Toda história de amor pelo cinema é também uma história de fantasma (ou sobre minha experiência com Contos da lua vaga)

Por Natália Reis

Quando me deparei pela primeira vez com filmes de vanguarda no início dos anos 60, os trabalhos que achei mais interessantes foram aqueles que estavam desenvolvendo uma linguagem única para o cinema, uma linguagem em que o próprio filme se tornou o lugar da experiência e, ao mesmo tempo, era uma evocação de algo significativamente humano. Comecei a perceber que momentos de revelação ou vivacidade me vieram da maneira como um cineasta usava o próprio filme. Mudanças de luz de um plano para o outro, por exemplo, podiam ser muito viscerais e eficientes, comecei a observar que havia uma concordância entre o filme e nosso metabolismo humano, e a ver que esta concordância era um terreno fértil para a expressão, uma base para explorar uma linguagem intrínseca ao filme. Na verdade, as propriedades físicas do filme pareciam tão sintonizadas com nosso metabolismo que comecei a pensar no filme como uma metáfora, um modelo direto e íntimo, para nosso ser. E senti, na medida em que pude mergulhar nesse modelo e tê-lo nos representando de forma direta e profunda, que o próprio filme tinha o potencial de ser transformador, de ser uma evocação do espírito, e de se tornar uma forma de devoção. 

Convidado a falar das afinidades que podem ser traçadas entre cinema e religião, o cineasta experimental Nathaniel Dorsky trata em seu livro Devotional Cinema de um fator que acredita estar diretamente ligado à crença e à devoção: a capacidade do cinema de provocar respostas físicas no espectador, de se relacionar tão intimamente com nossa fisiologia que estabelecemos um vínculo devocional com alguns filmes. Dorsky ilustra isso no começo do livro relatando uma memória marcante da infância, uma experiência pós-sessão na qual, aos 9 anos de idade, depois de passar quase a tarde toda na matinê, sairia do cinema num estado entorpecido, observando o mundo que se apresentava como que constituído de cores, texturas, luzes e sons insólitos, alienantes. No caminho de volta para casa, a rua lhe pareceu um lugar estranho, e por um momento seu próprio lar também.

Todos nós, de certa forma, e em maior ou menor grau, já sentimos esse entorpecimento. As luzes se acendem e os rostos na sala se tornam confusos, lá fora a claridade injeta a retina com uma realidade ainda distante. Francesco Casetti, em seus estudos sobre o terror que o primeiro cinema provocou nas plateias pouco acostumadas (chamado apropriadamente de “cinefobia”), vai trazer exemplos de indivíduos que diante do evento cinematográfico foram tomados por uma comoção sobrenatural: 

Ontem à noite eu estive no Reino das Sombras. Se você apenas soubesse como é estranho estar lá. É um mundo sem som, sem cor. Tudo ali –  a terra, as árvores, as pessoas, a água e o ar – é mergulhado em cinza monótono […] Não é vida, mas sua sombra. Não é movimento, mas um espectro sem som. (Maxim Gorki)

Uma cabeça  de repente aparece na tela e o drama, agora cara a cara, parece dirigir-se a mim pessoalmente e transborda com uma intensidade extraordinária. Eu estou hipnotizado. (Jean Epstein)

Esse tipo de testemunho me faz pensar nas minhas próprias experiências de arrebatamento, para além do choro mais ou menos contido ou dos pelos do braço arrepiados numa cena que seria revista inúmeras vezes mais tarde tentando reproduzir essas sensações. Um episódio específico talvez tenha me marcado de forma incomum: meu corpo retesado na cadeira desconfortável sendo tomado por uma descarga de medo e maravilhamento, um calafrio na espinha seguido pelo coração agitado e o sangue gelado, a certeza de que minhas pupilas se dilataram tentando absorver toda a luminosidade emitida da tela naquele instante. É difícil descrever o que se passa nessas horas, porque assumir o poder que a imagem em movimento tem sobre você é também um relato de aparições e de mundos transfigurados. E é disso que se trata essa exposição: uma história de amor e de fantasma.

Raúl Ruiz falava de um cinema com a capacidade “de nos deixar viajar até os limites da criação através da simples justaposição de um pequeno número de imagens trêmulas”. Segundo o diretor chileno, “neste impressionismo radical, o nunca visto estaria ao nosso alcance. O cinema se tornaria o instrumento perfeito para a revelação dos mundos possíveis que coexistem bem ao lado dos nossos”. Parte desejo parte projeção, acredito que esse aspecto revelatório do qual falava Ruiz pode manifestar um tipo de presença fantástica/fantasmagórica que por muito tempo esteve confinada aos domínios das habilidades mediúnicas e dons extrassensoriais. A fotografia e mais tarde o cinema não só trouxeram outros mundos –  invisíveis –  à tona, mas nos tornaram capazes de replicá-los e reproduzi-los, um tipo de registro partilhável que de certa forma democratizou o ato de ver e acreditar no extraordinário.

Minha história de assombração não é minha, é uma livre adaptação de Kenji Mizoguchi e do roteirista – e seu colaborador de longa data – Yoshikata Yoda de dois contos diferentes tirados de uma compilação de fantasia escrita por Ueda Akinari, Ugetsu monogatariContos da lua vaga por aqui. Mesclando temas que remetem à avareza e cobiça masculinas (considerando também a inclusão mais branda na lista de referências do conto “Condecorado”, de Guy de Maupassant) em oposição à benevolência e parcimônia de suas personagens femininas, Contos da lua vaga (1953), dirigido por Mizoguchi, narra a trajetória de dois aldeões de Nakanogo, na província de Omi, durante um período de guerra civil no Japão do séc. XVI, e as circunstâncias que envolvem a dissolução de seus respectivos universos familiares. 

Genjuro, casado com Miyagi e pai do menino Genichi, é um ceramista habilidoso que aproveita a escassez de suprimentos ocasionada pela guerra para vender suas peças de cerâmica na aldeia vizinha. Tobei, por sua vez, é casado com Ohama, irmã de Genjuro, e sonha em um dia tornar-se samurai. Certa noite, Nakanogo é invadida pelo exército de Oda Nobunaga, forçando os camponeses a fugirem. Genjuro consegue salvar a última fornada de suas peças, e, juntamente com Tobei, decide atravessar o lago Biwa com suas esposas e filho, na tentativa de levar a mercadoria para ser vendida em outro lugar. No meio do caminho, eles são avisados de que piratas e saqueadores estariam por ali. Miyagi e Genichi saltam do barco e voltam, ficando acordado que, após conseguir arrecadar dinheiro o suficiente, Genjuro retornaria para a família.

Na cidade, os dois homens rapidamente alcançam certa notoriedade. Com os ganhos, Tobei adquire uma espada e armadura, tornando-se samurai, mas negligencia Ohama, que é estuprada por membros do exército e acaba se tornando meretriz. Genjuro é abordado por uma jovem da nobreza, Wakasa, e sua acompanhante idosa, em busca de peças de cerâmica para seu palácio. O ceramista vai até a residência e descobre que ambas foram as únicas sobreviventes de um massacre. Seduzido pelos modos ostensivos com os quais é constantemente tratado, Genjuro se aproxima de Wakasa e, após um período vivendo juntos, ele é avisado por um sacerdote de que na verdade tanto a jovem quanto sua serva se tratam de espíritos amaldiçoados. 

Um ritual de exorcismo é realizado, e os dois fantasmas, assim como o palácio, desaparecem na manhã seguinte. Genjuro retorna para casa e encontra mulher e filho o esperando. Ele é tratado com cuidado e afeto, adormece e, quando desperta, descobre pelos outros aldeões que sua esposa havia sido morta há certo tempo tentando proteger de um soldado seu único alimento. Por fim, vemos Tobei e Ohama juntos, de volta à vida simples. Genichi corre até a sepultura da mãe com uma tigela de arroz num gesto honroso, e ouvimos a voz etérea do espírito de Miyagi. Um movimento de grua faz a câmera ascender aos céus.

As leituras de Contos da lua vaga passeiam pela propaganda anti-guerra, pelos efeitos destrutivos da ganância encarnada na figura masculina e da bondade misericordiosa e reparadora das personagens femininas. O crítico Robin Wood viu ali uma situação na qual as mulheres, apesar de estarem sujeitas sacrificialmente a um mundo de sofrimento provocado pela dominação patriarcal, “causam uma impressão tão forte na vulnerabilidade de sua situação social que nunca as esquecemos, mesmo quando elas estão ausentes por longos períodos de tempo de tela” . Para além das oposições de gênero e entre o material (a multiplicação dos ganhos, os objetos de cerâmica que assumem o estatuto de arte refinada ao serem adquiridos por uma nobre, o desejo de ascensão de classe) e o espiritual, o filme de Mizoguchi também lida com o amor como essa força transcendental capaz de curar feridas e conjurar espíritos. Tobei encontra com Ohama na casa de meretrício, mas está disposto a abandonar uma ideia de “honra”, enquanto samurai e enquanto marido, para ter de volta a vida pacata que viviam. Wakasa, por sua vez, não consegue partir para o além-vida porque nunca pôde experienciar o amor de um homem. Por fim, Miyagi, a esposa que olha pelo filho e pelo marido uma última vez antes de evanescer definitivamente.

Já o amor que transborda na devoção da qual Dorsky fala, para mim vai se manifestar numa cena cujos efeitos físicos já foram mencionados aqui. Mais ou menos na metade do filme, após receber a proposta de casamento de Wakasa, sem ainda saber tratar-se de um fantasma, Genjuro participa de uma espécie de celebração na qual a jovem dança em movimentos lânguidos inspirados no teatro Nô, e canta uma canção envolta por uma aura incomum. A voz suave fala da efemeridade das mais belas sedas diante das juras de amor eterno, é doce e cálida. Entretanto, pouco a pouco, novos instrumentos, extradiegéticos, podem ser percebidos e um ritmo assíncrono se apodera do ambiente. Wakasa demonstra temor e o que acontece em seguida é uma das sequências mais aterrorizantes e belas que já pude experienciar numa sala de cinema.

Uma voz masculina irrompe num canto gutural e nesse momento toda a mise-en-scène é feita refém do tom lúgubre que recai ali como uma sombra aniquiladora. Wakasa recua lentamente, acompanhada pela câmera, as luzes diminuem de forma que ela passa a ser engolida pela escuridão. Uma panorâmica vai revelar a antiga máscara de samurai de seu pai, um daimyo – senhor feudal –  morto na invasão do exército, e cuja presença assombrada agora é materializada no seu canto e na imagem bestial da máscara. Wakasa se refugia nos braços do amado com horror, e explica que essa é a voz de seu falecido pai, enquanto sua serva exclama com admiração que ele parece estar contente:

“Por causa de Nobunaga Oda, aquele detestável Nobunaga Oda, a casa de Kutsuki foi dizimada. Os únicos sobreviventes foram Lady Wakasa e eu, sua criada, mas o espírito do falecido mestre permanece no palácio, e canta assim toda vez que minha dama dança. Não é uma voz esplêndida?”

A cena toda dura menos de cinco minutos, mas é incontornável. Parte do horror vem do fato de que até agora os fantasmas (Lady Wakasa e as criadas) se apresentaram como seres mundanos, que podem ser tocados e sentidos, nos mantendo alheios à sua existência, mas nesse ponto do filme somos surpreendidos com a possibilidade do oculto se revelar sem ser anunciado, com certa violência até. Dizem que o medo é um mecanismo de defesa, mas aqui ele funciona como um chamamento das coisas extraordinárias que podem habitar os limites do real e da imagem. A imagem, por sua vez, quando assombrosa e perfurante, acredito que pode impregnar, possuir um receptor. Eu jamais consegui me desvencilhar do espanto sentido nesse instante: relembro os detalhes como se tivesse o poder de invocá-los e eles tivessem poder sobre mim. Ver rostos na janela de uma casa abandonada, divindades na infiltração da parede ou um ente querido que já partiu na mancha de uma fotografia faz parte dos encadeamentos poderosos aos quais submetemos a visão e a crença. Os fantasmas de Mizoguchi não são só assustadores, estão aqui presentes agora reassegurando minha fé e meu amor pelo cinema:

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