Avá – Até que os Ventos Aterrem (Camila Mota, 2022)

Por Gabriel Papaléo

Vamos às imagens e sensações do fim do mundo, os símbolos místicos, religiosos e mágicos da tradução dessa terra devastada. À tentativa de diálogo para investigar aonde e como foram destruídas as ideias e as terras. Se não há vislumbre de ação nem organização política diante do fascismo, talvez o verbo agressivo da profecia seja o caminho para o revide. A questão que fica latente logo no ato I de Avá – Até que os Ventos Aterrem, no entanto, é que as intenções de destruição e apoteose são quase opostas ao trabalho de câmera e montagem, mais filmagem de peça e registro pouco pensado de performance que propriamente o desencadeamento de imagens fílmicas que almeja. Partir de dois níveis no plano do palco, o alto da deusa e o baixo do humano, para não diferencia-los em imagem e nem localizá-los no espaço, acaba uma boa ideia implodida sem muitas delongas nos 62 minutos do longa.

A encenação não é adaptada para uma lógica cinematográfica, e continua presa à uma ideia de espetáculos teatral – sem o hibridismo de formas da qual a Mostra encoraja nas justificativas curatoriais; o que sobressai é uma cobertura audiovisual do texto e das atuações, com a câmera nunca soando ativa nas decisões narrativas do filme. Existe esse esforço de articulação principalmente no como as realizadoras lançam mão das imagens encontradas e das texturas experimentais que adentram uma pictorialidade na destruição em tela, mas nunca parece tensionar nas disruptivas, e sim nos termos reiterativos. A cada palavra, uma imagem equivalente; não de antítese, não de complemento, mas de equivalência.

Não por acaso, os créditos finais apresentam “Dramaturgia”, no lugar de argumento ou roteiro, porque a vontade de Avá – Até que os Ventos Aterrem parece sempre honrar uma tradição dos palcos, tradição do incômodo proposto pelo histórico do Teatro Oficina. Nesses créditos, homenageiam os atores e diretores que passaram pelo teatro, além de homenagear também os povos indígenas nas suas lutas por dignidade e por suas terras, um ativismo político que, apesar de comentado em tela, nunca ultrapassa a barreira do comentário de rede social sobre os assuntos desesperadores que aparecem nas nossas telas. No campo das profecias, sobram explicações e reflexões, faltam místicos e chamados à ação.

A opção pela crônica do fim do mundo, reduzida a um soldado num ambiente sitiado e destruído que encontra a transcendência ao buscar o contato com a carne – uma trama que já soa uma alegoria cansada e reducionista de cara – encontra pouca inovação numa encenação que não ilustra espacialmente o desafio da distância física entre soldado-entidade, pessoa-deusa, humana-natureza. As atrizes se valem do texto como dá, mas a dimensão política soa como manifesto aos ventos, pouco articulada além da impressão básica do desgoverno, do descontrole pandêmico, e do ataque às minorias a qual o Brasil passa atualmente. Sobram os trocadilhos com vacina e com guerra, falta o corpo presente que o trabalho teatral tanto almeja.

Não ajuda a opção pela lógica estruturada na fala como fluxo de consciência, vomitada pelas entranhas desesperadas, bem ao monólogo de Lucky em Esperando Godot – para trazer o contato que a peça/filme explicitamente busca, como reforçam os créditos citando Beckett; no personagem do dramaturgo irlandês, o desespero é traduzido em sua maior (e quase única) fala, cuja ambição é a pulsão e o caos na falta de coerência daquelas palavras proferidas por um escravo que sonhou com a fuga; aqui, as falas buscam esse desespero em meio a reflexões políticas muito rasas e um mapeamento de possibilidades do que constitui esse mundo imaginado, quase uma consciência una que se comunica por diversas vozes.

Fica sempre a sensação de que falta ao filme a dimensão desse espaço do futuro obliterado que versa sobre, as limitações do palco que funcionam tão bem no teatro, e que aqui soam como rascunhos distantes. É tocante que se pense numa utopia, na melhor sequência do filme perto do final, e na fúria e graça regeneradoras duma natureza agora sem prestar contas a ninguém – mas é também o refúgio mais direto e insuficiente que os supostos retornos ao primitivismo, a empostada ideia simbolista de primeira mão, desenham sem ao menos desconfiar de sua disposição acidentalmente apolítica.

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