens.

Por meio das lentes confrontadoras e nunca mansas de Neville, há uma exposição da desigualdade, da violência e de um povo que passa fome, em meio ao contexto praticamente explícito de crise inflacionária e carestia (“a inflação cai, mas a comida não”, manchete discreta de um jornal). Assim, a cena onde Marciano mostra o “real Rio” à estrela norte-americana Linda Lamar, desobedecendo às próprias limitações territoriais da cidade, capital do estado propriamente dita, e levando-a para a Baixada Fluminense – mais especificamente o momento do saque coletivo à caminhonete que transportava feijão –, é certamente violenta e brutal, praticamente uma cena de batalha que expressa a tamanha fome da multidão; mas também, em um estremecido clamor de “feijão para o povo”, dignifica aquele ato e expressa a celebração do público, fazendo da cena envolta por uma atmosfera eufórica de esperança na potência energética, rebelde e insubordinada de um povo (ainda) oprimido.

Já na cena do Morro da Babilônia, o morro é uma espécie de templo sagrado, genuinamente belo e instigante na orbe fílmica; no entanto, desprezado e violentado por aqueles que não conhecem verdadeiramente sua força divina. É lugar de sincretismo onde Jesus Cristo e Oxalá convivem em harmonia, mas, ainda assim, onde a violência invade e irrompe nas imagens de serenidade. Dona Zica, aqui praticamente feita uma santa, reza a Ave Maria, enquanto o canto que escuta no rádio invade as imagens de violência; e, apesar de sua força sagrada – que no fugaz tempo que perdura nas imagens, já as toma -, tem um policial apontando o revólver em sua cabeça. Mesmo que seja o morro o ponto mais alto, onde o Sol menos incinera, onde a brisa bate mais leve e onde o céu está mais próximo, os policiais atiram e matam a sangue frio; enquanto milionários, criminosos impunes, fazem a festa – até que o asfalto esquenta demais, derretendo as extravagantes armaduras da burguesia.

O filme expõe as paixões, prazeres e fraquezas, tidos como motivo de constrangimento, de figuras de um “corpo dominante”, despindo-as, tornando-as dominadas, vulneráveis e enfraquecidas, submetendo suas representações por meio da qualidade fílmica de um cinema que enfrenta e subverte a realidade. No ato final do assalto que interrompe a performatividade da festa privada da elite, filma-se, com irreverência, e aqui sim, capturando, como reféns, seus convidados da cabeça aos pés, exibindo aquelas figuras de forma tão crua, fora de seus pedestais, sem terem como recorrer aos seus estatutos, pois estão atadas e amedrontadas. Em “Rio Babilônia”, no tocante a uma certa condição frontal e humana das imagens, o que interessa é o que está debaixo dos vestidos das madames e dentro das calças dos doutores.

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O prazer generalizado, enrustido nos discursos e publicizado e liberto nas imagens, paira sobre todo e cada plano, frustrando esforços para delegá-los à esfera privada, constrangida e retraída em si mesma, inexistente e ofuscada pelo clarão solar em “Rio Babilônia”. A sacanagem de exportação, higiênica e restrita, é desacatada, e a sacanagem manifestada é a do prazer público, sujo e belo, sem limites e sem cortes. Aqui, empresários, industriais, diplomatas, parlamentares, carregando ridiculamente seus insustentáveis títulos e esbanjando decadentemente seus luxos, são desnudados, desvirginados e destituídos da postura e formalidade que asseguram e legitimam sua imponência; e têm suas taras expostas, por meio de orgias com prostitutas de luxo em apartamentos trancados a sete chaves – mas que o Sol não esconde e a câmera não perde por esperar em expor.  E o povo extasiado também se deleita, livremente, sem que forças conservadoras de “Rio Babilônia”, fracas e impotentes, sejam capazes de acobertar, conter e domesticar: o sexo público e popular e sua beleza e força indomáveis penetram nas imagens, as quais proporcionam e impulsionam que extrapolem qualquer limitação. Contrapondo-se ao despovoado e sóbrio cartão-postal, o filme tem como força motriz as pessoas e suas paixões pulsantes, movidas a calor e reveladas pela luz que o Sol emana.

Com exceção das imagens que fazem a burguesia nua de refém, vulnerabilizada e ridicularizada, o enquadramento menos aprisiona e mais dá vazão àquilo que é expresso – e menos capturado – nas imagens: as pessoas em transe e suas manifestações flamejantes de amor, prazer, paixão. Sem seguir normas que precedem e determinam com exatidão o que está no quadro e subvertendo qualquer ordem possivelmente pré-estabelecida, a câmera se adapta e submete-se ao movimento que filma, anda junto e conflui com a liberdade daquilo que está manifestado nas imagens.

Nesse sentido, o filme renuncia muitas vezes da narrativa perfilada a um só eixo para dar lugar à expressão genuína do êxtase e da embriaguez; do batuque, do samba, da atração na cena do lançamento do perfume, por exemplo, onde mesmo durante o discurso de Paulo Villaça, o empresário bronco, Pat Cleveland, a Linda Lamar, requebra e mal serve ao que foi contratada, acena e se encanta, olhando e sorrindo para o que está fora do quadro; e nada sai como foi esperado e encomendado. O bronco grita: “eu tô pagando!”, enquanto a festa explode – para além da dimensão imagética do quadro –, totalmente fora de seu controle.

Há momentos, relativos a essa falta de controle, cujo caráter se aproxima do documental, onde meninos passam na frente da câmera e tapam a paisagem postal e turística, até então caucasiana, da praia, ou até mesmo cenas nas quais existe uma interação disruptiva das figuras com a câmera. São momentos consonantes a essa permeabilidade do enquadramento que permitem que as figuras e seus corpos em quadro se expressem livremente, quase como se não estivessem, como se, apaixonadas, impetuosas e em ebulição, transcendessem ou enfim sublimassem. Aqui, o rigor se faz no deixar fluir aquilo que está em quadro, criando uma situação fílmica que se pauta pela liberdade e pelo inesperado, sempre esquivando-se de qualquer tendência de um quadro-postal estático, ordenado e controlado.

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Somado a esse caráter libertino do quadro, ao longo do filme, ocorrem mudanças bruscas e repentinas de atmosfera fílmica, sobretudo de gênero e de encenação, pois cada cena, e até mesmo cada plano, possui um certo grau de autonomia e liberdade expressiva em relação ao todo, assumindo a imprevisibilidade, sem se ater a um único eixo narrativo que pode parecer ser proposto de início. Esse todo, o filme em si, é multifacetado e livre, desprendido de qualquer coisa que beira restringi-lo a um único fio condutor disciplinado e bem-comportado. Entretanto, não se opera exatamente por meio de um abandono da narrativa, mas por uma narrativa que não determina os trilhos, que não necessariamente dita o que está por vir, constituída por cenas-expressões transitórias desse Rio de Janeiro fílmico que aqui se constrói: esse lugar babélico, complexo e exorbitante, onde as pessoas que vivem ou que passam por ele, são o que verdadeiramente o constituem.

Ao longo dos sete dias sagrados, o boêmio Marciano, em seu itinerário insubordinado e caótico, cruza com inúmeras figuras – como patinadoras, eruditos, traficantes, jornalistas, capangas, artistas, mães e filhos, prostitutas, empresários, estrelas, cafetinas, deputados, estrangeiros, etc – que, mesmo quando passageiras, são extremamente centrais e expressivas em cada cena onde surgem e em cada plano em que aparecem, vulnerabilizadas e/ou, sobretudo, libertadas.

A beleza existe, revelada pela luz e pelo calor que arde na cidade do caos, lado a lado com a violência e brutalidade incendiária que essa luz inerentemente também revela. A beleza em “Rio Babilônia” não é comportada, apelativa e precisa – como a paisagem despovoada e imutável do cartão-postal. É a beleza humana de um povo apaixonado e suado, frágil e forte, exposto frontalmente, iluminado pelos raios solares e pelo enquadramento que menos limita e mais liberta. É uma beleza subversiva e insubmissa às tentativas de controle, as quais, na forma de discursos, acabam por se tornarem superadas pela linguagem confrontadora do filme, que faz desses meros discursos, insuficientes e falso moralistas, medíocres e pequenos demais frente a expressividade e exorbitância das imagens incineradas e iluminadas, libertinas e sagradas.

Como uma promessa final, por via do poema de Neruda (na voz de Christiane Torloni) e do Sol que alvorece e preenche a última imagem do filme, “Rio Babilônia” tem fé. Fé na potência humana, inquieta e desobediente do povo, e, apesar da descrença no chapado cartão-postal, esperança – que no filme se realiza – de que um dia o Cristo haverá de abraçar a todos, de que um dia, ó Rio de Janeiro, “para todos os teus filhos, não só para alguns, dês o teu sorriso, espuma de náiade morena”. Além disso, crê em Deus; mas um Deus que não está acima de tudo e todos, ou apenas ao lado dos ditos pudicos (pois não há quem seja), mas dentre a gente mundana, humana, livre e extasiada, e emergido nas imagens ousadas e devassas, que – assim como os antigos babilônios, próximos aos deuses com seus monumentais e altivos templos – se aproximam dos céus, através do Cristo Redentor eminente, dos sagrados e frescos morros e da própria sublimação das paixões por meio da libertinagem e depravação da ordem. Nas palavras de Jairo Ferreira: “Mestre do cinemão, gênio no experimental, Neville agrada a Deus fazendo o que o Diabo gosta”1.

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1 Jairo Ferreira em “Neville D’Almeida, retaguarda da vanguarda”, no livro “Cinema de Invenção”, 1986.

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A Dama do Lotação (Neville D’Almeida, 1978)

a-dama-do-lotacao

Por Gabriel Papaléo

A leitura de Nelson Rodrigues sempre prezou pelo escândalo, e é comum – ainda que equivocada a meu ver – a noção de que seus arquétipos e suas teses são datadas, que não existe espaço para elas no cenário contemporâneo brasileiro atual, mas a forma que retrata as neuroses de uma burguesia carioca, e o como expõe as vísceras dos desejos e perversões reprimidos reflete um segmento da sociedade que não parece ter mudado, e sim se higienizado, sob seus obscuros desejos de poder. Num canal tão disposto a abraçar a aspereza e a putaria de Nelson como Neville D’Almeida, a dramaturgia aflora bem diante da encenação abertamente declamada. Em A Dama do Lotação, Neville sequestra Nelson para imaginar as maneiras que Sônia Braga dribla o eixo familiar de aparências onde os ideais de masculinidade são passados como legado de defesa, de uma atitude sexista sobretudo de medo.

E o que move esse legado é a fanfarra da hipocrisia, propulsionada especialmente pelos chavões do que as instituições esperam dos choques entre homens e mulheres. A amizade masculina falida, alvo no qual o diretor se diverte ironizando, é vista sob a mesma desconfiança até que a psicanálise, na figura de Claudio Marzo forçando a ideia de fidelidade e amor pelo marido em Solange mesmo que ela grite por violência, clame pelo expurgo. Segundo o diretor, nenhuma instituição segura essa fina camada que une os indivíduos sob suas capas de autoridade, e o desejo estimula as perversões sem categoriza-las como tais, sempre buscando esconde-las em algum subterfúgio moral, intelectual, ou financeiro.

Na sequência na qual Solange, Carlinhos e seus amigos vão na boite Barbarella da época, a tensão é por debaixo da mesa, escusa, no segredo, implorando por um desejo oculto. O perigo do flagrante permanece o motor das ações de Solange diante da recusa inicial do sexo, uma intuição em reação aos julgamentos de Carlinhos e seu pai. “A esposa deve ser frígida”, o pai afirma, porque sabe que sexo bom é aquele controlado pela instituição, seja ela qual seja (nesse caso, a família). A castidade imposta muito tem a ver com esse medo, essa tensão do desafio, de homens tão reféns do desejo feminino que tremem diante da possibilidade das mulheres perceberem seu poder sexual – uma variável impenetrável da fragilidade dos seus poderes autoproclamados. O que escapa de Carlinhos é o que motiva o desejo de Solange.

Não por acaso, Solange sempre reforça que os homens com quem transa são “piores” que seu marido, porque no limite esses sexos só existem para que tolere melhor a realidade do seu casamento. Existe um acordo de civilidade entre os homens que aqui interagem, seja Carlinhos com seu pai, seja Carlinhos com seu amigo, seja o motorista do ônibus com o cobrador, que prevê secretamente que as relações horizontais e confiáveis são apenas entre eles, como se o suposto mistério feminino fosse cruel o suficiente para não ser digno de confiança. A questão mais engraçada da sátira multifacetada que Neville propõe é que algo nunca discutido entre esses homens é que os seus desejos são a única forma de quebrar esse elo civilizado, de que secretamente esses homens entendem que relação alguma resiste ao desejo do pau; e assim Solange consegue dar pro pai do marido, pro melhor amigo do marido, e literalmente nada muda.

O que escapa à sátira, pontualmente, são as relações femininas que Neville filma. Como em Matou a Família e Foi ao Cinema, parece que existe uma atenção dramática especial, mesmo diante da crítica de classe, a relações que escapam dos homens que buscam o controle. A bela cena de tensão entre a mãe de Nuno Leal Maia e sua amiga (e amante) Matilde é um toque de mergulho no melodrama sem a ironia que atravessa todas as outras relações do filme. Nesse sentido Neville parece estar filmando Nelson Rodrigues até quando não está, mas diferente do carnaval cataclísmico de Rio Babilônia, aqui o diretor deixa seus comentários sociais diretos escorrerem por entre a dramaturgia, mais pontuado, ainda que não mais sutil. Essa atenção às neuroses da classe média perdida não furta o diretor de filmar o Rio de Janeiro contrastante, visto pelas janelas dos ônibus, na janela fechada do carro, na praia cheia que nunca acessamos – sempre sob o ponto de vista de Solange, sempre diante da progressão do seu arco dramático de pouca transformação e muita autopunição.

Evitar as perversões do outro na suposta civilidade da cidade culmina no desligamento de Solange dos planos familiares, do que se espera dela, e portanto tudo deve acabar numa praia vazia, da última foda com Sônia Braga e Paulo Villaça, felizes em estarem isolados, diante de uma utopia apenas deles depois de se conhecerem num ônibus, descartável como qualquer relação a qual Solange se submete em busca de sentir algo, de ser punida por seus atos. Seja chamada de segurança, seja de medo, seja de raiva de classe, o fio que liga o emocional dessa classe média retratada é o da vontade de sumir da cidade.

Esse mal-estar de classe é por todo momento refletido diretamente na forma que se lida com sexo, como se esse fosse um canal apropriado de intimidade para não se ter vergonha ou culpa de implorar por violência, por punição. Solange busca ser a mulher de todos principalmente porque quer sofrer alguma consequência que seja de seus atos; a questão é que no Rio de Janeiro, se você é de berço, se você é abastado, se existe privilégio de classe que seja, a possibilidade de que se arque com alguma responsabilidade é muito pequena. Cabe à dama explorar seu prazer implodindo as noções de masculinidade e família dos que a machucam sem sua autorização.

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CINEMA E MEMÓRIA

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EDITORIAL: CINEMA E MEMÓRIA
João Lucas Pedrosa

O QUE JAZ FOSFORECENTE DENTRO DA CASCA CARBONIZADA
Lucas Saturnino

ANDROIDES FLUTUANDO NO RIO DE HERÁCLITO
Luis Flores

O PÊNDULO, A FUGITIVA
Felipe Leal

AMORES DO MEU EXÍLIO
João Pedro Faro

O QUE DEVE O CINEMA MARROQUINO DA DÉCADA DE 70 FILMAR?
Geo Abreu

MEMÓRIAS DE CINEMA, REVOLUÇÃO E UMA ARISTOCRACIA RIDÍCULA
Bernardo Moraes-Chacur

ILUMINAR O MUNDO PELO OPACO
Diogo Serafim

O TRAUMA TRANSMITIDO, O TRAUMA OMITIDO: TÚMULO DOS VAGALUMES, MARIA ANTONIETTA E JOJO RABBIT
João Lucas Pedrosa

LEVEM OS PROFETAS AO LIMITE – SOBRE O CARPINTEIRO STEINER E O CAMPONÊS HIAS
Gabriel Papaléo

REICHENBACH 09 NOVEMBRO 2004 (2)
Natália Reis e Ruy Gardnier

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REICHENBACH 09 novembro 2004 (2)

Por Natália Reis e Ruy Gardnier

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Faz mais ou menos um ano que descobri numa checagem aleatória dos meus lugares favoritos na internet que o “Olhos Livres”, blog que Carlos Reichenbach manteve com afinco entre meados de 2008 e 2010 (para além do “Reduto do Comodoro”, “Olhos Livres ano 02” e “Olhos Livres bônus”), havia sido tirado do ar. O choque inicial – misturado com uma tristeza, como a de quem perde uma fotografia de família – veio principalmente porque eu gostava de pensar, hiperbolicamente, que minha grande colaboração para a memória do cinema brasileiro seria uma espécie de  catalogação e organização dos posts migrados para um novo domínio pago e seguro, sem riscos de se perder no tempo – uma tentativa de preservar o processo cuidadoso de curadoria e rememoração com que o diretor listava raridades, descobertas musicais, músicos e bandas que acreditava que não deveriam ser esquecidos (com uma série própria chamada “Onde foram parar esses caras?”  parte do inventário “999 discos para ouvir antes de morrer”), “gênios” pouco comentados como Jackie Gleeson e ainda os registros cineclubistas das suas “Sessões Comodoro” no Cinesesc (SP) e das suas imersões no “cinema escatológico”.

“Ouça com olhos livres/ veja com ouvidos livres” são expressões encontradas no livro Cinema de Invenção, de Jairo Ferreira, amigo e por incontáveis vezes companheiro criativo do Carlão. Penso que funcionam muito bem como senha ou palavras-chave para se adentrar no universo cinematográfico de ambos e, de certa forma, o registro da presença virtual de Reichenbach, através dos posts intermináveis nos seus blogs – exercício que manteve desde o começo dos anos 2000 –, assumia esse mesmo papel complementar a sua obra. Graças a ferramentas como a “Wayback Machine” do archive.org (que nos permite ver uma versão arquivada do site em momentos diversos de uma linha temporal), hoje é possível ter acesso a muita coisa ali, mas a sensação constante em meio ao cemitério de links desativados do rapidshare que o diretor disponibilizava em toda a sua generosidade (e transgressão) para download dos álbuns que escavava, é a de estar manuseando uma peça frágil que um dia também pode se desfazer.

É difícil traçar paralelos entre cinema brasileiro e memória sem lamentar os processos de deterioração que caminham ao lado de uma história feita também de filmes que jamais poderão ser vistos – perdidos, corroídos ou debandados por museus e cinematecas fora do país. Mas vez ou outra um acontecimento extraordinário como o upload de uma obra rara e já desacreditada em fóruns de pirataria ou a transcrição de uma entrevista até então inédita com um cineasta imenso como Carlos Reichenbach possui o poder de restabelecer parte das nossas esperanças. No final de 2017 uma fita com a etiqueta “REICHENBACH 09 novembro 2004  (2)” chegou até mim de maneira igualmente extraordinária, mas por inúmeros motivos permaneceu intocada até agora. Por ocasião de uma nova edição da Multiplot!, cujo tema é Cinema e Memória, parece mais que propício trazer à tona essa preciosidade guardada por tanto tempo e também uma forma de celebração das conexões e amizades que trabalham para garantir que as memórias do nosso cinema possam ser preservadas. Ainda que seja um fragmento de uma conversa maior, espero que o depoimento a seguir forneça um vislumbre das paixões que consumiam e moviam o Carlão – pelos filmes, pelo fazer cinema, pelos amigos queridos e, claro, pelo gesto de contar suas histórias. Certas informações e nomes precisaram ser checados e graças às contribuições de Paulo Sacramento e Remier Lion, algumas lacunas puderam ser preenchidas. Os agradecimentos logicamente também vão para os três entrevistadores Francisco Guarnieri (que contribuiu igualmente para a identificação de alguns trechos), Guilherme Martins e Ruy Gardnier, que além de ter assumido a transcrição, nos oferece essa breve introdução:

“A conversa aconteceu no dia 9 de novembro de 2004 na casa do Carlão, na R. Piauí, em Higienópolis, São Paulo. Era uma entrevista para a Contracampo e fomos eu, Francisco Guarnieri e Guilherme Martins. O encontro foi mais um papo descontraído do que uma entrevista ao pé da letra. Na minha volta para o Rio de Janeiro, uma série de obrigações tomou a frente nos afazeres e a entrevista acabou nunca sendo transcrita. Das três fitas, só a fita 2 pôde ser encontrada. O assunto da fita 1 girava em torno de Bens Confiscados e Garotas do ABC, que eram seus filmes mais recentes, e dos projetos cinematográficos do Reichenbomber (apelido a partir da coluna online que ele tinha no ZAZ/Terra). Na fita 2, a conversa rumou para filmes extremos, cinefilia na internet, salas de repertório, o futuro digital do cinema e o Quepe do Comodoro, premiação criada por ele para valorizar quem ama cinema. (RG)”

LADO A:

Carlos Reichenbach: Você tem esse tipo de coisa, que falavam tão mal do filme, que eu me preparei pra sair decepcionado, quase mudando de ramo. Uma surpresa atrás da outra, esses caras [que falaram mal] tão loucos? Ou nós estamos ficando loucos?

Francisco Guarnieri: Mas a Olga é um personagem de TV.

CR: Como eu tava dizendo, não vi, não posso comentar, seria injusto.

Ruy Gardnier: Já que a gente está falando dos filmes de cinema brasileiro, tem um filme bastante perdido na década de 90, e que se não me falha a memória é o único filme da década de 90 a fazer um paralelo claro com o Douglas Sirk, e eu acho que nesse sentido lembra muito Bens Confiscados, que é o filme do Amylton de Almeida, O Amor Está no Ar.

CR: Mas o Amylton de Almeida, além de ter sido um grande amigo, foi uma pessoa… Você vai levar um susto! Pra ele, o maior filme do cinema brasileiro era o Filme Demência. Ele fez questão de colocar o Ênio Gonçalves no filme em homenagem ao Filme Demência. A grande crítica do Filme Demência da época em que ele foi lançado é do Amylton de Almeida, que era um crítico importantíssimo, talvez o mais importante do Espírito Santo. Ele era apaixonado por dois filmes, Amor Palavra Prostituta e Filme Demência. Filme Demência então pra ele era o Deus e o Diabo na Terra do Sol. Então havia uma certa ligação. Mas eu não vi o filme, infelizmente eu não vi. Mesmo porque foram tantos problemas que ele teve pra poder concluir, ele morreu no meio do processo. Ele gostava muito de Amor Palavra Prostituta. (…) Ele deu um nome sirkiano. Não duvido que Sirk seja um cineasta que é referência pra ele. E ele tinha uma coisa curiosa porque tinha mais influência da cultura germânica do que eu tinha, por exemplo. Eu sou de família germânica. Até onde eu saiba ele não era, mas tinha muito essa influência. Detectou bem esse aspecto dele que… talvez ele sim teria sido um grande cineasta influenciado pelo Fassbinder. Mesmo porque adorava Douglas Sirk. E tinha essa coisa da cultura germânica. Pra mim talvez o cinema e a cultura que mais me tenha influenciado seja o cinema italiano. O cinema japonês também, mas basicamente o cinema italiano. Minhas grandes referências foram sempre fincadas no cinema italiano. Cada vez eu percebo isso com mais clareza.

RG: O Bens Confiscados tem uma coisa muito interessante de estrutura, que ao mesmo tempo o cenário macro da política fica do lado de fora, fica só passando pelas visitas do assessor ou de alguma coisa que se vê na televisão, mas ao mesmo tempo você vê os efeitos da política presentes na carne dos personagens, sobretudo no da Betty Faria, e ao mesmo tempo você joga a outra face da política, ou a outra face do político, porque afinal apesar de ser um grande ladrão, se coloca na voz da Betty Faria o outro aspecto que dá humanidade a essa pessoa, essa figura, que é o contato humano, o jeito como ele ama as mulheres. Você cria uma ambivalência do personagem, você tenta dar corpo a ele, mais ou menos como uma ideia. Na figura pública e nas opções éticas se pode julgar uma pessoa, mas quando se vê de perto sempre fica sendo mais difícil.

CR: Olha, isso daí inclusive vou te dizer, talvez eu tenha detectado onde nasce isso, isso é indiscutível, talvez seja a herança do cinema do Zurlini. Zurlini talvez tenha sido o cineasta mais influenciado – e assumiu isso inclusive publicamente numa grande entrevista sobre a carreira dele – pela leitura do Tolstoi. Tolstói não à toa é um escritor anarquista. Talvez uma grande referência literária pra mim tenha sido o Tolstoi que dizia que por trás de toda grande história, todo grande drama íntimo, tem um momento histórico traumático acontecendo. E talvez o filme referência pra isso, pra mim, é indiscutivelmente Verão Violento. Onde você vê o fascismo estourando lá dentro e aquele casal dançando. Aquela sequência é genial. Os camisas-negras estão chegando lá dentro e o casal dançando “Tender Moon”, ou algum clássico da música americana. Um pé no fascismo já. E a coisa afetiva, a coisa romântica aparentemente em primeiro plano. Agora, você nunca aceita uma realidade histórica tão latente, ela invade a vida das pessoas pela porta dos fundos. Que marca muito também Dois Destinos, não é? Em nenhum momento do filme, é dito, explicitado, que o Mastroianni pertence ao Partido Comunista. Mas você percebe isso, isso afeta a convivência dele com o irmão. E então é muito legal, quando você vê que no fundo é a história que está dando as cartas. Eu acho que isso da política é nitidamente influência zurliniana, eu não quis fazer um filme sobre a política vista pela porta da cozinha mas a forma como ela age é iminentemente instintiva. Pra mim, no ato de escrever, aliás o que me estimulou a desenvolver esse roteiro, e a trabalhar uma coisa que a meu ver foi a chave para escrever esse roteiro, foi a ideia de escrever um roteiro em que o personagem principal, você não vai ter nem uma fotografia desse cidadão. Esse personagem vai afetar todas essas pessoas o tempo todo, manipular. Mas ao mesmo tempo, sem ficar trabalhando com personagens chavões. O cara tem as duas caras. É uma espécie de Cidadão Kane ao mesmo tempo que é fascinante, é calhorda… Shakespeare é parte disso, né… Grandes filmes sobre grandes personagens, grandes canalhas, e absolutamente sedutores. Isso está dentro da tradição da dramaturgia, acho que não tem nenhuma novidade, é só uma forma de trazer isso para a minha realidade.

02Verão Violento (Valerio Zurlini, 1959)

Como a gente não confia nessa… cultura da corrupção, tráfico de influência. Eu acho que a grande diferença que a gente tem no cinema brasileiro – não sei se foi o Roberto Santos que dizia isso –, quando se vai fazer uma coisa no Brasil, não pode abdicar de uma certa dose de humor. É o que te bota o pé aqui. Tem alguma coisa que tem que ter e é nisso que você percebe o quanto existe o preconceito contra – num geral, a cultura brasileira, a literatura, a música, o cinema. Existe um preconceito fenomenal, fala-se tanto, cobra-se tanto do cinema popular, mas quando se fala em chanchada, todo mundo bota o pé pra trás. Mas bota o pé pra trás no ato. Eu estive vivendo muito essa aflição com Alma Corsária. Eu lembro que muitas críticas diziam assim: “Ah, o filme é bacana, um filme heróico, feito sozinho” (…) elevado a um âmbito do heroísmo. Vai à merda! O filme é outra coisa. Ao contrário. Eu acho que se o filme tem uma unidade, é uma vontade o tempo todo de fazer chanchada, tipo pedir pro Jorge Fernando homenagear o Zé Trindade – uma puta homenagem ao Zé Trindade –, a própria jurada do Silvio Santos [Flor] lembrava a velha comediante, a Dercy Gonçalves quando jovem, até fisicamente lembra, a Dercy Gonçalves novinha.  (Uma convidada entra na casa e os cachorros começam a latir, deixando a conversa inaudível)

RG: Estávamos no preconceito da elite culturalista contra a comédia brasileira.

CR: Nossa, é uma coisa inacreditável. Por mais democrático que possa parecer, na hora que você toca na questão da comédia, é uma loucura, porque os preconceitos baixam mesmo. É tudo muito bonito quando é visto à distância, tipo pobre, visto de longe. Mas eu lembro quando teve a grande retrospectiva da chanchada, foi há uns 30 anos, foi na Universidade de São Paulo, na sala de projeção, eu perdi um mês da minha vida. Perdi nada, ganhei um mês da minha vida. Ia todo dia lá porque eu não conseguia deixar de ir. Era impressionante como… foi uma geração que não se reciclou mais. Eu não tenho a menor dúvida de que uma mostra dessa como a do Remier [Cinema Brasileiro – A Vergonha de uma Nação, nde *] é utilidade pública. Os filmes mais próximos da pornochanchada nem são tão interessantes, mas aqueles filmes da década de 50 ninguém viu. Eu tenho loucura pra ver esses filmes. Tem coisas audaciosíssimas que vão ser exibidas.Tem O 5º Poder do [Carlos] Pedregal. Filme feito pelo Radar [Leovegildo Cordeiro], filme feito em elogio ao Esquadrão da Morte, considerado o filme mais fascista jamais feito no Brasil, um filme que faz totalmente a apologia do olho por olho… O nosso William Lustig.   Com música do Remo Usai. Wilson Grey como assistente de direção. Deve ser genial. Deve ser uma coisa do outro mundo. A chance de poder ver Massacre no Supermercado, melhor filme do J.B. Tanko. Acho que é a hora inclusive de se quebrar muitos tabus. Isso que falta, eu acho que tem toda uma geração que não se reciclou, não viu chanchada. Houve, assim, a coisa de papel. Eu quero ver o sujeito ir lá, ficar durante um mês todo dia vendo filme do Zé Trindade, do Ronaldo Lupo. É impressionante, porque de uma certa forma, queira ou não queira, o cinema de gênero também precisa de um aprendizado, exige um certo aprendizado. Perder o preconceito, quebrar tabus exige um certo aprendizado. Eu acho que tem um pouco essa função, tudo isso que ele [Remier] está fazendo, é por aí mesmo. Existe nitidamente uma diferença entre o chamado cinema trash e o cinema transgressor. Ed Wood é um horror, é uma bosta. Estou falando de filmes transgressores e existe uma diferença da água pro vinho, uma mínima inteligência percebe isso. Então você tem uma coisa de afinar gosto.

O fato de também estar preparando… Não sei nem se eu vou terminar fazendo… Mas é um projeto que eu venho desenvolvendo há um ano e meio, de fazer um filme sobre censura, na verdade não é sobre censura, mas é sobre imagem interditada. Imagens interditadas. Então durante um ano e meio eu tentei descansar um pouco a visão. Eu sujei meus olhos. Escatologia, barra pesadíssima. Puro cinema interditado propriamente dito. Os filmes mais ignóbeis jamais feitos. Teve uma pesquisa inclusive, você deve ter visto, lá no Cineclick. Os filmes mais nojentos. A partir disso eu resolvi fazer um documentário de longa-metragem, só com material comprado – tenho dois contatos inclusive, na Itália e na França, pra ir atrás dos filmes, pra ver quanto custa os direitos de Emmanuelle na América, de uma série de filmes teoricamente que não sejam snuff – e aí você de uma certa forma, é muito engraçado – e isso é uma teoria que se aprende mais vendo filme ruim do que filme bom, e que escola de cinema tinha que mostrar é bosta mesmo, o pior do cinema e não o melhor do cinema, porque o cara nunca vai fazer mesmo, né? Do melhor e do pior do melhor, ou o melhor do pior, sei lá, qualquer coisa. Foi um exercício de um ano e meio, quase dois anos, de ver tudo. “Ih, esse filme foi proibido em 60 países, 70 países”, eu vou atrás, vou comprar, fazer a cópia, entendeu? Cansei de ir em locadora de filme pornô pra poder ver até onde a mente humana foi capaz de chegar. Porque no fundo o documentário é sobre isso, sobre exatamente essa ideia do que o que é vetado aqui não é ali. Se eu mostro um braço aqui, não diz nada, e filmar o braço da atriz principal no Irã, entendeu, é pecado mortal. Tudo isso começou com essa descoberta, dei uma grande entrevista para um casal de críticos iranianos, lá em Pesaro, e eles ficaram muito impressionados por causa do sucesso do Abbas Kiarostami, e o outro lá, Mohsen Makhmalbaf: “Eu quero entender isso em São Paulo”. Aí esse casal de críticos iranianos veio fazer uma entrevista. Isso num calor de 40 graus. Fizemos a entrevista. Eles tinham visto Alma Corsária, foi lá que o filme ganhou um prêmio de melhor filme, eles queriam publicar uma foto e perguntaram: “Por favor, você não tem material fotográfico do filme?” Aí eu escolhi material fotográfico e a primeira fotografia que eu dei era uma fotografia da Carolina Ferraz em cima de um prédio, que é o símbolo do filme. Dei pra eles, assim. Aí eles falaram: “Desculpe, eu não posso reproduzir essa foto”. “Por quê? Só tem ombro aqui”. “Por causa do braço de fora”. Só então eu me dei conta que a mulher dele estava com a blusa até o punho, e isso com um calor de 40 graus. Quer dizer, não publica a foto da Carolina Ferraz porque estava com o ombro de fora. Uma das grandes razões de fazer o documentário é exatamente sobre isso

 

03Alma Corsária (Carlos Reichenbach, 1993)

Esse projeto eu ainda tenho, se chama “Cinema Interditado”. Um projeto todo feito com material de arquivo, de filmes etc. e tal, e claro que tem que ter o filme sobre Maomé [The Message, de Moustapha Akkad], que é proibido de passar, que só passa no aniversário… Que não passa no Oriente. E daí pra frente essa coisa mais louca e mais violenta… A primeira coisa por trás do filme é quebrar tabus. Tem que ir até o fim. Eu estou falando tudo isso porque eu senti com muita clareza, a minha visão do cinema mudou muito. O nível de exigência também mudou. Eu tive que sujar, como se estivesse realmente quase ferindo o olho mesmo. Como se estivesse passando uma lixa na visão pra poder aperfeiçoar ela. Vi da coisa mais bárbara, mais ignóbil, das imagens mais torpes, mais malfeitas e ao mesmo tempo violentas e sublimes. E acho que isso talvez tenha me tornado mais rigoroso talvez até com meu próprio cinema. E eu posso dar certeza pra você, alguém uma vez falou “Tem alguma coisa curiosa, tenho uma impressão que mudou, tem uma coisa visual diferente nos seus dois últimos filmes em relação aos filmes anteriores”. Deve ter sim! E foi esse exercício. Foram três anos dedicados a isso. Antes de filmar [Garotas do ABC], antes inclusive de ter tido o infarto. E acho que nesse nível também, a minha coordenação aumentou profundamente com relação a certas coisas, muito mesmo, até certos filmes que hoje eu admiro muito, passei a admirar…

RG: Por exemplo?

CR: Canibal Holocausto [de Ruggero Deodato].

RG: Tinha visto antes?

CR: Era fascinado, mas não admitia que gostava. Acho que pra muita gente isso aconteceu. Não é só pra mim não. Tanto que hoje o cara é mestre. Até três anos atrás era um cara da contrafação. É muito louca essa questão. Eu vou te dizer como muda a noção. Nunca me passou pela cabeça que um dia eu tivesse coragem de ver vinte, trinta filmes do Jesús Franco, um cineasta horrível. Eu precisei ver trinta filmes do Jesús Franco pra ver duas obras-primas. O resto é muito ruim, muito ruim. Em todos os sentidos, ele era porco pra filmar. Bota porco nisso. Mas quando ele acerta, talvez pelo fato de ter trabalhado com todos os grandes…

RG: Quais são esses dois?

CR: Succubus é uma obra-prima. Succubus acho que inclusive é Mulholland Drive antes de Mulholland Drive. Esse vale a pena. O outro é Cartas de Amor de uma Freira Portuguesa. É uma beleza de filme. Um filme simples, ao mesmo tempo extremamente delicado… E tem uns filmes intermediários que são muito interessantes, que por incrível que pareça, são os filmes mais comerciais, filmes de “woman in prison”, etc. e tal, que são até engraçados, que têm um charme interessante. Mulheres lindas, como a Ursula Buchfellner, que é uma deusa. E tem também uma coisa que ele faz com a mulher dele [Lina Romay], que é muito interessante porque não importa se o filme não é bom, o que é genial é a coisa da postura de vida mesmo. Ele, em certo sentido, é o Mojica europeu. Sem dúvida nenhuma.

04Cartas de Amor de uma Freira Portuguesa (Jesús Franco, 1977)

RG: Mistura de Mojica e Raul Ruiz, essa coisa de filmar um atrás do outro.

CR: Mas ao mesmo tempo tem esse tipo de coisa. Uma das coisas que é absolutamente fascinante é como ele é apaixonado pela genitália da mulher dele. Ele faz filmes que no fundo nada mais são do que uma grande elegia à genitália da Lina Romay. É uma relação de amor. Tem um filme que é o tempo inteiro ela andando pelada por um castelo, isso passa a ter uma beleza… É engraçado porque você precisa realmente… até pra você aprender a gostar da coisa, precisa um aprendizado. Precisa perder todo o preconceito, uma carga de preconceito. Mas ele tá dá uma… Eu posso dizer com tranquilidade hoje que todo esse conhecimento, esse interesse, apurou o meu olhar. Hoje eu sou muito mais exigente comigo mesmo, com a minha estética, com a minha forma de enxergar o cinema e o mundo, a partir de um processo de aprendizado do olhar. Como se tivesse que lixar o olho. E digo mais pra você: eu comprei o domínio da “olhos livres” [risos]. E ao mesmo tempo você fica até mais exigente, você consegue diferenciar, diferenciar o cinema ruim… Filme que é ruim é ruim e acabou, de gente sem talento, mediocridade, não faz sentido ficar lambendo a nuca de medíocres. Não tem nenhum sentido, quando é ruim é ruim. É ruim como quando você tem filmes artísticos entre aspas, que são ruins, são piores até. Até hoje eu encontro pessoas que me perguntam: “Por que você gosta do Mojica?” Entendeu? Só quem gosta do cinema pode gostar do Mojica. Não tem explicação. Uma vez perguntaram uma coisa assim, não lembro, se colegas quando eu fazia faculdade de cinema: “Por que você gosta do Fuller?” E eu sempre fui apaixonado pelo Fuller. Olha, não sei se eu te contei essa brincadeira. Há uma forma de se descobrir, é um vestibular pra cineasta: o cara vai ser um bom diretor? Então mostra um filme do Fuller. Se ele não gostar, ele não vai ser cineasta. É uma condição sine qua non. Fuller é o cinema. Já dizia Godard [risos].

RG: Ele fala isso do Nicholas Ray [risos].

CR: Sim, mas são os dois. A dupla do cinema independente. E nesse processo eu não tenho a menor dúvida que você inclusive vai aperfeiçoar o nível de exigência… Eu vejo um filme e… Outro diz estava comentando com o Julio Bressane, da última vez que ele esteve aqui, que as pessoas estavam cortando os filmes como se cortam bichos, pessoal tava botando a lente como se a lente fosse um lápis, um pincel mágico, essa coisa que sai tinta pra tudo que é lado. Não se estava usando a caneta. Cinema tem que ser usado pra entender, não obviamente por causa de grana, mas é preciso ter uma caneta Parker, desenvolver a caligrafia. E as pessoas estão fazendo borrões. Uma coisa assim, ágrafa. No fundo, no fundo, eles não sabem onde vão pôr a câmera. É uma coisa assim, caramba, você olha certos filmes e se pergunta: Que lente que o cara usou? Que estupidez! Mas essa é a questão, que é um nível de exigência que se soma a um aprendizado sistemático, que pode aperfeiçoar. Mas isso até o cineasta mais genial do mundo que é o Kubrick dizia isso. Não tem outra maneira de aprender cinema do que vendo filmes. Tem que ver 1500 filmes no mínimo. Acho que foi numa entrevista que ele falou isso. Mas tem um número lá, estratosférico. Não deve ser muito mais do que isso. “Já viu dois 1500, 2000 filmes?” “Não vi nem duzentos”.

RG: Você estava falando de todos esses filmes, e mais recentemente você está fazendo um papel de exibidor, inclusive, não só de diretor, mas também exibidor. Está fazendo uma sessão mensal no CineSesc e você também já mostrou o desejo de criar um cinema para também exibir os filmes, pra poder lançar certos filmes.

CR: Eu acho que todo cineasta tem vontade de fazer um cinema, na verdade. Ter o seu cinema e… O cineasta-cinéfilo, né? Como chama aquele italiano que tem um cinema… o de Caro Diário?

RG: Nanni Moretti.

CR: O Nanni Moretti! O Moretti tem cinema, tem vários diretores que têm salas de cinema na Europa. Uma salinha só, pra perder dinheiro. Foi o único que exibiu Abbas Kiarostami lá, na Itália, etc. e tal. Essa ideia que todo mundo promete e não cumpre, de fazer um cinema de repertório. No momento que alguém criar uma sala que conseguir estabilizar uma prática da sala de repertório, que nem sala francesa, pelo menos durante 5, 6 anos… O meu projeto de vida é fazer um cinema de repertório por excelência. Inclusive pra exibir os meus filmes. Eu quero restaurar uma cópia, por exemplo, de Amor Palavra Prostituta que nunca foi exibida integralmente no Brasil, mas você vai saber que toda terça-feira, como se faz em Paris, toda terça ao meio-dia, ou às 3 horas da tarde, você vai poder assistir Amor Palavra Prostituta. Aí não vai ter um chato pra não dizer “Porra, não tem cópia pra ver”. “Tem cópia sim, vai lá na quarta-feira às duas horas da tarde e vai ver!” Mas eu gostaria de fazer isso com filmes comprados também. Comprar umas duas cópias no máximo. Foi em Paris que eu descobri como funciona isso. Eu sempre tive loucura pra poder ver o filme do Curzio Malaparte, um escritor que fez um único filme, acusado de fascista, aquela coisa toda [Il Cristo proibito, 1951]. Você vê que é uma coisa mitológica, um Cristo interditado. Esse é um filme que eu gostaria de trazer, que você vai descobrir, de repente, que tem um filme que nem Deus e o Diabo na Terra do Sol que foi feito em 1953, porra. Um cara correndo no deserto na direção do mar. Excepcional, lindíssimo, com Raf Vallone. Uma série de filmes que as pessoas não vão trazer. Não adianta, não vão trazer. Tem que ter uma sala pra poder fazer cinema de repertório. Eu quero deixar um tempo pra pessoa não poder mais reclamar, deixar o filme passando um ano, você vai ter à sua disposição pelo menos em um dia. “Ah, eu quero rever Filme Demência”. “Vai lá sábado duas horas da tarde que vai estar passando, uma cópia que eu mandei fazer especialmente”. Isso é cinema de repertório. E ao mesmo tempo você poder importar filme japonês, por exemplo. Trazer Sugawa, que nunca passou… Comprar uma cópia, duas cópias e fazer uma coisa pra cinéfilo mesmo, um cinema onde eu possa ter um espaço como espectador, pra realmente satisfazer a minha ânsia de espectador. Eu tenho certeza que vai dar certo. Entende? Todas as sextas-feiras dedicar só a filme de horror, de ficção… [fim do LADO A]

LADO B:

As pessoas originalmente se comprometem a fazer uma sala de cinema diferente, e é muito engraçado como acaba virando uma sala que apenas fica fazendo circular às vezes filmes pelos quais não se têm muito interesse. Por que não criar um dia em que você passa só filmes…. O que a gente percebe nitidamente é que até esses cinemas de repertório perderam o sentido da sua existência. Daqui a pouco está passando Guerra nas Estrelas, porra. Não tem muito sentido. Até tem sentido, na verdade, mas não é essa a ideia. É por isso que está surgindo cada vez mais essa necessidade. E ao mesmo tempo se o cara [de outros circuitos] quer te arrancar fora, “Porra, vai pro Cine Comodoro”.

RG: Essa ideia desse cinema inclusive pra salvar do esquecimento esses lançamentos de resistência visual do cinema brasileiro, como o próprio Garotas do ABC ou O Prisioneiro da Grade de Ferro, que o Paulo [Sacramento] teve que alugar um cinema pra passar, ou filmes que vão na segunda semana direto pra duas sessões.

CR: E sobretudo também trazer filmes que não vêm pra cá. Eu quero saber por que um filme como Apaixonadas, do Tonino De Bernardi, faz um sucesso absurdo na Itália, que a plateia canta junto, os italianos tudo cantando a música napolitana junto, você viu?

RG: Vi.

CR: E ninguém traz, bicho. Ficam trazendo merda, filmes fraquíssimos, que não dizem absolutamente nada. E recuperar mesmo, também. Um certo cinema de gênero. Se tivesse saúde também, e com disposição pra poder fazer, também estou desenvolvendo um projeto com o Eugenio Puppo, e fazer uma mostra internacional de cinema extremo. Mas isso voltado pro autor. “Ah, acabou o cinema autoral?” Eu quero o cinema autoral de volta, é em cima disso que eu quero trabalhar. Trazer de volta. Porque a ideia não é “exibir filmes”. Não é exibir 5 mil filmes que ninguém vai ver um terço. É trabalhar o autor. Trabalhar o essencial de determinados autores. Trabalhar com dez, doze autores por ano, e só. Mas assim: autores que façam um determinado tipo de cinema que vai desde o cinema mais autoral, radical, até a experiência mais extrema mesmo, entende. Vai de Lustig a Stephen Dwoskin, o mais experimentalista dos cineastas do mundo todo… Faz cada miuraço [risos]. Mas assim, deslumbrante, ele faz um cinema altamente experimental. Conseguir trazer uma mostra que traga os filmes dos accionistas austríacos, do cinema de transgressão americano. Um cinema que ninguém nem conhece. Não conhecem Nick Zedd, não conhecem o cinema do Richard Kern. Cineastas que fazem uma coisa que radicaliza o discurso, vão desde uma coisa underground e que esbarra no pornográfico. Esse é o verdadeiro cinema de transgressão. E quem vai trazer isso? Se eu não for trazer, ninguém vai trazer. Então eu acho que é muito instigante, esse trabalho tem sido muito legal.

05Submit to me (Richard Kern, 1985)

Agora o que é engraçado, foi a descoberta da relação que se desenvolve na internet. Na verdade, pra mim foi a grande descoberta desses últimos dois, três anos. Eu comecei fazendo uma coluna no Terra, passei depois a fazer uma coluna no Cineclick, até realmente descobrir a força que é ter um site, ter um blog. Eu acho que o blog hoje é indiscutivelmente… Por isso que eu tenho brigado muito em instituir esse prêmio, que eu vou pagar do meu bolso, um prêmio de prata pura, não vou fazer um troféu pra segurar porta, é preciso que tenha um puta de um conceito por trás. A ideia da coisa é essa, o conceito, na verdade, que fica. Solicitei a uma grande escultora, que é a Elaine Morrone. O conceito é fazer uma figura que só você sabe o que é, um passarinho, sei lá o quê. Que não é nada, ao mesmo tempo. O cara vai acabar usando pra segurar porta, depois, de qualquer forma. A quantidade de gente que eu vi botar troféu pra segurar porta…. Mas esse é o conceito.

O que tem na internet que é fantástico de descobrir é como você se relaciona. Quatro mil pessoas de quatro em quatro, cinco em cinco dias, nem os meus filmes fazem mais isso. É óbvio que isso te obriga a suprir conteúdo. Mas ao mesmo tempo você consegue ouvir a resposta imediata ao próprio filme que está no cinema. A própria relação com o filme que está no cinema. Por exemplo, ontem eu recebi um telefonema do pessoal do Centro Cultural São Paulo, que quer fazer uma mini-retrospectiva semana que vem, pô. Como eles têm direito, inclusive, porque eles são meio co-produtores de Alma Corsária, Dois Córregos e do próprio filme novo, Bens Confiscados. Iam acabar fazendo retrospectiva com três, dois filmes, sendo que eu tenho uns quinze. Dá pra fazer com quatro ou cinco. Mas tudo bem, vai poder passar Filme Demência, que estão cobrando que seja exibido. Tem um cara que fica toda hora reclamando no blog, “Quero ver Filme Demência”. Mas é até interessante, através dele eu sei que tem pessoas que querem ver. E eu posso também divulgar, é lá que eu vou divulgar: “Quem tá enchendo o saco pra ver Filme Demência, vai ver no Cine Centro Cultural São Paulo, tal dia”. Você tem a comunicação imediata, essa comunicação direta e espontânea. O cara acabou de ver teu filme e escreve pra lá. É prazeroso. É uma coisa que dá trabalho. Você conhece a experiência, pode falar melhor que ninguém. Mas ao mesmo tempo é importantíssimo pra dar subsídio pro que eu vou fazer daqui pra frente. Foi através do blog que nasceu o projeto do documentário. Sério. Nasceu através de uma conversa via blog. Através dele nasceu essa coisa do prêmio, a Sessão Comodoro também. No fundo, no fundo, está sendo um investimento muito interessante. E uma experiência formidável. E eu acho que essa coisa que o blog tem que é fantástica, e é isso que eu estou insistindo com o pessoal pra premiar, é entender o blog como os nossos antigos cadernos de cinema. Eu nunca me esqueço, quando eu fiquei amigo do Jairo Ferreira, a gente ficava trocando caderno. Ficava vendo o que ele escrevia com 16 anos de idade, “Olha aqui, você viu o filme do Edouard Molinaro?” Esses filmes que ninguém fala mais hoje. Os pais da nouvelle vague, né. Jacques Bourdon, já ouviu falar?

RG: Não.

CR: Aí tinha aquela coisa: “Eu vi Sombras na Areia”. Sabe aquela coisa assim, “Dou cinco estrelas” [risos]. Hoje o blog supriu isso. Uma coisa que eu acho fantástica. Você vê o blog do Ailton Monteiro, por exemplo. Atingiu não sei quantos mil leitores, uma coisa de trezentos, quatrocentos mil. E há quatro anos que ele faz. Foi um dos primeiros caras a fazer. Tirou o cara lá da reclusão absoluta, lá em Fortaleza, não tinha nada pra fazer, pra ver ou se comunicar. O que é fantástico é como o cara apurou o gosto. Não há a menor dúvida de que o crítico, o cara apura o gosto escrevendo, entendeu. E eu acho que o blog hoje tem essa função. O que eu pedi pros meus jurados foi levar em consideração de que blog não é uma coisa profissional, e que o blog tem esse sentido de aperfeiçoamento mesmo. E é muito interessante, o blog que já ganhou o prêmio de público – só não está veiculando porque eu pedi pra não veicular, mas todo mundo já sabe – é feito por um grupo de estudantes de jornalismo da Casper Líbero. São seis, sete, oito caras que se juntaram para escrever sobre vários assuntos, inclusive cinema, é um grupo de estudantes de jornalismo e os caras exercitam a atividade crítica. É do cacete, na verdade. Se você for observar, no começo, até a visão do Igor, que é o crítico oficial, você nota nitidamente de um ano pra cá o apuramento do gosto, a percepção de que o cara está escrevendo cada vez melhor, com gosto cada vez mais afinado, mais exigente. E acho que essa é a grande função do blog hoje. O júri do Quepe do Comodoro tem dois professores universitários, o André Setaro que é professor da Universidade da Bahia, e blogueiro também; além dele o João Luiz Vieira; a Lúcia Valentim Rodrigues, que é redatora da Folha de São Paulo, que tem acompanhado todo o processo desde o começo, desde que a gente começou as sessões lá no CineSesc], e que está fazendo um puta movimento aqui em São Paulo, uma das grandes organizadoras do São Paulo Centro; um menino que foi webdesigner que é o Estevão [S. Augusto]; e o Paulo Sacramento. São pessoas que não têm blog, que não tem site, que não têm nenhum vínculo com algum veículo. Infelizmente tivemos que pedir que o Daniel Caetano [risos] saísse para não prejudicar a própria Contracampo. Ele me ajudou muito para poder fazer as indicações, mas ele mesmo me mandou uma carta preocupado com isso. E eu insisto com os membros do júri de que blog não pode ser considerado como um site profissional, ele não pode perder essa característica de ser um caderno de anotações, é como você faz. Você faz a sua anotação pra não esquecer o filme que você viu. Quando eu era moleque, eu tinha trinta cadernos, e naquela época eu já fazia assim: “diretor… produtor…”. Como dizia o Jairo Ferreira na época, quando a gente tinha 14 anos a figura mais importante do filme era o produtor. “Sam Spiegel!” Não tinha aqueles caras? [risos]. É impressionante como o cara afina e apura o gosto, realmente com a coisa da prática cotidiana. Isso é muito legal. Isso é a coisa mais genial que tem nessa coisa do blog mesmo. Eu nunca me esqueço uma vez. O Ailton tem uma coisa genial, uma vez ele me mandou uma coisa, publicou um texto enorme, e me mandou. É o contato que ele tem com o mundo, não tem a menor dúvida. O cara que mora em alguma cidade desse tipo, meio fim do mundo, que mora em Dois Córregos [risos], essa é a forma dele se comunicar com o mundo.

RG: O meu blog de música [pracoisanenhuma.blogspot.com] funciona nesse esquema, porque eu ouço música que vai desde a coisa mais extrema de free jazz até a música experimental conceitual minimalista japonesa e não tenho um amigo que fala de tudo isso, então jogo lá. Aí você cria uma persona de internet com a qual você dialoga.

CR: É fantástico. No fundo, no fundo, em algum momento você vai encontrar um cara que tenha a sua identidade. Por incrível que pareça, por mais esdrúxulo que seja, o assunto pode ser a coisa mais estapafúrdia possível, de repente tem um cara que também gosta daquela coisa estapafúrdia e pronto. Aliás, grandes amizades criadas nesses últimos anos foram graças a isso. Uma delas o fato de ter feito uma conferência sobre o Brian Wilson. Chamava-se “A genialidade como carma”. Sala lotada, foi na Funarte, e não tinha um cara de cinema. Tinha gente do México, engenheiro, arquiteto. E eu acho que existe essa possibilidade de você sintonizar com alguém em outra chave.

Só complementando a coisa que eu acho fantástica do Ailton Monteiro. Ele escreveu um texto gigantesco sobre Tarkovski, e ele mandou um aviso: “Ufa! Faz quatro anos que eu tento escrever sobre esse cara, e finalmente eu consegui” [risos]. É genial! Eu realmente mandei uma carta dando os parabéns a ele. Tomadas as devidas distâncias, esse foi o meu problema com o Jesús Franco. Eu não conseguia gostar de porra nenhuma. Até descobrir que tinha esses dois filmes que valem a obra inteira do cara. Isso que o Julinho [Bressane] chama de cinema inocente, né. O cara é genial quando você menos espera. Por isso é preciso tomar um cuidado danado com um cara que você tá vendo… você percebe que tem alguma coisa a mais. Mas não acontece, não acontece. Mas quando você vê o vigésimo filme: “Não tá acontecendo nada…” E aí você pensa, “Esse cara é chato pra cacete”. Eu fico imaginando o que deve acontecer com alguém que não embarca num Tarkovski da vida, no Straub, nada mais radical. Você quer uma coisa pra fazer um teste de resistência, é o Empédocles, A Morte de Empédocles [Straub/Huillet, 1987], eu fiz esse teste de resistência com os alunos lá. Aí depois, quando eu fui conversar com amigos em comum, falei assim: “Mas você não viu o Crítias?” “Crítias, que Crítias?”. “O Crítias, esse cara [William Berger] é o maior comediante, é como se fosse o Ronald Golias”. É a mesma coisa que fazer aqui no Brasil e chamar o Ronald Golias pra ser o Crítias. Aí você vê os alemães se esborrachando de dar risada. Você imagina aquele texto histórico, falado pelo Ronald Golias, que seja, né. [risos] Deve ser de rachar o bico. É impressionante, naquela projeção, só os alemães riam. [risos]. Às vezes a gente vai entendendo a coisa aos poucos, né. É claro que exige uma, uma… Eu fiquei realmente sensibilizado, realmente para ele [Ailton] foi uma batalha ganha conseguir entender e gostar de Tarkovski. Falou assim: “Eu ganhei dez anos da minha vida”. Isso é uma coisa que você só vê em blog, não tem mais os cadernos, os famosos cadernos. Acho que você manter esse tipo de coisa… Tem três aqui [risos]. Mas ele, por exemplo, ele exercita isso no blog. Você carrega caderno?

FG: Eu carrego caderno. O problema é que eu estou sem computador. Então eu voltei a ter caderno, mas o caderno é um acessório pro blog. E o blog também funciona como…

CR: …como caderno de cinema, esse é o sentido da coisa. Essas coisas todas eu acho que têm uma relação interessante aí. Com toda sinceridade, eu acho muito mais interessante do que ficar fazendo filme miliberbê, etc e tal. Mais um, entende. Tem outra coisa que eu estava outro dia comentando com o Inácio [Araújo]: agora a coisa do cinema virou assunto. Virou cinema de assunto, não sei se está entendendo o que eu estou falando. “Você viu aquele filme?” “Vi”. “O que que é legal?” “O assunto”. “Vamos falar de filme.” “Qual deles?” “Qualquer um deles.” Agora o cinema é o assunto.

FG: Qualquer filme sobre tal assunto seria bom. Parte desse princípio aí.

CR: Pois é, é evidente. Qualquer cara que fosse passar 3, 4, 5 anos com uma câmera dentro de um… – não vamos citar os nomes – não teria como não fazer um filme interessante. O resto é punheta técnica, de ficar discutindo o suporte, não sei se você tem acompanhado essa discussão absolutamente bizantina. [risos] Bicho, desde que eu comecei em cinema essa discussão existe. Quando surgiu o Super-8, era a panaceia pra qualquer coisa. Quando surgiu o vídeo, era a panaceia para qualquer coisa. Agora continuam com a mesma conversa fiada. Essa é a grande questão. Essa discussão é muito mais complexa, tenho discutido muito dessa questão com pessoas que realmente entendem, como o Zé Luiz Sasso, o próprio Paulo Sacramento tem acompanhado isso muito bem, que é essa questão do suporte, da mídia, porque nós estamos comentando com pessoas que realmente lidam com a questão da mídia. Tudo na verdade é uma coisa que, sabe, a Kodak tem que deixar, os americanos têm que abrir as pernas pra Sony, pros japoneses, etc e tal, se não não vai acontecer nada, vai continuar a mesma coisa. Definitivamente não somos nós que vamos resolver esse problema. O que eu acho muito grave é achar que a panacéia tá numa quarta figura. Isso que me incomoda. Porque hoje a situação da exibição digital, da exibição eletrônica, faz aparecer a quarta pessoa. Se não bastasse o produtor ter que negociar com o distribuidor e com o exibidor, agora vai ter também o emissor de sinal. É mais um cara pra te dizer se o seu filme é uma bosta ou não é. Eu não quero mais isso. E se tem um problema da discussão, ainda é a questão, que é a grande discussão hoje no mundo inteiro, das majors, é a questão da pirataria. Porque a mídia já foi inventada. Todos nós que já sabemos tecnicamente, quem conhece minimamente a técnica, já sabe que a mídia já foi inventada, que é o optical disk, etc e tal, que grava um volume monumental de informação, mais que o negativo até. Já existe a mídia, o negócio já existe. Só que a patente é japonesa e o americano não deixa entrar. Aí começa a desenvolver e já faz, enfim, uma briga pra cada um deter os direitos sobre essa mídia. Essa discussão, ela é bizantina porque já começa velha. Sinto muito, ela não está nas mãos de quem faz filme.

RG: É o peixe grande que tá decidindo.

CR: Pois é, infelizmente. Então enquanto isso…

RG: A não ser que façam uma patente linux disso tudo, uma tecnologia livre como linux.

CR: E você acha que vão deixar? Eu fico aqui nesse desespero dessa discussão, é um desespero que vem acompanhando o cinema desde a década de cinquenta. Enquanto isso, o sistema de exibição brasileiro já saiu da mão de famílias e foi pras majors. Noventa por cento dos circuitos brasileiros hoje ficam pra americano. Acho que só o Severiano Ribeiro que continua mantendo família, não é isso? Mesmo assim, deve ter até parceria já com… [major]. Mas essas coisas, mal ou bem, têm que ser ditas. Tem que ser levantadas. Porque fica uma coisa da panaceia, da questão do digital, da MiniDV, a 24p… Nada tá resolvido no fundo. Ninguém vai parar o cinema pra poder dizer “Vamos primeiro descobrir qual vai ser… [o formato digital a ser utilizado]”. E enquanto isso os caras tomam conta do mercado brasileiro. Do jeito que querem, da forma como querem. O que eu acho é que tem fazer filme… Do jeito que der, fazer o máximo possível. No momento que você tiver a produção de mais de cem filmes, aí dá pra ir pro pau, pra briga.

RG: Depende do filme, também.

CR: Mas mesmo assim é uma coisa que eles vão decidir lá, qual vai ser o seu suporte amanhã. Porque antes não dava pra fazer produção por causa disso, né… [fim do LADO B]

*Nota do editor

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Levem os profetas ao limite – sobre o carpinteiro Steiner e o camponês Hias

Por Gabriel Papaléo

Coração de Cristal 1

“Construído de tal modo que quem o olhasse uma vez não pensava noutra coisa e assim o rei ordenou que o atirasse no mais fundo do mar, para que os homens não se esquecessem do universo.”

Jorge Luís Borges, O Zahir, em O Aleph.

 

O que é mais perigoso na altitude, o risco físico de vida ou os efeitos psicológicos que ela gera na percepção da realidade? Para os esportistas dos Alpes e os habitantes da Bavária ambos são costumes da rotina, quase motores e, para cineastas interessados pelo misterioso efeito alucinógeno da natureza como Werner Herzog, investigar o dever da excepcionalidade desses personagens cria contos dedicados às cerimônias que acontecem nos lugares. Em O Êxtase do Carpinteiro Steiner (1974) e Coração de Cristal (1976), o alemão filma dois protagonistas bem distintos – um esportista carpinteiro e um camponês – para ver a forma que ambos lidam com suas responsabilidades com o ambiente e principalmente saber o que fazer com o poder de ambos em profecia.

No filme de 1974, os Alpes são uma dimensão bruta de reflexo direto do clima, do tempo, na paciência típica dos esportes de inverno que só podem existir em uma época específica do ano. Os desafios físicos parecem maiores do que o humano é capaz e, ao dobrar essas certezas, o carpinteiro Steiner alcança alturas inimagináveis. No filme de 1976, a paisagem da Bavária contém ali gravada os contos épicos de relato oral, dos quais a encenação de Herzog se aproxima tanto de uma teatralidade física quanto dessa dimensão barroca, de grandes temas, das paisagens grandiosas que refletem as incertezas da vida daqueles homens e mulheres. É assim que o camponês Hias é apresentado: em meio a montanhas misteriosas, procurado pelas crianças que o percebem como uma criatura em conjuntura com os astros, como alguém que guarda criptografada a história do mundo.

Steiner 1

Então como exatamente a memória, esse estado de conforto emocional que pouco tem a ver com fatos, se reflete no cinema de Herzog, conhecido justamente pela crueza do presente, pelas elipses contadas quase sempre pela consciência alheia, pela atenção à ação do momento como provação dos seus personagens diante dos deuses, do cosmos, da terra? Há uma fina camada de realidade que distancia passado e presente nos contos bávaros do diretor, uma vez que o que já aconteceu permanece pairando de alguma forma o imaginário dos habitantes daquele lugar. Cabe ao demiurgo da vez, Hias, a não apenas canalizar as energias desse passado vivo que todos sentem e discutem sobre, como também o dever de assimilar que ele é o homem que atravessa essa ponte do tempo.

A terra ali retratada é vista especialmente sob o filtro das verdades absolutas que incidem sobre os habitantes em um literal transe. A única precisão que se percebe ali é a dos trabalhadores do vidro, concentrados e brutos nos gestos de criação de algo tão delicado. O senhor feudal do local é consumido por delírios de grandeza, em busca do tal vidro vermelho, e cabe aos pobres vassalos a subserviência dos acontecimentos – até que do transe são despertados, pelas palavras incendiárias de Hias, que permanecerá num pêndulo entre profeta e charlatão pelo crivo da opinião pública até os eventos levarem ao inevitável confronto com a autoridade que curva a sociedade que comanda sob seu desejo distorcido. O fogo das fornalhas aparece como uma miragem, desconhecida diante daqueles elementos mundanos, com a sedução da curiosidade apenas rivalizada pelo registro de Hias quase sempre à parte, acima do vilarejo, elucubrando diante das cataratas furiosas.

Coração de Cristal 4

A difusão quase abstrata entre as paisagens fantasiosas e os relatos comportamentais etnográficos que Herzog filma em Coração de Cristal parece investigar onde estão os vestígios emocionais da História daquele lugar, como ela se manifesta para além da catalogação, da preservação; como ela existe de forma intuitiva no movimento daquela população, como uma hipnose, como a qual o diretor submeteu seus atores durante a filmagem.

Por essa contradição entre um impulso altamente ético de organização social e o fascínio por personagens cuja desconexão com a realidade frequentemente é traduzida por delírios de grandeza que assumem uma tirania diante do bem comum que Herzog permanece dos grandes – senão o maior – alto turista europeu, usando a classificação de Thom Andersen e Los Angeles por Ela Mesma, a visitar a América do Sul com sua câmera. Os românticos Hias e Steiner (e mesmo Kaspar Hauser, com seu destino à experiência humana determinado pela fronteira social que nunca conseguiu ultrapassar) de alguma forma reconhecem a responsabilidade dos seus atos de grandeza, talvez porque estão ambos diante das suas terras de origem. Já o expedicionário Aguirre, o empreendedor Fitzcarraldo, o mercenário Cobra Verde, o vampiro Nosferatu, entre outros, se reconhecem no direito de fazer valer da influência, da suposta lei do mais forte, de entender que seus sonhos são tão espetaculares que a realidade deve se curvar diante deles. A negociação nunca é diplomática; é sempre de enfrentamento tortuoso, explosivo contra a terra alheia que deve ser colonizada pela mente brilhante dos falsos profetas.

Não por acaso são todos personagens vividos pelo ator Klaus Kinski, que viveu nesses filmes – e também em O Grande Silêncio, o grandioso banho de sangue de Sergio Corbucci – homens consumidos por uma crueldade voraz por simplesmente se aterem a seus objetivos pragmáticos de conquistas. A esses colonizadores fica apenas o delírio, a febre do lugar que não compreendem, os sonhos megalomaníacos movidos apenas por ego – conquistas do inútil, para ficar em autodefinições do próprio cineasta alemão. Sua visão fica consideravelmente diferente diante de seus conterrâneos que escolhem desafios que não sejam autoritários, que reconhecem a sociedade de alguma forma sob a extensão ética de seus atos – mesmo que esse ideal os leve ao exílio.

E em Coração de Cristal o profeta e o destruidor terminam na mesma cela, talvez porque mesmo diametralmente opostos na bússola moral, para Herzog existe neles uma aproximação através da excepcionalidade, no descumprimento das regras sociais e no isolamento que isso gera. Se o vilão enlouquece no seu luxuoso exílio particular com sua mente febril pelo zahir, Hias é afastado das pessoas por suas palavras intoxicantes, de confronto, de vanguarda. É da natureza, da floresta, que ele sente falta. Nunca conseguiu se afinar àquelas pessoas, o isolamento dos seus poderes de profecia o deixando sempre à margem, a viver com observadores e contemplações, destinado à solidão do presente porque é para o futuro que mira seus dizeres.

Coração de Cristal 5

A solidão também é uma constante no outro protagonista profeta de Herzog aqui retratado, o personagem-título de O Êxtase do Carpinteiro Steiner. O esquiador (e carpinteiro) percebe que o circo está em torno dos seus feitos, e o risco de vida ao qual ele é colocado parece importar apenas ao próprio Steiner (e à câmera de Herzog). São por essas dimensões psicológicas difusas e de rápidas decisões que Steiner atravessa ao longo desses dias de treino e competição, ponderando sobre a distância dos limites do seu corpo e seu poder de voar. A quem interessa as distâncias e os recordes? Quando perguntado por Herzog, o carpinteiro parece se importar menos com o recorde mundial que com o próprio recorde pessoal, talvez porque a importância de manter a mente sob controle e com medo suficiente para continuar saltando seja no limite a base para Steiner.

E como manter o controle se a ideia é justamente ir até o limite, no risco de vida, nas ideias, na transcendência? Steiner sobe e desce as colinas de neve o tempo todo numa jornada incessante por provação que soa pessoal a todo momento, quase como se para ele não houvesse oponentes, apenas a superação de si. E é nessa superação que existe o contato com o místico, no caso a natureza e a pulsão de vida que o perigo em dialogar com ela traz, nos voos viscerais que tentam trazer uma profecia de novas formas de imersão no ambiente – como se sintetizasse as mesmas visões de Hias, de uma forma tão abstrata quanto, mas infinitamente mais concisa, individual e esotérica. Se o camponês conjurava verdades ancestrais para tentar trazer paridade à realidade bávara de seu tempo, o carpinteiro faz sua busca utópica pela harmonia como uma ideia individual que com sorte contaminará aqueles que o observam a também experimentarem.

Coração de Cristal 3

Diz muito sobre essa distância abissal entre a necessidade do dever na profecia e o equilíbrio pessoal que o filme termine com um verso do protagonista dizendo o quanto sua liberdade seria alcançada quando estivesse sozinho, enquanto vemos ao fundo um dos magníficos planos de salto em câmera lenta. Por aqueles instantes no ar Steiner está consigo mesmo, preparado para satisfazer uma população vibrante que o assiste e quebrar recordes, mas sobretudo com a concentração e paz de quem está sozinho, voando aos céus, com boas esperanças de pouso.

O epílogo cerimonioso de Coração de Cristal ajuda a entender melhor o que significa essa curiosidade gerada pelas palavras e ações dos profetas, o comichão deixado na cabeça dos habitantes a procurar, em futuros, o ato de questionar – e quem sabe assim poder entrar em acordo com a natureza novamente, ser acompanhado pelos pássaros, se esbaldar nas possibilidades utópicas do mar e o que ele pode oferecer. Essa invenção também atravessa o carpinteiro Steiner, filmado por Herzog como um alquimista dos ventos, num voo suspenso que encerra o filme em uma das câmeras-lentas que buscam a eternidade do movimento, que concentram cada detalhe dos músculos do esquiador em queda livre à procura do solo.

Steiner 4

A aterrissagem não parece interessar tanto a Herzog na construção da mitologia de seu profeta até a última cena, talvez porque a terra seja dos habitantes que enxergam o presente, e aos alquimistas só resta o futuro, a possibilidade. Talvez essa seja a grande tragédia dos personagens românticos bávaros do diretor: não existe memória para quem está delirante, em contato com uma dimensão fantasma não-acessada no hoje, em busca da eternidade e da lembrança de quem estará no futuro, além do seu alcance como mágicos e além do nosso alcance como espectadores. Steiner quer apenas saltar, ficar na sua, como se o esporte fosse antes uma meditação, portanto solitária.

A chave dessa conexão que se apresenta quase mística para Herzog sempre vem na fricção com a natureza, e se há algo que as árvores e os rios e o vento e a terra guardam é a ancestralidade não-gravada, não-comunicada de forma humana, que apenas profetas em estado maníaco acessam – seja por acaso, seja por maldição, seja por muito, muito treinamento.

Coração de Cristal 6

Steiner 5

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O trauma transmitido, o trauma omitido: Túmulo dos Vagalumes, Maria Antonieta e Jojo Rabbit

Por João Lucas Pedrosa

“O tempo descontextualiza o trauma.
O trauma descontextualizado numa pessoa parece personalidade.
O trauma descontextualizado em uma família parece traços de família.
O trauma descontextualizado num povo parece cultura.”

  • Reesma Menakem[1]

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Uma das maiores preocupações de Isao Takahata durante a feitura de Túmulo dos Vagalumes (lançado em 1988) foi que, na equipe, apenas ele e o compositor Michio Mamiya tinham vivido a Segunda Guerra Mundial, pano de fundo da animação. O resto tinha nascido após 1945 e não tinham o trauma correndo pelas veias. E Túmulo… é, definitivamente, um filme sobre trauma. Sobre lembrar de um tempo sem redenção. Voltar a quando a perda foi evitável e ocorreu mesmo assim – olhar o erro no olho:

  • O primeiro plano abre num fade in para Seita, o protagonista adolescente, trajando vestes militares e olhando diretamente para nós em fundo escuro. Sua voz, em narração, nos diz o dia em que morreu (será uma das poucas intervenções narradas por todo o filme) e ele vira-se para o lado – a virada, seguida da quebra de quarta parede, sugere estar a coisa olhada também ao nosso lado. A história a seguir pertence também ao mundo de quem olha a tela, afinal; daí a escuridão da introdução espelhar a da sala de cinema. Um over the shoulder revela que ele olha para o próprio corpo moribundo, que incide um foco de luz sobre a escuridão. Um lento zoom out na direção do menino fraco e ele se torna um portal para a estação de trem atarefada no dia “21 de setembro, 1945”, quando morre de fome. Já no começo, o movimento principal é traçado: a partida do lugar-então-presente (para o fantasma, o vácuo da memória; para o espectador, a sala de projeção) em direção ao lugar-passado (lugar geográfico da morte do protagonista); o narrador é o morto e o veículo da locomoção é a imagem do seu definhamento. Quando, após a abertura, o filme recua até quando ele e a irmã se despedem da mãe pela última vez antes de esta morrer num bombardeio, já sabemos qual será o fim deles. Estamos prestes a ver o processo dos irmãos em direção à morte. Estamos prestes a ver um filme que é uma autópsia.
  • O over the shoulder em que se cruzam o fantasma de Seita e seu eu moribundo são tão enfáticos como irônicos. A forma fantasmática do protagonista não é limpa, mas está ainda nutrida – sua forma eterna é como um arquétipo seu, baseado na imagem do imediato pré-orfandade, pré-início do fim, no ponto onde passamos a acompanhá-lo após a abertura. O over the shoulder, assim, nos mostra a imagem que é ambos do eterno e do início olhando para a imagem do fim. Olha para o arrependimento, ao mesmo tempo que para o destino. O filme acabou de começar; a tragédia no filme é fato acontecido (passado) e a ser consumado em imagem (futuro). Assisti-lo é como assistir a uma sentença de morte.
  • O movimento autopsial do filme é circular e vertical, porque para Takahata circular é a memória (indo do presente para o passado e vice-versa) e verticais são o tempo e o espaço. O filme gira enquanto se afunda, como uma broca. Por isso, termina com o espírito de Seita, sentado num banco à distância, olhando os edifícios da metrópole japonesa oitentista, enquanto o espírito da irmã dorme sobre a coxa; por isso, após a morte de Setsuko, vemos uma família voltando à sua casa em frente ao lago e matando saudades da vista, enquanto, na margem oposta, o depósito abandonado guarda os momentos de brincadeira solitária da menina em vida; ela é ambos memória e fantasma – e não é toda memória um fantasma?
  • O giro de broca de Takahata fica-se à terra, pois escava pelas histórias que ela guarda. A ele importava o mapeamento dos lugares: o ponto de polícia que prende Seita quando rouba cana precisava ter as janelas vedadas com fita, para que os vidros não quebrassem em bombardeio; o depósito-caverna abandonado onde os irmãos residem existia de fato, assim como muitos outros lugares, reproduzidos com o máximo de fidelidade possível à Kobe da época. Projetar sobre a terra a imagem do seu passado concreto, num palimpsesto inverso. É a mesma terra e a desgraça pretérita é raiz encravada no chão presente.
  • O giro de broca de Takahata é transcendental, pois precisa da impressão do tempo corrente para sentir no espírito a ação concreta de uma morte tão distante. Constrói sua transparência para atacar as opacidades, e desse ataque faz sua metafísica.
  • Uma vez que crença está nos gestos inseridos no espaço e no tempo, a acuidade do movimento é indiferente. Neste filme, as personagens necessariamente não são de carne, ainda que suas imagens sofram as mazelas dela (os cabelos tomados pelo piolho, a pele tomada pela urticária, o corpo tomado pela desnutrição). A carnalidade da rotoscopia de, por exemplo, Ralph Bakshi, muito provavelmente trairia Túmulo. A morte aqui não toma corpos, mas carcome os personagens em sua bidimensionalidade, como um parasita devorador de abstrações. “Temos uma criança morrendo de fome, mas pelo jeito que aqui vemos, temos a ideia de uma garota morrendo de fome”, disse Ebert sobre o filme[2]. Como Eisenstein, Takahata quer atingir as dimensões virtuais do espectador, mas ao invés de conduzir uma leitura política pelo fervor da vibração intelectual, contagia em realismo psicológico a impressão da morte pela imagem da criança sucumbindo na guerra. Daí o jogo da transparência atacando a opacidade: os mecanismos que mostram o desfazer das roupas e o realce do esqueleto sob a desnutrida pele de Setsuko são os que assassinam à nossa frente um conceito de infância e de pureza – e por isso o neorrealismo de Túmulo é mais próximo de Vittorio De Sica que de Roberto Rossellini.
  • É difícil as crianças não virem à mente quando pensamos em De Sica no pós-guerra. Os protagonistas de Vítimas da Tormenta, Bruno em Ladrões de Bicicletas, a bondade infantil do jovem Totó em Milagre em Milão. Existe um afeto puro – talvez o amor inato e intransitivo típico das crianças, que em poucos se mantém -, que ou se quebra pela crise (o amor entre os amigos que termina com o assassinato de um pelo outro, a devoção desmedida pelo pai que o testemunha virando um ladrão no desespero) ou se torna fantasia (a ascensão aos céus). É segurando-se com toda força à fantasia que Seita sela o destino de Setsuko e o seu. É suicídio, mas diferente do das crianças de Rosselini. Alemanha, Ano Zero e Europa 51 trazem crianças se atirando de alturas, encerrando a vida num brusco encontro com o concreto. Aqui, o movimento é contrário, os menores buscam uma evasão que não conseguem – estão presos ao chão, à vida e às suas regras. Seita rejeita cada desgraça que o acomete (sequer conta da morte da mãe para Setsuko), e se retira com a irmã da casa da tia (um lugar seguro onde é preciso engolir o orgulho) por se recusar a seguir o coletivo e tentar criar um retiro para os sonhos e brincadeiras infantis da irmã; as necessidades concretas não permitem que isso dure, e a cena em que Setsuko chupa uma bola de gude fingindo ser uma bala e faz bolos de terra que finge serem de arroz é a forma mais atroz da necessidade se impôr sobre a inocência infantil. A brincadeira não consegue burlar a fome, é uma briga injusta. Seita é suicida, mas Setsuko morre só por ser criança; é isso o que mais dói em sua morte.
  • A cena dos vagalumes é categórica: Seita, numa sorte de caverna/depósito abandonado à beira do lago onde agora mora com Setsuko, solta vagalumes para brincar com ela à noite. Os pirilampos tomam a forma de uma parada da Marinha militar japonesa, da qual seu pai fazia parte: as luzes do mito ultranacionalista militarista nipônico. Mas os insetinhos já estão mortos pela manhã. A beleza deles era nada mais que efemeridade, depois da qual precisamos lidar com os corpos mortos que custou o intervalo de beleza (o monte de vagalumes mortos gatilha em Seita a lembrança do monte de corpos onde sua mãe foi jogada antes da cremação; a caixa que Seita levava no trem tinha Deus sabe quantos mortos). Daí os trajes militares que caracterizam Seita, e se desfazem no decorrer do filme.[3] O gesto assassino-suicida do protagonista é o mesmo do militarismo do país.

O projeto de Túmulo dos Vagalumes é transportar o trauma pelo tempo.

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O correr dos anos é uma das coisas da qual não se escapa e, se já é raro que um filme sobre qualquer das guerras mundiais tenha um sobrevivente do evento na equipe ou que seja por ela consultado hoje em dia, logo será impossível. Como passa a ser lido um trauma global quando as pessoas que por ele passaram, como as células de um corpo, foram substituídas após os anos pelas mais novas?

Quero passar por dois exemplos estadunidenses que escolhem cruzar o retorno ao passado estrangeiro com o imaginário da cultura pop, especificamente o da comédia romântica: o primeiro é independente, o segundo não; o primeiro não trata de uma guerra mundial, o segundo sim; o primeiro dispõe do jogo de gênero para comentar sobre o núcleo social e o período abordados, o segundo não. Como Túmulo dos Vagalumes, os dois são narrativas de amadurecimento (ou exatamente de resistência a ele). As imagens assumidas e as imagens rejeitadas em cada filme revelam as intenções de seu respectivo cruzamento.

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Maria Antonieta (2006), de Sofia Coppola, inicia ao som do pós-punk Natural’s Not In It, do Gang of Fours. Um canto irônico em volta da futilidade do sistema do prazer contemporâneo e da preguiça do ascetismo. Repackaged sex keeps your interest. Abre uma imagem de Maria Antonieta deitada num divã, e uma empregada vestindo seus pés num enquadramento bastante próximo de uma pintura neoclassicista. A rainha pega com a ponta do dedo um pouco da cobertura do bolo ao seu lado e dá um sorriso arteiro para a objetiva, arqueando as sobrancelhas à la Ferris Bueller. Dessa forma operará o longa, filmando a vida de Antonieta na realeza como a de uma protagonista de comédia romântica adolescente dos anos 1990-2000 subitamente importada à corte da França rococó (lembremos, tanto ela quanto o noivo eram adolescentes à época do casamento). Assim que ela pisa na França e a corte inteira vem recebê-la, ela agradece ao Duque de Choiseul, que arranjou seu matrimônio com Luís XVI:

  • Eu nunca esquecerei que você foi responsável pela minha felicidade.
  • E a da França, ele responde.

O diálogo entrega o que será a questão do filme: à adolescente noiva do neto do rei, a entrada na realeza significa o estado eterno de felicidade. Na prática, o vício do consumo. Extensivas festas, ostensivos trajes, jogatinas, construção de suntuosos jardins e demais retiros para evasão. A linguagem briga com a trama, pois a percepção idealizada do mundo – que chapa figuras políticas em arquétipos típicos de comédias teen (Luís XVI como o nerdzinho tímido; Hans Axel de Fersen como o garanhão sedutor; Madame de Polignac como a amiga saidinha) e bailes em videoclipes pop/indie, como no aniversário de dezoito anos de Maria Antonieta (a suposta maioridade) – rejeita seu próprio fundo político. A rainha é como a ouvinte do conto de fadas que acabou por se tornar de fato rainha, e levou o “felizes para sempre” ao pé da letra sem se dar conta da responsabilidade concreta envolvida. Sua maior preocupação, naturalmente, é a consumação do casamento e a concepção de filhos com Luís XVI. O sucesso do objetivo, entretanto, serve muito menos ao filme pela manutenção da linhagem real que com a satisfação do arco romântico – daí seu romance extraconjugal com Fersen que, apesar de não chacoalhar o casamento, ironicamente consuma um tão familiar triângulo amoroso.

Eis que a operação de Coppola é, ao mesmo tempo, crítica aos dois componentes envolvidos (a corte francesa e a percepção viciada da cultura de massa) pelo que os une: a alienação pelo consumismo. Maria Antonieta não difere muito de Seita em intenções, mas ao invés da crise, ela vive o sonho da ostentação que causa uma em seu respectivo fundo histórico – e temos a diferença entre o olhar vazio que o fantasma nos dirige em sua abertura e o sedutor e provocativo da rainha. Porém, o mundo responde. O indie rock que preenchia a faixa sonora pela predominância do filme é abandonado após uma curta sequência de troca de quadros, que condensa todos os anos de sua vida entre a recém-maioridade e a morte de seu filho, às vésperas da Revolução Francesa. A partir dali, o cenário passa a ser de perda, e o som passa a ser ambiente. E o ambiente grita. Os berros de seu bebê nervoso misturam-se com os do povo faminto e revoltado em seu jardim. Um momento decisivo da história de um país cuja rainha acabou de descobrir que existe. Ironicamente, a perda a aproxima da percepção do povo.

A classe popular não aparece pela primeira vez nessa altura do filme, mas está presente desde o primeiro plano, em que rainha e serva compartilham a mesma distância da câmera. Nessa tomada introdutória, o espectador escolhe se olha para Kirsten Dunst ou para a empregada, focada no trabalho. A contiguidade de plano enquadramento é proposital, assim como a tendência ao espectador/câmera cativos pelo olhar da estrela/elite; apenas depois nos atentamos aos arredores. A escolha da diretora segue a da Vênus de Urbino de Ticiano ou da Olympia de Manet, que justapõe os servos e a musa feminina em choque e ironia. O resto do filme, naturalmente, escolhe a protagonista, e daí em diante os trabalhadores são apenas figurantes. Quando cruzam ou até olham para a objetiva em tomadas de ponto-de-vista, o plano logo é cortado ou a câmera se vira para outra direção; o recorte perceptivo não perdoa. Numa noite, ela, enfim, olha para o proletariado na forma de uma furiosa massa miserável com tochas e paus sob sua sacada, bradando vozerio francês num filme anglofônico. Calma, Antonieta se curva em continência à massa, e eles entram magicamente em silêncio enquanto ela está abaixada. Mas assim que se levanta, o povo volta a gritar em fúria. A perspectiva de final feliz morreu instantaneamente.

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Na última cena, finalmente, a fuga do palácio. Da carruagem, Maria olha melancolicamente para seu jardim, e seu marido lhe diz:

  • Está admirando a sua avenida de limeiras?
  • Estou dizendo adeus.

O filme foi arduamente criticado (não à toa bem mais nos Estados Unidos que na França) pela imprecisão com o estilo da época, e por apresentar em seu lugar um destoante e vibrante anacronismo. Mas Maria Antonieta é muito menos um filme histórico do que uma despedida da adolescência. Corte para o quarto da rainha, totalmente destruído. O silêncio reina. Fim.

Jojo Rabbit, de Taika Waititi, penso que seria o filme que a Maria Antonieta de Coppola dirigiria sobre a Alemanha nazista.

O vencedor do Oscar de Melhor Roteiro Adaptado segue Johannes Betzler, uma criança de dez anos apaixonada por Hitler (que encarna seu amigo imaginário) em meio ao fim da Segunda Guerra Mundial, mesmo contexto de Túmulo dos Vagalumes. A parte mais bem sucedida do filme são os créditos iniciais, que, ao som da versão alemã de I Wanna Hold Your Hand, dos Beatles, junta imagens de arquivo de paradas nazistas e das mãos de seus seguidores levantadas. Hitler, à sua época, era de fato uma superestrela aos demais nazifascistas; uma esperta aproximação.

A esperteza logo abandona o filme, e o tom irônico que prometia outros ácidos paralelos entre o contexto fascista-eugenista abordado e a cultura estadunidense se entrega à comédia romântica pasteurizada. O arco é simples: Jojo descobre nas paredes de sua casa Elsa, uma garota judia refugiada que sua mãe abrigou; ele se apaixona por ela e começa a desconstruir seu nazismo. Existem algumas abordagens em que isto poderia ser não ser atroz, como assumindo a perversidade infantil do protagonista, como o contexto é efetivamente perturbador (e, assim, fez de Jojo uma criança perturbada), ou até mesmo ironizando as opacidades de um gênero leve sobre a tragédia (algo que me parece próximo a Verhoeven). Mas nada disso acontece. Afinal, é um filme Disney.

O produto segue uma estilização um tanto parecida com a de Wes Anderson em seus enquadramentos simétricos e paletas agradáveis, mas a graça pretendida pelo filme não se apresenta em críticas ácidas, diálogos espertos ou tempos alongados constrangedores. Está em sua similaridade com o teatro infantil. Existe uma graça específica numa encenação escrita pelas crianças de ambientes saudáveis, pois em suas cabeças não há a assimilação de situações monstruosas. Um certo absurdismo fofo toma forma, pois o associamos à pureza da mente ainda crua das crianças. As personagens que menores escrevem geralmente têm pulos súbitos de um ponto a outro de seu arco, ou simplesmente tomam um estado bruto, imutável. Como Ulisses, da Ilíada, que envelhece e ganha cicatrizes por fora, mas sua personalidade permanece sempre a mesma, como se a mente por nada tivesse passado. Ulisses, é claro, é a composição pioneira do arquétipo do herói, do inabalável espírito de guerra da Grécia Antiga. Já Jojo é a composição do quê?

Um argumento comum é que o tom do filme se pauta na subjetividade infantil do protagonista. Mas ele sofre mais do que o bastante para que hajam irretornáveis abalos subjetivos: ele sofre um bombardeio que o desfigura, perde sua mãe para o nazismo, testemunha menores, idosos e deficientes perdendo para o exército adversário e vê seu treinador militar (o mais perto de figura paterna durante a ausência do pai) morrer para salvá-lo dos estadunidenses. Sua mudança, no filme, é de um menino nazista até um “homem” anti-nazista (supostamente autônomo), mas suas personalidade e preocupações se mantêm em volta do arco romântico – inclusive sua virada ideológica parece mais movida pela paixão que pela morte da mãe. Me vejo obrigado a retomar a assombrosa foto de David Seymour da criança polonesa Teresa Adwentowska, mais conhecida como “Tereska”. Ela sobreviveu aos estilhaços de bala que danificaram seu cérebro durante a repressão nazista ao levante da Varsóvia de 1945, e passou fome por semanas na miserável Polônia pós-guerra com apenas quatro anos. O clique é de 1948, ela tinha sete para oito anos e estava então numa residência para crianças perturbadas. Ela desenha para a proposta de exercício “To jest hom” – “Este é o lar”[4]:

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A confusão nos olhos e nos traços de Tereska berram as cicatrizes de uma mente que fracassou em assimilar o inassimilável e que agora sequer assimila o mais básico: um lugar de conforto e segurança. É gritante como a pureza na psique de uma criança que tem contato direto com a guerra não sai ilesa, assim como é autoral e extremamente desonesta a recusa do efeito da monstruosidade sobre a subjetividade infantil pelo bem da mera leveza de gênero, da ampliação do público-alvo.

Os três exemplos aqui citados envolvem, curiosamente, a morte da mãe dos protagonistas, em seus diferentes tons e intenções. Justaponhamos as cenas.

Em Túmulo dos Vagalumes, a mãe de Seita morre antes dos 20 minutos de filme. Ele a vê respirando pela última vez enfaixada e ensanguentada pelos ferimentos do bombardeio. Nos buracos dos olhos, nariz e boca, vê-se a textura da pele queimada e talvez o que mais se estranha em seu desenho sejam a protuberância triangular do nariz e o rosado desidratado dos lábios. A última vez que vimos seu rosto antes disso foi no traço animesco das demais personagens no filme: grandes olhos redondos, três traços no lugar de nariz e narinas, dois traços no lugar dos lábios. Mas agora ela porta as texturas, cores e relevos da carne morta e, no dia seguinte, apenas os vermes que comem sua carne podre se mexem no enquadramento. É uma imagem de choque, destoa bruscamente do estilo até então apresentado no filme, e do que aparece no decorrer seguinte. A marca de quebra estética que propõe a imagem é também a marca de quebra narrativa no arco dos irmãos: é o início do fim para eles.

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Em Maria Antonieta, a morte da mãe aparece como detalhe e presságio do que será seu período final, marcado pela perda (da mãe, do filho, do reinado). O tom episódico do fato ganha seus subtons irônicos porque: 1. todo detalhe histórico ganha tom episódico e banal no conjunto etéreo, efêmero da linguagem do filme; 2. a mãe mal aparece no todo da obra, apenas mediada pelo irmão, que deixava claras as intenções maternas de manipular o rei pela filha, e então pela notícia da morte. Maria fica visivelmente abalada, mas o bucolismo do cenário em plano aberto continua contrastando com o tom geral da cena em que ela, de súbito e sem qualquer tato, recebe a notícia. O plano seguinte é seu irmão olhando a mãe morta sobre o leito, na paleta escura de luto. A perda é verdadeira, mas distante, não contígua, não imediata. Até a morte de seu filho, tudo (a distância da pátria-mãe, a fortuna e a proteção real a seu dispôr) favorece que Maria esteja longe da crise e da dor, por mais que, em última instância, as sofra. A verdadeira imagem de quebra para Maria é a da revolta do povo sob a sacada, imposta para fora do extracampo ou das periferias do plano.

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Já Jojo segue inocentemente uma borboleta azul que o leva, sem que ele perceba, ao sítio onde sua mãe foi enforcada. Os antinazistas lá são enforcados a céu aberto e ficam pendurados para que sirvam de exemplo aos demais, assustando os que talvez possam compartilhar oposições. Ele se abaixa para ver o inseto de perto e levanta-se quando ela voa, num tilt que revela os marcantes sapatos pelos quais a identificávamos em outros planos mais cedo no filme, logo antes da entrada de seu rosto. Jojo os reconhece e olha para cima, mas não temos seu ponto de vista. Ele chora e abraça os pés da mãe por um longo tempo. É fundamental que não tenhamos o contraplano do rosto rígido da mãe morta, provavelmente roxo e inchado, pois é a quebra que não permitiria a manutenção do teatro infantil. É uma imagem de trauma, e o trauma é de não retorno. Por isso a metonímia, por isso a fragmentação do cadáver. É necessário que o efeito depressivo da morte materna seja temporária; um efeito emotivo, não uma cicatriz. Por isso as tragédias não são acontecimentos na vida de Jojo, mas episódios: a reação a isso dura no máximo uma cena depois (como a tentativa de matar a judia, a despedida do professor após a derrota que conclui a guerra), e o filme volta à leveza das crianças. Do mesmo jeito funciona sua desfiguração: no extracampo. Quando ele volta ao plano, seu rosto está no lugar, com cicatrizes vistosas. Mas o corpo do protagonista é como o do filme: as cicatrizes em muito pouco tempo tornam-se sutis arranhões.

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O problema de Jojo Rabbit não é ser um filme pró-nazismo, pois não o é (e o dia em que isso for metade do mínimo esperado de um filme, estaremos perdidos). O problema de Jojo Rabbit é ser um filme anti-nazista e anti-guerra por obrigação, por tabela; existe a cena da morte da mãe, existe a sequência dos débeis corpos nazistas restantes lutando uma luta perdida contra os estadunidenses. Mas isso não perturba o tom geral do filme, a leve alegria. Diferente de Maria Antonieta, o filme não dispensa as evasões com qualquer noção de crueza, e a manutenção do gênero a todo custo faz, no longa de Waititi, a guerra ser não muito diferente da briga entre mocinha e mocinho antes da reconciliação no baile. Depois que Jojo chuta seu Hitler imaginário janela afora e decide encarar o mundo com sua amada, seu look e pose são como a de um galã de filme dos anos 1980, com topete e mãos nos bolsos do blazer. O crescimento em direção ao rapaz livre da lavagem cerebral nazista é equivalente ao do rapaz com segurança de chegar na mocinha. À frente da porta da casa de cujas paredes ela acabou de descobrir que existia viabilidade de vida, os dois se olham frente a frente como antes do beijo em fim de romance meloso. E agora, o que fazemos?, ele pergunta. E Elsa puxa tímida e constrangedoramente uma dança, que cresce sob o som da versão alemã de Heroes, de David Bowie. O fim da guerra aparece como uma porta imediatamente aberta para o amor, e a construção dos heróis está terminada. Na prática, os dois são menores órfãos, o país está destruído e tomado pela miséria. Mas o filme se recusa a deixar-se assimilar a crise. Uma estrofe de Rilke vira epígrafe ao fim do filme:

Deixe tudo lhe acontecer
Beleza e terror
Apenas continue
Nenhum sentimento é final

Beleza e terror, no trecho, são tão inevitáveis quanto passageiros. São opostos, complementares, e podem ser assustadoramente próximos. Mas o filme faz a primeira rejeitar a segunda. Não existe em Jojo Rabbit o êxtase de encontrar a beleza após o terror, apesar dele ou sequer dentro dele escondida, porque neste filme o terror não existe; existe uma versão sua pasteurizada, empacotada para o entretenimento, para o pequeno prazer. Ele não aparece no filme como um estado que cruza a câmera (pois contaminaria a unidade do filme, ainda que pela quebra), mas circunstância de um momento específico, deslocado do conjunto (e por isso é corriqueira, facilmente superável). É um filme que não reconhece dispôr de uma beleza que não vem do mundo, mas da evasão projetada sobre o abissal. Por isso sequer é a beleza arrebatadora de que Rilke fala, que acontece. É fugidia, forçada, como as festas de Maria Antonieta. Um poema poderoso, tornado desculpa covarde na tela.

Penso que um filme desse tipo é tão execrável quanto inexorável, e é com um pavor profético de filmes como este de Waititi que Takahata fez uma obra tão cruel quanto Túmulo dos Vagalumes. Um filme que deixa o trauma de herança ao espectador. Desde os anos 1910, a guerra já era gênero cinematográfico, mas ainda tateava-se com delicadeza pelas reminiscências do trauma antes que se fizesse dele um mero pano fundo para experiências sensoriais alegres. É inevitável que se dê uma distância subjetiva de acontecimentos hediondos com o tempo; cada vez mais, eles se tornam um ponto numa história distante a um público imune – ou anestesiado – ao monstruoso. Mas não é inevitável o tratamento capitalista e abutresco sobre eles. Mesmo quando mediados pelo samba de gêneros de Tarantino em Bastardos Inglórios, sua violência não é elipsada ou episódica. Pelo contrário, é um filme alimentado por um visceral ódio antifascista. Seus planos jorram sangue, torturas, tiros e tripas vindas de todo lado em direção a todo lado. Diferentes ataques contra Hitler se encontram acidentalmente ao fim, matando ele como uns aos outros: a barbárie vence a barbárie de seu jeito anárquico e suicida. Não teria como o capitão da missão bem sucedida ser qualquer coisa tonalmente diferente de um caipira obcecado por escalpos nazistas, que marca suásticas com faca nas testas dos que deixa viver. No fundo, ele quer sangue. E é ao mesmo tempo a sede de sangue nazista e a consciência que ela vem do diretor e do público que alimentam a irônica retomada histórica. A violência é cartunesca, divertida, mas não depende da rejeição de um trauma, e sim da expiação de um ressentimento histórico, herdado. Em algum ponto, o exercício desse ressentimento se tornou estágio de abertura para o esgotamento de um dos pouquíssimos eventos tidos como consensualmente hediondos.

[1] “Resmaa Menakem – Racism, Trauma and Healing – Levitate with ….” https://open.spotify.com/episode/2UjwB3Na3DwXnplRAxt0yR?si=5yeHtFnzT42IRf3wp7-l_A. Acessado em 9 mai.. 2021.

[2] At the Movies with Ebert and Roeper: Grave of the Fireflies. Chicago, Illinois: WBBT-TV, 1994. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=yU3mZT0a9Rw> e <https://www.youtube.com/watch?v=_9WEyuMq0Yk&t=133s>.

[3] GOLDBERG, Wendy. Transcending the Victim’s History: Takahata Isao’s Grave of the Fireflies. 13p. In: Mechademia, Volume 4, 2009, p. 39-52, Minneapolis: University of Minnesota Press. Disponível em: <https://muse.jhu.edu/article/368618>.

[4] “David ‘Chim’ Seymour: Unraveling a 70-Year-Old Mystery | Time.” 12 abr.. 2017, https://time.com/4735368/tereska-david-chim-seymour/. Acessado em 5 mai.. 2021.

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Iluminar o mundo pelo opaco

Por Diogo Serafim

 Nuestra mente es porosa para el olvido; yo mismo estoy falseando y perdiendo, bajo la trágica erosión de los años, los rasgos de Beatriz.

Jorge Luis Borges, El Aleph

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People take pictures of each other, and the moment to last them for ever, of the time when they mattered to someone. Picture of me when I was just three, sucking my thumb by the old oak tree. Oh, how I love things as they used to be, don’t show me no more, please.

People Take Pictures of Each Other, The Kinks

Não há vida numa imagem. Imagens são como palavras, sons, odores; sintomas de vida que adquirem substância na potência da memória. A madalena de Proust nada mais é que isso: metamorfose da realidade. A realidade é aniquilada como abstração e manifesta uma nova configuração, uma nova existência. Não ser já é outro ser.

A grande tragédia do cinema é essa: embalsamar o passado é a ilusão da eternidade. Corromper o silêncio das palavras pela fraude da imagem. O cinema é a manufatura da memória, lembrança montada.

Em 50 First Dates (2004), filme de Peter Segal, o personagem de Adam Sandler se apaixona por uma mulher com um tipo de amnésia particular: ela esquece os eventos que ocorreram durante o dia após dormir. Logo, ele tem que encontrar uma maneira de fazê-la se apaixonar por ele todos os dias como se fosse a primeira vez que eles se encontram.

Uma das soluções que ele encontra é filmá-la junto das pessoas que a amam e das coisas que ela ama, para que cada dia as gravações possam lembrá-la de quem ela é. O cinema tem essa característica kantiana de educação sentimental, como toda arte: não se trata forçosamente de um aprendizado novo em si, mas sim de uma assimilação concreta no espírito de um sentimento que se perdeu na erosão da experiência.

Segal constrói seu filme numa charmosa miscelânia de comédia vulgar, romantismo excessivo, cultura pop e precisão dramática. É um filme que se abre de maneira descarada para um universo altamente estilizado, a uma ideia de cinema popular contaminado por um sentimento pungente de romance idealizado. Por detrás de todas as piadas e excesso, reside uma sensibilidade dolorosa, a impotência do corpo que luta desesperadamente contra a erosão do tempo com a única ferramenta que ele encontra: o amor eternizado na imagem.

O filme Forget Me Not (2015), de Kei Horie, é em vários sentidos o filme complementar de 50 First Dates. Aqui, no lugar de se apaixonar por alguém que esquece todos os dias, um jovem se apaixona por uma menina que é esquecida por todos em torno dela. A primeira cena em que ele a encontra no filme é numa encruzilhada na qual ela o atropela com a sua bicicleta. Horie filma essa encruzilhada sempre do mesmo ângulo cada vez que ela reaparece na narrativa. Seus personagens são suscetíveis ao esquecimento, mas a câmera ainda lembra.

A solução encontrada pelo protagonista é a mesma encontrada pelo personagem de Adam Sandler, em 50 First Dates: filmá-la, aqui não para ser lembrado, mas sim para não esquecer. Filma-se para reencontrar na matéria do mundo os resquícios do que ele já foi certa vez. Uma voz do passado que enflora, assombra, repete, que não cessa de voltar. Filmar não é muito diferente de lembrar. Filma-se pra lembrar, lembra-se filmando.

O filme inteiro é construído numa simplicidade comovente, cheio de pequenos momentos que são sentidos com uma força descomunal. Como quando o jovem grita para o mundo que não vai esquecê-la, e a câmera se afasta, como se testemunha da sua promessa, para no fim testemunhar esse mesmo jovem correndo pelas ruas da cidade, gritando o nome dela, esperando que por um milagre ele possa reencontrá-la.

Ambos os filmes trabalham essa dialética de cinema e memória, numa tentativa vã de recuperar a essência através da imagem. O grito desesperado do jovem pronunciando o nome da sua amada no final do filme de Horie é o medo de que tudo aquilo que amamos seja reduzido a uma distância, uma duração.

A tragédia do corpo é que amar é um grito pronunciado pelas mãos. E nós sabemos que no cinema pode-se ver, mas não se pode tocar. Tudo de sólido que pode ser nomeado se torna fluido, homogêneo, se perde em descrição. A ênfase é sempre naquilo cujo nome a gente desconhece. Daquilo que não se sabe o nome, guarda-se as semelhanças.

Todas as nossas memórias são verdades inventadas. A memória é vento sem direção, vida imaginada. Filma-se o rosto dela no ventre da lua, o seu corpo refletindo a luz do sol e o seu sorriso desenhando nuvens cegas. Basta fechar os olhos e a bobina projeta todos esses instantes esquecidos. Às vezes, eu sinto que o passado está logo à nossa frente.

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Nota do autor: Nada nesse texto foi escrito por mim. Não mantive registros das devidas referências porque honestamente nem sei de onde vêm a maioria das ideias, frases, lampejos, devaneios e delírios desse artigo.

Eu nunca crio nada: eu só me lembro.

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Memórias de cinema, revolução e uma aristocracia ridícula

Por Bernardo Moraes Chacur

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Em A Última Ordem (Josef Von Sternberg, 1928), um ex-general czarista, interpretado por Emil Jannings, se vê reduzido a figurante em Hollywood, representando a si mesmo em uma produção ambientada durante o fim do antigo regime. Sendo um filme sobre a feitura de filmes, é memória de uma indústria já a pleno vapor durante a transição para o cinema falado. Ao recontar a queda do general, é também registro da revolução de 1917 ou, mais precisamente, de uma certa imagem daquela revolução poucos anos depois dos fatos e poucas décadas antes da União Soviética se consolidar como o grande adversário dos Estados Unidos.

A trama começa com um diretor russo (William Powell), escalando o elenco para seu próximo trabalho e que, após examinar várias fotos, reconhece uma figura do passado, o grão-duque Sergius Alexander, selecionando-o prontamente. Na sequência, encontramos pela primeira vez o antigo aristocrata, na penúria e acometido por tremores incontroláveis. Arrastando-se até os portões do estúdio, o ex-militar se acotovela entre uma legião de maltrapilhos, figurantes miseráveis como ele. Uma vez admitido, o acompanhamos através da verdadeira linha de montagem na qual recebe o figurino das mãos de funcionários maldispostos. Trata-se de uma imagem totalmente desglamourizada de uma indústria que sempre buscou se retratar como a “fábrica de sonhos” e, não por acaso, o filme desagradou os executivos da Paramount, que cogitaram engavetá-lo. Já paramentado, o grão-duque tira dos bolsos uma antiga condecoração e, após ser ridicularizado pelos colegas de elenco, fita-se no espelho. A partir desse momento, a narrativa retrocede a 1917, em um dos fronts russos da Primeira Guerra Mundial.

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Naqueles dias, o general ainda se encontrava confortavelmente instalado em sua posição de prestígio e arrogância. Inspecionando o local onde suas tropas estavam lotadas, interroga dois bolcheviques, que tentam se passar por simples membros de uma trupe teatral. Um deles é o personagem do futuro diretor de cinema, que é açoitado pelo grão-duque. A segunda (Evelyn Brent, com parte das pernas à mostra, apesar da nevasca circundante) torna-se um misto de prisioneira e convidada de honra, situação da qual se aproveita para planejar o assassinato do general.

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Mas, embaraçando tais planos, o aristocrata se revela um verdadeiro patriota aos olhos da revolucionária. Se em um primeiro momento, o general desloca a contragosto um pelotão para a frívola inspeção do czar, posteriormente se recusa a encenar uma ofensiva para entretenimento do monarca, cioso em sacrificar vidas (ou, talvez, recursos militares) em prol do jogo de cena. Pouco depois, a bolchevique cai nos braços do grão-duque que, servido por todos, não perde nenhuma oportunidade de servi-la. Quando a revolução finalmente irrompe, a espiã reassume seu antigo papel e precisa participar dos ataques e humilhações ao amante para poder se colocar na posição de salvá-lo (outra encenação em uma trama repleta delas). Colaborando em sua fuga, contribui antes para a sua destruição moral.

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A representação do levante popular e suas causas é tratada no filme de forma ambígua. Por um lado, o mito de fundação dos Estados Unidos enaltece a insurreição antimonárquica e a vitória do povo comum (evidentemente branco) contra a classe aristocrática e há aqui resquícios dessa retórica. Nas décadas de 1930 e 1940, no embate contra o nazismo, vários roteiros seriam filmados sobre revoltas contra a tirania através dos tempos. Em 1928, contudo, aqueles eventos eram desconfortavelmente recentes – e comunistas. O precedente mais próximo do enfoque adotado em O Último Comando é provavelmente o enquadramento da Revolução Francesa no cinema norte-americano (e que remonta a, pelo menos, Dickens): uma rebelião com princípios justos, mas que degenera em anarquia nas mãos de uma turba de baixos instintos. Vale lembrar que, vinte anos mais tarde, durante o terror dos primeiros anos da Guerra Fria, tanto a escolha do tema quanto o menor gesto de simpatia pela União Soviética poderiam render prisão ou banimento para os envolvidos.

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Com o fim do flashback nos dias de revolução, retornamos a 1927 e ao set de filmagens, onde fica evidente que o diretor, antiga vítima do general, pretende reencenar a agressão sofrida, seja por vingança, masoquismo ou espírito de denúncia (e como pode se esperar de Sternberg, essa motivação não será esclarecida). No meio da gravação da cena, ambientada em uma trincheira, o grão-duque começa a delirar, acreditando-se transportado de volta à antiga pátria e posição e exorta os comandados a uma última investida pela salvação da Rússia. O arrebatamento aniquila o velho peito e o aristocrata/figurante morre no ato. Quando um dos membros da produção lamenta a perda de um “grande ator”, o diretor surpreendentemente replica: “ele era um grande homem”.

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Como podemos entender essa contraditória admiração do bolchevique/diretor pelo algoz, ainda menos explicável que o amor da espiã pelo captor? A narrativa, pelo menos, parece ter menos simpatia pelo personagem: assim como na próxima parceria entre Jennings e Sternberg (O Anjo Azul, de 1930), A Última Ordem é o espetáculo de degradação de uma autoridade. O grão-duque é, na maior parte do tempo, presunçoso e cruel, desmoronando fragorosamente uma vez derrubado de seu pedestal e só volta a exibir alguma dignidade no momento da filmagem, quando se vê cenograficamente restituído de um poder que, aliás, sempre dependeu de uma elevada carga simbólica. Assim, o fascínio dos revolucionários diante de uma figura tão patética parece capturar elementos essenciais da atração exercida pela aristocracia: romântica, inconsistente e atrelada a figuras incapazes de justificar a veneração recebida.

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Balzac, que se declarava reacionário e monarquista, era o romancista preferido de Engels e Marx. Para os filósofos, a simpatia do escritor à “classe condenada a desaparecer” não o impediu de “os ter descrito como não merecendo melhor sorte”[1]. Trabalhando em outro registro e explorando outro contexto, Sternberg executa uma variação ainda mais irônica dessa dinâmica entre elegia e sátira: deixa a nostalgia por conta de alguns personagens, enquanto se entrega sem maiores reservas à demolição da Velha Ordem.

 

Agradecimentos aos editores da Multiplot pelo espaço e paciência

[1] Seguem as citações completas:

Não há dúvida que, em política, Balzac era legitimista. A grande obra que deixou é uma elegia permanente, lamentando a decomposição inevitável da alta sociedade; todas as suas simpatias vão para a classe condenada a desaparecer. Mas, apesar disso, a sátira nunca é tão contundente nem a ironia nunca tão amarga como quando põe em ação, precisamente, os aristocratas, esses homens e mulheres por quem sentia uma simpatia tão profunda”. (Karl Marx, em correspondência à Margaret Harkness em 1888).

O fato de Balzac ter sido forçado a ir contra as próprias simpatias de classe e contra seus preconceitos políticos, o fato de ter visto o fim inelutável de seus tão estimados aristocratas e de os ter descrito como não merecendo melhor sorte, o fato de ter visto os verdadeiros homens do futuro no único local onde, na época, podiam ser encontrados – tudo isso eu considero como um dos maiores triunfos do realismo e uma das características mais notáveis do velho Balzac”. (Friedrich Engels, na mesma correspondência)

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