Copacabana Mon Amour (Rogério Sganzerla, 1970)

Para início de conversa, uma cena retumbante: Copacabana como microuniverso do mundo-Brasil, todas as cores e contradições banhadas a um sol de deixar qualquer um lelé. De cima do morro ouvimos o narrador cantar a pedra da incrível genealogia que fez surgir Sônia Silk (Helena Ignez). Ela, seu vestido vermelho e sua oxigenada cabeleira contemplam com aflição o reino que lhe cabe como latifúndio.

Assistir aos filmes de Sganzerla hoje e escrever sobre parece bastante oportuno. Em meio a esse novo momento, em que o Brasil se vê em condições de traçar o próprio caminho político e uma boa discussão sobre os retrógrados rumos que o novo ministério da cultura vem tomando ocupam as páginas dos principais jornais e redes sociais, o pós-tropicalismo de Sem Essa, Aranha e Copacabana Mon Amour recriam verdades brasileiras anteriores, aspectos ancestrais captados pela antena sensitiva de Sganzerla.

Num tempo em que estivemos desautorizados a definir a palavra futuro, tudo o que restava para ser pensado aguardava alguém que o soubesse conceituar, justamente como agora. Nosso bandido predileto tomou pra si a responsabilidade, como o ouvimos dizer no documentário A Miss e o Dinossauro: “Falei o que eu acho porque tô interessado em transformar, porque o cinema é um fator transformador. Agora, se ninguém se tocar, a responsabilidade é minha, mas a culpa é dos outros”.

Seriam necessárias várias análises de fôlego que pensassem os aspectos políticos e estéticos (esses dois âmbitos indissociáveis e horizontais) ainda que o diretor afirme seguir por uma lógica do sexto sentido, sem conceitos apriorísticos ou lógica pré-concebida. Ainda assim é possível dizer que Sganzerla produziu a recombinação entre uma antropofagia revisitada unida a toda carga de cultura pop que permeia o mundo-Brasil. Pop de popular, um pouco diferente do pop de Warhol. Pop de macumba, de cerveja no bico da garrafa e pedintes que falam um inglês fuleiro.

Alheios à pajelança criada, os personagens desfilam suas incoerências, exemplificando em unidades celulares a relação do país com sua realidade em conflito, e Rogério Sganzerla constrói imagens com mais força que as 500 páginas de um tratado de sociologia brasileira, triunfando ao significar culturalmente o Brasil a partir dele mesmo. Aos críticos cabe  assinalar que ele foi ajudado pela plasticidade das imagens, em projeto que poucos acadêmicos conseguiram igualar, talvez pela dureza dos academicismos.

Um movimento instigante e ao mesmo tempo feio/belo de ser visto. Os personagens, a paisagem, as cores captadas, guardam em si signos de potência e degradação do qual a narrativa retira sua força. Copacabana morro e praia como espelho da dicotomia sufoco e colosso. Corpos abandonados à deriva num presente contínuo, sem perspectivas de futuro.

Assim é que conhecemos Sônia Silk, mulher que perambula absorta numa espécie de solipsismo vertiginoso ou embriaguez de todo sempre, impedida de enxergar o que lhe espera pela frente, mas consciente da força de sua beleza e dos inevitáveis jogos de azar a que isso a transporta. Sonia maldiz a pobreza, a velhice, os tarados, enquanto é perseguida a todo canto por um fantasma com o qual já aprendeu a conviver. Vidimar (Otoniel Serra), o irmão de Sonia, também berra seus desejos e delírios a beira mar, admitindo a paixão-tabu por seu patrão.

Entre delírios de sol escaldante e pontos de macumba, todas as forças e orixás convocados para se contar essa história apenas reforçam a crueza da realidade subdesenvolvida nas capitais brasileiras em época de desenvolvimentismo, palavra escabrosa que hoje reaparece no cenário político, mais uma vez envolvendo as mãos em nossos pescoços, suplicando furiosa para que calemos nossa potência monstruosa, essa tal antropofagia, coisa que aprendemos a desenvolver desde o primeiro choro, quiçá ainda na barriga de mamãe.

E tudo que se conta e se mostra em Copacabana Mon Amour é fruto desse inconformismo, de se saber fera e de se pôr oxigenada, e mesmo assim ter as forças contidas por inimigos vorazes (fome, miséria, analfabetismo, calor) que nos puxam as rédeas sempre que ousamos mostrar os dentes e dizer que viemos ao mundo pra triunfar a despeito de todas as mazelas.

E Sganzerla se põe como o cronista desse assassinato a luz do sol, assassinato em massa da potência cultural brasileira. Ele nos põe cúmplices apenas para que passemos o resto dos dias com o peso de saber que nossa força emana de algo muito particular que nem nós mesmos compreendemos, mas que ajudamos a matar um pouquinho cada dia. Cada um de nós um pouco Soninha Silk, feras incompreendidas.

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