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Toda história de amor pelo cinema é também uma história de fantasma (ou sobre minha experiência com Contos da lua vaga)

Por Natália Reis

Quando me deparei pela primeira vez com filmes de vanguarda no início dos anos 60, os trabalhos que achei mais interessantes foram aqueles que estavam desenvolvendo uma linguagem única para o cinema, uma linguagem em que o próprio filme se tornou o lugar da experiência e, ao mesmo tempo, era uma evocação de algo significativamente humano. Comecei a perceber que momentos de revelação ou vivacidade me vieram da maneira como um cineasta usava o próprio filme. Mudanças de luz de um plano para o outro, por exemplo, podiam ser muito viscerais e eficientes, comecei a observar que havia uma concordância entre o filme e nosso metabolismo humano, e a ver que esta concordância era um terreno fértil para a expressão, uma base para explorar uma linguagem intrínseca ao filme. Na verdade, as propriedades físicas do filme pareciam tão sintonizadas com nosso metabolismo que comecei a pensar no filme como uma metáfora, um modelo direto e íntimo, para nosso ser. E senti, na medida em que pude mergulhar nesse modelo e tê-lo nos representando de forma direta e profunda, que o próprio filme tinha o potencial de ser transformador, de ser uma evocação do espírito, e de se tornar uma forma de devoção. 

Convidado a falar das afinidades que podem ser traçadas entre cinema e religião, o cineasta experimental Nathaniel Dorsky trata em seu livro Devotional Cinema de um fator que acredita estar diretamente ligado à crença e à devoção: a capacidade do cinema de provocar respostas físicas no espectador, de se relacionar tão intimamente com nossa fisiologia que estabelecemos um vínculo devocional com alguns filmes. Dorsky ilustra isso no começo do livro relatando uma memória marcante da infância, uma experiência pós-sessão na qual, aos 9 anos de idade, depois de passar quase a tarde toda na matinê, sairia do cinema num estado entorpecido, observando o mundo que se apresentava como que constituído de cores, texturas, luzes e sons insólitos, alienantes. No caminho de volta para casa, a rua lhe pareceu um lugar estranho, e por um momento seu próprio lar também.

Todos nós, de certa forma, e em maior ou menor grau, já sentimos esse entorpecimento. As luzes se acendem e os rostos na sala se tornam confusos, lá fora a claridade injeta a retina com uma realidade ainda distante. Francesco Casetti, em seus estudos sobre o terror que o primeiro cinema provocou nas plateias pouco acostumadas (chamado apropriadamente de “cinefobia”), vai trazer exemplos de indivíduos que diante do evento cinematográfico foram tomados por uma comoção sobrenatural: 

Ontem à noite eu estive no Reino das Sombras. Se você apenas soubesse como é estranho estar lá. É um mundo sem som, sem cor. Tudo ali –  a terra, as árvores, as pessoas, a água e o ar – é mergulhado em cinza monótono […] Não é vida, mas sua sombra. Não é movimento, mas um espectro sem som. (Maxim Gorki)

Uma cabeça  de repente aparece na tela e o drama, agora cara a cara, parece dirigir-se a mim pessoalmente e transborda com uma intensidade extraordinária. Eu estou hipnotizado. (Jean Epstein)

Esse tipo de testemunho me faz pensar nas minhas próprias experiências de arrebatamento, para além do choro mais ou menos contido ou dos pelos do braço arrepiados numa cena que seria revista inúmeras vezes mais tarde tentando reproduzir essas sensações. Um episódio específico talvez tenha me marcado de forma incomum: meu corpo retesado na cadeira desconfortável sendo tomado por uma descarga de medo e maravilhamento, um calafrio na espinha seguido pelo coração agitado e o sangue gelado, a certeza de que minhas pupilas se dilataram tentando absorver toda a luminosidade emitida da tela naquele instante. É difícil descrever o que se passa nessas horas, porque assumir o poder que a imagem em movimento tem sobre você é também um relato de aparições e de mundos transfigurados. E é disso que se trata essa exposição: uma história de amor e de fantasma.

Raúl Ruiz falava de um cinema com a capacidade “de nos deixar viajar até os limites da criação através da simples justaposição de um pequeno número de imagens trêmulas”. Segundo o diretor chileno, “neste impressionismo radical, o nunca visto estaria ao nosso alcance. O cinema se tornaria o instrumento perfeito para a revelação dos mundos possíveis que coexistem bem ao lado dos nossos”. Parte desejo parte projeção, acredito que esse aspecto revelatório do qual falava Ruiz pode manifestar um tipo de presença fantástica/fantasmagórica que por muito tempo esteve confinada aos domínios das habilidades mediúnicas e dons extrassensoriais. A fotografia e mais tarde o cinema não só trouxeram outros mundos –  invisíveis –  à tona, mas nos tornaram capazes de replicá-los e reproduzi-los, um tipo de registro partilhável que de certa forma democratizou o ato de ver e acreditar no extraordinário.

Minha história de assombração não é minha, é uma livre adaptação de Kenji Mizoguchi e do roteirista – e seu colaborador de longa data – Yoshikata Yoda de dois contos diferentes tirados de uma compilação de fantasia escrita por Ueda Akinari, Ugetsu monogatariContos da lua vaga por aqui. Mesclando temas que remetem à avareza e cobiça masculinas (considerando também a inclusão mais branda na lista de referências do conto “Condecorado”, de Guy de Maupassant) em oposição à benevolência e parcimônia de suas personagens femininas, Contos da lua vaga (1953), dirigido por Mizoguchi, narra a trajetória de dois aldeões de Nakanogo, na província de Omi, durante um período de guerra civil no Japão do séc. XVI, e as circunstâncias que envolvem a dissolução de seus respectivos universos familiares. 

Genjuro, casado com Miyagi e pai do menino Genichi, é um ceramista habilidoso que aproveita a escassez de suprimentos ocasionada pela guerra para vender suas peças de cerâmica na aldeia vizinha. Tobei, por sua vez, é casado com Ohama, irmã de Genjuro, e sonha em um dia tornar-se samurai. Certa noite, Nakanogo é invadida pelo exército de Oda Nobunaga, forçando os camponeses a fugirem. Genjuro consegue salvar a última fornada de suas peças, e, juntamente com Tobei, decide atravessar o lago Biwa com suas esposas e filho, na tentativa de levar a mercadoria para ser vendida em outro lugar. No meio do caminho, eles são avisados de que piratas e saqueadores estariam por ali. Miyagi e Genichi saltam do barco e voltam, ficando acordado que, após conseguir arrecadar dinheiro o suficiente, Genjuro retornaria para a família.

Na cidade, os dois homens rapidamente alcançam certa notoriedade. Com os ganhos, Tobei adquire uma espada e armadura, tornando-se samurai, mas negligencia Ohama, que é estuprada por membros do exército e acaba se tornando meretriz. Genjuro é abordado por uma jovem da nobreza, Wakasa, e sua acompanhante idosa, em busca de peças de cerâmica para seu palácio. O ceramista vai até a residência e descobre que ambas foram as únicas sobreviventes de um massacre. Seduzido pelos modos ostensivos com os quais é constantemente tratado, Genjuro se aproxima de Wakasa e, após um período vivendo juntos, ele é avisado por um sacerdote de que na verdade tanto a jovem quanto sua serva se tratam de espíritos amaldiçoados. 

Um ritual de exorcismo é realizado, e os dois fantasmas, assim como o palácio, desaparecem na manhã seguinte. Genjuro retorna para casa e encontra mulher e filho o esperando. Ele é tratado com cuidado e afeto, adormece e, quando desperta, descobre pelos outros aldeões que sua esposa havia sido morta há certo tempo tentando proteger de um soldado seu único alimento. Por fim, vemos Tobei e Ohama juntos, de volta à vida simples. Genichi corre até a sepultura da mãe com uma tigela de arroz num gesto honroso, e ouvimos a voz etérea do espírito de Miyagi. Um movimento de grua faz a câmera ascender aos céus.

As leituras de Contos da lua vaga passeiam pela propaganda anti-guerra, pelos efeitos destrutivos da ganância encarnada na figura masculina e da bondade misericordiosa e reparadora das personagens femininas. O crítico Robin Wood viu ali uma situação na qual as mulheres, apesar de estarem sujeitas sacrificialmente a um mundo de sofrimento provocado pela dominação patriarcal, “causam uma impressão tão forte na vulnerabilidade de sua situação social que nunca as esquecemos, mesmo quando elas estão ausentes por longos períodos de tempo de tela” . Para além das oposições de gênero e entre o material (a multiplicação dos ganhos, os objetos de cerâmica que assumem o estatuto de arte refinada ao serem adquiridos por uma nobre, o desejo de ascensão de classe) e o espiritual, o filme de Mizoguchi também lida com o amor como essa força transcendental capaz de curar feridas e conjurar espíritos. Tobei encontra com Ohama na casa de meretrício, mas está disposto a abandonar uma ideia de “honra”, enquanto samurai e enquanto marido, para ter de volta a vida pacata que viviam. Wakasa, por sua vez, não consegue partir para o além-vida porque nunca pôde experienciar o amor de um homem. Por fim, Miyagi, a esposa que olha pelo filho e pelo marido uma última vez antes de evanescer definitivamente.

Já o amor que transborda na devoção da qual Dorsky fala, para mim vai se manifestar numa cena cujos efeitos físicos já foram mencionados aqui. Mais ou menos na metade do filme, após receber a proposta de casamento de Wakasa, sem ainda saber tratar-se de um fantasma, Genjuro participa de uma espécie de celebração na qual a jovem dança em movimentos lânguidos inspirados no teatro Nô, e canta uma canção envolta por uma aura incomum. A voz suave fala da efemeridade das mais belas sedas diante das juras de amor eterno, é doce e cálida. Entretanto, pouco a pouco, novos instrumentos, extradiegéticos, podem ser percebidos e um ritmo assíncrono se apodera do ambiente. Wakasa demonstra temor e o que acontece em seguida é uma das sequências mais aterrorizantes e belas que já pude experienciar numa sala de cinema.

Uma voz masculina irrompe num canto gutural e nesse momento toda a mise-en-scène é feita refém do tom lúgubre que recai ali como uma sombra aniquiladora. Wakasa recua lentamente, acompanhada pela câmera, as luzes diminuem de forma que ela passa a ser engolida pela escuridão. Uma panorâmica vai revelar a antiga máscara de samurai de seu pai, um daimyo – senhor feudal –  morto na invasão do exército, e cuja presença assombrada agora é materializada no seu canto e na imagem bestial da máscara. Wakasa se refugia nos braços do amado com horror, e explica que essa é a voz de seu falecido pai, enquanto sua serva exclama com admiração que ele parece estar contente:

“Por causa de Nobunaga Oda, aquele detestável Nobunaga Oda, a casa de Kutsuki foi dizimada. Os únicos sobreviventes foram Lady Wakasa e eu, sua criada, mas o espírito do falecido mestre permanece no palácio, e canta assim toda vez que minha dama dança. Não é uma voz esplêndida?”

A cena toda dura menos de cinco minutos, mas é incontornável. Parte do horror vem do fato de que até agora os fantasmas (Lady Wakasa e as criadas) se apresentaram como seres mundanos, que podem ser tocados e sentidos, nos mantendo alheios à sua existência, mas nesse ponto do filme somos surpreendidos com a possibilidade do oculto se revelar sem ser anunciado, com certa violência até. Dizem que o medo é um mecanismo de defesa, mas aqui ele funciona como um chamamento das coisas extraordinárias que podem habitar os limites do real e da imagem. A imagem, por sua vez, quando assombrosa e perfurante, acredito que pode impregnar, possuir um receptor. Eu jamais consegui me desvencilhar do espanto sentido nesse instante: relembro os detalhes como se tivesse o poder de invocá-los e eles tivessem poder sobre mim. Ver rostos na janela de uma casa abandonada, divindades na infiltração da parede ou um ente querido que já partiu na mancha de uma fotografia faz parte dos encadeamentos poderosos aos quais submetemos a visão e a crença. Os fantasmas de Mizoguchi não são só assustadores, estão aqui presentes agora reassegurando minha fé e meu amor pelo cinema:

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A imagem oferecida: o cinema de Ricardo Alves Jr.

Ele fixou os olhos em você?

— Constantemente.
(Hamlet, Ato 1; Cena 3)

Por Rubens Fabricio Anzolin

Pascal Bonitzer costumava defender que o sucesso do cinema estava relacionado àquilo que, em essência, ele era capaz de reproduzir: o movimento e a vida. Ou seja, todo e qualquer procedimento que surgisse depois do registro original significaria uma alternância ou uma mancha diante do momento áureo e verdadeiro da captura. No fundo, a questão que realmente estava em jogo era nada mais nada menos que uma espécie de disputa entre realidade e mentira frente ao que se convenciona chamar de acontecimento. Isto é, se chamava-se o cinema de uma arte primeira voltada às atrações, era justamente porque a ele se devia a capacidade do aparato técnico da câmera em registrar o que de mais espantoso guardava o mundo. (Efeito esse, aliás, que passado um século da invenção cinematográfica, perdura até hoje: independente de códigos ou razões mecânicas, pouca coisa em cinema supera a sensação do espanto — de Mèliés a Ford ou Shyamalan, toda a aparição registrada com louvor será sempre uma hecatombe). 

No entanto, retornando ao dilema de Bonitzer, é possível ponderar que as diferenças da superfície-vídeo e da “superfície-grão”, a “imagem verdadeira”, chamemos assim, sejam muito menos relevantes do que uma revelação que reside no princípio de seu próprio raciocínio: antes de mais nada, a câmera, o ecrã, é a fonte primeira da captura da realidade. À sua própria luz nada escapa, e tudo que emerge diante do registro (aquele que não é adulterado ou modificado, claramente) pode ser lido como verdade. No fundo, a experiência cinematográfica é sobre isto: estar diante de uma janela intransponível, de um feitiço inalcançável.

Considero por bem relembrar tudo isso antes de começar a discorrer sobre o cinema de Ricardo Alves Jr. para que esteja claro que toda e qualquer presença analisada em seus filmes é resultado de um conjunto de fatores humanos que corriqueiramente são carregados até o limite da captura dos planos. O que significa dizer, em essência, que aquilo que existe, aparece, saltando diante dos olhos. E isto se dá não graças a uma trucagem posterior ao procedimento, mas sobretudo devido ao desejo de investigação conferido pelo plano frente aos rostos e corpos de sujeitos tão severamente enigmáticos. Sujeitos estes que, frente à câmera, são incapazes de repelir, transbordando através de faces, marcas e feições uma gama de sensações que dizem respeito ao indefinido.

Em palavras mais simples: de Material Bruto (2006) até Elon Não Acredita Na Morte (2016) o que se estabelece na obra do cineasta diz respeito a um jogo de fantasmas, de corpos que são capazes de estarem diante do ecrã mesmo parecendo não estar. Dentre estes personagens, pode-se rememorar o convidado que nunca chega à mesa de refeições de Convite Para Jantar com Camarada Stalin (2009), passando pelos corpos inertes e calados de Permanências (2010) e chegando aos personagens de Elon — seja do próprio Elon Rabin de Tremor (2014), que assim como o cavalo do filme persegue espaços vazios e escuros a procura do nada, até o próprio Rômulo Braga, na versão mais longa da narrativa, que crê estar atrás da esposa quando na verdade caça incessantemente o espectro de um corpo já morto. 

No fim das contas, o que existe de mais reluzente na obra de Ricardo é uma capacidade bastante singular de estar a capturar a presença humana, tanto a do corpo quanto a do espírito,  oferecendo ao espectador uma operação que privilegia o enigma, o não-visto que acaba por se revelar na concepção fotográfica de seus filmes. Neste contexto, duas obras de sua filmografia mostram-se essenciais na interpretação destes paradigmas: Material Bruto, seu primeiro filme, e Permanências, média-metragem realizado em 2010. Em ambos os casos, o contexto do filme se relaciona diretamente com o local cujas obras transcorrem: centros habitacionais de Belo Horizonte, locais simbolicamente abandonados ao léu pelos órgãos públicos da cidade e que estimulam o embate entre corpos deixados para trás e espaços em ruínas, prevendo assim um ambiente fértil para que haja uma trepidação da realidade. Em suma, o que este par de filmes dá conta de demonstrar é que a vida humana nestes espaços costuma orbitar um outro regime de tempo e de sensibilidades. Como se os sujeitos passassem a fazer também parte das pedras, das paredes e do tempo de uma localidade em específico, permitindo a estes corpos que sejam eles também uma espécie de habitação.

O primeiro detalhe resultante deste contexto que pode ser observado através do cinema de Ricardo Alves diz respeito ao trato com a pele, além da atenção que a câmera obtém quando procura capturar os rostos. Tanto em Material Bruto quanto em Permanências, o tempo transcorre de modo lento, a fazer com que essas marcas da vida (cicatrizes, rugas e olhos constantemente marejados — que, aliás, dizem muito também sobre onde estes filmes se passam e sobre quem são estes sujeitos), adquiram outras conotações através da dilatação dos planos.

Em Material Bruto, cada bloco do filme é dedicado ao esforço do realizador em aproximar-se cada vez mais do potencial de delírio destas habitações: há o personagem de Elon Rabin (o mesmo de Tremor e Elon Não Acredita na Morte) que durantes longos minutos performa uma espécie de surto diante de câmera, como se estivesse a estar possuído. Logo após, temos a presença de uma moça, que sentada em uma cadeira centraliza toda a ação de seus braços como se fosse guiada por uma força oculta, que não provém diretamente da concepção daquele corpo. Ao filmá-los, Ricardo é capaz de revelar um enigma importante: as imagens que forja não se revelam pelo que contém necessariamente de visível, mas sobretudo pelo que emulam e sugerem ao espectador. Não são imagens dadas, denotadas de certeza. São todas imagens oferecidas, operadas para que a presença ou a aparição se faça presente no campo da imaginação. Para que o espectro (o invisível dos espaços) possa também ter um lugar na janela da transparência que é o cinema.

Permanências é também uma obra que opera neste mesmo espírito, mas que diferentemente da catarse física oferecida por Material Bruto (essa presença invisível que possui os corpos e faz com que se choquem), privilegia a extensão do silêncio através da contemplação espacial das habitações. Num sentido mais amplo, permanecer diz respeito não apenas aos corpos que lá estão como também a cada movimento (lembremos de Bonitzer e do que falava sobre a essência do cinema) que a vida humana opera nestes recintos. Acima de qualquer outro, há um longo plano em Permanências que considero mais marcante que os demais: o de um homem mais velho a fumar um cigarro enquanto encara as lentes de Ricardo. Como disse, jamais será factível dizer que há ali uma presença ilustre, a tal imagem fantasma, mas o que o cinema revela a quem o assiste (ao homem e ao filme) é a certeza de que algo pulsa naquela presença, algo de carne, osso e matéria. Algo que se constrói através do agudo da chuva, da densidade da fumaça e dos olhos bem abertos, mediante espaços ocos e compartilhados, onde o filme procura rastejar — sempre na altura dos sujeitos — em busca da emulação de uma memória, essa lembrança indistinta que não se sabe bem o que é, mas que se sabe que existe.

Por outro lado, esse aspecto do fantasmagórico permanece presente também nas obras com apelo ficcional produzidas pelo realizador. De certo modo, é como se o cinema de Ricardo Alves Jr. funcionasse perante uma lógica da perseguição destes fantasmas dos corpos e dos espaços, que se penduram em uma linha muito tênue entre vida e morte. Tremor e Elon Não Acredita Na Morte são exatamente sobre isso: sobre perseguir o indefinido. Impossível não lembrar que Rômulo Braga percorre toda a cidade de Belo Horizonte andando sempre em círculos, passando por locais de grandes circulações, tentando se agarrar a toda e qualquer materialidade que lhe traga de volta à amada: das portas que chuta e arromba até as paredas nas quais sempre passa a mão, é como se este fosse também um personagem que emergiu da imaterialidade dos, e que reconhece a capacidade animada das coisas em se comunicarem com os sujeitos. 

Não deixa de ser curioso, ademais, que Elon seja uma espécie de segurança ou guarda noturno, pois é justamente nessas horas mais escuras que o indefinido faz morada, visto que a imagem já se torna incapaz de registrar com uma definição mais aguçada a verdade. Existe uma cena específica do longa-metragem em que o personagem vai de andar em andar em um prédio vazio à procura de algum sujeito ou de um invasor. Em nossa memória, fica a sensação de um indefinido, como se não fosse impossível que Madalena (Clara Choveaux), sua esposa, estivesse por lá, o assombrando. Em meio à busca, a lanterna de Elon vai jogando luz às paredes abandonadas, e quanto mais o sujeito procura por algo menos é capaz de encontrar uma materialidade concreta daquilo que o atrai. A grande verdade, é que tudo isto não está mais lá, mesmo que esta sensação se faça constantemente presente. Curiosamente, Elon Não Acredita Na Morte é um filme sobre uma mulher que nunca aparece de fato. Aparece seu espelho — no caso, sua irmã gêmea de cabelos louros — e aparece também o seu fantasma, materializado em um belíssimo plano onde Clara Choveaux passa os grãos de café no rosto, como quem tenta provar que é uma superfície verdadeira.

No fim, tudo se descobre como uma grande assombração. Pois tanto Madalena quanto sua irmã nunca estiveram lá verdadeiramente: estava lá, sim, uma presença, um acontecimento, que habitava possivelmente nas tantas sombras que rodeiam este personagem. Se aquilo que existe, aparece, em um sentido mais lógico, então, é factível conjecturar que Madalena talvez sequer tenha existido como um corpo concreto naquela realidade. Pois a imagem de Ricardo não revela nada de legível ou real que não faça também parte do universo da sugestão. Elon não persegue a amada, mas sim a miragem dela, o seu legítimo fantasma. Se é fato que o personagem não acredita na morte, isso se dá justamente por estar muito mais perto do mundo das sombras e dos espíritos do que deste mundo carnal, onde todo e qualquer café que se esfregue no rosto é tão volúvel quanto água. E a única certeza que existe na obra de Ricardo é unicamente aquela de Bonitzer, que perpassa todos esses filmes citados anteriormente: o que o cinema registra, está lá verdadeiramente. Já o que está no extracampo, que faz com que esses olhos, peles, rostos e espaços pareçam tão distantes e distintos, é apenas uma sugestão. Uma tentativa mais clara de aproximar o gesto do cinema a estes corpos e lugares habitados por fantasmas.

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A dança dos pirilampos

por João Lucas Pedrosa

O fantasma pode bem ser a imagem que os olhos deixam escorrer pelos dedos, mas que o espírito a ele com tudo se agarra. Sua raiz etimológica está no que se “faz mostrar” ou se “faz ver” (phantázein); enfim, uma aparição (do “aparecer” phaneín). E uma aparição não é uma imagem que se anuncia; é uma imagem que invade. Que desestabiliza, que estremece o local de surgimento. A aparição se impõe do vazio aos nossos olhos, torna-se o centro de toda atenção e, quando se esvai, fica gravada na mente, voltando quando quer, pulsando em vida própria dentro do espírito. O fantasma é a vida da visão assombrando a vida dos que veem. 

Naturalmente, no cinema, tudo é fantasma. É imagem que passa na tela e invade o espírito. Podemos recorrer à reprodução da imagem novamente mas, muitas vezes, o gosto está na memória da visão fazer do concreto uma tela às retinas do lembrador. Sem Título #1: Dance of Leitfossil, de Carlos Adriano, é essa experiência feita estrutura fílmica e, por isso, é, ao mesmo tempo, um filme de fantasma, de memória e de cinema. 

Adriano abre o curta assumindo o movimento retroativo já com a primeira legenda em fundo preto: “apontamentos para uma autocinebiografia / (em regresso)”. Entra, então, a imagem icônica do sorridente Vassourinha com um indicador levantado em frente à boca, como pedindo silêncio enquanto começa a faixa Desfado, de Ana Moura (o show está começando). Corte para o preto e, junto com os acordes do violão, entram Ginger Rogers e Fred Astaire, dançando na também icônica sequência de dança em Ritmo Louco (George Stevens, 1936). Os movimentos deles combinam perfeitamente com o tempo do fado de Moura.

A escolha por essas duas imagens, em suas texturas rasgadas pelos grãos do tempo sobre papel e celulóide, confere ao filme o tom de colcha retalhada (imagens velhas, reaproveitadas como panos velhos na formação de um novo conjunto). A foto de Vassourinha, por si só, parece uma referência ao mais celebrado filme do diretor, A voz e o vazio: a vez de Vassourinha (1998). Um filme em cima da dificuldade de acesso à figura e à história do fenômeno sambista dos anos 1930 e 1940, precocemente morto no auge do sucesso. Ele se mantém por artigos de jornal e documentos legais mal conservados, discos arranhados de sua música: o contato com Vassourinha é necessariamente mediado pela degradação. A imagem usada em Sem Título #1 é cartaz de A voz e o vazio (e o referencial visual à obra mais comumente usado por sites de crítica ou cinéfilos), uma sorte de imagem simbólica associada a Adriano, e que parece adequada para abrir, sob reapropriação e ressignificação, uma série autobiográfica de filmes. A extensa pesquisa para A voz e o vazio foi auxiliada por Bernardo Vorobow, companheiro de décadas do diretor e então já falecido. O acesso a este amado partido, como o filme virá a mostrar, tem um rumo analogamente tortuoso. 

Desfado é uma música vibrante e bem-humorada cujo eu-lírico sente tristeza por estar feliz demais para fazer seu fado: “Ai que saudades que eu tenho de ter saudades / saudades de ter alguém que aqui está e não existe / sentir-me triste só por me sentir tão bem / e alegre, sentir-me bem só por eu estar tão triste”. A dança de Ginger e Fred ao som de Moura se estende num longo plano inteiro, e é interrompido pela tela preta no verso: “e lamentasse não ter mais nenhum momento”. É a primeira fratura de um plano até então sem nenhum corte, que consiste no hipnótico dueto corporal da dupla de dançarinos mais celebrada da história do cinema. O plano estava azulado, e agora retorna esverdeado. O procedimento de colorizar o enquadramento inteiro era muito comum no cinema narrativo dos anos 1910. Sem a existência do technicolor ou tempo para colorização à mão, a indústria recorria a um filtro de cor que tonalizava a cena num todo em tentativa de conduzir sensorialidades que condizessem com o tom do enredo. 

A imagem será novamente interrompida após o fim do número, com a saída dos dançarinos por uma porta, e um lampejo menos de 1s de Bernardo Vorobow rindo invade a tela em tom esverdeado (como um fragmento perdido da cena de dança que acabara de ser cortada) exatamente no verso “que aqui está e não existe”. Agora a cena do filme de 1936 retorna rosada e contrastada, mais quente e receptiva após a visita de Bernardo, para depois ser interrompida pelo preto e pelo lampejo agora azulado do riso de Vorobow. O posicionamento dos cortes mais significativos da primeira metade do filme (a interrupção de Ginger e Fred, o surgimento de Bernardo), necessariamente quando a música fala de fim e de ausência, prenuncia o encaminhamento da segunda metade do curta.

“Não repetir / Apesar do bis”, diz a legenda entre as metades do filme. Retornar, mas de outra forma sempre, como o rumo caótico da memória. Ginger e Fred retornam agora no tom prateado originário, e seus movimentos não duram mais de 2s antes do corte para o preto. Como a luz da lâmpada marcada na retina quando olhamos demais para ela, o último frame da dança antes do surgimento do escuro se repete em nossos olhos após o corte, tornando Ginger e Fred espectros mentais encantados. Eles não mais são interrompidos, mas invadem eles mesmos a estabilidade do vácuo com sua cadência mágica. O lampejo de Bernardo passa pelo mesmo processo; agora, quando surge, tem a mesma duração que os dos atores dançarinos, e o inclinar de seu riso é quase um movimento de dança (surgindo exatamente em “ai que saudade”, “e não existe”, “que aqui está”). A unidade corrente da música vira a liga das três imagens fragmentadas em pirilampos. É a feliz dança dos mortos, que cintilam porque apagam. 

Daí a analogia com o “fóssil de idade” do título: quando mais se passa o tempo, e mais se dissolve a ossada, mais gravada em pedra fica sua forma. No lugar da pedra, o filme grava em psique. A interrupção da imagem é o que a faz durar um tempo a mais no olho e na alma. Sua fragmentação a torna mística: o curto inclinar de Bernardo em riso solto é imagem tatuada e mágica como o flutuar do vestido e dos cabelos de Ginger, dos braços esticados de Fred. Assim como a falta viabiliza o fado de Moura, ela permite a Adriano um lampejo mais longo do amado; o fantasma de Bernardo é a bênção de sua presença. Sem Título #1 é a saudade feita cinema estrutural. E, provavelmente, a mais linda declaração de amor que nós temos. 

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A Liberdade das Imagens Mortas

Por Chico Torres 

O invento da fotografia e do cinema desenvolveu na arte aquilo que há de mais fantasmagórico em seu universo, um desejo presente desde as primeiras manifestações humanas através do rito: a conservação da vida pela representação. Toda a arte, se quisermos pensá-la sob uma possível perspectiva ontológica, é uma expressão desse desejo primitivo de conservação. É nesse sentido que Bazin afirma, em seu Ontologia da imagem fotográfica, que “A morte é senão a vitória do tempo. Fixar artificialmente as aparências carnais do ser é salvá-lo da correnteza da duração: aprumá-lo para a vida”. Cria-se, então, um paradoxo, porque à medida que reafirma a vida e sua conservação, a arte torna flagrante a presença da morte, e é aí que ela cria os seus fantasmas. Para exercitar uma análise psicanalítica desse dado, podemos pensar nas fotografias do século XIX, dos entes queridos falecidos posicionados ao lado dos parentes como se ainda estivessem vivos; pensar também naquele primeiro cinema no qual a imagem funcionava como espetáculo mágico, quando a narrativa e o realismo ainda não haviam dominado o espaço do cinema de massas. 

Ao longo da história, o cinema, como que negligenciando a sua essência de registro desinteressado da realidade, procura desenvolver pela inserção da dramaturgia tradicional uma recepção que mergulhe naquela “segunda realidade” e esqueça, através da transparência, que se está diante de projeções espectrais. Se o primeiro cinema teve como sua força propulsora a imagem em seu sentido mágico, logo ele se transformou em narrativa, de modo que ficou submetido aos imperativos da construção cênica, com suas tramas e personagens.

Mas ainda é possível um cinema que procure seguir o caminho inverso dessa forma de representação transparente e se volte, novamente, para o valor primevo da imagem. Em sentido dialético, já que a inocência do primeiro cinema não é mais possível, abre-se a possibilidade de um cinema capaz de desenvolver uma linguagem que envolve a consciência primitiva da morte e, por isso, do desejo do registro, daquilo que só se faz relevante porque, justamente, foi capturado antes de seu total desaparecimento no devir. Tio Boonmee, que Pode Recordar Suas Vidas Passadas, filme de Apichatpong Weerasethakul (ou simplesmente Joe), pode ser pensado como esse cinema. Nele, vivos e mortos (ainda que seja difícil estabelecer esse dualismo) convivem tranquilamente em um ambiente que é um limiar entre realidade e fantasia. Se quisermos encontrar algum gênero para o filme, precisamos ir à literatura latino-americana e classificá-lo como Realismo Mágico, já que nele se cria uma junção desinibida entre o absurdo e o banal.

Essa ambientação, saturada de realidade e fantasia, acaba por revelar relações (extra)humanas tolerantes e amáveis, justamente porque cria um elo em que vida e morte são representadas sob o mesmo valor existencial, como se fosse possível encontrar o sentido ético da vida (e da morte) através de um encontro com um espírito. Esse campo aberto não apenas une vivos e mortos, mas converte o humano em macaco, como acontece com Bongsong que se tornou aquilo que perseguia com uma máquina fotográfica; da mesma forma que faz surgir um bagre falante e com poderes mágicos. É como se toda a natureza, orgânica e inorgânica, fosse capaz de se integrar em um mesmo nível de vida e consciência, ideia reforçada pelas matas e cabanas que ambientam o filme. 

Por outro lado, esse naturalismo fantástico não apenas nos coloca diante do inusitado em relação aos personagens e suas interações, mas contamina todo o filme com uma aura mágica em que a presença do espectro, da penumbra, do extremamente escondido e do extremamente iluminado surgem também como imagem primitiva e essencial. Por isso a luz e a escuridão são tão importantes no cinema de Apichatpong, elas parecem querer sintetizar o poder do contraste diante dos nossos olhos, um jogo com as bases elementares que constituem o cinema: luz e escuridão. Nesse sentido, tão importante quanto os personagens é a luz que recai sobre eles, ou a escuridão que os oculta.

E Tio Boonmee não está de todo despossuído de uma narrativa, aquilo que é narrado, para além da evidente ternura de um cotidiano, também se desenvolve como discurso político, todo ele relacionado a essa realidade fantasmática: passado, memória, destruição e recomeço. A encarnação e a lembrança de vidas passadas, dado pertencente ao universo mítico tailandês e de uma cultura apartada do mundo ocidental; a presença da fábula (um gênero de um passado literário) que evidencia a busca de uma beleza que nos faz pensar na opressão da estética do Belo instituída pelo ocidente; do exército do futuro, capaz de fazer qualquer um desaparecer com sua máquina de projeção, mais uma possibilidade de pensar sobre o olhar colonizador que se apropria e refaz a história segundo a sua própria cultura. 

Esses aspectos, ainda que desenvolvidos sob algumas referências diretas, como acontece com os soldados do futuro que remete ao conflito entre Tailândia e Laos, ocorridos entre 1987 e 1988, estão embebidos por esse olhar que converte o místico em algo comum, nos fazendo pensar em um cinema que tem na imagem o seu fundamento primeiro, deixando que uma nova forma de vida (e de morte) se manifeste livremente no plano. Todas as formas fantasmáticas estão presentes e convivem de maneira quase que com total naturalidade, como se tudo pudesse se integrar porque, afinal, são apenas fantasmas, apenas luz sobre a escuridão, apenas cinema, e por isso não precisam representar o realismo da vida, não há mais essa obrigação, aliás, nunca houve. 

O cinema é a morte não no sentido de algo que se perdeu para sempre, mas de uma ausência que se faz presente e que se torna suficiente como aparição, como imagem. Consciente disso, Apichatpong constrói um cinema de fantasmas, de seres místicos, de entrecruzamento e dobras porque sabe que o cinema é o único espaço em que isso pode acontecer plenamente enquanto imagem, já que é, por essência, projeção-fantasma do mundo, de um mundo submetido a estritas leis naturais, mas que se desdobra e se refaz diante da objetiva. Ao romper com a natureza do mundo, o cinema de Joe cria uma nova natureza para os nossos olhos, um campo em que se é livre porque não se tem medo da morte. 

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Fisionomia do apocalipse (A máquina infernal, 2021)

Por João Paulo Campos

Saber exatamente o que este som (ou esta imagem) vem fazer aqui.

Robert Bresson. “Notas sobre o cinematógrafo”.

A máquina infernal (Francis Vogner dos Reis, 2021) é uma fábula sobre o universo laboral e existencial do operário sob as forças do capitalismo contemporâneo. Trata-se de um curta-metragem cujos recursos formais nos levam tanto ao universo do cinema de horror norte-americano quanto ao teatro épico brechtiano. A obra aposta na construção de uma atmosfera de terror rarefeita capaz de nos fazer sentir a ruína dos corpos e espaços em cena. Mas como isso ocorre na prática?

Em correspondência com cineastas como John Carpenter e George A. Romero, sobretudo os universos apocalípticos de filmes como The thing (John Carpenter, 1982) e The crazies (George A. Romero, 1973), para ficar com apenas dois exemplos, o filme de Francis Vogner dos Reis elabora de forma extremamente sofisticada um inimigo invisível e inominável – verdadeira força do extra-campo que assombra a fábrica e seus trabalhadores. Fantasma cuja presença nos é comunicada pelos seus efeitos na mise en scène, este inimigo vai tomando conta da narrativa aos poucos, até efetuar a completa implosão dos corpos e máquinas. Uma das aparições mais emblemáticas da obra é, sem dúvidas, a convulsão que acomete os personagens na escuridão da fábrica.

Frames de A máquina infernal (2021)

Este é um filme sobre o apocalipse da classe trabalhadora, o que significa também a destruição de seu ambiente de trabalho. Em termos narrativos, isso quer dizer que a obra vai tecendo aos poucos a destruição dos personagens e das máquinas que, em cena, gritam de agonia – um sofrimento visceral nos é dado a sentir no decorrer do curta. O desespero se impõe através do inimigo que navega entre os trabalhadores, possuindo seus corpos para dilacerar suas entranhas num processo mudo – o que distancia essa obra de, por exemplo, O exorcista (William Friedkin, 1973). Este é, com efeito, um filme sobre as entranhas do mundo do trabalho contemporâneo sob a égide do filme de horror.

Há no mínimo cinco elementos do filme que contribuem para sua beleza inestimável. O primeiro diz respeito à fotografia de Alice Andrade Drummond e Bruno Risas. A máquina infernal é um filme de fisionomias – humanas e maquínicas -, o que o aproxima da forma com que Robert Bresson explora a plasticidade de seus personagens ou, em seu vocabulário, seus modelos. O filme de Francis Vogner dos Reis estabelece uma relação de superfície – o que não quer dizer que esta é superficial – com o cinema de Bresson. A máquina infernal apresenta um esmero bressoniano a partir do qual tudo possui o seu lugar na fatura da obra, pois todos os elementos estão bem inseridos nas malhas do filme. Na sessão, o público pode compreender, para voltar à epígrafe deste ensaio, o que cada som e cada imagem veio fazer aqui.

A forma de filmar os corpos e os espaços da fábrica nos leva a pensar que o importante, nesse filme, é a interação entre os dois elementos, o que faz da fábrica decadente muito mais do que um mero cenário. A relação tecida entre corpos e máquinas elabora a ideia da fábrica como uma das protagonistas do filme – lócus do horror e destruição. Os closes dão substância aos personagens que, na penumbra, adquirem uma beleza sorumbática. Além disso, as escolhas de decupagem deixam com recorrência um ponto de fuga no quadro, o que cria imageticamente o caminho para imaginarmos as ações do espectro demoníaco que ataca pelo fora de campo. 

O som produz o medo. É primeiramente pelos ruídos que o demoníaco vai marcando sua presença no filme. Há uma cena em que assistimos uma assembleia entre os trabalhadores da fábrica e os patrões. Estes apresentam uma proposta de trabalho inaceitável aos primeiros, o que gera a rebelião de alguns operários. Escutamos os discursos inflamados dos personagens, mas o bate-boca é interrompido por um ruído monstruoso em crescendo. O barulho vai tomando conta da cena. Isto incomoda os personagens que, diante da paisagem sonora desenhada na escuridão, tapam os ouvidos num gesto defensivo, ainda que ineficaz. É também pelo trabalho de sonoplastia realizado por Guile Martins, portanto, que a atmosfera de horror e destruição é tecida, trazendo para perto as distâncias demoníacas do fora de campo. 

Frames de A máquina infernal (2021)

Trata-se de um filme de ecos e interrupções. Um bom exemplo disso é a forma com que o autor trabalha o desejo sexual na obra. A cena em que o homem do braço mecânico se engaja numa pegação com sua colega no carro é realizada através dessa orientação cênica. A mão robótica acaricia a mulher enquanto assistimos os beijos do casal. Amor ciborgue – corpo e máquina se entrelaçando calorosamente diante de nós. No entanto, a montagem efetua uma interrupção brusca do tesão em cena para voltarmos ao claro-escuro das relações laborais entre os trabalhadores.

Outro importante recurso da obra é a sobreposição de imagens. Quando o primeiríssimo plano da protagonista é sobreposto à imagem de uma fábrica sendo demolida, o curta cristaliza um sentimento de ruína que atravessa o filme e, também, termina por fundir o rosto da personagem com a fábrica destruída. Por meio dessa operação corpo e espaço se transformam em uma só aparição compósita. 

Frame de A máquina infernal (2021)

    Mais do que simples dispositivo narrativo, a possessão adquire um caráter reflexivo na obra. No início do texto mencionei que A máquina infernal é o encontro do cinema de horror norte-americano com o teatro épico brechtiano. As convulsões dos personagens, em ressonância com os corpos em agonia de Copacabana Mon Amour (Rogério Sganzerla, 1970), estão intimamente ligadas ao contexto sócio cultural do qual o filme é expressão. No entanto, no filme de Rogério Sganzerla a convulsão que acomete os atores tem a ver com o transe de gira de candomblé dos morros cariocas, enquanto o filme de Francis Vogner dos Reis apresenta a possessão como somática e demoníaca no contexto das relações de trabalho de operários do ABC paulista.

Os personagens são possuídos pelo mal estar terceiro-mundista num período de desindustrialização e fim do trabalho fabril. O apocalipse de A máquina infernal é, portanto, conectado com este contexto de crise global do trabalho. Tudo se passa como se a possessão constituísse verdadeiro gestus social brechtiano: os corpos e máquinas se destruindo provocam um distanciamento que desvela a situação social supracitada. Mesmo sem ordenado e sob condições precárias, os operários seguem trabalhando até apodrecerem vítimas do espectro indomável, gesto que torna esse universo social intolerável quando a projeção se encerra. A fábrica se torna, portanto, o inferno do proletariado. O fim é agora.

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À sombra do híbrido biológico mecânico

Por Geo Abreu

Uma das principais alegorias do humano moderno pode ser resumida à cena em que Charles Chaplin aperta parafusos na linha de produção de uma fábrica em Tempos Modernos. Essa automatização ligada a movimentos repetitivos e condições ultrajantes de exploração seria o começo de uma linha evolutiva que muito em breve encontraria com a humanidade no estágio de completa transformação de ser biológico em máquina segundo as projeções de fantasmagoria da época.

O conceito de antropoceno trouxe para essa matéria novas questões e o cinema como lugar de elaboração das projeções humanas vem explorando os fantasmas do antropoceno como em Pajeú, filme de Pedro Diógenes ou Fog Dog, filme de Daniel Steegmann Mangrané. As contaminações químicas do solo e da água perpetradas por resíduos industriais tratados de maneira irresponsável, além das camadas de substâncias tóxicas que compõem a atmosfera provenientes da indústria química, tem contribuído para o desaparecimento de diversas espécies como também para o surgimento de híbridos ainda não classificados. 

A pergunta que nos assombra hoje é: de que formas essa combinação de elementos exógenos é capaz de nos afetar? Sugiro mantermos essa pergunta em mente enquanto encontramos com Titane, o longa dirigido por Julia Ducornau.

O encontro 

Arisco, o filme não entrega muita explicação para o que se desenrola na tela. Em dois atos bem marcados, acompanhamos a saga de uma figura híbrida que trava com o mundo embates extremamente violentos. Sua fúria expõe o drama que a atravessa: compreender as razões que movimentam as pessoas comuns. Titane, como o próprio título sugere, carrega consigo algo de extraordinário, um segredo, do qual o filme vai nos revelando apenas aspectos parciais, embalados em signos que podem ser facilmente lidos como adesão a assuntos que estão em alta no debate público.

Sem oferecer qualquer elemento que configure a exterioridade daquela personagem – nem estrangeira, tampouco extraterrestre – a primeira parte de sua história gira em torno da sua pouca adesão ao projeto humano expressa por uma curiosidade mórbida sobre os limites do corpo e das relações intraespecíficas. 

Desde pequena a jovem Titane esgarça a convenção da empatia, levando ao extremo todas as relações que trava, testando cada uma delas a partir de balizas muito próprias. Da tentativa de chamar a atenção do pai, provocando assim um acidente que lhe deixa uma marca profunda, até a performance provocativa em cima do carro – que atrai a primeira vítima que conhecemos -, suas atitudes desafiam a ideia de que sentimentos como dor e amor são condições inerentes à nossa natureza. 

Apostando no horror biológico como em filmes anteriores seus –  Júnior e RAW – Ducornau segue explorando o assombro que nosso corpo e suas constantes mutações são capazes de produzir, se aproximando pelo uso do neon e das parábolas cristãs a Divino Amor de Gabriel Mascaro. Indo um pouco além, a diretora projeta esse futuro de híbridos biológicos mecânicos cujos primeiros exemplares estão prestes a chegar.

Sangue e óleo

A jornada de Titane então é a da busca pela porção de humanidade que a compõe. Consciente de sua raridade, expressa sua sexualidade de forma predatória, com fluidez por escolhas às mais diversas a fim de explorar as possibilidades, como numa pesquisa de ordem urgente da qual depende a própria continuidade de sua existência. e aqui fica a certeza de que ela poderia assumir a forma de qualquer coisa de aspecto maquínico: mulher, homem, carro. Árvore, nunca.

À medida que as escolhas da protagonista se radicalizam e ela decide assumir a identidade de outra pessoa o filme se transforma, seguindo o movimento da personagem. Acolhida por um homem solitário e carente, Titane passa então a projetar-se num ambiente extremamente masculino, guiado pela figura desse pai que não mede esforços para inseri-lo em sua rotina. 

Desconhecendo os segredos do filho reeencontrado, o pai estabelece uma curiosa relação entre sua família recém reunida e a santíssima trindade: ele, no centro da corporação que comanda, atuando como um deus para seus subalternos; o filho, como jesus (e maria ao mesmo tempo); e um “milagre” que parece ser a verdadeira chave dessa história. 

A partir de então acompanhamos o sofrimento do protagonista frente a sua atual condição e os mistérios que carrega: a barriga que cresce e precisa ser escondida e o óleo que escorre pelas tetas e ferimentos, reforçando a distância entre ele e os meros mortais. Uma alegoria interessante para esse tipo novo que parece gerado a partir de fluidos inócuos, incapazes de carregar em seus genes informações básicas e ancestrais sobre o que seja humano. 

Assim caminhamos para o final que está longe de ser a redenção da espécie, senão apenas daquele pai que finalmente encontra um filho para chamar de seu. Diferente do caráter milagroso assumido pela criança nascida ao final de Divino Amor, o que Titane nos apresenta é uma pessoa que parece ser a primeira de uma série, aquela que consolida a fusão humano-máquina depois de todo petróleo e demais substâncias tóxicas às quais temos sido expostas. Um tipo novo, um híbrido biológico-mecânico do qual pouco sabemos.

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Exorcismo Permanente

Por João Pedro Faro

Do cemitério só voltam os vivos. Eles são as sombras que cruzam o primeiro plano de Vitalina Varela, arrastando os pés pelo chão de rocha, para logo irem assombrar a casa da viúva. Ela, que veio de longe, fazendo o caminho inverso do colono e retornando de Cabo Verde para Portugal, chegou atrasada para o funeral do marido. Sua casa não é sua, os camaradas do marido morto não param de tocar à porta. Ficam no limite das portas, como vultos; sussurram entre si, pelos cômodos, histórias dessa vida passada que ali já não mora mais. São espectros de uma inabitação, verdadeiros assombros que à nova moradora recordam a origem das manchas nas paredes e das rachaduras no telhado. Não há fantasma de morto algum, o que existe é a presença, marcada por todo o barraco, de um prévio habitante que não permite uma mudança tão simples, que incita, por todos os rastros que deixou em vida, a expulsão de um intruso . Vitalina decide permanecer.

Seu nome surge duas vezes escrito na tela, primeiro como título e depois, ao final, como atriz. Vitalina Varela é uma personagem em excesso, do tipo que parece circundada por tantos caminhos de criação, que fica difícil aproximar-se com uma leitura sem a sensação de estarmos deixando de lado muitas outras possibilidades. Falemos do que se vê: seu rosto nos incita, num primeiro momento, a concentrarmo-nos em seus olhos. É justo, são olhos difíceis de evitar, enchem a interpretação de perigo nos momentos mais instáveis (sempre que o barraco parece estar à beira de cair, ou quando mais um sujeito se infiltra em sua residência sem pedir para entrar) e nivelam a altura da câmera quando a personagem precisa estabelecer sua presença (a perceber como eles se fixam no escuro durante os monólogos com o marido que não está lá).  A compreensão sobre esses olhos pode ser resumida ao notarmos que, em vez de Vanda Duarte como um tipo Miriam Hopkins, Vitalina está bem mais próxima de Joan Crawford. 

Por outro caminho, parece ainda mais impressionante sua capacidade de permanecer rígida em cena. Não se trata da mesma rigidez dos que firmam seus pés nas marcações dos quadros, como os vizinhos da favela ou as visitas indesejadas. Vitalina se estabelece ante a lente, por toda a extensão de sua figura, com a placidez de um concreto. Como no quadro iluminado pela luz do sol em um dos seus primeiros dias no barraco, em que se contorce à beira da cama a ponto de encaixar nos quatro cantos da tela, ou nas imagens que a centralizam violentamente (no banheiro, na cama, na sala), quando ela se torna o tronco de todas as ramificações de sombras e luzes que justificam o enquadramento. Que um filme que leva no título o nome de sua principal intérprete ocupe a maior parte de seu tempo procurando diferentes maneiras de encaixá-la no quadro, não se trata de nenhum espanto; mas sua execução certamente precede um conjunto de composições difíceis de equivalerem a outra atriz tão concêntrica quanto Vitalina.

Em conjunto, sua voz tonaliza toda a criação da personagem. Ela é suficiente para, com apenas um mando de livramento, expulsar o conglomerado do barraco; e para convencer, com determinadas pausas e determinadas entonações, um padre sem fé a rezar uma missa. A língua crioula, tão essencial ao som do filme quanto as misturas do extracampo da favela, fornece duas importantes cimentações: a da distância, da vinda de um outro lugar que recusa a osmose completa ao plano presente, e a da insistência, de uma decisão de imutabilidade que torna Vitalina a transformadora de todo o resto, e não o contrário. 

A contraparte de sua interpretação vem de Ventura, o tal padre em desespero com o plano terreno — culpa de um céu escurecido. Ventura, um ator mais do que calejado, é o oposto da rigidez e da firmação de Vitalina, é um personagem trêmulo, indisposto, desistente, quebrado. Diferente de quando interpretava uma mitificação mais particular de sua imagem, em Vitalina Varela sua desolação não é pela vida que ainda precisa viver, e sim pelas vidas que se foram. Igualmente, sua crise não é política ou habitacional, é precisamente espiritual. Nessa nova jornada de desespero, enquadrá-lo parece um ato comum ao realizador, e mesmo que lhe sejam entregues alguns dos mais definidores planos do filme (pensemos naquela única panorâmica que conecta dois becos estreitos, ou naquela grade desgastada que lhe serve de auréola), é fácil perceber que o seu papel é o de moldar, ao lado de todos os outros intérpretes, o ambiente a ser conquistado por Vitalina.

É justamente na pouca sutileza (ou quase grosseria) de um personagem como o de Ventura que o filme demonstra o alcance da sua encenação, plástica e método. Para além de trabalhos anteriores, as Odisseias de Ventura inclusas, Vitalina Varela configura uma transparência aterradora de criações com os sujeitos (passos, movimentos, respirações, olhares) e os cenários (as luzes quadradas, as imagens nas paredes, as curvas dos becos), que demonstram vivacidade pela via do falsário, da construção, dentro de uma trilha inevitavelmente dramática. Não só isso, como ainda não teme banalidades e explicitações (antes mesmo do título aparecer, já temos sangue e lágrimas em tela), apresentando seus personagens como disposições dessas idiossincrasias. Ou seja, trata-se de uma dramaturgia altamente cenográfica. Chamá-lo de melodrama seria uma canalhice, mas é difícil dizer que o filme não invoca sentimentos desestabilizantes bastante objetivos pela formação de um mundo calculado pelas sensações.

O que é preciso ser lembrado sobre as formulações das ruínas e habitações da favela, além da igreja, do cemitério e do bosque que dão palco ao filme, é que nunca se trata de um cinema feito por locações. O propósito é transformar esses lugares em verdadeiros estúdios cinematográficos, erguimentos feitos especialmente para serem resguardados pelo quadro. É assim que o fundo das imagens pode, por vezes, se abster por completo de iluminação, mergulhando os intérpretes no escuro total e apagando os limites da janela reduzida, experimentando com a forma quadrada que acaba por transformar-se em janelas circulares (o túnel, a grade) ou até verticais (com a câmera escondida por trás das paredes das vielas). Também pode redesenhar toda a paisagem, até que ela não se pareça com nada real, como acontece, em mais de uma ocasião, com o céu (a sequência da tempestade no telhado não estaria fora do lugar, se presente em qualquer uma daquelas produções de outrora, que faziam suas paisagens com tinta na parede ).

Mas esse ambiente de criações não está a serviço apenas do campo estético. O que está em jogo é a possibilidade narrativa de cada plano de Vitalina Varela, onde nunca se abriga um corte sem que nele se encerre um gesto ulterior. A narrativa dos planos geralmente é a da travessia, personagens que cruzam a tela de um canto a outro ou percorrem seu centro, se esgueiram pelas beiradas, se arrastam do escuro para a luz, etc. Quando filma diálogos, a narrativa do plano se atém a movimentações macroscopicamente dramáticas. O melhor exemplo deve ser o da personagem que, após acender um cigarro com uma vela ao falecido, aparece no plano seguinte iluminada por um círculo de luz na porta. Ao abandonar a tentativa de conversa com o seu noivo, que logo invade o canto do plano, ela transita para o escuro, deixando a luz pendurada na porta solitária. E o plano só vai cortar quando Vitalina fecha a porta de casa, deixando os problemas conjugais dos outros para fora do barraco (ou seja, para fora do enquadramento). 

A estrutura que permite com que cada plano tenha sua narrativa é também uma estrutura de tensão. Depois de um tempo começa a ficar claro que a imagem não vai cortar antes que o personagem encerre um gesto, parte do que torna a experiência constantemente engajada com cada ação em cena. Sendo Vitalina Varela circundado pela necessidade de expurgo de sua intérprete, é condizente que o estado das coisas seja o da apreensão. Como explica o Padre, em um de seus breves momentos de ciência, “o medo também leva ao céu

Vitalina, apesar de não estar em busca de salvação, utiliza-se do medo como uma forma de exorcismo do barraco do marido morto.  Que outra forma de enfrentar um espaço que se decidiu assaltar, senão pela exposição de todos os sentimentos que a perpassam dentro daqueles assombrosos limites? Ela esclarece às paredes que não perdoa o morto, ao mesmo tempo em que resguarda suas memórias e compreende suas mentiras. Também teme a queda do telhado enquanto deixa que os tijolos lhe caiam na cabeça, não aceita falar o português enquanto lê as tiras de jornal coladas pela cozinha. Por estar a par de suas contradições e feiuras, por insistir ser parte de sua insalubridade e reconhecer esse lugar que não lhe pertence como terreno de conquistas, Vitalina vence o barraco para si. Uma colonização individual que carrega toda a violência da palavra.

É um processo que não se encerra por completo e deve continuar dependendo de sua insistência e de suas aberturas ao concreto falho, por sua rigidez contra a instabilidade de uma habitação inabitável e inabitada. As memórias de sua antiga casa em Cabo Verde, que construiu com o morto, penetram o presente como mais uma firmação indesejada no barraco, mais um exorcismo. O domínio de um espaço nunca é permanente, isso filmes anteriores já estabeleceram; o que Vitalina consegue é tornar aquelas ruínas como sendo suas, pela intimidade que assalta dos mofos, das infiltrações e das rachaduras. Não é que a casa esteja livre de espíritos, ela só está abarcando novas assombrações. 

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Paris Nos Pertence

Por Gabriel Papaléo

É um trem, ou um metrô, que nos traz à cidade. E quando chegarmos é possível sentir no ar o ponto de convergência entre a paranoia política e o niilismo que paira por Paris sob os signos dos intelectuais. Dali em diante, testemunharemos encontros de almas à procura de sentido, a experiência de dobrar um texto às suas vontades (e também limitações), as disparidades culturais na forma de expressar suas dialéticas, e as intrigas e amarguras passadas que vem com a necessidade de conviver num círculo social no qual os rostos, e sobretudo os desejos, se repetem insistentemente.

Jacques Rivette, interessado nos jogos místicos, na performance humana diante dos astros, na fronteira do ludismo mágico e sombrio cujos canais habitantes do realismo se tornam metafísicos, começa seu primeiro longa com personagens espalhados pela dramaturgia, sem curso específico, focado totalmente em comportamento. É a partir das discussões sobre o suicídio de Juan, um elo misterioso entre os tipos que conhecemos, que começa a investigação dessa deturpada sensação de desarranjo que podemos chamar de transição dos tempos. A encenação então coloca Anne pra procurar pelo fantasma de Juan em busca de respostas emocionais para sua desaparição, indo de pessoa a pessoa ouvir seus relatos e impressões, porque à margem de respostas há de se entender esse estranho sabor do suicídio entre os artistas ao seu redor. A investigação pela melodia de Juan se torna uma dialética travada, quase um mapa de influências que o personagem exercia, para descobrir – ou intuir, já que não há respostas unas – onde reside o segredo da alma de quem foi interpretado pelos outros de formas tão distintas. Existe um fantasma à solta, e não sabemos se é o espírito de Juan, ou uma conspiração muito maior. A carpintaria dramatúrgica de Rivette é interessada nos labirintos e nas teorias ocultas, e na forma de dar corpo a essas abstrações é que encontra novas formas de fantasmagoria. Que essa arquitetura se traduza em imagens desconfiadas é uma característica fundamental para que os votos místicos do diretor criem vida.

Ao investigar a morte de Juan, Anne conhece a consciência incomunicável da cidade, e a rigorosa encenação de Rivette parte de interações cotidianas, da declamação da peça encenada por Gerard às confissões ao pé de ouvido nos apartamentos dos personagens, para se concretizar num oblíquo jogo de sedução com o não-dito. A cidade é um coral misterioso, e ocasionalmente interessa ao diretor que acessemos, sempre que breve, esse estado flutuante dos habitantes que desconhecemos – como na sequência em que Phillip narra o nome, idade e ocupação dos seus vizinhos, até Anne o interromper quando reconhece uma das vizinhas.

Essa escolha de retrato fugidio da cidade não vem sem percalços, e se reflete diretamente na arriscada identificação de Rivette com Gerard, o diretor teatral. A forma que o cineasta compra as palavras do diretor, em especial na cena da conversa com Anne na ponte, sublinha muito do sentido do filme sem que haja nessa opção uma fricção narrativa entre os personagens que a justifique. Em imagens e sons percebemos o fio narrativo entrelaçado pela música destoante, pela estrutura dos encontros, a sensação palpável do desarranjo da vida refletido na cidade. É um personagem complexo porque é o único que parece progredir no filme, no processo abrasivo de sua adaptação de Péricles de Shakespeare diante da investigação convoluta de Anne, presa na teia de contradições e paranoias de seus encontros. Quando Rivette compra sua visão de mundo, a do artista em busca de autonomia, não é sob as lacunas fantásticas de alguma obra posterior como Duelle; parece a vontade de tornar discurso falado o que a dramaturgia já dá conta. Paris nos Pertence exala a ansiedade jovem, a pulsão de organizar ideias estimulantes e as deixar acumular sem necessariamente ter precisão, verborrágico e disposto a buscar perguntas além do bom senso; dentro de suas aspirações, um filme jovem, enfim.

Por acaso, ou por tremenda boa vontade do cineasta em se manter aberto ao acúmulo romanesco de comportamentos dos sujeitos que filma, a estrutura dramatúrgica de falência do personagem acompanha diretamente o movimento de desaparições com a cidade. A amargura toma conta do encantamento, contaminada pelo dinheiro, pela influência, pelo exercício do poder até mesmo no mais modesto proscênio; o niilismo se infiltra no místico.

O que é niilismo na França pré-1968 – e vale lembrar como o filme sintoniza movimentos políticos posteriores – também é paranoia diante da necessidade de fuga dos perseguidos políticos; a figura de Phillip Kaufman, escritor aclamado e exilado político, habita Paris como fugitivo da América sem trocar o modus operandi do acossado. Sua relação com Terry, sua ex que também é a viúva de Juan, é marcada pela desconfiança e pela amarga herança do relacionamento. Seu comportamento aos poucos o obriga a se isolar, a duvidar das amizades dali, da hospitalidade antes insuspeita do país que o acolheu. O isolamento e a paranoia andam juntos, mas é na criatividade e na imaginação onde reside a verossimilhança da intriga que alguém propõe para convencer ao mundo da soberania desse comportamento; alguém definido como “brilhante escritor, ganhador do Pulitzer” pelo círculo intelectual que o abriga pode ter em mãos a influência dos deuses.

E o que Rivette imagina é uma profunda e detalhada descrição do fim do mundo, que apaga as luzes dos cômodos confortáveis, que reduz subitamente a importância dos conflitos internos, que traz a urgência da destruição. Terry profetiza nos seus graves monólogos, Phillip destila sua paranóia, e em algum momento a imagem – e irrevogavelmente nós espectadores – passa(m) a acreditar nisso; através da palavra organizações secretas operam nas sombras com suas ferramentas e meandros desconhecidos.

Como se imagina a presença da cidade-título diante da constante sensação de perigo à espreita, refém de forças ocultas, quando a cidade parece exigir ser evitada? Pensemos em Godard em Acossado e Truffaut em Os Incompreendidos, para ficarmos nos exemplos próximos em época, contexto, e de base teórica similar ao cineasta. O esforço de filmar na rua, os personagens transitando por Paris, a esmo ou com objetivos fixos, parte do encanto com as possibilidades da locação, do que o movimento das ruas tem a oferecer para essas novas abordagens estéticas que se ensaiam: em Godard, uma Paris do embate entre o charme do criminoso que pensa a dominar com a turista à procura das aventuras que uma visão distanciada de cidade tem a oferecer; em Truffaut, uma Paris de juventude, de pequenas descobertas, de lugares a frequentar, hábitos a construir, rituais a sedimentar. O que une os dois, a disposição benjaminiana de andar pelos corredores claros e escuros da capital europeia planejada à exaustão.

No entanto, flanar não é uma opção tão viável para Rivette da forma que era para seus companheiros de Cahiers du Cinema. Seus personagens começam ocupando Paris com sua juventude, andando pelas pontes, sentando-se em seus bancos, ensaiando peças ao ar livre. Mas aos poucos, Paris se torna ameaça, e todos os acossados se tornam paranóicos, seja essa paranoia herdada do outro lado do Atlântico Norte ou pela própria articulação pessimista de pensamento doméstica; o filme começa a se tornar um jogo de internas, de conversas em apartamentos, e todo o emocional investido por essas relações veste uma desvelada clausura. A reiteração do estado de paranoia toma conta do filme, na cidade que aos poucos vai sumindo, as internas que se espalham, o mundo dos soberbos consumado até o sufocamento.

A necessidade de se sentir perseguido gerando a tensão do fim do mundo, principalmente na boca de Terry, retorce o místico sob a encenação do cotidiana caro ao diretor. Não são poucas as vezes que se sente que algo está observando a todos, e nisso Paris nos Pertence parece mais uma adaptação mais sisuda, fantasmagórica e realista de Phillip K. Dick que filmes que referenciam o autor diretamente – como Southland Tales, por exemplo. Na magistral ficção-científica de Richard Kelly, aliás, a conspiração política também abraça a farsa e as profecias, sempre buscando na crença no místico e no mágico um lastro para as paranoias de seus personagens – mesmo que o diálogo de Kelly seja com o tresloucado humor satírico e as viagens interdimensionais de Alan Moore e Grant Morrison (como lembrado por Filipe Furtado em seu texto [1] sobre o filme). Kelly retrata estrelas de cinema, policiais e atrizes pornô, com a vulgaridade que se espera de Los Angeles, enquanto Rivette filma Paris com a solenidade na qual os intelectuais que a habitam encaram a cidade.

Diferente de Southland Tales, no final de Paris nos Pertence não há conspiração alguma; é consequência direta de que, para os eleitos gênios da arte filmados por Rivette, como um personagem certa hora classifica, é sem dúvidas mais trivial colocar a causa de suas desventuras no mundo e nas organizações que controlam secretamente as vontades e cursos do planeta que assumir o impacto pelas formas que afetou os que estão ao seu redor.

Que existam tais pessoas, as quais foi concedido o imenso poder da influência cultural e de serem representantes quase oficiais da articulação sociopolítica burguesa, é menos o problema para Rivette que o fato de que é preciso responsabilidade na hora de atrair pessoas para seu círculo, para sua gravidade, o cuidado exigido quando for cuspir profecias por aí. Nunca se sabe quem pode estar ouvindo, e a Paris de 1961 e o Rio de Janeiro de 2021 não tem cenas artísticas tão discrepantes quanto eu gostaria. Não que isso importe; como Peguy diz ao abrir o filme, essas cidades não pertencem a ninguém. É importante lutar por elas.

[1] – https://boxd.it/1ex4gn

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Homem-aparelho: entrevista com Wilson Oliveira Filho

Para a edição “Imagens Fantasmas” considerei um papo com Wilson Oliveira Filho muito importante pensando em sua área de atuação com as salas de cinema e meios tecnológicos. Um novo espectro toma esse espaço e Wilson, em tempo, mostra seu projeto de expansão de atividades para novas leituras e, claro, releituras do espaço através da arqueologia dos meios.

  • O projeto que pensa a sala de cinema do campus João Uchoa da UNESA para usos e reusos toca, entre diversos sentidos, um ponto crucial: o da sala como laboratório da sociedade e da comunidade científica. Quais são planos para tornar estes planos acessíveis ao público a pensar que o projeto lida com um espaço privado?

Por se tratar de um projeto de extensão, esse pensar já se dá com a comunidade como um todo. Não só para com os alunos, mas para com o entorno. A extensão universitária é uma grande “sala de aula sem paredes” para lembrarmos o que McLuhan pensava sobre o cinema. Tentamos nos aproximar dos antigos frequentadores de salas de cinema, além de, com os discentes e funcionários do campus, pensar a formação de público que salas em espaços como Universidades podem e devem (re)despertar. A sala de cinema no campus João Uchoa sempre foi aberta ao público. O que meu projeto amplia é a possibilidade de outros usos para manifestações audiovisuais contemporâneas como o live cinema e outras performances audiovisuais e assim pensar as potências dessa economia criativa que vai ainda e por muito tempo precisar de salas de cinema

  • Este mesmo projeto toca na memória das salas de cinema de rua – o que nitidamente separa da experiência do filme como uma parte do consumo em um passeio no shopping center. Um grande “trauma”, a citar Benjamin. Como trabalhar a sala de cinema, neste espaço acadêmico, e reativar o hábito de ida ao cinema?

Essa é uma parte importante uma vez que a sala possivelmente deixará de existir enquanto tal, já que o campus sairá daquele local. Mas suas memórias estão impressas em diversos momentos da sala. Nessa sala mediamos debates com Nelson Pereira dos Santos, Walter Carvalho, exibimos dezenas de filmes universitários e experimentais (creio que a vocação desse tipo de sala em seu uso mais tradicional seja o de exibir o que não tem lugar para a exibição). Nesse espaço, no entanto, vimos não só filmes ou debates, mas performances audiovisuais como o belo trabalho “Cinema das atrações”, de Raimo Benedetti. E aqui usar mediamos e vimos é afirmar uma configuração da memória coletiva. Acho que uma experiência em sentido benjaminiano, mais do que esse trauma, essa fratura que o cinema fora do lugar que lhe conferiu tradição e dentro dos templos de consumo mencionando por você é o que de mais importante fica. E tentamos justamente isso: trabalhar dentro da Universidade hábitos (também no plural), entender novas espectatorialidades e potências desses lugares de memória para usarmos a expressão de Pierre Nora. É nesse sentido que acho que podemos trabalhar salas de cinema em espaços como a Universidade. No futuro, acho que cursos de cinema precisarão ter disciplinas que lidem com a sala como um ambiente; a sala como ecologia das mídias.

  • Em tempos de consumo de novos materiais audiovisuais e a proposta de oferecer o espaço da sala de cinema para uma espécie de contragolpe da relação postura-memória. Como se dá essa relação? Como estes novos materiais digitais ajudam a manter uma tradição que envolve a sociabilidade e articula contra o declínio das salas de rua?

Primeiro pelo entendimento arqueológico dos meios. Aqui sua questão se torna crucial. Essa sala dentro do campus João Uchoa conta com dois projetores analógicos em uma cabine e um projetor digital fora da cabine. Aí acho que já há toda uma perspectiva a ser analisada. O hábito do cinema ainda em tempos da sala e a sala agora aberta (o projetor não mais atrás das nossas cabeças como no velho e bom hábito cinema para destacarmos a expressão de André Parente e Kátia Maciel), mas também acima das nossas cabeças ligado a computadores, videogames, celulares (rompendo justamente o hábito e, seguindo ainda André e Kátia, criando uma outra situação cinema, estendendo a concepção de Mauerhofer). Tentamos pensar “sessões” nesse sentido. Uso as aspas, pois não sei se estamos diante do mesmo fenômeno. A exibição por exemplo de uma sequência de gifs direto do meu celular problematiza a ideia de exibição e curadoria (e aqui meu projeto toca no seu projeto de mestrado creio, mas isso já daria outra conversa…).

  • Logicamente falamos de um espaço fantasmagórico envolvido pela memória, pela nostalgia que hoje são tomados por igrejas, farmácias e lojas de departamentos. Inclusive a sala está localizada no bairro que hospedava o Cinema Apolo (fechado em 1949).  Há alguma ideia que se relacione diretamente com a história das salas de cinema neste projeto?

Na pesquisa inicial que levou ao projeto busquei informações sobre o Apolo que até pouco tempo era uma academia de ginástica. Entrei no lugar como faço em diversas salas que se tornaram outra coisa e não obtive informações. A fachada  deve ser a mesma de outrora e no bairro poucos se lembram da sala. Há já aí algo que passeia pela nostalgia, pela nostalgia das ruínas como já abordou Andreas Huyssen. De forma mais direta comecei a pensar em um curta sobre essa sala no Rio Comprido (uma sala com mais de 400 lugares), mas é algo que segue ainda só nos planos. Muitos filmes sobre salas específicas vêm surgindo, mostras dentro de festivais etc.

  • Há uma ligação com a experiência completa envolvendo a coleção de memórias ao utilizar o espaço completo como o hall de entrada, a aparelhagem e, claro, a tela. Como este projeto pensa em construir um novo público que hoje não acostuma a consumir imagens? Hoje o consumo me parece uma experiência solitária através da TV, do celular, torrents, etc.

Novamente você toca em outra questão central. Como conviver o espaço com novas formas (e certamente solitárias) de consumo audiovisual. Fazendo, creio eu, o radical entendimento do reuso. Tratando os ambientes que compõem uma sala como o lócus de fato em sua totalidade. Recuperar a sociabilidade que uma ida ao cinema cria, provoca com novas atrações. Escrevi com Márcia Bessa sobre isso em artigo apresentado na Socine em 2019. Segue para quem se interessar. https://www.socine.org/wp-content/uploads/anais/AnaisDeTextosCompletos2019(XXIII).pdf (pp.1231-1235)

  • Nesta proposta de ter novas utilidades à sala me vem o pensamento de equilíbrio que Benjamin fala sobre as funções sociais do filme envolvendo o ser humano e a aparelhagem. Como esta proposta equilibra estas funções?

Aliando o aparelho (analógico/digital) ao cidadão.

Wilson Oliveira Filho é professor da Unesa desde 2005. Foi coordenador entre 2012 e 2021 dos cursos de Cinema, Fotografia e Produção Audiovisual no campus João Uchoa. Atualmente é extensionista com o projeto “A sala de cinema no campus João Uchôa: usos e reusos para Economia Criativa”. Foi pesquisador do programa Pesquisa Produtividade entre 2013 e 2020. Autor de McLuhan e o cinema ( editora Verve, 2017) e artista multimídia com o DUO2x4 em parceria com a professora, cineasta e pesquisadora Márcia Bessa.

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Mostra Internacional de Cinema de São Paulo: Atlântida (Yuri Ancarani)

Por Camila Vieira

A direção do italiano Yuri Ancarani é seduzida por alguns códigos de formatação de um certo padrão de cinema contemporâneo: a duração de um cinema de fluxo que se interessa mais pela ambientação que pela centralidade de seus personagens, a composição com luzes artificiais que estetizam cenas aparentemente filmadas como realistas, a montagem que intensifica a indistinção temporal dos acontecimentos. A elaboração de tais elementos facilmente coloca Atlântida em lugar muito confortável dentro da dinâmica dos festivais internacionais.

O tour de force do filme seria Daniele, um jovem de uma ilha às margens da Lagoa de Veneza, que vaga pela região com seus engenhosos barcos a motor, sem demonstrar qualquer interesse pelas demais pessoas que transitam no local. No entanto, tudo o que o personagem fala parece ser de menor importância para o que Atlântida deseja olhar: o modo como os jovens se encontram, mergulham na lagoa, fumam e se divertem com a música e com os passeios nos barchinos. O cotidiano ocioso da juventude está presente em boa parte das sequências, inclusive várias delas filmadas com o desgastado efeito flare.

Quando o longa-metragem escapa do registro espontâneo dos jovens, ele tenta se enveredar na construção de um esboço dramático para Daniele, mas a execução torna-se bastante esquemática. Um exemplo é o modo como aparece a jovem que se interessa pelo personagem e que responde sobre os questionamentos sobre seu futuro. Em uma cena no salão de beleza, ela afirma que “desistiu de sonhar”, mas, fora o discurso, não parece haver mais nada que aponte para tal certeza. 

* Visto na programação da 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo.

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Mostra Internacional de Cinema de São Paulo: Notas breves sobre alguns filmes – Parte 3

Por Camila Vieira

Um Forte Clarão (Ainhoa Rodriguez)

Em um vilarejo na região espanhola de Tierra de Barros, as ruas estão vazias. Há algo de misterioso e sombrio que se captura nos planos gerais de Um Forte Clarão. O longa busca aliar o registro documental ao filmar moradores da região com estratégias ficcionais que flertam com o realismo mágico. Em um território onde mulheres sobrevivem mediante a concretude do despovoamento da comunidade, são alimentados rumores de que mais pessoas irão desaparecer.

Em sequências isoladas, o longa de Ainhoa Rodriguez consegue amplificar a sensação de estranheza de viver em uma cidadezinha isolada: mulheres idosas conversam sobre o medo de sair à noite e, mais à frente, um disparo balança o lustre da casa; outra mulher vê um programa de televisão em que um homem pede que sua esposa volte para casa e ouvimos várias gargalhadas altas em off; uma jovem entra em um casarão e derrama leite em seu corpo nu. Com rigor na composição de cada plano, o filme parece ter algo de incompleto no conjunto, sem também chegar a uma radicalidade na sua tentativa de romper com a estrutura narrativa tradicional. 

Sanguessugas – Uma comédia marxista sobre vampiros (Julian Radlmaier)

Pode parecer até interessante a premissa inicial do filme em forjar uma comédia a partir da crítica marxista ao capitalismo como o vampiro dos nossos tempos que suga a força de trabalho do operariado. Com a trama concentrada no final dos anos 1920, a senhorita Octavia Flambow-Jansen é uma vampira entediada com seu cotidiano aristocrático, ao lado de seu assistente Jakob, que toma consciência de sua condição como explorado por meio de Rosa, uma jovem militante e integrante de um clube de leitura das obras de Marx.

Em paralelo, acompanhamos a história do misterioso barão Kobersky, que chegou a interpretar Trotsky em uma das filmagens de Sergei Eisenstein e agora sonha também em ser cineasta em Hollywood. O desenvolvimento da narrativa de Sanguessugas não consegue fazer uso efetivo de seus personagens como alegoria da exploração apontada por Marx e referenciada o tempo todo nos diálogos e tampouco as situações construídas aproveitam bem o potencial da comédia como gênero.    

* Vistos na programação da 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo.

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Mostra Internacional de Cinema de São Paulo: Lua Azul (Alina Grigore)

Por Camila Vieira

A primeira cena de Lua Azul anuncia a gradação de violência que Alina Grigore deseja explorar ao longo de seu filme: a protagonista Irina é acordada de forma brusca pela irmã Viki que a sufoca e insiste que ela não conte nada para seu pai que está chegando para uma visita. Filhas de pais divorciados, Irina e Viki moram na casa dos tios e são completamente controladas pelos primos, que as obrigam a trabalhar nos negócios da família. Irina deseja fazer faculdade em Bucareste, mas o pai ausente não entende a escolha dela e o primo mais velho quer que ela continue a fazer a contabilidade da empresa familiar. 

Da mesma forma como tantos outros filmes da Romênia que escancaram a violência e a crise social do país (como é o caso de Má Sorte no Sexo ou Pornô Acidental, de Radu Jude, outro filme na Mostra que já publicamos crítica), o problema de Lua Azul é a necessidade de posicionar exclusivamente o corpo da mulher como receptáculo incondicional da violência. Irina não reage quando o primo a espanca. Quando ela é estuprada por alguém desconhecido na festa, ela até se aproxima dele como se estivesse com Síndrome de Estocolmo. Há tanta passividade e silenciamento em Irina que é por demais desconcertante e incoerente diante de tanta violência que a cerca. 

Talvez com a intenção de não tornar a trama monótona e homogênea demais, a direção de Alina Grigore se serve de uma reviravolta do último terço de Lua Azul: para proteger a irmã Viki que também é vítima das opressões familiares, Irina realiza sua única ação para interromper o ciclo. Com uma câmera que circula em meio aos personagens da família, a penúltima sequência até consegue expressar a vertigem da situação que Irina desencadeia. No entanto, o desfecho acaba por reduzir o filme a tudo o que já foi visto antes. 

* Visto na programação da 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo.

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Mostra Internacional de Cinema de São Paulo: O compromisso de Hasan (Semih Kaplanoğlu) 

Por Camila Vieira

A dramaturgia de O compromisso de Hasan desvela aos poucos o não dito que se forja nas ações de seu protagonista: um homem que herdou as terras do pai e aparentemente tenta arranjar formas lícitas para sobreviver da agricultura. A sequência inicial apresenta a infância do personagem, que revela as circunstâncias do seu vínculo profundo com o terreno herdado. É onde Hasan cultivou durante muito tempo seu pomar que lhe serve de sustento, mas que agora recebe a ameaça de uma grande empresa que deseja se apropriar das terras para a construção de uma torre industrial de energia elétrica. 

A tendência inicial seria permanecer ao lado das intenções do personagem. Os empresários querem destruir as plantações, em prol da ampliação do próprio lucro. Hasan tenta convencer a empresa a usar o terreno ao lado que está improdutivo. Ele também procura ouvir outros agricultores da região que pediram empréstimos e precisam vender suas terras por valores irrisórios para pagar dívidas.

De forma gradativa, pequenos acontecimentos surgem como consequências das ações equivocadas do protagonista. Animais aparecem mortos por causa da água contaminada por agrotóxicos que Hasan usa de forma irrefletida em seu pomar. Sua esposa se lamenta por ser dependente dele financeiramente para conseguir fazer a peregrinação à Meca. Ao situar como as decisões de Hasan destruíram as vidas dos menos favorecidos na comunidade e de sua própria família, o longa de Semih Kaplanoğlu instaura um mal estar necessário pelo modo como o individualismo arruina interesses coletivos.  

* Visto na programação da 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo.

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Mostra Internacional de Cinema de São Paulo: Notas breves sobre alguns filmes – Parte 2

Por Camila Vieira

I Comete – Um Verão na Córsega (Pascal Tagnati) 

A direção de Pascal Tagnati parece menos interessada na composição de personagens e no modo como eles interagem entre si em I Comete – Um Verão na Córsega, do que em uma certa ambientação a ser capturada de uma experiência de verão na ilha francesa. Jovens conversam entre ruelas onde motocicletas atravessam com rapidez. Os assuntos vão de férias a trabalho. Na beira de uma piscina, garotas falam sobre relacionamentos. Adultos constroem armadilhas para animais e conversam sobre jogos de futebol. Os diálogos são passageiros, como se fosse uma forma de observação à distância. 

A impressão é que o diretor não deseja psicologizar seus personagens, mas tampouco consegue fazer com que as conexões dos corpos em cena produza algo para além de um mero acúmulo de situações ligeiras. Em alguns momentos, o que está sendo dito por um ou outro personagem parece sair do individual para querer dar conta de uma condição estrutural do país, como o comentário sobre a Europa ser dos tecnocratas e dos banqueiros. Mas tudo fica muito aquém de qualquer tentativa de constatação.

O Garoto Mais Bonito do Mundo (Kristina Lindström e Kristian Petri)

Poucos documentários conseguem perspectivar a forma como o fazer cinematográfico pode destruir a vida de pessoas comuns em busca da idealização de uma imagem que será perpetuada como eterna para o público. O Garoto Mais Bonito do Mundo aborda o impacto que a repercussão de Morte em Veneza teve na vida de Björn Andrésen, o ator que ainda adolescente interpretou o belo personagem Tadzio no longa-metragem de Luchino Visconti. A beleza tão almejada pelo diretor italiano não converge em nada com o olhar triste e amargurado de Björn Andrésen em sua rotina atual. 

Em contraposição às imagens dos testes e das viagens de divulgação de Morte em Veneza em que a bela aparência física de Björn foi exaustivamente explorada, os registros cotidianos atuais apresentam um homem já velho, descuidado com a própria vida, perto de ser despejado e inábil com a namorada e com a filha. O filme também escancara que Björn teve sua imagem vendida mundialmente como objeto sexual, enquanto na intimidade sofria com a ausência da mãe e, anos mais tarde, levava uma vida dependente de drogas.

* Vistos na programação da 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo.

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Mostra Internacional de Cinema de São Paulo: As Bruxas do Oriente (Julien Farout)

Por Camila Vieira

O ponto de partida do documentário As Bruxas do Oriente é desmistificar a comparação das ex-jogadoras da seleção de vôlei feminino do Japão com a simbologia das bruxas que alimentam o imaginário popular do país, sobretudo nos desenhos e animes antigos. A figura da bruxa costuma ser associada de forma pejorativa a algo maligno e misterioso. Para desfazer a imagem de que as entrevistadas tinham poderes sobrenaturais indestrutíveis nas quadras, o filme reúne as entrevistadas ao redor de uma mesa de jantar 50 anos depois do período em que elas foram consagradas. 

Ao mostrar cenas do cotidiano atual de algumas das ex-jogadoras, elas relembram detalhes da rotina diária de trabalho como operárias da fábrica têxtil Nichibo Kaizuka nos anos 1950, os treinos árduos de vôlei após o expediente e os campeonatos em que elas conquistaram vitórias consecutivas na década de 1960. Cada uma delas é introduzida no filme com uma espécie de etiqueta ilustrada que informa qual era o status, o perfil, a habilidade e o apelido da jogadora na época. O documentário intercala registros atuais das ex-jogadoras que agora já são idosas com imagens de arquivo em que elas aparecem bem jovens como atletas em reportagens da época e registros de partidas e treinos. 

O momento mais intenso de As Bruxas do Oriente é uma longa sequência que intercala as imagens das famosas partidas da seleção de vôlei nos jogos olímpicos com suas reconstituições em formato de um anime que se tornou bastante famoso na época em reconhecimento ao desempenho brilhante do time. Em outra sequência, o mesmo paralelo é feito com as cenas dos repetitivos e rígidos treinamentos que elas recebiam. Ao dimensionar o que era exigido delas e como algumas desistiram após a primeira derrota, o documentário é bastante honesto com a trajetória das personagens, sem cair no risco de um resgate romantizado ou idealizado. 

* Visto na programação da 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo.

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