Os Primeiros Soldados, de Rodrigo de Oliveira: Os deuses que chegam para morrer

Por Luiz Soares Jr.

“Eu descobri que a AIDS é uma doença estranha (…) É uma doença que nos dá tempo de morrer, e à morte o tempo de viver;” esta é a garrafa lançada ao mar em off de Johnny Massaro para encimar com o hors champ virtual do som o plano de seu corpo conspurcado por úlceras em pose de David, olvidados o mármore , o ósculo de Donatello e a poeira dos séculos; sim, o objeto de Os Primeiros Soldados é o tempo que urge, mais descrito em interjeição exclamativa cassavetiana modulada pelo suspense temporal do furacão pialatiano que narrado ‘pace dies irae’ de vela na mão e filhos em torno dos Greuze e Fragonard neo-clássicos moribundos; em Os Primeiros Soldados, este filme inspirado pelos estertores de écriture da página testamentária manchada de fluidos últimos; como descrever, na carne maculada e no gesto invocativo de personagens que sofrem ativamente a própria experiência/experimento do fim (o vídeo testamentário do terço final, que nada faz senão arrematar em chave para-si, tematizada enquanto tal, a experiência/experimento dos fins últimos, e portanto enfim objetos de narrativa, que estrutura o próprio filme) , senão gritando e mordendo , hipérbole paroxística dos corpos em combustão, contra a inimiga à porta? 

Tudo o mais no filme de Rodrigo de Oliveira é pace distendido, vinheta alegorista (o começo, o fim), unção ritual, da capo apaziguado, neutralidade do découpage: uma rigorosa e extenuada écriture a manchar de névoa o negrume lazúli do crepúsculo; aqui, cabe sobretudo aos corpos dos atores o som e a fúria que os incitam a viver e finalmente a morrer, consequência mais causal impossível a que, na vida como na arte, os dionisíacos e  os barrocos sempre fizeram jus: naturalismo fatigado de Clara Choveaux, picardia melancólica de Johnny Massaro, exaltação demiúrgica de Renata Carvalho, Meyerhold para crianças de Vitor Camilo, todos no entanto vibrados segundo o diapasão cool agonístico da iminência de um acontecimento inclemente, não necessariamente a Morte como é tematizado expressamente no filme, e sim algo prenhe de revelações existenciais sobre si mesmos, de radicais diferenças abertas como crateras no seio do Mesmo; este crédito, este pacto in extremis, esta fé herética, esta aposta visceral no corpo do ator, sigificante-mor a ser celebrado, é herdeira de Cassavetes e de Pialat, como dito acima, mas também nasce de uma conversão muito idiossincrática do diretor em pegar os pelos, os suores, as úlceras e os beijos salivados de seus entes possuídos (lembro-me agora de um texto de Narboni sobre Flammes de Arrieta, em que ele compara o corpo do ator ao da prostituta, pois ambos se utilizam da mesma matéria excremencial dos fluidos, aqui contaminados, mas sigamos) e transformá-los em significantes claros e límpidos num filme que deve ao plano o seu fundamento de estrutura mais sólido,e  portanto ao pano de fundo da stylo bailarina de incrição dos corpos em um disegno de paradoxal combustão, como se ao corpo do plano e ao corpo do ator pré existisse uma consanguinidade uterina que ao filme basta atualizar: um filme velado e expiado pelos anjos da Morte se dedica a maior parte de seu tempo in extremis a nos de-mostrar corpos e processos  desenhados contra o fundo do abismo do tempo, corpos que emergem à superfície apesar de e com o abismo?

Como Encore de Paul Vecchiali, talvez o filme contemporâneo à emergência da AIDS que melhor soube extrair dos corpos decompostos como cavalos cinematografados de Muybridge pela doença um gênio coreográfico único em scope ( e, portanto, plástico como cinético, servindo-se do plano como de um invólucro para a marcha inexorável do Mal), Os primeiros soldados exalta o corpo do plano e o corpo do ator como entidades coexistentes para processos in extremis, de que a performance ( aparição extraordinariamente intempestiva e arquetípica em sua histeria feminil, descendo do ônibus e com os peitos em convulsão expostos , de Renata Carvalho, que já prenuncia o tom, diapasão e arremate do filme numa atuação plena de energia mas aberta igualmente às síncopes da agonia) é o evento melodramático, patético mor, de que a cena em que a travesti canta Gonzaguinha com trejeitos e meneios de dançarina de boulevard,decepcionando o público do réveillon, que esperava outra máscara e corpo, como talvez a plateia de festival esperasse outro filme sobre a experiência/experimento do fim?, menos espetacular que especular, como aqui..a interpretação de Renata Carvalho, moeda de Caronte encarnada para supra espasmos do corpo possuído por exaltações somáticas e metafísicas, imprime à diafaneidade de entretons neutros do découpage geral de Os primeiros soldados um flerte com o Infinito das libações trágicas; o equilíbrio atônico do filme encontra, no desespero somático de menino abandonado de Massaro ao descobrir o corpo ulcerado no espelho da câmera-sintomatológica, como também nos sobressaltos e projeções de voz artaudianas de Renata Carvalho, um veio a partir do qual o equilíbrio atônico de tudo ameaça soçobrar e  cair, mas este resvalo, “reparo” e sobressalto de rampa é apenas um biombo detrás do qual tudo- personas-máscaras, narrativas, eixos- se reorganiza para recomeçar outra vez, em outro diapasão: em alguns instantes, a câmera estaca muda e imóvel diante dos objetos, atomizada pelo progressivo esvaziamento nirvânico da voz narrativa pelo processo niilista do corpo que soçobra, e que portanto parece levar com ele para baixo e  para os fundos este filme tantas vezes sobre corpos em devir extático, para fora e para sempre, mas logo o seu eixo se endireita e retoma fôlego, foco, eixo; a performance em Os Primeiros Soldados, -de que a atuação de exterioridade pura de Carvalho é apenas a ponta de lança de processos de interpretação somática mais em surdina no caso dos outros atores, mas não menos intensa- é o buraco da fechadura da cena originária de Freud, o terceiro olho através do qual a  criança vai se intrometer na trepada do casal para investigar as potências possíveis do terceiro excluído, a fresta da indagação metafísica: é no buraco da Mãe que se escondem A Morte, Deus, o Nada? é este empoleirado pedaço de carne entre as pernas do Pai a lança de Tarquínio que vai penetrá-los, tirá-los de seu escaninho de reclusão para trazê-los à luz do ser?

Tudo, através da performance, como da interrogação sobre o invisível da criança diante da ultra-visibilidade do corpo humano, se torna complexo, multiforme, outro; morrer é agora não apenas ser abandonado pelo corpo,e  portanto, como pensava Berckley, abandonar a esfera do ser, que é ver e ser visto, mas também o processo, tantas vezes elíptico, elegíaco e machucado em Os primeiros soldados, de reinventar o corpo ainda ativo, ainda vidente como é visto no espelho paulino: Johnny Massaro filmado com suas úlceras pela câmera espelho se torna o objeto candente e a experiência impossível de alguém que advém novamente à vida ( ele morre um pouco antes do terço testamentário ‘em vídeo final) para dar voz, ritmo, textura a um cadáver “que ainda se agita”, como dizia Pascal da errata pensante, ressurreição só possível numa arte do present tense epifânico e do rewind memorialista; Renata Carvalho é este monstro de vitalidade mas também uma abertura taciturna de inervação mediúnica, onde o Feminino dolorido mas funcional de Clara Choveaux reencontra  as graças de uma potência deliberadamente impotente, à ausculta cúmplice maternal ou de irmã mais velha a velar pelas duas crianças grandes masculinas com suas pílulas milagrosas ( através da lógica da performance, morrer pode também ser visto como uma brincadeira seríssima  mas mesmo assim brincante, de qualquer modo uma alteridade convocada para enriquecer as possibilidades do corpo doente, disléxico e  patético: bastam apenas duas pílulas, e tudo vai cessar, talvez para recomeçar sob outra máscara, penso eu).

Os maneiristas inventaram, dos gestos esmaecidos e dos cinzelados empoeirados das esculturas da antiga Grécia, uma nova Grécia, que coincidiu com a morte da Idade Média: a bella ideia, que as manieri tão cariciosamente invocavam e erigiram em mármore, cores fúnebres e stacatti de árias barrocas era na verdade a terminal máscara para o  cadáver semi-embalsamado pela suntuosa múmia dos significantes maneiristas; foi a cerimônia fúnebre, foram seus codex cênicos, imagéticos e metafóricos o grande leitmotif da subtração preciosista da anamorfose maneirista, aquele que resgata a Cena originária da escultura e da arquibancada gregas para inoculá-la  com este insidioso veneno da maniera, à analogia do fantasista (em 1984) wishful thinking da vacina invocada por Renata Carvalho para Johnny Massaro, perto do final ; assim como a  vacina contém em seu cerne o corpo vitrificado, mortificado, mumificado do vírus para injetar a vida sob a máscara da Morte, a operação maneirista se serviu da arcaica Grécia de Praxíteles, Escopas e Lísipos para inaugurar a Renascença sob a inspiração do menino Jesus da Madona Sistina, velado pelos querubins mortuários que, segundo Daniel Arasse, tinham os rostos mortificados e os dedos emaciados de pungente melancolia porque sabiam que agora finalmente Deus ia morrer, uma vez que desde o monte Sinai Ele havia finalmente se encarnado num homem; toda esta elegíaca constatação fúnebre de que parte para não mais voltar eleva Os Primeiros Soldados à posição agonístca de ser um filme sobre os deuses que chegam para morrer; ao contrário das stars caducas de Femmes femmes (Vecchiali novamente), que dedicavam seu álbum de retratos e músicas demi-faisandés ao Camus de Jouez la comédie!, Rodrigo de Oliveira não precisa adular seus atores ou supra-encantar seu público com uma dedicatória empoeirada; mas é para as personas performáticas e fantasmáticas de Renata Cravalho, Johnny Massaro, Clara Choveaux, etc., como os processos, as ações e as inações que imprimem ao corpo de todo ator uma veleidade de posteridade, de in memoriam encarnado (como pensava o Daney de uma correspondência com Biette sobre Wim Wenders e o fantasma encarnado do ator que atravessa eras e envelhece com o cinema) que o filme é subliminarmente dedicado.

Contudo, eu não gosto do final de Os Primeiros Soldados, que me pareceu demasiado copia e cola do gênero “uma imagem exemplar, “redentorista”, para nos demonstrar que a vida, representada pelo casal jovem e erógeno dos dois meninos que se beijam, vence finalmente a morte, com a repetição/rima aqui da ejaculação fantasista da queima dos fogos, ontem com Suzano e hoje com seu sobrinho; para mim, o filme acaba idealmente muito antes, com o wishful thinking de Rose para Suzano de que daqui a dois anos ninguém nunca mais vai ouvir falar de Aids; é sobre a frágil haste desta esperança quase infantil que nos afastamos para ver melhor  e mais longe que o destino ideal para um filme é encarnar as potências oníricas dos pobres espectadores nestas imagens vertiginosas, feitas de sombra e de luz,que a projeção realiza; também nós, como os deuses,merecemos morrer para finalmente começar a sonhar.

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