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Olhar de Cinema: A Calmaria Depois da Tempestade (Mercedes Gaviria)

Por Pedro Tavares

Em certo ponto de A Calmaria Depois da Tempestade a diretora Mercedes Gaviria resume sua proposta como um exercício estático de memória. É interessante notar como esta frase dada pela própria realizadora coloca ao filme um tipo de análise referente às imagens de arquivo e suas funções simbólicas. Está impregnada no filme a questão do uso das imagens, da captação à reutilização como uma forma geral de banalização.

Gaviria utiliza o seu vício em captação de sons, as constantes filmagens caseiras de seu pai e a retomada de seu progenitor ao mundo cinematográfico para dar novos sentidos às imagens particulares de sua família e para registrar o processo de filmagem de um novo filme. Aqui temos dois filmes e com a narração de Gaviria, surge o terceiro. Portanto, fica em xeque a formação de unidade entre eles – ainda que todos coexistam paralelamente sem a necessidade de uma justificativa. Porém, Gaviria resolve uni-los com seu ponto de vista, com depoimentos de e sobre si.

Não leva muito tempo para que esta decisão tome a tela e dilua qualquer possibilidade de impacto, afinal Gaviria a leva para o escopo existencial – paralelamente social –  com o suporte da ternura da memória, como se as rasuras do tempo às levasse a um local de potência orgânica, o que não acontece. A Calmaria Depois da Tempestade, desta maneira, está mais para ser um depoimento manipulador através das imagens indo de encontro à proposta de construção de um bloco de memórias através delas.    

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Olhar de Cinema: Estilhaços (Natalia Garayalde)

Por Camila Vieira

As imagens iniciais de Estilhaços dão a impressão de que seria intocável a felicidade da família de classe média em que a diretora argentina Natalia Garayalde nasceu e cresceu. Aos 10 anos, ela ganhou de presente uma câmera Sony 8 mm do seu pai e passou a filmar seu cotidiano em Rio Tercero, uma cidadezinha de 40 mil habitantes, na província de Córdoba. Registradas nos anos 1990, as imagens domésticas mostram o frescor da vida em um bairro comum, com uma praça, uma escola, uma delegacia, um rio e uma fábrica. Ali residem as memórias dos passeios com o pai médico e a mãe professora de história, as brincadeiras com o irmão mais novo e a festa de ano novo de 1994. Seria o último ano em que a diretora conseguiria dormir sozinha, segundo suas próprias palavras no filme, e tal frase é seguida por um corte: as imagens de felicidade são interrompidas pelo impacto de uma tragédia.

Um plano sequência é filmado dentro de um carro que se desloca pelas ruas em meio a um bombardeio inesperado: pessoas gritam e correm desesperadas, projéteis explodem e estilhaços caem do céu. Enquanto ouvimos o ruído constante de bombas, uma mulher com um bebê nas mãos é resgatada. Após o caos e a desorientação, vem o contexto: em novembro de 1995, a fábrica de munição militar explodiu com 20 mil projéteis, causando a morte de moradores e a destruição de casas e estabelecimentos. O incidente alterou a rotina da comunidade, inclusive da família Garayalde. Autoridades e o próprio presidente Carlos Menem difundiam a versão oficial de que as explosões foram causadas por um acidente e um operário da fábrica é demitido e investigado. No entanto, descobre-se mais à frente que o evento foi proposital para ocultar o contrabando de armas para a Croácia, na Guerra dos Balcãs. O ataque tinha sido planejado para apagar os rastros da operação.

Diante da força e das consequências do incidente, Estilhaços movimenta-se do familiar para o coletivo, do íntimo para o público. Aquela inocência inicial das imagens felizes de classe média é diluída e o que se mostra como imagem são vestígios das casas destroçadas no dia seguinte à explosão, os projéteis ainda ativos que voltam a explodir, os relatos do pai sobre o receio de ser contaminado com fósforo branco. Mesmo que a menina Natalia se alegre por um instante com as aulas suspensas e com suas simulações como repórter a entrevistar moradores sobre a tragédia, a permanência do trauma na comunidade é o que a leva a parar de filmar. Até mesmo a escola começa a dar aulas sobre os riscos dos produtos químicos.

No último movimento do filme, as imagens de arquivo misturam-se às filmagens recentes feitas por Natalia em retorno a Rio Tercero. O que antes era apenas o medo coletivo de contaminação química materializa-se como doença no corpo da irmã: ela morre de câncer e, mais tarde, o pai da cineasta também será acometido pela mesma enfermidade. Mas a realizadora lembra que “as imagens sobrevivem aos corpos”. Se a vida familiar se estilhaçou diante dos fatos brutos que aconteceram, o desfecho busca restituir uma intimidade que sobreviveu como fragmento.

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Olhar de Cinema: Garotas/Museu (Shelly Silver)

Por Camila Vieira

Garotas/Museu, de Shelly Silver, lança mão de um dispositivo para compor o filme: meninas de diferentes idades compartilham suas impressões sobre as obras que elas observam em visita ao Museu de Belas Artes de Leipzig. Os planos são frontais: tanto para as obras quanto para as meninas entrevistadas. A “percepção da arte” que o filme deseja alcançar não passa pelo olhar de mulheres adultas, mas de garotas ainda em processo de amadurecimento e construção de visões de mundo. De imediato, a proposta produz um gesto de inversão: as garotas são convocadas a falar sobre seus olhares para a arte, universo que historicamente sempre colocou mulheres na condição de objetos a serem vistos e contemplados. Dentro de um espaço institucionalizado como o museu, é uma forma de repensar padrões legitimados de compreensão da história da arte.

Na relação de uma obra como “Adão e Eva” (1533), de Lucas Cranach, as entrevistadas questionam o desenho repuxado dos olhos de Eva como característica de uma mulher ardilosa e malévola. “A ninfa da fonte” (1518), do mesmo autor, traz o corpo nu de uma figura mitológica, que é vista pelas garotas como uma mulher sozinha, que pode ter sofrido algo de ruim. Ao olharem para o quadro “Dançarina” (1926), de Paul Kleinschmidt, elas observam que o corpo da mulher aparece objetificado, com quadril e bunda em primeiro plano. No geral, as meninas indagam por qual motivo mulheres jovens são retratadas com o corpo exposto e as mais velhas encobertas. Uma garota do Afeganistão levanta a hipótese sobre como seriam os quadros se as figuras retratadas não tivessem gênero definido.

Da mesma forma que o espaço do museu expõe um amontoado organizado de obras, o filme também vai acumulando não só o que as meninas falam sobre os trabalhos artísticos com suas perspectivas bastante heterogêneas, mas também em que medida elas conseguem se enxergar no lugar das figuras retratadas ou mesmo identificar se um quadro foi criado por um homem ou uma mulher. Não há dúvida de que o debate de gênero está implicado em Garotas/Museu, mas de algum modo o uso de um dispositivo enrijecido parece se esgotar no percurso e o que o filme consegue alcançar ainda limita-se ao repetitivo e superficial – menos pelo que as meninas falam e mais pelo que o filme cria como articulação discursiva. 

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Olhar de Cinema: Zinder (Aïcha Macky)

Por Camila Vieira

Dois homens passeiam pela cidade em uma moto que ostentam uma bandeira branca com suástica. Eles fazem parte da gangue de Hitler, compreendido como “guerreiro invencível” e modelo a ser espelhado em um dos chamados “palais” que dominam o distrito de Kara Kara, em Zinder, no Níger. A imagem escancara contradições em um território marginalizado: leprosos, cegos e pessoas em situação de rua convivem com integrantes dos palais. A precariedade de uma região sem oportunidades para seus moradores alia-se à violência de quem ali pretende sobreviver. Em “Zinder”, de Aïcha Macky, há o cuidado de não explicitar ou tornar redundante os atos de violência em si, mas entender como seus vestígios atravessam os corpos e os discursos de quem faz parte dos “palais”.

Três personagens principais são acompanhados pelo filme: Sinyia Boy, que é líder da gangue de Hitler; Idrissa Salam (Bawo), que é ex-chefe de um palais e atualmente trabalha como mototaxista; e Ramsess, contrabandista de gasolina na fronteira do distrito. A abordagem de Aïcha Macky, que nasceu em Níger, é olhar tanto para o que foi possível ser mostrado do cotidiano dos personagens quanto para o que eles querem falar diante da câmera. É possível pensar que houve diversas formas de negociação para as filmagens, na medida em que a presença da câmera por si só também é uma manifestação de poder.

Em determinado momento do filme, a diretora indaga Sinyia Boy sobre o motivo pelo qual o mesmo faz parte do “palais”. Só podemos escutar a voz de Aïcha que permanece no fora de campo. Ela afirma – não só para ele como para nós espectadores – que ela e Sinyia não tiveram as mesmas oportunidades. Aïcha vem de outra região do Níger e teve acesso aos palais por meio do projeto Search for Common Ground, em que trabalhou como voluntária na instrução de jovens para se opor ao extremismo violento. Sinyia dá uma breve resposta à Aïcha: “educação”. Em outra sequência quase ao final do filme, outro personagem fala: “O desemprego leva à violência e à ladroagem”.

Da gangue de Sinyia Boy, várias cenas apresentam os corpos musculosos dos integrantes, os treinos pesados que eles fazem e as poses para registros fotográficos a serem compartilhados com amigos e famílias. Na conversa com Bawo, a atenção volta-se para as cicatrizes que marcam os corpos e relatos sobre os instrumentos usados nas batalhas entre gangues rivais, desde socos ingleses a pedaços de pau. Com Ramsess, que se afirma meio-homem e meio-mulher, indaga-se sobre as performatividades de gênero na vivência cotidiana dos palais, os assassinatos permanentes de mulheres livres e a prostituição de crianças e adolescentes. Com os três personagens, o que se coloca em primeiro plano é o corpo e suas formas de sobreviver ao entorno. 

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Olhar de Cinema: O Sonho do Inútil (José Marques de Carvalho Jr.)

Por Geo Abreu

Um traço que podemos encarar como característico do cinema produzido nesses anos pandêmicos é a atenção ao material de arquivo como fonte, fato interessante se pensarmos no nível individual a partir da quantidade de imagens produzidas no mundo todos os dias e o dilema que se impõe diante da necessidade de arquivamento e destinação desse material, enquanto num nível coletivo, mais do que nunca é preciso lutar por condições de preservação e memória do cinema brasileiro. E aqui, amigues, cada uma deve encontrar o local de criar uma barricada, trabalhando diligentemente para digitalizar materiais, expor internacionalmente a situação dos principais acervos, criar programas para restaurar, exibir e produzir memória sobre filmes pouco conhecidos e assim por diante. 

Em Sonho do Inútil o cineasta José Marques de Carvalho Jr assume a posição de revisitar a história de um grupo de amigos que alcançou sucesso produzindo vídeos de aventuras domésticas e autoflagelo, mixando os arquivos desse período com imagens produzidas no reencontro com as figuras que compunham o grupo. 

A condução desse trânsito entre passado e presente produz momentos de perturbação no fluxo da narrativa, deixando o espectador a deriva em alguns momentos pois, além de algumas quebras temáticas, há um choque provocado pela construção precária das distinções entre as imagens daqueles personagens nos diferentes momentos em que a narrativa se desenrola, fato que segue até que se firme o bloco do reencontro entre o diretor e seus amigos, que ganham tempo de tela para falar de suas trajetórias enquanto finalmente são postas em relação suas imagens antigas e atuais. Inclusive minha aproximação com o filme se deu pela desconfiança de que aquela história fosse se desdobrar numa pegadinha de falso documentário, algo que só se desfez a partir dos blocos de apresentação do cotidiano atual dos personagens e do tom sóbrio assumido a partir dali.

No final das contas tudo isso me manteve atenta à ação, a espera pelo encontro com um jogo que se mostrou menos opaco do que eu pude supor, sublinhando a importância do audiovisual como ferramenta de encontro, amizade e pesquisa num contexto em que parecem existir roteiros pré-definidos a respeito de quais histórias aqueles rapazes poderiam contar. 

No mais, interessante observar que a reputação criada pelo grupo com seus vídeos engraçados se manteve no tempo, transformando-se em atenção dada aos trabalhos posteriores do diretor, que podem ser acessados no canal do YouTube que leva o nome dele – JmarquescarvalhoJr – e cujos números de visualizações/curtidas fazem pensar sobre outra dinâmica de produção de caminhos para desenvolvimento de uma carreira no cinema brasileiro, que passa tanto por experimentação de formatos, relação direta com a distribuição e a recepção dos filmes. 

Entre a atualidade desse modo de habitar o ecossistema do audiovisual e o tom de saudade de um passado simples de brincadeiras entre amigos, O Sonho do Inútil nos faz pensar em juventude, a vida nos subúrbios das metrópoles brasileiras e na força simbólica de portar uma câmera.

Visto no Olhar de Cinema

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Olhar de Cinema: Apenas o Sol (Aramí Ullon)

Por Pedro Tavares

Um conflito simples desequilibra as intenções de Apenas o Sol como potente discurso: é o embate direto entre o formalismo e a frontalidade da mensagem. Talvez não exista um filme que coloque em palavras de maneira tão direta a relação do pentecostalismo e o extermínio da cultura indígena e, obviamente, suas vidas. Por caminhos diversos já o visitamos, seja em pinceladas no tema, filmes-rituais ou até acompanhando missões pastorais por aldeias, mas em Apenas o Sol há o diálogo direto sobre o assunto e com a profundidade necessária.

O que o assola é como Aramí Ullon compõe suas vias. Através de um homem que resgata palavras através de um aparelho de som e fitas magnéticas como forma de dialogar com o passado o filme justifica os encontros com outros personagens e seus depoimentos. O modelo dos talking heads se aproxima muito à forma que Ullon utiliza estes depoimentos: não estão ao acaso ou diluídas neste processo de gravações e recordações e sim estruturadas como capítulos de casos isolados que compõem um mosaico.

O filme ganha mais forças quando consegue brevemente aglutinar testemunhos, casos e canções tradicionais de maneira mais orgânica e sem transformar o formalismo como protagonista do filme e tomando a frontalidade que à priori seria das palavras. A força dessas histórias e assombros seguem funcionais apesar de não mais intactos. O conflito formal é mais forte que a própria intenção em narrar uma história de mutação e que caminha para o desaparecimento através de ideologias além do cunho religioso.

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Olhar de Cinema: Virar Mar (Philipp Hartmann, Danilo Carvalho)

Por Pedro Tavares

Um exercício muito curioso envolvendo uma matéria, dois locais e um padrão. Virar Mar aborda a questão da escassez de água no sertão brasileiro e o excesso no interior da Alemanha. Com isso, Philipp Hartmann e Danilo Carvalho parecem dirigir separadamente suas partes mantendo apenas a estrutura.

São sequências intercaladas, como uma narrativa não-linear e que não dialoga com o que vem antes e tampouco com o que vem depois, o que de certa maneira é o que mais instiga no filme até por um fio de contato com o cinema experimental e estrutural. Aos poucos, porém, o interesse dos realizadores é mais evidente no lado político. É ao exibir o cotidiano de moradores destes locais e como a água tem suas variadas importâncias na rotina que o filme, assim, vira um mosaico de representações.

Seja no fundamento literal, numa encenação novelesca, nas cabeças falantes ou no encontro de um estrangeiro com o local de necessidade oposta ao seu. Virar Mar abandona a potência do dispositivo, do olhar e da contemplação como um grande comentário e opta pelo lado institucional e didático da coisa.

Visto no Olhar de Cinema

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Olhar de Cinema 2021

O PROTETOR DO IRMÃO por Pedro Tavares

VIRAR MAR por Pedro Tavares

APENAS O SOL por Pedro Tavares

CRIME CULPOSO por Lucas Saturnino

O SONHO DO INÚTIL por Geo Abreu

CAPITÚ E O CAPÍTULO por Rubens Fabricio Anzolin

ZINDER por Camila Vieira

GAROTAS/MUSEU por Camila Vieira

ESTILHAÇOS por Camila Vieira

A CALMARIA DEPOIS DA TEMPESTADE por Pedro Tavares

CONFERÊNCIA por Camila Vieira

UM CÉU TÃO NUBLADO por Camila Vieira

BELOS CARNAVAIS por Geo Abreu (vídeo-ensaio)

SONHOS DE DAMASCO por Camila Vieira

POR TRÁS DA LINHA DE TIJOLOS VERMELHOS por Pedro Tavares

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Olhar de Cinema: O Protetor do Irmão (Ferit Karahan)

Por Pedro Tavares

O Protetor do Irmão parte de um espelhamento constante muito interessante: cada cena, cada gesto e cada plano é um comentário sobre o Estado. É em um colégio interno estadual que seu modus operandi análogo à crueldade e de bordas largas ganha contornos. É na impossibilidade de criar-se o acaso, da relação simples entre crianças – naturalmente levadas, que gostam de brincar e aprontar que o contrapeso tem amplitudes.

Basta um corpo sair de seu funcionamento comum, literalmente falando, para que a estrutura desse estado em proporções menores mostre suas fragilidades. O despreparo completo para lidar com situações não-ordinárias, o jogo de empurra entre os responsáveis e principalmente como a aparente força dada pela autoridade se esvai à medida que o risco para estes “chefes” parece mais latente.

E com este tipo de comparação às medidas e comportamentos tomados o caos se instaura num intenso jogo de empurra que derruba o regime, as posturas se movem para um tipo de contemplação sobre o horror dos próprios gestos e um olhar direto para a câmera entrega todo o horror que uma nação enfrenta muito bem representada por um rosto infantil.

Visto no Olhar de Cinema.

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Gertrud, Gertrud, Gertrud,…

Por Gabriel Linhares Falcão

– Mulher incomum. Quem é você de verdade?

– Sou muitas coisas.

– Quem?

– O orvalho da manhã, caindo das folhas das árvores, nuvens brancas viajando para onde ninguém conhece.

– Quem mais você é?

– Sou a lua, sou o céu.

– E o que mais?

– Sim, sou uma boca. Uma boca buscando outra.

Diálogo entre Earland e Gertrud

O cinema tinha o papel de mostrar o movimento e o que se via, mas não a palavra. Dreyer superou esta atitude, e vocês veem o que isso proporcionou. Compreendemos que a palavra não corta a imagem e que a imagem não precisa ficar sozinha.

Manoel de Oliveira[1]

Este vídeo-ensaio nasceu a partir de uma pequena obsessão. A primeira memória que sempre me vem à mente ao pensar em Gertrud de Carl Theodor Dreyer é a diversidade de dicções utilizadas no chamamento da protagonista. A memória se tornou uma problemática quando, ao falar o nome do filme, precisava pensar para escolher a dicção mais adequada para o lamento dinamarquês. Gertrud, Gertrud, Gertrud …

Primeiramente, buscava ouvir em conjunto cada uma das 61 Gertruds, entretanto, acabei encontrando um novo problema. A falante e corajosa protagonista se apresentou quase muda e imóvel em seu retrato vocal por lamentos majoritariamente masculinos. A expressão incrédula de olhar perdido é predominante nos momentos em que ouve seu próprio nome. Pela variedade de dicções encontramos também a persistência e a repetição. No recorte, a complexidade psicológica das personagens foi reduzida a matéria e forma, destacando a pressurização sofrida por Gertrud, figura motriz agora silenciada.

Cortando a imagem para ouvir as palavras sozinhas, podemos observar a disposição dos tempos, entonações e silêncios das vozes que preenchem com densidade dramática a mise-en-scène de movimentos concentrados e reduzidos, e também, interrogar o que resta e o que se mantém das forças retóricas originais de Gertrud, personagem que não permite a própria evasão diante de investidas de terceiros sobre o passado e que pela fala alicerçada na receptividade e dignidade enfrenta seus anseios e segue seus desejos, engendrando passo a passo uma sabedoria afetuosa, cirúrgica e inconformada.

Agradecimentos à Roberta Pedrosa


[1] Transcrição da apresentação do cineasta Manoel de Oliveira à sessão de Gertrud, realizada por ocasião da comemoração dos 50 anos dos Cahiers du Cinéma em Paris. Publicado originalmente em Cahiers du Cinéma nº 557, maio de 2001, pp. 102-103; traduzido por Calac Nogueira (In: https://estadodaarte.estadao.com.br/foco-elogio-a-gertrud/)

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OUVIR UM FILME

EDITORIAL: OUVIR UM FILME
Por Camila Vieira

SEM SOL: VIA DUPLA
Por Pedro Tavares

RESSONÂNCIAS E (NÃO) ESCUTAS: SEMENTES: MULHERES PRETAS NO PODER (ÉTHER OLIVEIRA E JÚLIA MARIANO, 2020)
E #AGORAOQUE (JEAN-CLAUDE BERNADET E RUBENS REWALD, 2020)

Por Kênia Freitas

A CONQUISTA DO BARULHO
Por João Pedro Faro

A VOZ, ESSA SOBREVIVENTE
por Rubens Fabrício Anzolin

A POESIA SONORA DE BLUE
Por Chico Torres

VIGILÂNCIA E RUÍDO EM HACKED CIRCUIT (2014) DE DEBORAH STRATMAN
Por Natália Reis

ÀS MULHERES QUE SEGUEM, IGNORANDO O FALATÓRIO
Por Geo Abreu

DO JOGO DE INCONTINÊNCIA À MANIA DE ORIGEM
Por Felipe Leal

MU, A TERRA DA IMPOSSIBILIDADE SONORA – SOBRE ABISMU DE ROGÉRIO SGANZERLA
Por Gabriel Papaléo

POR UM CINEMA FALADO
Por Éric Rohmer e tradução de Bernardo Moraes-Chacur

GERTRUD, GERTRUD, GERTRUD
Por Gabriel Linhares Falcão

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Editorial: Ouvir um Filme

Por Camila Vieira

“Imagens e sons como pessoas que se encontram em uma jornada e não podem mais se separar.”

Robert Bresson – Notas sobre o cinematógrafo

No cinema, a escuta é tão importante quanto o olhar. A percepção dos sons de um filme acontece com a percepção das imagens. Em um filme, imagens e sons constroem dinâmicas e fluxos. Ao analisar filmes por meio de textos, raramente abordamos algo a partir das nossas percepções sobre o som e, no entanto, imagem e som fazem parte da integralidade fílmica. Como críticos de cinema, somos bastante oculocêntricos e deixamos de lado considerações pertinentes ao som dos filmes. Colocamos a visualidade em primeiro plano de análise e esquecemos a sonoridade. 

Ao final do longa-metragem português “Aquele querido mês de agosto” (2008), o realizador Miguel Gomes questiona o diretor de som Vasco Pimentel sobre sons fantasmas que foram registrados em alguns planos e que não deveriam existir no filme. “Como é possível haver sons que não estão lá?”, pergunta Miguel Gomes. Vasco responde que tecnicamente isso é impossível, porque ele registra os sons que quer. “Eu sou diferente de você”. O embate entre os dois alude à forma como a materialidade sonora de um filme envolve a escolha entre sons desejáveis e descartáveis.

Em determinados filmes, as dinâmicas da escuta tornam-se elementos constitutivos da narrativa, como é o caso da franquia Um lugar silencioso, que Felipe Leal analisa em um dos textos desta edição da Multiplot. Os sons podem acentuar ou reforçar o que é visto nas imagens, mas efeitos sonoros e temas musicais também podem criar tempos e espaços imaginados apesar da tela, como argumenta Chico Torres em texto sobre Blue (1993), de Derek Jarman. 

Nem sempre o acoplamento do som à imagem resulta em uma codificação unívoca de sentidos dentro da estrutura narrativa. A fala como elemento sonoro não se sustenta apenas por meio do diálogo, mas sobretudo a partir de seus instantes silenciosos. No ensaio “Por um cinema falado” – traduzido nesta edição pelo Bernardo Moraes Chacur -, Éric Rohmer afirma ser “necessário que a palavra desempenhe um papel condizente à sua natureza de signo, ao invés de figurar apenas como um componente privilegiado entre os elementos sonoros, mas de importância secundária com relação ao elemento visual”.

É possível também pensar o som fora da ideia de correspondência à imagem ou de vínculo com a representação por uma forma propositiva de disjunção entre olhar e escuta. A partir dos anos 50, Stan Brakhage recusa o uso do som em seus filmes experimentais, por afirmar que as imagens em si mesmas já continham sonoridades. A sugestão sonora estaria na cadência, no ritmo, na pulsação das imagens. Pensar as frequências sonoras de um filme teria a ver com pensar a montagem das próprias imagens. 

Em suas múltiplas possibilidades, o som no cinema pode estabelecer vínculos diretos com as imagens ou pode transbordar os limites da visualidade. A nova edição da Multiplot propõe aguçar nossos sentidos para as escolhas das sonoridades dos filmes que escolhemos falar. 

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Sem Sol: Via Dupla

Por Pedro Tavares

No final dos anos 70, enquanto retornava aos projetos pessoais, Chris Marker fez uma série de viagens pelo mundo e a partir delas captou alguns signos da existência além de puras imagens. Sem Sol (1983) é uma espécie de mapeamento em via dupla – som e imagem – sobre a humanidade. E com esta via, um filme que se ouve para tomar um rumo e que se vê, para tomar o outro. É um jogo profundo e inerentemente político entre a natureza desta arte e seus aspectos técnicos.

Como um filme seminal que embaça fronteiras entre o filme-ensaio, documentário e ficção, Sem Sol é uma intensa colagem de sintomas. Colagem esta que levanta questões semelhantes aos efeitos do Atlas Mnemosyne, de Aby Warburg, ao tirarmos ou colocarmos uma imagem – ou as mudarmos de lugar. Enquanto constrói ideias acerca de um futuro distópico com imagens que registram ou emulam o ordinário através do cotidiano no Japão, Cabo Verde, Estados Unidos, Guiné-Bissau e Islândia, os comentários-carteados feitos por Sandor Krasna tomam corpo pela voz de Florence Delay. Krasna, no entanto, não existe. É um personagem para representar as emoções de Marker. 

É através dela que o filme dá passos para trás, como um respiro necessário para acompanhar as imagens e com novos códigos, dar um novo significado, como uma readaptação ao pensamento de Farocki que não precisamos usar novas imagens e sim dar novos significados às existentes. Há uma conjuntura aqui, pois Marker utiliza de imagens de terceiros e sente-se livre para citar e ressignificar filmes e diretores como Hitchcock, Tarkovski, Vincent Minnelli e a si mesmo, mas também coloca questões sobre o jogo de poder envolvendo a câmera e o personagem e a ética no gesto da captura e na reprodução de qualquer imagem.  

Esta elaboração entre imagem e palavra e seus caminhos divergentes coloca em xeque até mesmo o valor de cada natureza. Enquanto exibe um produtor de games como um inerente comentário sobre o futuro, Marker salienta que só o eletrônico pode tratar o sentimento, a memória e a imaginação, desta vez com a voz da narradora. Estes embates que trazem diferentes valores entre fundamentos cinematográficos reforçam a ideia de uma construção de coerência entre ambos como um idealismo, um pensamento não anacrônico enquanto cada ponta segue para o desencontro. 

Quando Deleuze pensa em Foucault e simboliza seus encontros com o professor por “rachar coisas e palavras” e, num compêndio acidental com o filme Marker, também usa uma carta para se comunicar com o crítico Serge Daney, o filósofo e teórico francês a batiza de “Otimismo, pessimismo e viagem”. Deleuze fala de uma nova função da imagem, a da pedagogia da percepção e da espiritualização da natureza; a natureza da imagem, portanto. É interessante pensar nestas rachaduras e na pedagogia da percepção aplicadas ao filme de Marker e como o diretor levanta questões sobre a “ética do dispositivo” enquanto o mundo encontra um norte nebuloso.  Marker faz das cartas, das palavras, um diário-manifesto oral e com a força que se ouve o êxtase sobre o campo social, uma decodificação poderosa sobre a existência e anula a possibilidade de castração deste panorama com o sistema de fluxo tirânico de imagens complementando o agenciamento de expressão. 

Sem Sol, portanto, é um filme que exige acompanhamento bifurcado, de certas revisitas a como se lê e relê uma frase em um livro. A voz que se ouve na leitura é a voz de Delay, Krasna, Marker e também a nossa como uma simples convergência entre vida e filme. E é de Deleuze, em entrevista a Claire Parnet, novamente falando sobre Foucault, um resumo acidental de Sem Sol: “(…) É preciso que as forças do homem (ter um entendimento, uma vontade, uma imaginação, etc.) se combinem com outras forças; então uma grande forma nascerá desta combinação, mas tudo depende da natureza dessas forças com as quais do homem se associam”. Como a concepção de memória, que cria sua própria ficção dentro das lacunas a fim de complementar a noção de mundo e vivência, Sem Sol é um filme que configura seus próprios espaços na diferença de percepção. Nos diferentes códigos de compreensão do real e sentidos, Marker faz dois filmes distintos: duas narrativas, dois olhares, duas histórias a ouvir.

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Ressonâncias e (Não)Escutas: Sementes: mulheres pretas no poder (Éthel Oliveira e Júlia Mariano, 2020) e #eagoraoque (Jean-Claude Bernardet e Rubens Rewald, 2020) 

Por Kênia Freitas

Ouvir é, nesse sentido, o ato de autorização em direção à/ao falante. Alguém pode falar (somente) quando sua voz é ouvida. Nesta dialética, aqueles(as) que são ouvidos(as) são também aqueles(as) que “pertencem”. E aqueles(as) que não são ouvidos(as), tornam-se aqueles(as) que “não pertencem”.

(Grada Kilomba)

Não serei interrompida! Não aturo o interrompimento dos vereadores dessa casa, não aturarei de um cidadão que vem aqui e não sabe ouvir a posição de uma mulher eleita!

(Marielle Franco)

Cosmopoética não é nem um fetiche nem uma marca registrada, apenas um termo, um modo entre outros de apontar para uma outra relação com o mundo que privilegie a escuta – o sentido de ressonâncias e de correspondências – mais do que a visão.

(Dénètem Touam Bona)

As cenas iniciais de Sementes: mulheres pretas no poder (Éthel Oliveira e Júlia Mariano, 2020) são fotografias e imagens em branco em preto de uma grande manifestação no centro do Rio de Janeiro cobrando justiça pelo assassinato da vereadora Marielle Franco. O bloco é também composto pela montagem de áudios de jornais sobre a execução da vereadora e do motorista Anderson Gomes, assim como por manchetes que destacam mulheres pretas ocupando posições de poder. Essa montagem estabelece a prerrogativa do filme de Éthel Oliveira e Júlia Mariano: o trauma causado pelo assassinato de Marielle Franco e os desdobramente políticos desse trauma – com o aumento significativo de candidaturas de mulheres autodeclaradas negras a cargos legislativos nas eleições de 2018.

Prerrogativa posta, o filme entra em sua jornada acompanhando as campanhas e posses (no caso das eleitas) de seis mulheres pretas: Mônica Francisco, Rose Cipriano, Renata Souza, Jaqueline de Jesus, Tainá de Paula e Talíria Petrone – candidatas a deputada estadual ou federal pelo estado do Rio de Janeiro por partidos de esquerda (PSOL, PT e PCdoB). A partir daí, o tom histórico e mais distanciado dá lugar a um documentário observativo filmado de forma íntima e cúmplice com as personagens e os seus posicionamentos políticos. Uma cumplicidade que se desdobra na câmera presente e de escuta atenta, nos momentos banais (deslocamentos nos carros, os cabelos sendo trançados, as compras no supermercado para o novo apartamento) e nos mais marcantes (grandes manifestações, a apuração dos votos e a posse) das campanhas.

Além da câmera observativa, a composição do filme é atravessada de materiais de texturas e origens midiáticas diversas: o registro amador de abordagens policiais abusivas, os videoclipes de campanha e o seu making off, os bastidores de uma entrevista para uma equipe internacional, stories do Instagram e posts do Twitter das candidatas. Materiais montados a partir do protagonismo compartilhado pelas seis candidatas em uma estrutura de fluxo contínuo e linear estabelecida pelo passar dos meses.

A pluralidade do título informa assim a coletividade posicional que interessa ao filme como organizadora da ação – as mulheres pretas de esquerda atuando na política partidária. Ainda que ao longo da narrativa, a singularização de cada uma das candidatas possa ser perceptível (por suas trajetórias, locais de atuação e formas de se expressar), o trabalho que as diretoras se propõem política e esteticamente é o de amalgamar essa vivências em um corpo multifacetado mas único.

Dessa forma, a apresentação das candidatas vai enfocar momentos de encontro e comunhão, como Mônica Francisco (que é pastora) no culto da Nossa Igreja Brasileira, Tainá de Paula no lançamento da pré-candidatura aberta por uma apresentação de dança afro, Rose Cipriano, Renata Souza e Talíria Petrone participando da 4ª Marcha das Mulheres Negras. Nesses encontros, a escuta se volta tanto para o discurso das candidatas, quanto para vozes, músicas e sons dos ambientes – tambor, orações e abraços.

Como uma boa parte do filme se faz dentro das fronteiras desse corpo coletivo – entre rodas de conversa da militância, reuniões das equipes de campanha e atos de esquerda -, a entrega dos santinhos faz chocar esse corpo com outros, com um fora. Sequências cruciais na constituição desse corpo comum pela repetição de gestos e modos de falar, e também pela repetição de experiências menos controladas – encontros às vezes breves e felizes, e outras vezes desencontros e não escutas. Isso culmina na cena em que uma ambulante diz para Jaqueline de Jesus que já tem candidato e ele é do Partido Novo e o diálogo se encerra de imediato com um “boa sorte!”. De ambas as partes, não há o que dizer – da parte do filme cúmplice também. 

Nesse sentido, Sementes é um filme sobre a criação de um novo pertencimento (o político partidário para as mulheres pretas) a partir do trauma. Um pertencimento que se faz, no filme e para fora, centrando a posicionalidade dessas mulheres pretas como ponto de vista e de escuta. Dentro desse corpo coletivo tudo ressoa e germina, o fora dele (os “novos”, a família Bolsonaro e os quebradores de placa) é uma contagem de votos que emudece os comitês estarrecidos. 

Politicamente #eagoraoque (Jean-Claude Bernardet e Rubens Rewald, 2020) se situa no mesmo momento em que Sementes (Éthel Oliveira e Júlia Mariano, 2020), ambos próximos a avassaladora vitória da extrema direita nas eleições de 2018. O ponto de partida do filme de Bernardet e Rewald é da crise da esquerda – do “esgotamento profundo dos modos de organização das lutas e das mobilizações” ou da sua “incapacidade de sair da reatividade e propor pautas” – como diagnostica o artigo escrito por Vladimir Safatle e lido por Bernardet no começo do filme. A estratégia narrativa do filme passa longe da cumplicidade e da criação de pertencimento, sendo a de incitar e ampliar essa crise e os seus efeitos de incertezas. A pergunta “e agora o que?” do título é ao mesmo tempo um ponto de partida e um ponto de chegada para filme que se firma na impossibilidade de qualquer resolução.

Estratégia já posta na própria forma do filme – uma auto-ficção ou ficção feita a partir de personagens reais (bem no estilo Bernardet de jogar com os limites entre ficção, documentário, filme experimental e ensaio). Vladimir Safatle interpreta o intelectual paralisado pela crise; Bernardet seu pai, um militante saudosista e Palomaris Mathias a interlocutora política da dupla. A partir disso, o filme passa a propor uma série de situações e encontros – mais ou menos estruturados, às vezes totalmente ficcionalizados e outras atravessados pela não ficção – para provocar ainda mais a situação de crise.

Essas situações são em grande parte atravessadas pela impossibilidade de comunicação entre os diversos grupos dentro da esquerda – grupos de geração, de gênero, de classe, de raça, etc. Uma comunicação impossibilitada não pela ausência da fala (os muitos trechos de entrevistas, palestras e discursos públicos de Safatle incorporados ao filme ressaltam a eloquência verborrágica do filósofo), mas marcada sobretudo pela incapacidade de escuta. Uma não escuta encenada de inúmeras maneiras no filme: a impassividade de Safatle com a performance perturbadora do ator do Teatro Oficina que grita na sua cara; na cena em que o trio de protagonistas finge normalidade enquanto tem a sua conversa atravessada pela faxineira que liga o aspirador de pó; a briga com a filha estudante universitária pela recusa do intelectual em crise de participar da assembleia.

Ancorando-se na incapacidade de ouvir desse intelectual em crise, a não-escuta é assumida pelos diretores como uma performance estética e política para o filme. A performance da não-escuta da personagem principal parece inicialmente uma estratégia auto-depreciativa para questionar a posicionalidade normativa do seu protagonista – homem, branco, cis, hétero, de classe média alta. Isso sobretudo quando essa não escuta é assumida enquanto encenação – a cena da reunião com a enceradeira, o comentário aleatório da atendente no café, o embate entre pai e filha ou pai e filho. 

No entanto, mais do que a auto-depreciação, o que ocorre neste dispositivo fílmico é o centramento desse homem, cis e branco. A coletividade “esquerda” que o filme apresenta em crise e para a qual lança a pergunta “E agora o que?” mostra-se na narrativa menos atravessada por uma multiplicidade de raça, gênero e classe dos personagens reais e ficcionais que passam pelo filme, e mais alicerçada nessa experiência normativa do homem branco como o ponto de vista e de (não) escuta. Ao mesmo tempo em que ancora, essa experiência apaga a existência de sua própria posicionalidade.

Nesse sentido, a decisão de não identificar de maneira explícita no filme ou nos créditos quem são as personagens reais e as personagens fictícias que os atores interpretam não equaciona de forma anônima os participantes. Ao contrário, reforça as desigualdades de status sociais e de notoriedade pública previamente existentes. Uma cena que marca a decisão deliberada de não posicionalidade do protagonista é do recital de piano, em que após apresentação o intelectual encontra seus pares (outros homens e mulheres brancos de classe alta) e começa a fazer perguntas constrangedoras e hostis sobre posicionamentos políticos e financeiros que os seus pares estruturam. Como o indagador impertinente, o personagem se coloca fora do seu pertencimento de classe e raça.

Em termos narrativos, a invisibilização dessa posicionalidade específica parece contar com a associação automática da experiência do homem branco com a do sujeito neutro e universal – o seu pertencimento não precisa ser criado, foi herdado. E, isso posto, as premissas que atravessam o filme são reforçadas: a não-escuta vira não diálogo, a incapacidade de conversar vira reatividade da esquerda, que vira falência generalizada dos processos de organização e luta.

    Não por acaso, o filme se encerra na conversa tensa entre Safatle e os moradores do Capão Redondo, em que os militantes da quebrada recusam a aliança proposta pelo intelectual – “nós aqui e vocês lá”, diz um dos jovens. De um ponto de vista narrativo, essa seria a cena que poderia sustentar a hipótese do não diálogo e da reatividade da esquerda fraturada pelo identitarismo neoliberal individualista. Porém, se a escutarmos a partir da afirmação de um “nós” e um “vocês”, a recusa pode ser ouvida não como uma aversão ao diálogo, e sim como um dissenso à persistência da naturalização da posicionalidade normativa (branca, cis e masculina) como neutra e universal.

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Por um cinema falado

Éric Rohmer[1]

Tradução: Bernardo Moraes Chacur

O cinema passou mais de trinta anos aprendendo a prescindir da palavra. É natural que, dezoito anos depois[2], ele ainda não tenha encontrado a forma de utilizá-la. Estou me referindo à desconfiança, disseminada entre os melhores diretores, com relação a esse poder da linguagem que lhe é essencial, o de significar. Se o filme falado é uma arte, é necessário que a palavra desempenhe nele um papel condizente à sua natureza de signo, ao invés de figurar apenas como um componente privilegiado entre os elementos sonoros, mas de importância secundária com relação ao elemento visual. Ainda é muito difundida a crença de que o valor de um filme seria proporcional à sua independência das palavras e de que uma obra cinematográfica digna desse nome perderia muito pouco ao ser assistida sem dublagem por um público estrangeiro. Pode-se admirar o excelente Farrapo Humano porque Billy Wilder consegue iluminar as intenções mais sutis de seus personagens com métodos puramente visuais – ou sonoros. Mas lamenta-se, enfim, que eles falem. A palavra ou é supérflua ou indispensável. Não se pode adicioná-la sem necessidade ou subtraí-la sem prejuízos.

Farrapo Humano (The Lost Weekend, Billy Wilder, 1945)

Em resumo, não é exagero dizer que, até hoje, há apenas um cinema sonoro. O erro dos cineastas de 1930 foi acreditar que somente a questão do tratamento cinematográfico do som era importante, enquanto a solução para o problema secundário da palavra (a introdução de um modo autônomo de significação, que é a linguagem, em uma arte de expressão visual) seria encontrada como decorrência lógica da primeira. Todos os esforços posteriores conduziram ao enfraquecimento da potência própria à palavra. Logo compreendeu-se que a palavra era som antes de ser signo e admitiu-se que ela deveria ser tratada como um modo de ser e não de revelar. A fala de cinema não se apoia somente sobre os diálogos que a precedem ou que a sucedem, ela está no tempo e não no texto. Simples instante no desenrolar de um filme, ela requer a sustentação de outros instantes, inclusive dos silenciosos. “O problema principal para os roteiristas”, escreveu André Malraux, na Verve em 1940, “é saber quando os seus personagens devem falar”.

Não se trata de trapacear. O problema do cinema falado não é apenas de encenação e o papel cada vez mais especializado que, na maioria dos casos, é relegado aos diretores, é certamente uma das causas desse equívoco. Eu sei que alguns dialoguistas compreendem muito bem que devem escrever para as telas de modo diferente do que fariam para o teatro ou para a página impressa. Pode-se inclusive repreendê-los por introduzir modificações absolutamente desnecessárias em suas adaptações, sob o pretexto das exigências próprias ao cinema. Mas esses remanejamentos se concentram muito mais sobre os modos de apresentação do que sobre o sentido. A maioria dos diálogos escritos para o cinema até aqui podem ser definidos como falas de teatro ao estilo de romance. Em geral, sob a forma escrita, eles pediriam naturalmente o “disse ele”, que, em um romance, delimitaria as frases dos personagens a um intervalo específico de tempo. Ainda assim, seu conteúdo jamais atinge a naturalidade dos diálogos dos romances americanos, por exemplo. Estes, conforme suficientemente demonstrado pela experiência, não podem ser transpostos para as telas sem perdas. Tais diálogos só são eficientes, aliás, porque conseguem trazer à vida todo um mundo à sua volta. No cinema, esse mundo existe. A frase pronunciada não precisa evocá-lo, mas somente encaixar-se nele e, desse modo, possuir uma densidade de sentido capaz de salvá-la da destruição. Os dialoguistas com aptidão para o cinema tentaram viabilizar de diversas maneiras essa junção entre palavra e mundo filmado. O texto de Prévert costuma ser um comentário poético ou humorístico sobre a imagem, mas o erro é precisamente confundir a imagem com um elemento do filme, como se fez tantas vezes desde o começo do cinema falado. Griffith, Sjöström, os expressionistas alemães, Chaplin, Gance e Eisenstein criaram – por meios muito diferentes – uma linguagem que se mostrou quase tão rica e sutil quanto a fala. É compreensível que a palavra tenha surgido como um elemento parasita, a ser mantido sobretudo às margens, e que a presença simultânea das duas linguagens tenha enfraquecido consideravelmente a capacidade expressiva de ambas. Não apenas a palavra foi tratada como som, conforme já mencionado, mas também a imagem foi reduzida a simples quadro ou cenário. A imagem nunca foi tão intrinsecamente bela, tão amorosamente trabalhada por seus especialistas quanto nos anos entre 1930 e 1940, uma verdadeira era de ouro para esses profissionais, sobretudo na França. No período, os diretores legavam a esses especialistas a maior liberdade possível com relação à determinação da posição dos atores no quadro e à distribuição das massas de sombra e luz.

Em nossa opinião, a relação entre o elemento visual e a palavra deve se estabelecer de forma totalmente diferente. Vários filmes permitem entrever como a linguagem poderia recuperar sua verdadeira função, precisamente aqueles que, passada quase uma década, indicam o rumo para uma nova concepção de decupagem. Talvez devamos exigir menos dos dialoguistas do que dos próprios diretores, que frequentemente tratam os diálogos como um material desimportante, enquanto aplicam toda a sua engenhosidade à procura de ângulos de câmera ou de um ritmo sutil nas transições entre planos e contraplanos. Não será, tampouco, com personagens enunciando máximas de La Rochefoucauld enquanto consertam rádios ou dirigem por vias engarrafadas, entrecortando seus discursos com interjeições e balbucios, que se falará a uma autêntica linguagem de cinema. A arte da direção não existe para obscurecer o que os personagens dizem, mas, pelo contrário, para permitir que não percamos nenhuma palavra. Os melhores diálogos de Cocteau estão em As Damas do Bois de Boulogne, assim como os melhores de Prévert estão em O Crime de Monsieur Lange, porque Bresson e Renoir só lhes permitiram incluir o essencial à compreensão do filme (e não estou me referindo à sua dimensão anedótica). Com o uso do plano-sequência, tal exigência se torna ainda mais evidente e o ponto fraco de Cidadão Kane, é que nele a palavra ainda é tratada como barulho. Em Soberba (que considero superior), por outro lado, até a palavra mais breve tem peso, porque ela nos revela aspectos dos personagens ainda não evidenciados pela narrativa. Os dois melhores exemplos são sem dúvida o plano fixo na cozinha e o longuíssimo travelling ao longo da rua. Um jogo entre plano e contraplano teria certamente enfraquecido o caráter expressivo de ambos. A imobilidade do ritmo (caso possa-se assim dizer), a fixidez obstinada dos dois personagens, o “não coma tão depressa”, da tia, desempenham um papel bem oposto ao realismo mundano que o cinema costuma oferecer com condescendência. Retomando a distinção clássica, eles estão ali por necessidade e de forma alguma por verossimilhança. O travelling ao longo da rua, por sua vez, exprime pelo seu desenrolar monótono o vazio de uma conversa que não será concluída. Não é com a imagem que a palavra mantém uma relação, mas com um elemento totalmente cinematográfico: a dinâmica do plano, ainda que nesses dois casos, ela seja obtida por uma tensão na imobilidade.

Soberba (The Magnificent Ambersons, Orson Welles, 1942)

Assim, é preciso encontrar uma maneira de integrar a palavra ao filme e não ao mundo filmado, seja ao plano em que ela é enunciada ou à uma sequência anterior ou subsequente. Na cena do hangar em Portas da Noite, a falha do texto de Prévert (no diálogo entre Yves Montand e Nathalie Nattier) é evocar um imaginário exterior ao filme, como em uma narrativa teatral.  Já a sequência de O Crime de Monsieur Lange, na qual René Lefèvre relata a Maurice Baquet como passou sua manhã de domingo, é excelente pela dupla razão de aludir diretamente a uma outra cena e porque esse relato é mentira. Não se mente o suficiente no cinema, exceto talvez nas comédias (pode-se considerar que René Clair, Lubitsch e Capra dirigiram os filmes de maior valor do período entre 30 e 40, as raras obras que não nos forçam à nostalgia pelo cinema mudo). Para atenuar ou controlar a potência formidável da palavra não é necessário, como se acreditou, tornar a sua significação indiferente, mas enganosa. No teatro, nunca se mente. Isto é, seja na tragédia ou na comédia, a palavra nunca é simplesmente modo de ação de um personagem sobre os demais e sempre possui um valor intrínseco – ou atemporal se preferirem. Não há lugar no teatro para aquela ambiguidade própria aos diálogos de Dostoievski, Balzac ou Faulkner. Por outro lado, encontramos essa ambiguidade nos melhores filmes realizados nos últimos dez anos: A Regra do Jogo de Renoir, As Damas do Bois de Boulogne de Bresson/Cocteau, na obra de Preston Sturges, em alguns policiais americanos como O Falcão Maltês de Huston/Hammett ou À Beira do Abismo de Hawks/Faulkner. Em Orson Welles, esse hiato entre a significação da palavra e a do elemento visual, o contraponto entre texto e película (que é totalmente diferente do contraponto sonoro outrora preconizado por Pudovkin e Eisenstein) tende a seguir a via do comentário. Nos últimos anos, diretores muito diversos têm usado com frequência esse procedimento – talvez um pouco simplório – evidenciando a inegável necessidade de restituir à palavra a sua função legítima dentro de um filme.

As Damas do Bois de Boulogne (Les Dames du bois de Boulogne, Robert Bresson, 1945)

A distinção que podemos estabelecer entre o cinema e o teatro não recai de forma alguma sobre a importância respectiva que cada um confere à palavra. Temos, sobre os cineastas de 1930, a imensa vantagem de não sermos mais assombrados pelo espectro do teatro filmado e será possível, de agora em diante, dedicar toda a nossa atenção ao problema essencial: escrever diálogos realmente feitos para o filme no qual terão lugar. Isto pressupõe, da parte dos dialoguistas, um conhecimento perfeito da linguagem visual com a qual o diretor pretende se expressar e, da parte do segundo (caso não sejam a mesma pessoa, como desejável), a disposição para considerar a palavra como parte constitutiva de sua obra.

Até tempos recentes, enquanto se contentava em adaptar de forma mais ou menos hábil os procedimentos que outrora compensaram a ausência das palavras, não se podia dizer que havia um verdadeiro estilo do cinema falado. Para a elaboração desse estilo, deverão ser aproveitadas as explorações das vanguardas dignas desse nome, apesar das dificuldades materiais. Já esperamos demais pela prova de que a era do cinema falado já começou.

Le Temps Modernes, setembro de 1948 (Retirado da coleção Le Goût de la beauté, Cahiers du cinéma, 2004)                              

Conto de Verão (Conte d’été, Éric Rohmer, 1996)


[1] Na verdade, o artigo é assinado por Maurice Schérer, que só passaria a usar ‘Éric Rohmer’ a partir de 1955, já na Cahiers du Cinéma.

[2] O texto foi originalmente publicado em 1948.

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