Festival ECRÃ: Cinemas fantasmas

Cinemas fantasmas

Por Chico Fireman (@filmesdochico)

Seis filmes exibidos no primeiro dia do Festival Ecrã são, pelos caminhos mais diversos, sobre fantasmas. Curtas, médias e longas-metragens que procuram preencher ausências e lidar com os vestígios de alguém ou alguma coisa que sobrevive como espectro.

Aquele que lida mais diretamente com o tema talvez seja “Gargaú”, de Bruno Ribeiro, em que o diretor coloca os amigos num carro e vai para a cidade onde foi criado no interior do Rio. Embora sua avó, Dona Graça, pareça ser a protagonista do filme, a personagem que amarra toda a trama nunca está em cena: a mãe de Bruno, que ele havia acabado de perder. Essa viagem de volta, que ele constrói a partir de uma mistura de documentário de memórias, comédia nonsense e filme de bastidores em que muito é encenado, também se transforma numa forma de se reconectar com sua origem. No média “Aposentadoria ou A Última Casa do Meu Pai”, Julie Pfleiderer inverte o jogo. Ela convida o pai, um arquiteto que terminou colocando a profissão a frente da família, para construir uma última vez. Enquanto os dois fazem uma maquete cheia de detalhes, ela questiona porque a presença dele em sua vida foi tão distante. Acertos de contas diferentes com o imaterial.

O “fantasma” de “Licantropia”, de Janaína Wagner, é um conceito. Alternando diversas técnicas e suportes visuais e sonoros, variando do mais narrativo para o impalpável, ela investiga como o lobisomem, a criatura mitológica que nos assombra serviu para tornar mais assimiláveis os crimes mais grotescos — dos homens. A própria diretora lembra que a concepção fantasiosa que virou doença diagnosticada se desenvolve numa lógica misógina: enquanto mulheres foram queimadas como bruxas, os criminosos do sexo masculino eram tratados como pacientes. Se o curta de Wagner tenta decifrar o fantasma, “Quem de Direito”, de Ana Galizia, quer afastá-lo. Com depoimentos, imagens de arquivo, gráficos que ganham a intervenção de seus personagens, ela remonta a luta de uma população que tenta impedir que uma barragem não transforme sua comunidade numa terra devastada.

Já em “8 de Março de 2020: Uma Memória”, o fantasma está no que (não) vemos. Fırat Yücel se volta para o cenário de uma manifestação que reuniu milhares de pessoas através dos olhos de câmeras de segurança. Um espaço que ficou completamente vazio durante a pandemia, mas que, mesmo fantasmagórico, não deixou de ser registrado, provocando um estranhamento incomum. Quando nossos olhos, treinados para enxergar, vêem nada, para onde olhar? É uma dinâmica completamente oposta da vista em “Espaço Liminar”, que Gabriel Papaléo dirigiu inspirado pelo cinema de ação de Albert Pyun, mas com táticas que criam uma experiência atmosférica que acrescenta diferentes camadas a essa homenagem.

Nesse longa-quimera em que atravessa o thriller sensorial, a ficção-científica B e o romance clássico, o fantasma é uma mulher que desaparece entre dimensões por causa de um fenômeno científico. Papaléo costura esses caminhos tão diversos através de uma combinação de escolhas – cores estouradas, jogo de luzes, trilha atmosférica, realidade virtual – que estabelecem um universo paralelo, um cinema-fantasma que foge à lógica da verossimilhança, mas que não cai no conto do absurdo pelo absurdo por conta da textura afetuosa que faz com que o projeto pulse de uma maneira muito particular.

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No Cemitério do Cinema (Thierno Souleymane Diallo, 2022)

Visto no Olhar de Cinema 2023

Por Geo Abreu

Cinemas decoloniais seguem morrendo

Foram dois filmes ou mais? Num festival de cinemas contemporâneos, alguns filmes feitos em países subalternos trazem figuras de morte ao falar de suas cinematografias e assim se somam. Carros fúnebres e fantasmas são usados como condutores das histórias escolhidas pela curadoria do Olhar de Cinema. Na simbologia do tarô, a carta da morte na verdade significa renascimento, algo novo que se aproxima. E no primeiro longa-metragem de Thierne Souleymane Diallo todo o discurso parece se organizar para enganar o sentido comum da morte.

Enquanto o diretor sai em busca de um filme-fantasma rodado em 1953 na Guiné e hoje desaparecido, a cada etapa importante vai até a mãe para pedir sua benção, seguindo a jornada sempre descalço. Quando confrontado a esse respeito, responde que aquilo é uma forma de protesto pelo fato de que sua pesquisa não seja propriamente apoiada financeiramente, e que, portanto, não lhe sobra dinheiro para comprar sapatos. Mas estar sem sapatos andando pelo mundo é também bastante simbólico, e entre tantas possibilidades pode tanto representar humildade, a lembrança dos africanos escravizados que não podiam usar calçados ou também o contato via aterramento com seus antepassados.

Pra mim significa a coragem de fazer do mundo a sua casa, o seu terreiro. Enfrentar o mundo descalço passa também a mensagem de que nada o impedirá de continuar caminhando. E homens mortos não caminham, tampouco carregam seu cinema por aí.

Souleymane está vivo, enquanto os arquivos que encontra pelo caminho não estão. Na antropologia contemporânea é comum a ideia do arquivo como uma prática colonialista. Na Guiné, com a força de sua tradição oral, arquivos físicos tem tanta importância quantos os sapatos de Diallo. “Tudo está arquivado na Cinemateca Francesa” diz um antigo cineasta e professor.

Antes de chegar à França, o diretor passa por diversas turmas de iniciação ao cinema, usando câmeras de papel e a oralidade como artifícios cinematográficos: Seus alunos devem voltar para sala de aula, depois de gravarem seus filmes na memória, e contar o que acontece neles para toda a turma. Lembra um pouco da magia de Rebobine, por favor! de Michel Gondry, que mostra uma comunidade reunida para refazer um filme perdido.

Passando por turmas de adultos e crianças o diretor, enquanto professor, incentiva o uso de materiais e histórias que estão disponíveis no repertório de seus alunos, e nada mais próximo do método Paulo Freire do que a significação do cotidiano para incentivar a aprendizagem. Aliás, para quem já foi oficineira de audiovisual, esse filme é como um abraço. Assim, na esteira de toda a falta de estrutura e recursos que se apresenta sobre o cinema da Guiné nesse filme, posturas como a de Souleymane Diallo subvertem a ideia de falta (ou de morte) e apontam caminhos para a propagação da prática e do amor pelo fazer cinema.

No final das contas, a jornada empreendida atrás do filme citado por estudiosos do cinema africano como um dos primeiros a serem filmados após os processos de descolonização das colônias europeias na África serve apenas como pano de fundo para a caminhada do diretor. Na verdade, ninguém se importa com a materialidade do filme desaparecido: a partir de um texto e do reconto da lenda que dizem fazer parte dele, Souleymane refaz o filme, usando todas as técnicas de que dispõe – da oralidade a improvisação de materiais – para deixar gravada uma mensagem: a de que o cinema da Guiné está vivo.

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Anhell69 (Theo Montoya)

Visto no Olhar de Cinema, 2023

Por Geo Abreu

“Me encantei pelo cinema porque era o único lugar em que eu podia chorar”

Theo Montoya é o narrador de seu filme, que começa e termina em seu quarto na cidade de Medellín, Colômbia. O amor que vai descobrindo pelo cinema o leva a registrar os momentos que divide com os amigos, muitos deles criativos: se transvestem, se maquiam ou simplesmente curtem roupas e acessórios.

Montoya então pensa num filme: num universo em que humanos e fantasmas se comunicam, ele e seus amigos produzirão festas e encontros espectrofílicos, a partir de um app de paquera específico. Logo que um humano transa pela primeira vez com um fantasma, a prática se transforma em febre entre os jovens, que passam a ser perseguidos e presos por isso.

Durante o casting proposto para este filme somos apresentados aos personagens: todos homens, jovens e gays. Entrevistados, conhecemos um pouco de suas histórias e desejos. Temas perturbadores surgem destas conversas: suicídio, vício, abandono e a prática de pequenos delitos ajudam a compor um retrato daquela juventude.

O diretor finalmente acha seu protagonista: Cami, figura que usa o nome de anhell69 nas redes sociais. Dias depois da entrevista, Cami está morto e uma espécie de maldição se abate sobre o filme espectrofílico: vários dos participantes do casting desaparecerem. Daí em diante a ideia do filme se transforma e Montoya passa a investigar o desparecimento violento de tantos rapazes da sua idade em Medellín.

A ideia dos fantasmas se mantém. As imagens aéreas da cidade à noite ajudam a criar o efeito de distopia, com figuras de olhos vermelhos e vestidas de preto que guardam a cidade de cima, como esperando o sinal de suas próximas vítimas. O diretor passa a percorrer a cidade num carro fúnebre dirigido por um de seus ídolos, o diretor Victor Galvíria. O cinema colombiano então é um rabecão. Dentro dele, num caixão, está o futuro. No guidon, seu passado.

Tão profundo quanto plasticamente belo, Anhell69 transforma garotos em anjos perdidos numa cidade amaldiçoada, com fantasmas sempre à espreita. Uma juventude que é pintada meio morta em vida, partilhando sonhos simples e impossíveis. Ao mesmo tempo, sinaliza o terror cotidiano de tantas cidades latino-americanas entregues a falsas guerras anti-drogas, cujas engrenagens parecem servir a um genocídio em massa.

Transformar a dor em algo tão bonito quanto esse filme deve ser também uma maldição terrível.

Um abraço, Montoya.

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Notas do Eremoceno (Viera Čákanyová)

Visto no Olhar de Cinema 2023

Por Geo Abreu

Um álbum de imagens perdido no sotão

Dizer que este filme é mais um a trabalhar com a ressignificação de imagens de arquivos públicos e privados e também com a ideia de ficção distópica é fazer uma leitura rasa dele. Acredito que essa profusão de filmes que pensam o mundo pós humanidade ajudam também a refinar o argumento, e é assim que Notas do Eremoceno se apresenta.

Viera Čákanyová cria um universo em que o humano e o analógico estão desaparecendo, enquanto a imortalidade via memórias digitais se configura como num jogo de multientradas. Nesse processo, a protagonista, um ser bastante curioso, percorre seus arquivos pessoais em busca de rastros da língua eslava e sobre a civilização botomori, aquela que deu lugar a humanidade. 

Considerando um tanto piegas que Eremoceno seja traduzido como a civilização da solidão, podemos passar por cima disso enquanto observamos a forma como algumas imagens de paisagens e animais são ampliadas e reconfiguradas dimensionalmente, explorando uma realidade desconhecida e suas possibilidades de preenchimento de um espaço tridimensional na realidade bidimensionalizada dos dados, nos pondo no lugar daquela protagonista que já não possui conhecimento sobre a existência de um corpo, do mar ou de um sapo. Tudo são apenas imagens que podem ser tratadas plasticamente e a partir de vários artifícios sem com isso conseguir materializar a experiência de um banho de mar ou do naufrágio de um barco. 

A ideia da comunicação via bastões de cristal nos lembra os universos comunicacionais de Ursulla K Le Guin e a ampliação do estatuto de humanidade a outros seres mais que humanos. Essa humanidade ampliada pela ideia da imortalidade virtual ao mesmo tempo em que o humano perde a soberania sobre o mundo é uma das possibilidade aventadas por esse pequeno filme, que joga com apenas alguns fatores possíveis de um futuro cada vez mais automatizado e nossa terceirização das memórias. No fim podemos pedir que a assistente virtual toque nossa música predileta enquanto nos perdemos mais uma vez no universo de dados que chamaremos um dia de eu.

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Revisitando “Caixa Preta” (Bernardo Oliveira e Saskia, 2022)

Visto no Olhar de Cinema 2023

Por Georgiane Abreu

“Aprendi a entrar pelos fundos quando se convencem de que eu não volto mais”

Alguns minutos de tela preta, música ao fundo. Um descanso ativo para mentes cansadas de desentendimento, de sequestros de protagonismos e falsos apaziguamentos. As vozes de Bernardo Oliveira e Negro Léo se alternando em embalar imagens em diferentes qualidades, sem vontade alguma em ser didáticos, seja com relação a raça, religião ou montagem. 

Saskia por sua vez entrega uma narrativa onde o som é a linha que devemos seguir para aproveitar a experiência de estarmos “como cachorros dentro d’água no escuro do cinema”: perdidos, incomodados e sem farol. O melhor é se deixar flutuar;  fechar os olhos e ouvir as histórias como nos tempos em que não se escrevia nem se filmava.

Caixa Preta opera com os arquivos de forma muito semelhante ao que produz Arthur Jaffa em seus filmes e videoclipes, forma que se tornou também elemento constante em alguns episódios de Atlanta: usar a torrente de imagens com a qual estamos aprendendo a lidar e conviver numa sobreposição maníaca, que flui e devolve violência,  opacidade e desentendimento. 

Difícil de classificar pelo excesso de sentidos possíveis, dos gatilhos disparados e dos traumas (você escolhe fugir ou encarar?). No final, é melhor mesmo nem entender o que canta aquela pastora. Aceite o transe e deixe o corpo responder.

Link para o texto original sobre “Caixa Preta” por Georgeane Abreu.

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Desvío de Noche. (Paul Chotel e Ariane Falardeau St-Amour)

Visto no Festival Olhar de Cinema 2023

Por Georgiane Abreu

O encontro dos diretores com a vila mexicana de Zipolite promove a abertura de uma espécie de portal para a cosmologia daquele povo e suas histórias, muitas vezes particulares e noutras vezes a repetição de contos sobre o amor, a saudade e o surgimento do universo. 

Entre o nascimento e o desaparecimento de pessoas e estrelas cadentes, Zipolite e seus moradores – entre eles a patinadora Violeta Martinez –  surgem a partir de suas histórias como ponto de partida para as investigações dos diretores sobre luz e escuridão, superexposição e camuflagem, assim como o eclipse que dizem ser o mito fundador daquela vila, formada a partir do ajuntamento de pessoas que foram até ali para apreciar o fenômeno natural, a caracterizado pela gradativa escuridão.

Inicialmente utilizando procedimentos documentais, o filme parece partir de uma etnografia que, por falta de subsídios baseados na escala do real, segue naturalmente o detour da ficção, avolumando-se nesse sentido, criando camadas e mais camadas de histórias, que vão a cada vez retornando ao ponto inicial, como a serpente do tempo cíclico. Experimentando imagens de caráter pictórico,  aproximando o céu do eclipse e das estrelas com o chão da vila e suas pedras iluminadas pela luz da lua, o segundo momento do filme, que desvia para a noite, como sugere o título, é o que guarda suas melhores performances .

Momentos em que o descontrole é a medida e a ficção toma conta de tudo ao ponto de estarmos diante de uma narrativa sobre o surgimento do universo e suas primeiras personagens, ainda perdidas num tempo sem antes e nem depois. Assim como a personagem de Tilda Swinton em Memória, de Apichatpong Weerasethakul, parece ser uma caçadora de histórias cuja sensibilidade a faz mergulhar de cabeça no universo das personagens que encontra até o ponto de borrar os limites da temporalidade, os diretores de Desvío de Noche se deixam levar pelas possibilidades que encontram nas histórias que lhes são contadas, extraindo delas as rupturas, jogando assim com a matéria tempo como só o cinema é capaz.

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Entre o artifício e a performance: por um cinema de ação formalista (John Wick 4: Baba Yaga, Chad Stahelski, 2023)

Por Gabriel Moraes

O quarto filme da franquia John Wick é o projeto mais minimalista e formalista – quiçá até um tanto experimental – da franquia até então. Nenhum outro tinha secundarizado pretensões de drama e conflito tão radicalmente em relação à imensa sofisticação dos set pieces, das grandes cenas de ação quanto este – embora o terceiro fosse já uma guinada significativa no caminho dessa concepção estética. O protagonista fala pouco e todos os personagens à sua volta não fazem muito mais do que o necessário para avançar a narrativa de modo funcional e o esperado para manter em ordem a organização básica dos elementos de mitologia que foram construídos pelos filmes anteriores.

A impressão é de que o filme é um grande laboratório do cinema de ação, uma empreitada pensada para colocar à prova um acervo de especulações a respeito de como uma cena de ação-espetáculo pode ser coreografada, iluminada e decupada. Se o primeiro filme, por exemplo, tinha fortes interesses sobre questões de trama, sobre construção de mitologia e sobre as implicações políticas daquele universo de fabulação, aqui poderíamos dizer que, embora essa mitologia e essa política ainda estejam sem dúvida em jogo, elas são mais ou menos recicladas, não trazem novas ideias. As conclusões que se poderiam tirar sobre ambas neste filme poderiam perfeitamente se fazer a partir dos filmes anteriores.

O que há de particularmente instigante aqui, justamente por isso, talvez esteja na contramão dos instrumentos interpretativos de que se valem aqueles que hoje parecem fazer o coro e a interface da conversa sobre cinema que ocupa majoritariamente as redes. Dizer que John Wick 4: Baba Yaga (2023) é um filme superficial nos termos que se convencionou usar essa palavra no contexto de leitura dos filmes não é nenhum absurdo. A questão mesmo seria lidar com a noção de que ele não é menos brilhante por conta disso. Afinal, se os critérios de “superficialidade” e “densidade” são tão decisivos para um modelo de interpretação que se dá sempre exclusivamente pelo texto e pelas temáticas, o que significa supor a potência de uma obra pela chave do seu suposto negativo? Em primeiro lugar, neste caso, seria dizer que o problema é da ordem da forma, do estilo, da poética.

O filme tem uma lógica narrativa que habita algum lugar entre os jogos de videogame e uma atualização hipermoderna de um cinema de atrações. O protagonista está constantemente passando de fases e derrotando chefões, motivo pelo qual os materiais narrativos que fazem as ações se encadearem são tão mais abreviados do que as ações em si. É algo também evidenciado pelo fato de que o protagonista aparentemente não carrega seus ferimentos de uma sequência à outra, diferente dos filmes anteriores – como no primeiro, em que ele precisava de um refúgio para se recuperar do custo físico das batalhas. Aqui ele é uma máquina de combate imparável e, em cada set piece, está inteiramente renovado em relação ao anterior, ainda que tudo ocorra, supostamente, em um curto período de tempo.

Outro elemento que John Wick 4 incorpora dos jogos e se apropria para pensá-lo como um método para se fazer e encenar cinema é a maneira com que situa a ação dos personagens em relação aos espaços diegéticos. Algumas cenas são exemplos chave disso, como a da boate e a que ocorre nas ruas de Paris em pleno movimento, próximo ao Arco do Triunfo. Em ambos os casos, os ambientes estão em um plano de realidade distinto do da ação. Ao mesmo tempo que produzem interações reais com os personagens – o protagonista esbarra com as pessoas na boate, é atropelado por carros na rua – os ambientes são configurados para existir e funcionar de forma completamente impassível diante das ações que se desenrolam neles. São paisagens com elementos pontuais de interação: a violência na boate, com lutas e tiroteios, não gera quase nenhum alarde instantâneo nas pessoas ao redor, que continuam a dançar de maneira tão sincronizada que parecem mesmo personagens não jogáveis de um videogame – em contraste com o primeiro filme, cujas cenas de combate na boate geravam espanto imediato no espaço. Igualmente, os carros continuam passando na rua como se nada de extraordinário estivesse ocorrendo, ao invés de ter uma paralisação do trânsito, o que seria o resultado mais óbvio.

Quando as pessoas de fato saem da boate em bando – e John Wick tenta se misturar na multidão –, é uma resposta diegética tão atrasada e distante do calor da ação anterior, que é até desconexo, quase cômico, e percebe-se, por esses gestos, que o filme há muito já jogou quaisquer concepções de “realismo” ou “verossimilhança” pela janela. As pessoas saem naquele momento porque é o que é conveniente ao filme, porque a narrativa precisa prosseguir e porque não há muita parcimônia ou meias intenções na instrumentalização consistente dos pequenos artifícios com os quais se amarra uma trama. Se em outros filmes algo dessa ordem poderia ser um problema, um sinal de desleixo ou falta de cuidado com a construção da narrativa, aqui tudo faz parte de uma unidade estilística de ambições estéticas bem apuradas.

Como, por exemplo, racionalizar, através dos aparatos de interpretação que operam tão fixamente sobre a coerência do texto, a cena em que John Wick cai da janela de um prédio em cima de um carro – ao ponto de aparentemente destruir o carro –, levanta e continua andando sem grandes dificuldades? Ou, ainda, a cena em que ele rola por centenas de degraus de uma escadaria e se levanta para subi-los todos de novo deixando mais alguns corpos pelo caminho? Qualquer coluna teria sido arrebentada bem antes do fim da queda. À certa altura, é preciso assumir que o filme não só é inteiramente consciente do tipo de leitura que está suscitando, mas que está ativamente jogando – diria até zombando com elegância – com as expectativas que se produzem a partir dela. Que o impacto do corpo sobre o carro seja tão plasticamente tátil ou que a cena se delongue tanto no protagonista rolando lance após lance de escada por longos segundos mostra um pouco do sistema de prioridades no qual o filme se apoia: por mais que o contexto narrativo ao redor da ação tenha pouco “realismo”, coerência ou verossimilhança, a ação é sempre muito sentida, sempre acontece para existir nos limites do seu impacto possível.

Basta pensar em uma cena filmada em plano zenital – com a câmera paralela ao chão, olhando diretamente para baixo –, na qual o protagonista elimina diversos oponentes com uma arma de efeito explosivo e que é axiomática dos pontos de partida e dos protocolos do filme. Se, por um lado, poderíamos dizer que é uma cena concebida a partir de uma estética específica dos jogos – e que, por esse motivo, manifesta tão limpidamente a ferocidade com que o protagonista enfrenta obstáculos e vai do ponto A ao ponto B –, por outro é também a enunciação do jogo performático: a ação, vista por cima, através de falsas paredes, de um teto falso, com os dispositivos ilusionistas à mostra sem pudor, não poderia ter mais cara de estúdio, de artificialidade. Quando o filme corta entre esse plano e a decupagem mais convencional ou “realista” no interior da mesma sequência e forma unidade a partir disso, os dois – a imersão e o artifício – passam a ser complementares e não opostos. Colocar o maquinário ilusionista a céu aberto não subtrai a experiência ou barra as potenciais relações de engajamento com a ação, mas sugere especialmente o contrário: que o prazer com os set pieces, com essa ação cheia de fisicalidade e valor de produção típica do cinema de ação é, acima de tudo, estético.

O vilão Killa, interpretado por Scott Adkins, é bastante representativo desse lugar de tensão que o filme tenta ocupar entre o que se presume que ele deveria ser e o que ele é. O arquétipo que o personagem de Adkins é, a princípio, desenhado para corresponder, é o do vilão frágil que se faz poderoso pelos seus recursos. A cena que o introduz não sugere tanto uma ameaça física significativa quanto uma personalidade sagaz. Por isso, o que se segue, quando os personagens sentados na mesa de pôquer se rebelam, é que o vilão tenta fugir a todo custo justamente porque seus recursos – no caso, os capangas – estão em crise. Quando ele não só enfrenta John Wick como o derrota em um primeiro momento, é chocante pelo mesmo motivo que não se esperaria ver o Pinguim trocando socos com o Batman.

Em seguida, uma outra camada de surpresa surge através do seu estilo de luta, que não corresponde ao arquétipo com o qual ele estaria se associando a partir do início da luta contra o protagonista – o do vilão que usa o perfil de fisionomia como o seu para estabelecer poder, dominância e hierarquia. Uma comparação óbvia é uma figura como o Rei do Crime, vilão dos quadrinhos do herói Demolidor, cujo porte físico se assemelha ao de Killa. Não é difícil perceber como o estilo de luta de Killa difere daquele de um Rei do Crime, notoriamente mais bruto do que técnico, que investe menos na desenvoltura dos golpes do que na potência e na precisão. Killa, por outro lado, usa chutes elegantes com rotações em 360 graus e luta de maneira técnica – não é por acaso que o personagem é interpretado por Adkins, um mestre das artes marciais.

Tudo isso sinaliza o quanto o filme é atento à natureza das expectativas que se dão em torno das referências estéticas e dos códigos de gênero com os quais trabalha. Assim, se o filme faz diversas sequências de ação das mais variadas formas, cada uma com sua identidade estética – uma quase toda em plano zenital, outra quase toda em plongées e contra-plongées, na cena da escadaria, e por aí vai –, é porque opera de maneira ao mesmo tempo laboratorial e muito performática, avaliando e investindo nesse campo das possibilidades estéticas de representação e encenação do cinema de ação, do espetáculo.

O que faz de John Wick 4: Baba Yaga um grande filme não é da ordem do discurso, da interpretação, da mensagem. De fato, não é uma obra de ideias grandiosas sobre o mundo, sobre a vida, sobre a arte ou sobre os tópicos políticos que fervem o zeitgeist. Ora, para que serve? Para nada. É um filme que não se resume ao debate depois da sessão, mas que pulsa vigorosamente no corpo a corpo com as imagens e com os sons, que convida à atenção na receptividade da experiência estética. E se, como bem sabemos, apesar disso é uma obra bem passível de cair nas valas das leituras de superficialidade, falta de trama e ausência de problemas políticos, é porque os seus problemas são, afinal, uma questão de estética – e, por isso mesmo, incondicionalmente políticos.

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CINEMA ANIMAL

por Natália Reis

Pensar nas relações que podem ser traçadas entre o cinema e os animais é o tipo de empreitada que por si só parece compreender a essência cinematográfica nas suas acepções mais profundas. Historicamente, animais e animalidades despontam como vetores de atração dos desejos mais primitivos de registro da imagem em movimento, desde o javali de oito patas de Altamira e as cabeças de cavalo pareadas de Chauvet, passando pela “captura” do olho/câmera, que assume primordialmente a forma do pássaro dentro da gaiola do taumatrópio, do cavalo sequenciado de Muybridge até experimentadores radicais como Chris Marker e seus gatos, Brakhage e suas mariposas. Por meio das matrizes ontológicas do cinema buscamos no reino animal – ao passo em que nos excluímos do mesmo, pois são “nós” e “eles” – um ponto de contato com a natureza própria de uma linguagem que escapa à linguagem: é movimento, é voracidade, é habitar os mesmos mundos com outras criaturas e percebê-las nas suas complexidades e alteridades. 

Nessa mesma linha, uma infinidade de desdobramentos – narrativos, estéticos, formais – vão se firmar como possibilidade de concretização do que evocamos aqui como um cinema de bichos errantes, domesticados, ferais ou selvagens que ocupam o centro do quadro com olhos de cores intensas, pelagem densa, escamas e barbatanas, asas, bicos e garras. Seja tratando da problemática da relação humano-animal ou das dinâmicas de poder aí incluídas (A regra do jogo), da exploração dos aspectos mitológicos (Nope) ou cosmológicos (Cinzas e Neve), das metamorfoses ou animalidades (O fantasma) – que Bataille vai descrever como um gesto libertador da humanidade essencialmente burocrática – ou ainda, das relações com o arquivo e a imagem (Experiments in the revival of organisms, Eyes under water), da antropomorfização, da animização e da experimentação total, estamos falando de obras que se abrem num leque de temáticas abundantes e variáveis dentro de uma cinematografia animal. 

Partindo dessas ideias iniciais, a proposta dessa edição da Multiplot! é explorar os meios pelos quais o aparato cinematográfico se vale para produzir aproximações (ou distanciamentos) entre seres vivos de espécies distintas. E ainda, pensar a representação animal e os fatores que a atravessam num sentido crítico e filosófico, olhando com atenção para as mediações entre homem e natureza, no cinema e suas reverberações. 

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É possível falar em cinema xamãnico?

Por Felipe Leal

Para um filme que esgota nos limites da mise-en-scène a relação de estranha cópula ancestral entre humanos e animais, há, contraditoriamente, pouquíssima “naturalidade” em Cinzas e Neve (Ashes and Snow, 2005). Os animais, sejam eles falcões, hienas ou elefantes, não entram sob as lentes como partes de uma busca por aquele “instante selvagem” onde a câmera nulificasse sua presença, ou ainda por um momento raro de interatividade inóspita com sujeitos. O diretor captou, ao redor de todos os continentes, gravações demasiado próximas, demasiado inéditas – geográfica e literalmente falando – de pequenas tribos, comunidades, templos, migrantes e grupos cuja anexação ao fator animal não teria participado do desvio epistemológico-civilizatório de que nos utilizamos para criar uma superioridade em relação ao “bicho” (isto que não é, em absoluto, o “animal”, mas que o torna coisa “animalizada”, figuração da ameaça extrema).

Mas, para um filme comumente categorizado  como documental, suas imagens tampouco querem o pensar “do entendimento”, a costura firme de uma discursividade ou a inferência de qualquer “problema” (ponto de partida sociológico). Como quando diante de uma poesia – palavra essa que Gregory Colbert, o diretor, não economiza para descrever a própria obra desde que começou a captar suas imagens em 1992 –, a encenação alterna os sentidos (razões) de seu funcionamento “cósmico” para acompanhar a montagem de um novo SENTIDO (sensação) dentro da observação desta entidade que nos torna “entendidos”: a natureza. O que, para a obra, significa a partilha de duas sobrevivências, duas poéticas análogas entre a individuação e a animalidade. 

Sua primeira sequência nos dá o tom dessa divisão de naturalidades com um gotejar de sílabas musicais: enquanto elefantes compõem, em slow motion, uma marcha grandiosa, emergindo de uma correnteza no meio da qual repousa certa criança monge, o narrador sussurra: “Se você vier até mim neste momento, seus minutos se tornarão horas, suas horas se tornarão dias, e seus dias se tornarão o tempo de uma vida”. O que sucede é a montagem-transe de gestos tão semelhantes: adaptações, fórmulas corporais e trejeitos tão denunciadores desse gérmen comum… posturas tão “banais” e automáticas quanto frutos de um eco físico que só pode pertencer, enfim, a qualquer tipo de célula mnemônica previamente dividida – algo que o termo “natureza animal” já não postula um retorno ao passado mítico da reunião (como se o “documentário” escondesse uma “onto-mania”) nem pleiteia um futuro utopicamente animalizado. Como revela um tanto mais tarde o narrador, cada fagulha da montagem é uma das cartas da série de 365 que ele envia, AGORA, à sua princesa para compensar o ano de silêncio que deteve em relação a ela. Um mote amoroso sub-repticiamente abstrai a geografia do percurso do endereçamento.

Orquestradas, então, como versos que devem deslizar à maneira daquelas dunas africanas onde se acocoram guepardos, senhoras e infantes, as imagens adentram o campo do mistério hermético, guardam segredos de proporção que cabe ao espectador desvendar. Muito além do banho de sépia que as transporta às ampulhetas do tempo “acima de todos os tempos”, é de um rompimento com o PACTO da “visão automática” que esses núcleos ritualísticos partem para engajar nosso “olho interno”, uma forma de palpabilidade que a própria montagem não permite racionalizar. No mais libertário dos sentidos, é um filme-poema que não admite estar diante das imagens sem QUERER que (nós) estejamos diante DE imagens. O “você” que assiste é condição de movimento fílmico (sentido); do contrário “as imagens simplesmente se movem” (sem sentido). A “ação” é fruto da plena volição espectatorial, posto que os gestos não cessam de desfilar passagens à primordialidade do bando, do coletivo – pois o animal nunca é referencial sozinho –, e aí talvez resida o mais notável dessas pinturas-vivas, o fato de que elas se assumem poRtais poStais. No dorso da mão de uma criança que serve de close ao gesto clássico do cochicho de segredos, vemos as bandas das orelhas de elefantes.

A lavagem, pela correnteza, dos mantos de indianas dispostas em posição fetal são os vincos da pele desse gigantesco animal que dorme abraçando-as – nenhum deles excetuado ou estranho aos mesmos descansos, às mesmas mortes, aos mesmos banhos onde trombas chicoteiam os rios misturadas à bailarinas. Disparando em brincadeiras de corrida onde é necessário tão-somente arreganhar os braços e alargar o peito, crianças desta mesma nacionalidade se assemelham às largas arraias que inauguravam algum balé aquático no filme, do mesmo modo que os falcões egípcios, ao levantar voo, tomam o ar esticando as próprias extremidades ao máximo – e já não sabemos se são eles, por sinal, que imitam as sacerdotisas longilíneas dos hieróglifos nas pirâmides. O ato comum contém uma festa a que todos estão lançados com rigor, vestígio nada longínquo dos ritos de infâncias que disputavam batalhas navais em chuveiros ou banheiras.

Ao invés de recorrer à mitificação Mogli-esca e construir humanidades fendidas por uma educação primordialmente animal, isto é, ao invés de bradar nosso esquecimento de habilidades ou formas de união mais sofisticadas através de uma parábola do sujeito-não-humano-nascido-entre-animais, Colbert se desliga da reprodutividade de uma suposta relação necessitada de atestados ou tomadas inéditas, e vai filmá-las sem exigir dos nativos nem uma ficcionalização nem um testemunho, mas um POSAR – um certo exagero, na verdade – do mutualismo ali existente, pois não custamos a entender que a proteção, a vigília que aqueles felinos de olhos agudos oferecem dispondo-se como totens ao redor dos nômades, é replicada como plano metafórico, “figura de animalidade”, ao longo de todos os momentos em que os sujeitos se permitem sinalizar as passagens de seus ciclos. 

Da atenção ao sono. Do dever ao júbilo. Do menor ao mais velho. Do silêncio ao (entendível), lembramos aos animais de nossos endereçamentos, de nossas cartas a eles.

Mas por que o elemento animalesco é aproximado dos gestos de liberação (gestos sagrados), por que as liberdades enunciativas da dança são as chaves dessa jornada que o narrador distende somente se pisoteia, alegre, ao modo dos elefantes? “Quero ver através dos olhos deles”, ele afirma, entusiasmado: “quero me tornar a dança”. 

O que parece ser invocado desta arte que, antes do balé de corte e da noção em si de coreografia, era manifesto simbolicamente ritualístico (não se restringindo a indivíduos profissionais especializados nem se dirigindo a outro valor que não o de culto), é a capacidade de designar um espaço excepcional onde, assumindo a própria pele como uma forma de consciência dependente da ininterrupta entrega ao ressoar da vida vizinha, os sujeitos importam seus combates, incomunicabilidades e passagens ao presente, e com eles se defrontam a partir de técnicas espelhadas do animal, que não é senão imitações, camuflagens, manias; todos traços da FIDELIDADE à preservação da vida.

Essa insistência do chamado “cinema poético” (Maya Deren pode prová-lo bem) numa imagem ora movediça, ora distendida, ora explosiva, ora distorcida, mas sempre “fundamental”, e para todos os efeitos fruto do disfuncionamento, ou antes da brincadeira com o significado concluso e com as possibilidades do ocular, coloca-o sempre à beira da perda do espaço, esse elemento que a gramática cinematográfica considera literalmente sagrado (e primevo). Do contrário, por que a linearidade temporal estaria já contida no termo “continuidade espacial”? 

Os dois mergulhadores (ou seriam bailarinos?) a que assistimos dançar com o coletivo de baleias fazem-no com tanta delonga, seus pulmões quase comprovam o que o escudo de luz da superfície da água sugere quando en-cena com a “folhagem” que o sépia acrescenta à iluminação: aquele fundo é o “lado celeste”, a profundeza do mar é “o céu” invertido, aquele do outro lado, o espelho paralelo ao do azul que nos encabeça e que resguarda sua mesma função. O traço livresco com que o amarelado dota o filme é efeito desse misticismo da proporcionalidade que os lugares de segredo resguardam. O mesmo efeito recai sobre o mistério daquelas tribos nômades do deserto: muito como no cinema de Apichatpong Weerasethakul, é possível dizer que a sacralidade dos guepardos não se reafirma uma PRÁTICA, ou seja, uma encarnação norteadora, fortificante, materna e unitiva dos códigos daquele povo?

O espectador destas imagens é arqueólogo e espiritualista. 

O animal, o primeiro nível dos diversos registros de um reconhecimento com o tempo. Não o nosso. Não o próprio. O da dança.

É estranho que, ao cinema, esse efeito de infinitude dos oceanos, dos desertos e das serpentes dos rios africanos, não tenha advindo da obsessão pela profundidade de campo. Todos os “fundos” do filme parecem chapados, vidraças dentro do qual a mitologia dele se desenlaça. É estranho que tal traço da imagem possa advir deste simples comando da dança que orienta um movimento espontâneo seguido de desaceleração, para então ser retomado. Uma imersão corporal cujo clímax seja a respiração que a transita entre outras brecagens: este filme apela aos seres ainda mais infinitos (do que nós) “não porque eles têm uma resposta, mas porque carregam uma canção”. São, novamente, as memórias das cartas à princesa; as traduções tateantes de um amante se buscando ao buscá-la. Por isso os cascos, patas, trombas, focinhos, caudas, barbatanas. Os “órgãos” de trânsito animal incitam a câmera a desenhar uma montagem-selvagem. 

Mas logo quando se suporia no animalesco um caos perigosamente à espreita, ela respira, vai rente à pele sentir a proteção daquelas crianças transeuntes. A câmera se precipita num milagre de participação registrada que se confundirá dezenas de vezes com o ponto de vista elefante, formando as próprias ondas que observamos se formarem no jogo-ritual-cotidiano daquele coletivo destoante de bailarinas corajosas. Cinzas e Neve cria um jogo de descontinuidades epifânicas para comunicar a defesa de uma linhagem de aprendizados que se estende desde as penas das aves passando pelo fogo, fogo transferido ao sangue, sangue em direção à medula que deságua em neve. Luz. Tempo. Textura. Rematerialização. O animal é seu elemento. Cabem garras na lente?

Este poema não talvez não seja simplesmente animalesco, mas xamânico. Cinematográfico. 

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Nope (Não! Não olhe!): O retorno triunfal

Por Luiz Soares Jr.

“A compensação consiste, portanto, em um convite e um direito à crueldade”

Nietzsche, Genealogia da moral, segunda dissertação.

“A História influi no mito”

Alain Moreau, A fábrica de mitos

A abertura de Nope já articula o retorno da animalidade recalcada pelo digital, anátema atual pelo menos como em seus abusos publicitários da história do cinema, como um programa: o macaco da propaganda de luz chapada e ponto de vista único se rebela e assassina os membros da equipe, mas para apurar a elaboração diegética deste crime precisaremos esperar um quarto do filme decorrido. O fato de que Peele o antecipe como um emblema icônico nos créditos de Nope, porém, o mitifica de antemão como a imago-mater que vai estruturar os itinerários desta alegoria mimética sobre a volta triunfal da animalidade à cena do cinema mainstream. Como filme de horror inter-galáctico com seu que de unheimlich pastoral, de vitupério panfletário antirracista também, pois na era que vige tudo é possível amalgamar em uma sincrética síntese alinhavada pelas bordas de filme anfíbio: filme do seu tempo, Nope é exemplar, isso não há de negar, pois volta a assinalar ao plano de cinema, agora em sua vertente de uso e leitura digital, um vetor de revelação. Basta prestar desmesurada atenção, uma atenção de leitura espaçada pela proteção do escudo de Perseu, ou tela de cinema, e tudo te será dado conhecer dos insondáveis mistérios do ser, mesmo o inominável do totalmente outro, como a aparição da Nuvem com n maiúsculo, antecipadora em forma de dejeto sublime da máquina-alimária. É filme eminente do fora de campo também, como  o plano frontal dos cavalos de Muybridge enquadrados em pillarboxing e o macaco assassino da série de TV nos impõem, pois estes só nos serão desvendados em sua função simbólica no filme no a posteriori da revisão orientada.

A pradaria vasta e ressoante onde tudo se dá à triangulação heroica de protagonistas (a que vai se acrescentar um quarto, a ser expiado no arremate do filme, como todo o classicismo de que é imunodependente, com sua câmera contemporânea de Sjostron e Lupu Pick e sua libido aventureira hawksiana), os travellings fulgurantes dos cavalos em fuga, e finalmente a rentrée em Cena do gênero sob sua forma mais espetacularmente canônica  perto do desenlace são demonstrações na carne do filme de que o western tardio é aquele que assiste em crescendo de épica niilista à desaparição da figura humana sob a sombra do inominável, de que é paradigmática a belíssima cena da abdução, num coro de choro e ranger de dentes, da plateia fascinada pelo espetáculo tanatológico; se o western clássico era o lugar onde esta figura lutava bravamente para se impor à atonicidade de Gesta da Natureza indômita (os índios incluso, como fermento orgânico e ethos reativo de dizimação da paisagem pela máquina de guerra), em Nope o processo já está acabado: assistimos apenas a uma espécie de dispositivo fantasmático, diegético (a grande cidade-simulacro encimada pelo cowboy gigante de desenho animado, que vai ser a chave de arremate do filme) e devedor de fora de campo tópico, com o en abîme do filme foto-montado como um legitimamente etiquetado “Documentário” dentro do filme; se é documentário o que se alardeia aqui com ênfase de programa, a razão, supomos, está em que o objeto a ser descrito pelas agruras cinema verité do gênero inaugurado pelos Lumière é inverossímil, inacreditável, inimaginável, da ordem de tudo aquilo que não pode se encaixar sob a rubrica do documentário ou possuir pretensões de preenchê-la: “Não é uma máquina, não é um navio, não é uma nuvem; é um bicho, e  territorialista”.

Este semi-western tardio (coetâneo do sitcom e dos constructos organogramáticos de jogos virtuais) assombrado pela aspiração, efetivada sob a égide da montagem embora, da verossimilhança lumièriana a qualquer custo é um compêndio sobre as teratológicas armadilhas fenomenológicas do tête à tête do ser humano com o sublime. Temos duas condições que Nope preenche exemplarmente, e ambas sob a tutela do tratamento da figura: o esqueleto de western sepulcral, com seus tropos e rubricas de cooptação do cenário natural pelos idioletos do texto-arquetípico da história do cinema, como os cavalos espavoridos que, decalcando a natureza sobrenaturalmente romântica de Nosferatu, pressentem a iminência do horror, além da referência um tanto quanto atropelada na fala de Emerald Haywood à irmã entertainer até aos cavalos de Muybridge, que comparecem na sequência de créditos do filme.

Um estudo mais propriamente centrado nos atalhos e nas rotas de fuga pregnantes da figura humana: com seus sustos-raptos pré-ensaiados (há uma moça que se esgueira por trás de Angel, o rapaz de cabelo descolorido do magazine, assustando-o quando surge), suas crianças fantasiadas de ETs delgados,  seus cavalos flamejantes e sua espectadora desfigurada pela experiência acidentada do sitcom na cena da abdução coletiva, Nope é antes de tudo um filme que problematiza a figura humana e seu pano de fundo como o recôndito reduto da monstruosidade, como a possível massa de modelagem do interdito, de que o monstro enquanto tal vai consistir na espoliação grandeur Nature de suas potências de incorporação extática, um tanto como lá está na descrição da Medusa de Francis Ponge na Defloração das flores. Medusa esta símbolo falocrático eminente para se ativar a rede de correspondências miméticas e fenomenológicas de que o filme vai haurir sua potência mitológica: “(…) aquela que efetiva uma reverência extasiada a todas as suas bordas. Em Nope, estas bordas possuem invólucro duplo, reversível, e se imantam respectivamente: elas são humanas e naturais e urdem um filme que nos atinge pelo tempo (o sitcom , o digital como registro atual, sem grão e presença) a partir de grandezas e de escalas muito essencialmente da origem, entendendo-se esta como a percepção primeva do ser humano em confronto com o mundo da, aí; do fundo vítreo de seu enfrentamento com a perigosa tarefa que consiste em dar conta de um mundo, natural e cultural, na clareira da representação, Nope arregimenta distâncias vertiginosas de oráculos definitivos ou processuais, históricos para entender o que se passa durante o regime de virtualidade a fórceps do nosso tempo, e neste recuo acidentado recupera o clássico, mesmo que talvez em sua última aparição epocal. De Eurípedes ao Sartre do Imaginário, de Lumière e Chomon às texturas excremenciais dos filmes de ação de Kurt Kren, Nope, talvez sem dizer expressamente mas segundo um regime de analogias de que a crítica deve se servir em seu processo de decifração hermenêutica, nos conduz, pelo menos em seu núcleo central concernente à ideia de um eterno retorno do recalcado da natureza no seio asséptico do digital, o filme de gênero grandiloquente em tempos pós-grandiloquentes não deve fazer olvidar.

Para o Theodor Adorno da Dialética do iluminismo, o recalque da animalidade foi uma das causas secretas para o anti-semitismo que vicejou na Alemanha de forma cataclismática no século 20; Hitler, não por acaso, se referia aos judeus como ratos sujos, e talvez sem querer acertava com uma intuição profunda em demasia para seu narcisismo de pintor naïf barato: o rabi, ensimesmado demais com as reflexões talmúdicas sobre D’us e seus labirintos, certamente não tinha tempo nem ocasião para coisas comezinhas, como fazer a barba ou tomar banho; a visão terrífica da Natura em estado naturata deveria parecer ao soldado de caserna, ao oficial prussiano, ao burguês escrevinhador da Alemanha profunda um passaporte perceptivo para o inferno; esta é uma intuição de natureza sofística, pois eleva aos cimos da investigação filosófica aquilo que deveria ser reservado aos baixos: os trabalhos subterrâneos da pulsão, as intermitências da Força e sua ressonância fantasmática, mas para a arte, lugar onde a Verdade se revela no sensível ( Febo), ela se revela de vertiginosa validade.

Nope é um filme que reflete en abîme, tematicamente sobre este exílio que atualmente é nosso: com a chegada do digital, com o advento histérico do culto à virtualidade das imagens quaisquer (e não, como no classicismo, do plano de cinema, com suas mediações características: chiaroscuro, montagem teleologicamente orientada, contracampo litigante para a sobranceria do campo como locus de manifestação), alguma coisa de muito nobre e muito vetusto se perdeu: a presença, o ser aí do mundo capturado no in vitro da lente, a empreinte de verité fotográfica baziniana; é claro que os meios de captura e processamento da imagem permanecem , em termos de princípio, os mesmos, mas a tendência da imagem digital ao aparato de limpeza excessiva, de equilíbrio das gradações e de perda do grão- em suma: de propreté publicitária, ameaça destruir o laborioso Geschik (destinação heideggeriana) de uma arte tardia que pela primeira vez na história humana (Michel Mourlet) soube conservar a realidade capturada por suas mediações com os meios da própria realidade, sem adotar os artifícios da saturação cromática (pintura), da harmonia contrapuntística (música), da metáfora (literatura), e portanto teve com a realidade um contrato, um contato, um conatus mimético, um realismo primordial que nenhuma fantasmagoria digital vai conseguir romper.

Nope nos fala desta terrível ameaça epocal, mas tem o gênio de reverter a seu favor os novos meios, de subvertê-lo de dentro, com a força impulsiva de seu próprio dynamos. Vejamos a cena primordial para mim em que a plateia do espetáculo é devorada viva pelo monstro, configuração do retorno do recalcado (da presença, da animalidade, da essência da experiência inexperienciável do sublime) em chave espetacular que paradoxalmente deixa para a suspensão e o vazio da expectação frustrada (coisa natural, uma vez que o sujeito trocou de lugar com o objeto, e agora é sua presa) a parte do leão. A forma de Peele filmar o sublime, durante o grande espetáculo kamikase coletivo, implica um uso absoluto da contra-plongée (ponto de vista do mestre de cerimônias, aterrado diante daquilo que vê), pois o homem agora é um espectador na plenipotência da impotência para as forças miméticas que se desencadeiam, e  um contracampo quântico já nos situa dentro das vísceras do monstro. Momento de terrífica beleza rilkeana, para o cinema e tudo o mais que existe além; a anamorfose da espectadora do Potemkim de Eisenstein, aquela que com o guarda-chuva dá a largada para o grand guignol da escadaria manchada de sangue, aparece com esta moça desfigurada (é uma sobrevivente da carnificina do macaco), que estrutura em rima de verso branco este processo de abdução totalitária da figura humana pelo Infigurável cósmico, que no entanto nunca esteve tão próximo de nós. As vísceras latejantes de jaculatórias sanguinolentas absorvem a matéria humana com torpor e vigor, e os entretons cor de carne do desfigurado dejeto alimentício deixam-se apreender pela percepção intersticial do espectador, que deve agora aprender a recitar a Gênesis (Carne de tua carne…) segundo um projeto narcísico menos centrado no homem, porque agora este foi descentrado e no buraco negro de sua erosão surgiu uma alimária de sangue coagulado, cujo propósito tantálico e endócrino consiste em consumir Aquele cujo projeto hediondo consistia em consumir o mundo; morceau de bravoure de ideação figurativa magnífico!

Falei mais acima em mitos primordiais, em irradiação extática, falei em Medusa; ela é o mito ocluso-manifesto intersticialmente que estrutura a experiência do Sublime descrita aqui. Todos sabemos que foi o escudo espelhado (que alguns chamam de representação) dado pela deusa Minerva a Perseu que o defendeu do olhar abjeto do monstro, matando-a: i wear my sunglasses...

O monstro sempre teve o seu quinhão de abjeção para crianças insones, mas para a sapiência dos talmudistas de todas as eras e esferas ele também foi sintoma de saúde eminente; o que seria da Beleza sem a cabeça da Medusa? O fascinum do olhar do basilisco é o fora de campo assombrado de toda a luminosidade classicista; “Não olhe para ele”.

O homem inventou a tela de cinema, mediação reflexiva, para não ter de olhar diretamente para Ele (e lembremo-nos também da pedra que protegeu Moisés, quando do cortejo da eternidade que passava, no monte Sinai); como disse ainda, Nope é um filme muito próximo de nós que anamorfiza, convoca refigurando, satura pervertendo e relê tardiamente um sinal das origens que sempre esteve aí, mas para ativá-lo é necessário (desta vez) olhar de volta para ele, emblema da aura benjaminiana; não será nosso último meeting. 

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O arquivo animal

Por Natália Reis

O Internet Archive é hoje provavelmente a coisa mais próxima da utopia ingenuamente profetizada no surgimento da internet. Pilhas infinitas de documentos, livros, filmes e imagens convertidas em terabytes de livre circulação compõem um tipo de bioma utópico, provido por um fluxo crescente de coleções de bibliotecas públicas, cinematecas, arquivos nacionais e toda a sorte de memorabilia. Fundado por Rick Prelinger, o Prelinger Archives vai despontar desse meio como uma subpartição dedicada aos “ephemeral films” – “filmes realizados para fins específicos em momentos específicos, como publicidade, filmes educativos, institucionais e amadores” – derivados de uma compilação extensa que já ultrapassa o número de 60.000 itens reunidos por Prelinger no decorrer de mais de 30 anos de pesquisa e coleta. São cerca de 8.500 filmes atravessando décadas de imagens caseiras, propagandas de TV, conteúdo erótico, filmes educacionais sobre o perigo das drogas e do sexo na adolescência, informativos, documentários científicos e mais uma infinidade de temas e abordagens que podem ser, por sua vez, agrupados a partir de filtros e palavras-chave como: “1920s”, “animação”, “guerra fria”, “saúde e higiene”, “vida rural”, “trabalho”, “famílias”, “astronomia” e assim por diante.

A ideia de “filmes efêmeros” parece ganhar uma força contraditória quando estas imagens de existência limitada sobrevivem na condição de arquivo.  Se o arquivo pressupõe um desejo (ou necessidade) de conservação e revisitação, ocupando uma “topologia” privilegiada, na qual “a lei e a singularidade se cruzam no privilégio” segundo nos diz Derrida, o acervo de Rick Prelinger implode esse contexto acatando imagens enjeitadas – “vulgares”, “menores” –  que ao serem abrigadas num repositório aberto excedem o valor memorialístico e se fazem disponíveis para reprodução e reutilização: alcançam uma sobrevida. Ouso afirmar que as imagens de arquivo também se enquadram num tipo de espectralidade. No caso dos ephemeral films, o retorno do passado é a negação de seu propósito inicial (a efemeridade) e a garantia de uma forma de continuidade enquanto presença vaporosa, distorcida pela ação do tempo. Pessoas e animais se tornam aparições organizadas por período, ordem alfabética e número de visualizações. Em meio a esses ecos é possível observar uma fauna espectral se manifestar: bichos usados para experimentos ou observados à distância na natureza adquirem uma existência volátil, que percorre tanto o limiar do ressurgimento enquanto imagem quanto o risco de desaparecimento enquanto espécie. São os animais imateriais que habitam os arquivos de Prelinger, prontos para serem reanimados a qualquer momento. A seguir, dois exemplos distintos desta proposição:

Experiments in the Revival of Organisms

Uma das imagens mais assombradas com a qual pude ter contato quando a internet era em parte definida pelo acesso irrestrito a fotos de acidentes de aviões e de fantasmas em lugares abandonados foi o vídeo da cabeça decapitada de cachorro mantida viva por meio de aparelhos. A imagem estourada e a baixa resolução encobriam tudo com uma camada de horror e veracidade que para mim era inquestionável: uma cabeça canina se movia vagarosamente, abria e fechava os olhos e a boca, levava a língua ao focinho, tudo isso ligada a um tipo de máquina diastólica que simulava um coração bombeando sangue diretamente para a caixa craniana. Para além da imagem perturbadora, o que mais me assustava ali residia no fato da figura do animal morto-vivo se passar tão bem por uma criatura vivente, que na minha concepção fora destituída de sua alma –  sua “anima” – e mantida nesta condição por pura crueldade. Somos condicionados pela natureza animista do movimento a associar mobilidade e vivacidade. Marionetes, desenhos, ou mesmo as folhas de uma árvore chacoalhando na brisa leve podem se tornar portadores sobrenaturais de força vital se assim acreditarmos, mas aqui o movimento resguarda uma contradição perversa: é a predição da morte inevitável cristalizada na sua própria duração. 

Mais tarde eu descobriria numa visita aos Prelinger Archives que o vídeo na verdade se trata de um trecho de Experiments in the Revival of Organisms, um curta-metragem de 19 minutos realizado em 1940 pela Agência Cinematográfica Soviética, e que, segundo nos informa as cartelas de abertura, era “exibido pelo Conselho Nacional de Amizade Americano-Soviética e distribuído pela Sociedade Médica Americano-Soviética em Nova York”. O filme nada mais é do que um registro dos avanços tecnológicos e experimentos empreendidos no campo do transplante e ressuscitação de órgãos feito pelo Instituto de Fisiologia Experimental e Terapia, e por Sergei Brukhonenko (cujas experiências com cachorros incluem não só a supracitada decapitação como também quimeras de duas cabeças), desenvolvedor do “Auto Jetkor” (um tipo de máquina coração-pulmão), e ainda é um momento raro de cooperação entre duas potências antagônicas –  propaganda soviética com o aval estadunidense. Se a guerra fria também representou uma disputa imagética que trouxe consigo um fluxo incalculável de imagens hostis de ambos os lados, com vilões de sotaque russo e capitalistas de sorriso diabólico, a visão dos créditos hoje nos arrebata com uma imagem impossível, um arquivo de proporções quase mitológicas. 

Para além do teor histórico, há algo essencialmente sinistro no didatismo de Experiments in the Revival of Organisms e talvez por isso seja tão difícil classificá-lo. Imagens monocromáticas de um coração canino pulsam em variações contrastantes de cinzas metálicos e de um preto profundo e viscoso, pulmões que parecem balões de papel inflados se expandem e contraem sobre uma bandeja enquanto são entrecortados por planos do maquinário que garante seu funcionamento fora do corpo. Tubos, engrenagens, sangue, vidro e metal observados de perto ao lado de tecido orgânico fazem as vezes de um sistema frio e eficaz. Tudo isso numa proximidade impiedosa que será reafirmada pela imagem da cabeça zumbificada de um cão branco e peludo, provavelmente um “Laika”, nome genérico dado a um tipo popular de cães do norte da Rússia e da Sibéria e também à cadela enviada ao espaço morta pelo superaquecimento da Sputnik – ambos unidos pela ética questionável anunciada em tom monótono pelo Professor J.B.S Haldane no início do filme: “Como vocês podem imaginar, técnica é tudo!”. 

Ainda que se trate de uma farsa –  questionada inúmeras vezes por usuários comprometidos na sessão de comentários –  o filme soviético manifesta uma aura que só pode ser descrita pelo pavor que acompanha o interdito com o qual muitas vezes já nos deparamos online. É um filme de terror no sentido em que nos confronta com práticas científicas que beiram o sadismo, quer sejam reais, quer sejam construídas pela ação da montagem e de outros mecanismos cinematográficos. Em determinado momento vemos uma sangria ser realizada em outro cachorro, dessa vez de pelagem escura. A narração explica que para se confirmar a eficácia do experimento é preciso dessangrá-lo completamente, o som de batimentos cardíacos é transposto sobre um registro dos sinais vitais até parar completamente; o cão é dado como morto logo em seguida. Vemos as últimas gotas de seu sangue caírem num vasilhame como num gesto sacrificial, seus últimos suspiros, e o olho, estático, aberto, ser espetado. A narração explica que após decorridos dez minutos o sangue é bombeado de volta e o cachorro é ressuscitado. A morte lenta e auxiliada é um obstáculo sem maiores impactos a ser superado com a ajuda de uma elipse. Na cena seguinte vemos três cães diferentes brincando com um cientista, o narrador revela seus nomes e o tempo que cada um teria estado morto antes do processo de reanimação. 

Revisitando essas imagens e principalmente aquela que mais me causava repulsa, percebo que o tom geral do filme não escapa à noção de fabricação das circunstâncias ali apresentadas. É difícil não duvidar. Mas a sensação que perdura é a de que estamos diante de um objeto atroz, cuja trajetória sempre vai desembocar numa demonstração do triunfo da técnica e da perseverança do homem contra sua própria finitude sobre a vulnerabilidade das espécies que não podem se pronunciar. Ainda que tenham nomes, a violência com que morte e vida são banalizadas por meio de uma decapitação ou pela retirada de todo o sangue de um corpo saudável, faz com que esses cães se tornem meros props, objetos de cena exploráveis com tempo de vida programável – criaturas autômatas. A existência e a persistência de suas imagens nos arquivos é um portal que se abre para o mundo material e outras ressonâncias no tempo. Visualizados, incorporados a novos discursos e outras percepções, tais animais passam por um processo contínuo de regeneração, adquirem um corpo anacrônico para além daquele cuja circulação se limitava à propaganda e à mortificação. Perduram.

Eyes under water

Em seu texto sobre O mundo do silêncio (1956), documentário oceânico fruto da parceria de Louis Malle e Jacques Cousteau, André Bazin vai começar afirmando que qualquer crítica do filme de certa forma seria um gesto irrelevante, uma vez que suas belezas “são antes de tudo as da natureza e criticá-lo seria o mesmo, portanto, que criticar Deus”. Bazin prossegue dizendo que obras como essa “são a única novidade radical no documentário desde os grandes filmes de viagem dos anos 20 e 30. Mais precisamente uma das duas novidades; a segunda sendo constituída pela concepção moderna dos filmes sobre a arte; porém, tal novidade se deve à forma, enquanto a dos filmes submarinos pertence (…) ao fundo. Um fundo que nos é próximo”. Nesses dois momentos distintos o crítico vai evocar tanto o aspecto místico do universo marinho quanto a qualidade de se relacionar intimamente à natureza humana mais profunda, retratando o mundo submerso como um elo sobrenatural entre o mundano e o espiritual. 

Eyes under water é um curta de 1949 sobre a vida marinha feito para TV, e integrou o programa John Kieran’s Kaleidoscope, que consistia numa série de pequenos filmes educativos dos mais variados assuntos narrados e apresentados pelo jornalista e naturalista entusiasta John Kieran. O episódio acompanha um escafandrista com uma câmera no fundo do mar para fotografar peixes, crustáceos, esponjas, corais, cavalos marinhos e “múltiplas formas de vida estranha”, como nos informa a descrição do vídeo na página do Prelinger Archives.  Conforme o mergulhador se desloca com a câmera e o tripé de ferro pesado fornecido por outros mergulhadores, acompanhamos na penumbra cardumes agitados e outros mais morosos nadando na imensidão negra como se nadassem no vazio, florestas reduzidas de corais, moluscos que se camuflam nas texturas e matizes aquáticas, mexilhões gigantes e caranguejos minúsculos parecendo pequenas aranhinhas pálidas. 

O fato de que o filme tenha sido produzido pelo casal Paul F. Moss e Thelma Schnee (Thelma Moss) acrescenta ainda mais uma camada fantástica: Thelma, atriz e produtora, mais tarde ficaria conhecida por seu envolvimento com parapsicologia e fotografia Kirlian (ou Kirliangrafia), técnica na qual uma placa fotográfica conectada a uma corrente elétrica revela um “halo luminoso” ao redor de um objeto fotografado, tido por alguns – inclusive Thelma –  como a representação da “aura” de um corpo ou de outros atributos espirituais do orgânico e inorgânico. Pode-se dizer que o aspecto geral de Eyes under water segue nessa mesma direção: é um filme de propriedades fantasmáticas. As imagens são tomadas por uma estranheza característica da opacidade de domínios insólitos, a luminosidade do sol raleada pelo peso da água turva que cria nuances de brilho e escuridão total, os animais que parecem criaturas projetadas numa câmara escura. São etéreos ao mesmo tempo que, na superfície porosa da película e do mosaico de pixels do arquivo, afirmam com aspereza sua presença. 

Havia um tempo em que uma TV pouco se diferenciava de um aquário, ou que fantasmas poderiam ser avistados e contactados através das telas grossas que ocultavam um tubo de raio catódico em seu interior. Jeffrey Sconce em Haunted Media vai afirmar que “a introdução da visão eletrônica trouxe consigo novas intrigantes ambiguidades de espaço, tempo e substância: o paradoxo de mundos visíveis, aparentemente materiais, presos em uma caixa na sala de estar e ainda assim conjurados a partir de nada mais do que eletricidade e ar.”. O telégrafo, o rádio, a TV, são mídias que na sua trajetória foram usadas na comunicação com o supranatural, mensagens, vozes, rostos, vestígios do contato entre mundos materializados através de estímulos elétricos e ondas magnéticas hoje dispersos por tecnologias mais avançadas: telefones, monitores, câmeras digitais, realidade virtual. Se tratando da virtualidade dos arquivos é possível levantar a questão: em que medida a reprodução (e apropriação) dessas imagens pode ser relacionada à materialização de visões diretamente do éter?  
O que Eyes under water e os outros registros representam com suas particularidades e aproximações é a possibilidade de transmutação dos propósitos e meios com que foram concebidos. O tempo erode, mas também transforma e reinterpreta esses objetos. Documentos históricos podem ecoar como obras experimentais e vice-versa, invocados por meio de uma interface amigável e procedimentos quase ritualísticos que incluem acessar, clicar, filtrar e selecionar a qualidade da reprodução. Desse modo, fazemos contato com imagens de vidas passadas e, nesse caso, com criaturas passadas que ora exercem sua corporeidade enquanto sacrifício (cachorros russos e métodos de ressuscitação) ora se tornam sombras aquáticas num universo espectral. Um processo arquivístico de conjuração.

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O pau duro do Chacal

por João Lucas Pedrosa

Gosto de pensar o cachorro como uma criança que não cresce. Eles aprendem coisas com os anos, a partir da experiência nas ruas ou dos limites que os seus donos estabelecem. Eles compreendem sistemas simples (que se latir perto da cambuca de comida ou de água, os donos vão enchê-la; que se cutucar um humano com a pata, recebe carinho), e geralmente só assim conseguem assimilar o mundo, dialogando com as superfícies táteis (como o cachorro que sofre abuso e estrutura sua defesa generalizando tipos abusadores; White Dog, de Samuel Fuller, nos lembra como isso pode ser instrumentalizado com o cachorro que aprende a odiar negros). Não há diferença entre a tevê, o reflexo do espelho ou o espaço: virtual e concreto são um só. Mas, durante o desbravar espacial, existe sempre algum cheiro de novo escondido em meio ao familiar. O cheiro é o primeiro sentido que se tem dessa nova coisa antes de encostá-la no focinho e metê-la boca adentro ou esfregar-se nela com o corpo. A criança faz a mesma coisa, talvez com a diferença que tende a atrair-se antes pela visão ao invés do olfato. Boa parte das ações não carrega sentido além da possibilidade de sentir, da excitação do próximo sentido primário que o contato direto com coisa ou ser trará. Se é líquido, eu posso beber; se é coisa, deve ter gosto; se cabe na boca, eu posso comer; se a sensação é boa, eu posso continuar. Há uma mistura de ingenuidade com invencibilidade (ou, nesse caso, o desconhecimento de uma vencibilidade) pela ignorância do limite: o pular de uma altura grande demais, ou o morder, mastigar e engolir de algo não-comestível, ou o destroçar de um objeto valioso pelo prazer de senti-lo quebrar. 

Nos créditos iniciais de “O Fantasma” (2000), de João Pedro Rodrigues, um Doberman atravessa um corredor para tentar entrar num quarto fechado. Ele bate com a pata na porta e gane por alguns longos segundos. O plano seguinte é dentro do quarto, um detalhe traseiro do nosso protagonista em roupa de látex comendo um cara pelado. A roupa tem uma abertura em zíper na parte da bunda. Vemos apenas nádegas e coxas, além das mãos algemadas do passivo. O terceiro plano da cena é um close, e o protagonista está mascarado atrás do passivo, segurando com força um pano sobre sua boca. Humanos, enquanto seres deuterostomados, temos no processo de multiplicação celular que formará o feto o ânus como primeiro orifício gerado, para apenas depois ser aberto o que virá a ser uma boca. Pois bem, deste protagonista também é apresentado ao mundo antes o cu, e depois a boca. Em “O Fantasma”, o ato de expelir – para que, a princípio, serve o cu – e o ato de comer – para que, a princípio, serve a boca – são muito próximos e se confundem num ciclo vicioso, cumulativo. Talvez uma imagem explícita da penetração pudesse trazer a inversão gráfico-simbólica de um cu que come (nesse caso, come o pau do ativo), mas perderíamos o protagonista como agente do “comer”. E seu apetite voraz é o que move o filme.     

Esta primeira cena é entre quatro paredes, num ambiente íntimo e fechado onde nem o cachorro entra. Mas o filme é sobre uma criatura da noite, que ronda as ruas. Já vemos, na cena que se segue, o rosto de Sérgio (Ricardo Meneses), o homem antes vestido de látex, num quintal brincando com um cachorro. Duas mãos femininas tapam seus olhos e o fazem adivinhar quem é. A adivinhação vira um joguete erótico em que Sérgio explora com as mãos o rosto e cabelo da mulher, a fareja para identificá-la. Parece ser apenas uma performance de flerte, uma desculpa para o contato, mas viremos a perceber que assim é como ele (re)conhece tudo no mundo: pelo tópico, pelo que lhe excita de imediato. Ele pega, investiga, usa, descarta, vai embora. A surpresa pode fazê-lo subitamente defensivo. Antes de destampar seus olhos, Fátima (Beatriz Torcato) o beija na boca, e ele se afasta abruptamente, xingando-a e rosnando se ela se aproxima. Então finge-se de morto, ganindo quando ela lhe chuta tentando “acordá-lo”. 

Seu comportamento pode não ser tão estranho a priori porque reconhecemos ser ele um homem. Quando o vemos transando com outros de seu tipo em banheiros, vielas e cantos isolados, sabemos que é algo comum em seu sexo. Sabemos que homens tendem a aprender a não repressão de seus desejos, a liberação de seus ímpetos onde necessário for. Se moralmente vistos como sujos, então na sujeira serão liberados. À medida que não nos é estranho que a animalidade desenfreada do protagonista encontre consumação fácil nos lugares comuns de encontros sexuais entre machos, e que facilmente apareça um homem novo a fodê-lo, isso parece nos dizer algo sobre os homens em geral deste filme (ainda que não todos, ao menos a maioria). Sérgio também sente tesão por Fátima, que lhe desejava, mas ele a destrata depois que transam, e mais tarde tenta estuprá-la. Ele faz mais sexo com homens porque é mais fácil encontrar um disposto a transar onde quer que seja e sob qualquer condição, não precisando de mais que um olhar faminto e um lamber de beiços. Homens são acostumados ao ciclo de utilitarismo sexual, ainda que isso os machuque – e o olhar de alguns dos amantes de Sérgio dirigidos a um extracampo sem retorno marcam contraste com a frieza do protagonista.

Sérgio também não vê moral nem poder barrando-lhe o desejo, ele habita e age no mundo sem noção de hierarquia. Quando vê um policial amarrado e amordaçado numa viatura abandonada, masturba-o e o abandona gozado e imobilizado. O policial não resiste; ao contrário, reaparece no filme como uma presença de forte tensão e desejo sexual recíproco, que nunca volta a ser consumado porque sempre surge um colega ou uma sirene convocando-o de volta ao extracampo. Apenas restrito do poder da farda – e mesmo dos seus movimentos -, teve o prazer liberado. Este policial, na verdade, é um escravo; Sérgio, enquanto fera indomável, é anárquico. 

Ainda na primeira parte do filme, o protagonista fica obcecado pelo cheiro que sente numa moto na casa onde vai pegar eletrodomésticos quebrados – ele trabalha na limpeza urbana local, o que muito dialoga com seu conforto pelo que é descartado. Sérgio passa a perseguir João (Andre Barbosa), o dono do cheiro: revira seu lixo, masturba-se vestindo uma sunga sua rasgada que achou na lixeira, masturba-se num vestiário lambendo a parede onde sente seu rastro. Invade sua casa, mija em sua cama. É essencial lembrar que Sérgio, apesar de animal, não é criança nem cachorro. Tem corpo, força, gana de homem crescido. Não é um frágil projeto de gente, ou o melhor amigo do homem. Sérgio é um predador, e sua presa é João. Enquanto criatura, não tem noção alguma de valor ou de higiene. Sua afinidade com a “sujeira” moral é exatamente a mesma que com a sujeira física, com o fétido. No último ato, depois de transar novamente com o homem algemado do início (e com a mesma roupa preta), tenta sem êxito raptar seu objeto de desejo usando a violência. Acaba fugindo da polícia no caminhão de lixo, e no lixão é descartado. Come frutos podres, bebe água barrenta. Aqui chego na mistura entre o comer e o expelir comentado na cena de apresentação, pois aqui está o protagonista vestido assim como quando nasceu a nossos olhos: como criatura de látex. Mas, agora, diferentemente, não só está jogado no mundo, como chafurdado na merda pelo mundo expelida. Vive uma extensão hiperbólica de como já vivia: sustentado pelas sobras, pelo que já passou pelo consumo das gentes e dos vermes. Estamos vendo um filme sobre um homem pré-histórico no meio do capitalismo tardio; a única coisa que separa um do outro, afinal, é esconder sua podridão. 

A aparência de Ricardo Meneses ticar cada caixinha do padrão de beleza clássico e hegemônico dificilmente é coincidência: é um corpo que desperta o tesão aprendido, e que, no filme, é movido por um tesão inerente, bruto, quase intransitivo. Pode ser até que nos excitemos, que nos toquemos ao longo do filme. Mas o que se faz do nosso tesão quando Sérgio ataca violentamente o rapaz que desejava e o abandona, com mãos, canelas e boca constritas de fita adesiva, na rua? Quando, com a roupa de látex manchada de esgoto seco, come lixo? O corpo trajado de fetiche, radicalmente despido de sua humanidade – e agora também da forma humana -, não hesita. Vaga, fareja, come, fode, no meio da rua ou no meio do lixo. Mas nós sentamos e o observamos. Em enquadramentos estáticos, alongados; planos entregues à contemplação do gesto cru, porém também possíveis eretores do ruminar quando a duração esgota o estímulo direto do gesto. Sérgio não questiona seu desejo, mas nós questionamos o nosso o tempo todo. E, em algum momento, nos dá o estalo: olhamos Apolo, mas vemos um chacal. 

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Um passeio sobre as cenas de caça no ambiente francês

por Roberta Pedrosa

O caçador descansa, recostado em uma árvore, na penumbra, pensativo. Em oposição a sua  introspecção, no primeiro plano, os cães de postura ansiosa encarnam a agressividade e a fisicalidade do ato de caçar. Em frente aos cães e em uma linha diagonal com o caçador, a gazela morta, por sua vez, também se apoia na árvore, mas de ponta cabeça, com as genitais voltadas para cima, sem nenhuma dignidade, em uma posição bastante artificial.

Na pintura A Pedreira (1857), Gustave Courbet faz da figura do caçador seu autorretrato, literalmente, na reprodução de suas feições, mas também, em certa medida, metaforicamente. Pintando, o pintor-caçador está em contato com a brutalidade; ao terminar,  guarda as mãos e descansa na sombra, enquanto a gazela é exposta violentamente sobre a luz.

A Pedreira (Gustave Courbet, 1857)

O Senhor Eugène Pertuiset, caçador de leões ( Manet, 1881)

 Ao contrário do caçador de Courbet, o caçador de seu contemporâneo Édouard Manet, O Senhor Eugène Pertuiset, caçador de leões (1881), não representa ele próprio, mas um amigo colecionador e comerciante de arte e de armas. Se em A Pedreira o caçador esconde as mãos, aqui elas seguram a arma em primeiro plano com firmeza, mas também com ternura. Como é de praxe para Manet, os detalhes da mão não são esmiuçados e as pinceladas se fazem visíveis na construção da superfície da pele, as mãos parecem a parte do quadro onde a luz e a sombra são consideradas com mais cuidado. O leão morto ao fundo, assim como o homem que se ajoelha em nossa frente e nos encara diretamente, parecem pertencer a um ambiente onírico, não parecem presos ao chão – até porque a cor azul do fundo nos remete mais a um céu ou a um lago do que a uma floresta.

Caçar uma gazela é simbolicamente muito diferente de caçar um leão: a gazela, apesar de ser um animal de grande porte, é comum à própria fauna francesa, enquanto o leão é um animal exótico que não se encontra naturalmente na Europa do século XIX. Se as cenas de caça, anteriormente a Courbet e Manet, foram um gênero decorativo popular para a aristocracia francesa, é porque o ato estava também enraizado nessa cultura. 

Em seu filme A Regra do Jogo (1939) Jean Renoir retrata um grupo de amigos de uma aristocracia decadente, ou de uma burguesia com ares aristocráticos. No filme de Renoir a caça aparece de duas maneiras: para os empregados e para população rural ela é um trabalho ou um meio de sobrevivência, enquanto para os proprietários da terra ela é um esporte. Na caça aristocrática, a caça é feita por homens e mulheres, e os caçadores e caçadoras ficam separados a uma distância segura de suas presas, enquanto os funcionários espantam os pequenos animais, aves e coelhos, para um campo aberto onde eles possam ser atingidos pelos tiros das espingardas.

A caça aqui não tem uma vítima específica, não é esse ou aquele coelho, mas qualquer um: quando um morre outro vira alvo. O final da caça é estipulado não pela conquista de uma presa específica, mas pelo cansaço ou tédio do caçador. Essa multiplicidade de presas é também, para a A Regra do Jogo, uma repetição da estrutura do filme, da multiplicidade de pequenos conflitos que o estruturam.

A filmagem da caça é feita mais próxima dos coelhos do que dos caçadores. Os planos detalhes dos coelhos fugindo dos funcionários e se escondendo entre as folhas, criam uma empatia desconfortável entre o espectador e a presa. Os coelhos e aves correm e voam para todas as direções, mas em um dos planos os funcionários caminham afugentando os coelhos em nossa direção, passando pela câmera e criando um extra-campo atrás de nós. A sensação é como se estivéssemos no meio do “campo de batalha”.

A filmagem dos animais tem um ar documental e o abate deles também é filmado com certa objetividade. A câmera espera o rabinho do coelho parar de se mexer e segue a caída dos pássaros que vão do céu ao chão. Quem recolhe os pequenos cadáveres são os funcionários, e um cão que pega casualmente a sua parcela. A cena de caça no filme é longa, mas o filme segue casualmente sem se abalar por ela. É apenas no final que vemos a caça se repetir, agora entre um marido ciumento e o amante da esposa. Na “caça” entre humanos as personagens também se confundem de presa, e em certo sentido elas também se comportam como coelhos – ou pelo menos no quesito da vida sexual dos coelhos, que é tida como muito ativa. A vítima final acaba sendo, por um acaso completo, André Jurieu, que começa o filme voando e, como os faisões caçados, acaba o filme na terra.

Para Jean Renoir, a caça, a morte, as relações humanas, parecem sempre regidas pela casualidade. Já no caso do último filme de Patricia Mazuy, Boliche Saturno (2022), o tema da caça na cultura francesa é atualizado pela individualidade psíquica e familiar do protagonista, que acompanhamos se tornar um serial killer, como herança da caça de animais selvagens herdada de seu pai. Em uma cena central do filme, os amigos caçadores do falecido pai se encontram no boliche para lembrar as conquistas individuais e a memória do falecido amigo. Nas paredes são projetadas as filmagens amadoras das viagens de caça no continente africano, que incluem animais selvagens dos mais variados.

A caça no filme de Mazuy é uma prática social excêntrica que beira a seita, o culto religioso ou as organizações de extrema direita, e remete não apenas às práticas de caça da aristocracia francesa, mas ao passado colonial do país. De maneira direta, a caça é aqui uma prova de poder e pertencimento em uma sociedade na qual a impotência é regra.

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