Que os jovens destruam a cidade – Funeral das Rosas

Por Gabriel Papaléo

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“Quanto a espadas, as ornadas com joias.”

Sei Shônagon, O Livro do Travesseiro (1002).

Faz vinte e três anos que as bombas foram jogadas em Hiroshima e Nagasaki, e com isso o milagre econômico patrocinado pelos Estados Unidos no pós-bomba já está enraizado o suficiente no cotidiano japonês. O ocidente está instalado em Tóquio, novas identidades estão fervendo, e o discurso dos jovens complexifica – estaria a destruição do passado à serviço de um ideal estrangeiro ou a um legítimo descontentamento com o histórico social de comportamentos que o país forjou para si? Um ano depois da Tóquio retratada em Funeral das Rosas, o sociólogo Toyomasa Fuse disse sobre a suposta radicalidade dos protestos juvenis: “Se estudantes não tomassem partido e protestassem, então a universidade e a sociedade seriam as vítimas da complacência e prisioneiros do anacronismo.”¹

Em Funeral das Rosas, acompanhamos Eddie, jovem cuja identidade marginal goza com o homem cis de negócios, e que vive a noite buscando suas utopias particulares. E o que os os corpos vivos de Eddie e suas amigas tem a dizer sobre essa revolta que passa por um psicológico, por uma formação de identidade, antes de qualquer âmbito socio-político racional o suficiente para se organizar e digladiar contra a moral deturpada do presente?

Na televisão, uma epidemia dos narcóticos é anunciada, no tom sóbrio e contido que é o oposto ao que somos apresentados na personalidade dos rostos que acompanhamos aqui; para Matsumoto o confronto é sobretudo uma questão comportamental e estética. Os jovens buscam uma organização social que possa se propor como antídoto desse apocalipse cultural dos bons costumes, da binariedade, até mesmo de convenções cinematográficas de gêneros que mestres japoneses como Mizoguchi, Naruse e Ozu consagraram. O cineasta “underground” (“É de underground que chamam, né?”, pergunta uma das integrantes da trupe) que se fantasia de Che Guevara e mantém o poster dos Beatles pré-separação na parede, filma as ruas, filma os corpos, procura por pulsões e não necessariamente significados. Quando alguém diz que “não entendeu”, o personagem questiona se essa pessoa “sentiu alguma coisa”, e o como isso que mais importa para ele.

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Nesse, um dos muitos comentários diretos sobre estéticas e poéticas cinematográficas, ressalta o círculo dos jovens cineastas prontos para abolir uma linguagem e tentar intuir novas, como na citação a Mekas (ou Monas Jekas, como dizem no filme). O gesto do gênero e da identidade criando uma dimensão social paralela, de convívio apenas de jovens, que acessam o mundo dos mais velhos apenas para tirar seu sustento. E como esse tipo de organização social se propõe como antídoto do apocalipse cultural? As cenas de música, de tesão entre os personagens, vivos como a câmera de Matsumoto os seguindo e sendo intrusa na coreografia anárquica da dança e do contato, buscam colocar no espectador quais são as entranhas e atrações que regem aquelas pessoas, interessadas na liberdade, no prazer, mas sobretudo numa exploração política do urbano utópico que criaram para si – e do distópico que ocasionalmente encaram, como nas cenas cômicas de briga que Matsumoto faz questão de ressaltar como farsescas, à medida que para Eddie não é o grande confronto que a atormenta, seja com as mulheres cis que provocam ela e suas amigas na rua, ou mesmo no confronto com Leda na boate; sua dor é na busca pelo contato, pelo amor, pela aceitação simbólica da figura masculina que a mantém numa relação de abuso. É quando volta ao mundo dos jovens, nas festas conduzidas pelas drogas e pelo rock, que vive sem rodeios, a profanação dando forma ao dia a dia – ou à noite, no caso desse filme.

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Aos adultos, restam as máscaras, a ideia do visual como blindagem, e não expressão, à cidade. Algo corriqueiro no cinema de Mizoguchi, como tantos os outros diálogos que Matsumoto propõe aqui – e que discutirei mais tarde -, é a presença do teatro, das peças, do noh – a prática artística japonesa da dança de máscaras. O palco costumava ser o lugar desse espetáculo das máscaras, mas em Funeral das Rosas elas aparecem nos museus, sacralizadas, na parede, inatingíveis, castradas como monumentos. O retrato da solidão é bem visível na cena na qual Eddie se vê no chão do museu, a voz impessoal narrando a importância das obras ao redor, numa distância que nada conversa com a visceralidade do seu contato em outros ambientes. As máscaras que os homens usam para se esconder socialmente agora são simbólicas, mais estranhas, difusas, difíceis de assimilar. Essa impossibilidade da assimilação dos conflitos entre o que se sabe sobre Bem e Mal nos contos morais de Mizoguchi, um humanista dos ferrenhos e que sabia contornar com esperança nas pessoas as crueldades que filmava, se torna quase impossível de ser exercida na ebulição política do final dos anos 60. O ritual é a instituição da qual Mizoguchi retratava em seus filmes a ponto de organizá-los por vezes inteiro em torno da cerimônia como em 47 Ronin (1942) e Crisântemos Tardios (1939), histórias que terminam com gestos maiores que a vida, que atravessam o simbólico até quase chegar a conexão metafísica entre humanos e seus sentimentos. Como falar sobre ele num cotidiano vivo de mudança, de contemporaneidade, que quase se coloca como anti-ritual?

A entrevista de Yoshishige Yoshida coordenada por Pascal Bonitzer e Michel Delahaye para a Cahiers du Cinema em 1970 busca traçar algo dessa relação com os monumentos e cerimônias. Yoshida não cita Funeral das Rosas diretamente, mas filmes seus como Eros + Massacre (1970), também da chamada Nova Onda Japonesa, buscam tratar dessa relação explosiva entre passado e presente na cultura japonesa cinematográfica – de forma mais frontal politicamente, digamos. Em certa passagem, Yoshida fala que “De acordo com ele (Mizoguchi), a política é apenas um dos elementos que determinam a particularidade de um período histórico, e ele buscava ir até o cerne absoluto da situação. Mas nossa situação é mais complexa do que a de seu tempo; mesmo que alguém queira ter essa mesma visão, não seria possível chegar ao ‘cerne’ das coisas. No tempo dele era muito clara a distinção entre opressores e oprimidos, entre o poder e o povo. Portanto, o realismo de Mizoguchi era completamente eficaz. Ele era perfeito, mas isso não se aplicaria ao nosso tempo.”.

É uma distinção direta dessas novas formas contemporâneas com mais vertentes, mais estranhas, com ramificações complexificadas – o que embaça a visão das coisas, as torna mais plurais mas também mais suscetíveis aos enganos e ilusões. Matsumoto, como Yoshida, sabe desse estado delicado das novas verdades que são estabelecidas, das reconfigurações perigosas do poder e o como as resistências também devem ser debatidas, complexificadas. Isso passa, novamente, pelo plano político, estético, e comportamental.

Nessa inquietação da pluralidade que chega, Matsumoto recorre a dispositivos dos mais diversos para retratar a inquietude geracional do jovem não-hegemônico no Japão dos anos 60. O confronto contra o estado e tudo o que ele representa de normatividade, acessando o dispositivo do cinema direto nas entrevistas como ética etnográfica de ouvir aquelas pessoas que não são retratadas, porque a cidade e a cultura as consideram apêndices, contos não-requisitados. O amálgama estético de Matsumoto passa dos experimentos com textura ressaltada na película, o grão violento na imagem, ao contraste do negativo no qual uma cena de amor é filmada, chegando até as fotos que interrompem a narrativa volta e meia, de poses estilizadas surgindo como iconográficos marcantes dessa performance social que acomete todos os personagens, dos figurinos contemporâneos de Eddie aos ternos sóbrios dos homens que frequentam a casa gerenciada por Leda – não por acaso nomeada Genet, aliás, em homenagem ao escritor de Querelle. A furiosa tentativa do diretor de desvelar da narrativa clássica a linearidade (temporal e estética) assalta pela harmonia, surpreendente, por conta da fluidez na qual a trama de Funeral das Rosas se desenrola. Mesmo que sempre volte a Eddie, a bússola emocional do filme, a câmera procura outras histórias ali no meio como ampliação ideológica do tema no qual discute, como uma investigação.

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Funeral das Rosas já é estabelecido como um filme mais livre de dispositivos, então não há estranhamento quando surgem as entrevistas à cinema direto. Pelas perguntas curiosas, às vezes provocativas, às vezes desajeitadas (talvez propositalmente), Matsumoto extrai daqueles personagens uma interpretação dos próprios atores sobre suas ações, não apenas como um aceno metalinguístico como se tornou corriqueiro em uma parte do cinema contemporâneo, mas sim como uma proposta ética política de discussão, de dialética – algo trabalhado por Jean-Luc Godard em O Demônio das Onze Horas (1965), aliás, nos breves comentários sobre a guerra do Vietnã. A falta de necessidade de Leda afirmar a identidade alheia, diante das perguntas de Matsumoto, demonstra esse interesse social maior em expressar suas crenças e sua sexualidade que de fato propor um julgamento – ou organização – dessa corrente de pensamento do desejo. Existe o mistério dos olhares e da atração dos corpos, e interessa a Leda, como a Eddie, que ele seja respeitado.

Pîta, a estrela que interpreta Eddie, também é perguntada sobre sua personagem. O que elas se assemelham? O que escondem? Eddie não se furta a dizer o quanto ambas são parecidas, e “tirando a questão do incesto” são quase a mesma pessoa. Ambas sabem da performance diante das câmeras e o quanto ela reflete essa postura social de encarar na aparência uma articulação estética de identidade – e Matsumoto é feliz ao entrecortar Eddie se montando e o diretor experimental deixando sua barba postiça descolar, evidenciando que a performance visual está longe de ser uma questão de um gênero específico, e da transexualidade. A atuação cisgênero é real e violenta, não menos marcada que a de Eddie e Leda, apenas mais normalizada pela sociedade.

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E no que é a normatização social o mundo dos homens japoneses aparece, sujo pelo dinheiro e pelo trabalho, como representante da manutenção. Matsumoto estrutura o filme em volta do triângulo amoroso entre Eddie, Leda e Gonda, e a dinâmica de poder é sentida desde a cena pré-créditos, na qual Eddie vê Leda na rua. A trama do triângulo amoroso aparece a revelar essa dinâmica perversa do homem que se faz valer do carinho de duas pessoas para as manter sob controle, sempre no pêndulo desarranjado do prazer cuja comunicação passa pela desonestidade da mentira para suas duas amantes. Tanto Leda quanto Eddie sentem o desconforto da situação e o expressa na rivalidade entre si, seja estética, de idades, ou geracional. O ideário da geisha “clássica” aparece cumprido por Leda, com seu quimono e seus rituais, os passos comedidos, a suposta elegância e subserviência. À Eddie é ressaltado o ícone do presente, das roupas estilosas contemporâneas, do cabelo curto, da maquiagem estilizada, do flanar nas ruas, da agressividade e do movimento jovem. Que Matsumoto coloque essas duas personagens, mulheres da noite, para se confrontar aparece como comentário dessa herança dos contos que Kenji Mizoguchi retratava quando se dispunha a falar sobre as agruras das mulheres preteridas pela sociedade, frequentemente prostitutas. Mesmo com toda a roupagem contemporânea, de quem forja identidades para si como forma de assassinar a facadas a disposição de comportamentos japoneses, existe nessas relações e nos homens que dominam os meios (no caso, a boate, e também a atenção das duas personagens) uma perversidade de controle, evidência de uma profunda raiz distorcida de lógica familiar. Tanto Eddie quanto Leda são solitárias às suas maneiras, e usam das identidades para burlar essa solidão as quais foram relegadas por um mundo corroído. É quase desolador quando nos vemos diante de uma reforma do mito de Édipo, porque se percebe que a sociedade guarda para a dinâmica familiar a crueldade final.

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E nessa luta constante pelo desejo, por achar no mundo o prazer que lhe foi negado pelo abraço a uma identidade marginal, não existe frustração maior para Eddie que se ver vítima do destino, de estar refém do arquétipo condenado que repete o mito de Édipo, sem conseguir escapar das tragédias antigas. É como se o clássico desse um jeito de espremer as entranhas do novo, cuja herança familiar tão negada vem com sua força arrasadora para impedir a revolução. A negligência com a família se alastra para seus outros círculos sociais, o abandono como punição moral (não moralista, vale ressaltar) pelo alcance assustador das ações desses homens poderosos em busca do gozo. Não é que Matsumoto condene Eddie pelo assassinato simbólico do pai e literal da mãe, nem encara como punição dos astros, do acaso, do destino que seja, o caos do final; ao diretor interessa o desarranjo da família como catalisador da mudança, do pai que colhe o que plantou porque esparramava a falta de ética em todas as relações em que entrava. A raíz da família e do trabalho são podres porque partem da mesma disposição desses homens que foram ensinados a vocação do poder. A questão é que essa vocação gera uma covardia na performance social, uma tentativa de contenção e manutenção, a História não transcorrendo porque lhe foi tolhida a destruição dos signos e rearranjo das coisas, a transgressão e as novas buscas dos jovens, a revolução se formos simplificar. As pontes culturais entre um Japão de 1968 e de um Japão do século X, digamos, são infinitas, difíceis de interpretar e por vezes de catalogar, e o que a juventude se presta a buscar dos antigos, ao renegá-los até os ossos, às vezes são apenas a ideia de que é preciso se ornamentar na hora de lutar – porque as jóias e as espadas falam da importância de se colocar diante do desafio.

À cidade de Tóquio, retratada pelas vielas e pela noite e pela agressividade, resta a destruição, um fim do mundo anunciado pelo próprio filme ao se voltar para uma das paisagens conhecidas da metrópole. Se não existe espaço para essas pessoas então que o país afunde logo de uma vez, afinal é de decisão dos jovens a permanência ou aniquilação do presente.

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Referências:

¹ – https://www.japantimes.co.jp/culture/2017/11/19/arts/1968-year-japan-truly-raised-voice/

² – https://www.diagonalthoughts.com/?p=2248

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Marginal não filma: Ladrões de Cinema

Por Pedro Tavares

“Vejam vocês que desplante. Como se cinema fosse coisa de marginais (…) porque marginal não filma”.

Apresentador de TV em Ladrões de Cinema

Eis a faceta do cinema brasileiro: estar à margem. Fernando Coni Campos segue à margem inclusive na memória do cinema brasileiro com seu Ladrões de Cinema, um filme-epítome da natureza do cinema nacional, enquanto corre em paralelo uma análise espelhada da história do país. André Bazin ao se debruçar na obra de Henri-Georges Clouzot no seu célebre O que é o cinema? afirma que o cineasta francês considerava somente a criação artística como elemento espetacular autêntico, isto é, cinematográfico, porque é essencialmente temporal.[1] Se homens que roubam o material de cineastas americanos e resolvem fazer seu próprio filme na favela – ou seja, a história que o “asfalto” não se interessa em assistir por exibir suas chagas morais – o desplante é o simples ato de co-existir temporalmente com aqueles que estão no lado do privilégio, e que Ladrões de Cinema ignora solenemente.

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É notório que em Ladrões de Cinema a revolta se dá na junção do olhar de Deus, como se os personagens estivessem geograficamente acima daqueles que Coni Campos alveja.  Não é um tipo de obra de vanguarda e de crítica às imagens produzidas por estes homens ou a construção de imagens ideológicas. Lhe interessa subverter a regra básica da subtração urbana: não se rouba ou mata para vender e sim para dar um novo sentido ao dispositivo. A história de revolta de Tiradentes, o filme dentro do filme em paralelo ao processo de filmagem, também exibe as intromissões libertárias dos acontecimentos históricos. Os tais ladrões de cinema dão a esmola obrigatória que os americanos nos solicitam. Enquanto se filma um processo de descoberta dos moradores-atores, o cinema, sua história e mercado são fuzilados ou homenageados por Coni Campos.

Seja pelo português que alinha relações de poder com esta equipe de cinema ou pela simples postura do “diretor” que zomba dos filmes de arte nos primeiros minutos de filme, Brasil e cinema se misturam numa amálgama muito instigante em seu processo que elimina qualquer interação com a marginalidade desses personagens – o julgar está à mercê das duas colunas morais da sociedade: a TV e a polícia. Para Coni Campos a chave está em como esta equipe sairá das arapucas criadas pelo “fazer”, de uma naturalidade impregnada na cultura de sobrevivência do cinema brasileiro sem qualquer abordagem sobre um possível estranhamento às nossas condições precárias.

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Este processo é como um simples curso da concepção – e aqui vale notar como Ladrões de Cinema é completamente ignorado em cursos de cinema, que inclinam-se ao dízimo dos cowboys que Coni Campos ilustra. É a pura e inconsequente tanatopolítica. Vai da ideia na mesa do bar, do roteiro que é uma negociata, à produção que é um eterno exercício de criatividade e de aprendizado. Na mesma medida em que celebra o cinema, sua formulação como um norte de reflexões a respeito da sociedade, Coni Campos pega o caminho inverso e celebra as reflexões como essência deste tipo de arte. Coni Campos optou por não construir imagens de destruição e sim, à moda antiga, narrar a destruição.

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E este caminho segue pelas referências ao cinema novo, dando a ele uma sequência inteira ou pela a quebra total do silêncio entre campo e contracampo numa sugestão de diálogo e uma nova visão destes “marginais”. A visão antagônica é preponderante e corta todo o filme como pensamento alienado de uma classe invisível à câmera, mas que motiva a ação geral de Ladrões de Cinema. A história do Brasil não reside numa persona específica e sim num pensamento geral. Para um país que investe tanto em cinebiografias, é intrigante que este filme continue como um retrato muito atual sobre o país que inibe qualquer criação artística e consequente circulação fora do âmbito aristocrático.

[1] Idem.

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Contra o silêncio do amor, a poesia e a revolta: Um olhar sobre Tongues Untied de Marlon Riggs

 

Por Chico Torres

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Quero agradecer a contribuição de Janderson Felipe e Lucas Litrento. Ambos me abriram os olhos para o cinema e para a literatura negras. Dedico este texto a eles.

 

Sou uma máquina de escrever excitada. Egoísta, sábia, um soneto, um beatbox (…) Molhe-me com a língua seguinte, com um coro ressoante de homens adultos apaixonados” (trecho de um poema lido por Essex Hemphill em Tongues Untied).

 

Uma língua desatada está disposta tanto à fala quanto ao prazer. Uma língua liberta clama por palavra e saliva, mas quando está presa o que se ouve é apenas o silêncio. Tongues Untied (1989), de Marlon Riggs, é sobre quebrar esse silêncio através da língua em sua mais alta potência. A obra põe em diálogo elementos que, em um mundo cartesiano, podem ser vistos como antagônicos, mas que lá coexistem perfeitamente simbolizados por aquilo que a língua pode suscitar: sexo e razão, política e poesia, corpo e alma, som e silêncio.

O filme pode ser classificado de diversas formas: documentário, ensaio, manifesto, mas tudo isso sob um elemento norteador: o relato autobiográfico. Seguimos as memórias de Marlon Riggs, monólogos sobre experiências e traumas de um norte-americano negro e homossexual durante a década de 1980. Sua expressão física e intelectual é uma mistura de ancestralidade, raiva e melancolia. Riggs mostra através do seu corpo e de seu texto a exata proposta do filme: denúncia e valor documental sobrepujados pela poesia, pelo poder da voz, do som, da liberdade da mente e do corpo. Ele não está sozinho em seus monólogos, há uma série de personagens que o representam: homossexuais, poetas, artistas, mas também homens raivosos. É dá boca de Essex Hemphill, a voz responsável por todas as intervenções poéticas do filme, que ouvimos que “é mais fácil ficar furioso do que se emocionar”. Aqueles homens compartilham da mesma dor e do mesmo desejo de viver plenamente seus talentos e sentimentos, mas que são impedidos pelo racismo e homofobia cotidianas. Antes de panfletário, Tongues Untied é um filme sobre a possibilidade de amar.

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Vivendo de amor, texto de Bell Hooks, desenvolve um olhar sobre como o racismo em toda a sua complexa estrutura é responsável pela falta de expressão de afeto entre pessoas negras, sobretudo mulheres, já que, para o racismo, elas são estereotipadas como “mulheres fortes”, enquanto os homens negros como engraçados e infantiloides. Segundo Hooks, expressar afeto se torna uma tarefa árdua quando o que sempre se impõe é a noção de sobrevivência. Como amar se o tempo todo se viveu violência e perseguição? “Somos um povo ferido. Feridos naquele lugar que poderia conhecer o amor, que estaria amando. A vontade de amar tem representado um ato de resistência para os Afro-Americanos. Mas ao fazer essa escolha, muitos de nós descobrimos nossa incapacidade de dar e receber amor.” Amor como ato de resistência, não há melhor expressão para definir as intenções de Riggs e todos aqueles que o acompanham enfrentando a câmera. Ao olhar retrospectivamente, não é exagero dizer que esse tipo de problematização faz parte de uma tradição artística produzida por pessoas negras, basta pensarmos em Alice Walker e James Baldwing, ambos escreveram livros que tratam das dores e superações de personagens que estão em busca da compreensão e da realização do amor.

“Não importa quão bem construída a casa, não importa quão alta se eleve, ela precisa estar apoiada em algo” (provérbio africano citado em Black is Black Ain´t)

Em sua complexidade discursiva, Tongues Untied dá conta de temas centrais que se relacionam ao que é ser um homem negro e homossexual nos EUA: racismo em suas expressões físicas e verbais; a violência das ruas e a policial; preconceitos com soropositivos; opressão religiosa. De modo mais profundo, é igualmente sobre questões sutis que estão no âmago do ser complexo de Marlon Riggs. Por exemplo, a imposição ideológica e estética que se manifesta no próprio Riggs, quando revela que  desejava apenas homens brancos em sua juventude. Há também o desmascaramento da homofobia dentro da própria comunidade negra, e Riggs exemplifica isso com ícones do entretenimento (Eddie Murphy e Laurence Fishburne) para mostrar o quanto esses sujeitos perpetuam o preconceito em seus shows.

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Todas essas coisas são a faceta do silêncio. A obra tem uma carga pessimista e trágica, não estamos olhando para outra coisa que não a realidade desses homens, suas histórias, seus dilemas e todo o silenciamento que os cercam. Mas esses aspectos estão sempre sendo confrontados através da poesia, da linguagem corporal e da vivência do amor entre esses homens. “brother to brother” é repetido como um mantra no início e no final do filme, afirmando a vontade de criar e expressar afeto, música e palavra de ordem. A língua desatada que faz versos e constrói o rap; línguas e dedos que estalam para expressar pertencimento e linguagem corpot; o canto e a dança que ressaltam a beleza da linguagem artística e corporal daqueles homens tão guetificados. Todos esses elementos se reúnem como modos de resistência sob um olhar poético penetrante, como se suas vozes estivessem sendo sussurradas em nossos ouvidos, mas que na verdade são gritos de revolta.

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Então você pega um pouco de cor. Pode ser uma pitadinha ou uma colherona, não importa. Aí você mistura com um monte de características físicas que reflitam todos os rostos que existem nesse mundão. Misture tudo isso com uma cultura que simplesmente ama improvisar, dar significado, reivindicar, renovar e ler. E aí está a receita para fazer o povo negro” (Angela Davis em Black is Black Ain´t).

Em Black is Black Ain´t (1994), último filme de Riggs, assistimos comovidos, tanto a sua luta contra a AIDS como o seu empenho para quebrar novamente o silêncio, trazendo a questão da negritude em um sentido mais abrangente e afirmativo. Sua busca neste filme, diferentemente do que acontece em Tongues Untied, é mais propositiva e dialoga diretamente com questões internas das comunidades afro-americanas, mas sem perder o olhar reflexivo e poético característicos do diretor, que nesse filme conta com contribuições de nomes como o de Angela Davis, Bell Hooks, Michele Wallace e Cornel West. Compreendemos a luta, a beleza e a inteligência de Marlon Riggs, seu desejo pela palavra, pela imagem, pelo som, pelo amor. Com sua curtíssima obra, me parece ter conseguido ser um dos mais sofisticados documentaristas e ensaístas do cinema negro de todos os tempos. Foi poeta e sabia que o amor é um ato revolucionário.

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Anotações sobre o grau zero da diferença: o cinema de Apichatpong Weerasethakul e curadoria como cura (e como isso tudo se aproxima de uma ideia de revolta)

Por Geo Abreu

Era um dia de isolamento social e eu voltei ao cinema de Apichatpong Weerasethakul na tentativa de explicar aos alunos de iniciação ao vídeo os motivos e temas do cinema de fluxo. O filme era Tropical Malady, do qual eu pouco lembrava. Esse reencontro com o filme de 2004 me levou também ao cinema contemporâneo brasileiro, que há décadas parece girar num movimento de sempre-retorno macunaímico, cinema de índio, de preto, de arigó, de favelado, na tentativa de se afirmar nacional e universal, de se conectar com cinemas semelhantes, encontrar uma voz perdida que conte histórias de maneira desregulada, mística e doente.

Abraçar essa pecha de doença tropical, de sub-bactéria infernal, é algo que o Apichatpong faz e com doçura. Primeiro achei que tinha me conectado a obra dele porque a cor dos filmes e das pessoas [entre amarelo, preto e marrom, com muito verde de fundo] me lembrava a Amazônia. Fantasmas (aka visagens), onças, macacos e xamãs, a testa ensebada dos protagonistas, os dentes desalinhados, o sorriso infantil, as casas de madeira, distante do cinema comercial comédia-de-shopping, e próximo de quando abro qualquer janela pra rua de casa.

Em maio acompanhei as discussões entre curadores do Cachoeira Doc, a edição online realizada em meio a pandemia e que se autodenominou Festival Impossível com uma Curadoria Provisória & Filmes para se estar junto nesse período de confinamento. Nessa aposta de curadoria a conectividade entre os filmes se dava pelo entendimento da ação curatorial como cura; a curadoria como constelação de possibilidades de imagens que gostaríamos de ver e das quais precisamos – sem saber – para entrarmos num processo de libertação de tantos anos de apagamentos e silenciamentos em certa produção cinematográfica. É libertador demais pra um realizador de periferia assistir a Relatos Tecnopobres[1], de João Batista Silva, e finalmente encontrar eco num festival de cinema. Se procurarmos bem, a ideia de revolta que liga essas minhas anotações a proposta do dossiê da Multiplot está entre isso e a antipropaganda das comédias-de-shopping.

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Ainda sobre o cinema de Apichatpong, alguns estudos[2] apontam nele aspectos do perspectivismo ameríndio, esse modelo filosófico baseado em traduções de cosmologias indígenas que operam numa lógica relacional de predação e da centralidade do corpo como materialidade fundamental de expressão da cultural, e lendo algumas entrevistas do diretor, sabemos que há menos de filosófico que de intuitivo na abordagem dos personagens em seus filmes. Aqui cabe mencionar que cada vez mais teóricos indígenas têm sido chamados a dar opiniões sobre um mundo que se acaba, como naquela letra do Caetano em que um índio descerá de uma estrela colorida brilhante e aquilo que ele dirá surpreenderá a todos, não pelo exótico, mas pelo óbvio no fim de tudo.

As florestas tailandesas ganham estatuto de pessoa nos filmes do Apichatpong, assim como as montanhas do Vale do Rio Doce conseguem se comunicar com os Krenak, como diz o Aílton. Parece tão difícil pra nós, criaturas urbanas, voltar a esse grau zero da diferença e imaginar que estejamos mesmo todos conectados e que performar identidades fixas não faça sentido num jogo de perspectivas mutáveis, que variam de acordo com as trocas de cenários e dos atores em cena. Em estado de vigília permanente acreditamos que trocar a casa de taipa pelo prédio de concreto traz segurança e nos tornamos cínicos ao descobrir que deus não existe quando as notas do caixa eletrônico acabam bem na nossa vez.

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Aproximar esse cinema e essa teoria antropológica baseada no erro comunicativo e na necessidade da tradução diplomática de conflitos – você também vive com a sensação de que uma palavra infeliz pode virar literalmente uma arma apontada pra sua cara? – é interessante pra mim e pros meus porque fortalece – atenção pro óbvio – a nossa existência como pessoas, valida nossas/outras perspectivas, e nos permite uma aproximação precária a esse sistema excludente: o cinema (eu poderia ter escrito capitalismo aqui, mas como não há fora, resolvi assim). Aqui vai um beijo pro meu amigo André Sandino que um dia me disse que a gente trabalhava com um negócio que não foi feito pra gente, sabe Geo?

Se há uma revolta aqui é com protocolos de cinema comercial que excluem modelos precários de contar histórias e suprimem diversos relatos tecnopobres de avançar e encontrar com seus públicos. E a escolha por filtrar o mundo através do perspectivismo pode ser entendido como um motim programático contra a narratividade comercial. Assumir que o corpo seja a única máquina e a única câmera possível, saudar a centralidade desses corpos invisíveis e elaborar suas histórias é uma das armas que devemos forjar para recomeçar o mundo.

Curar festivais de rua e montar um telão no meio da praça e elaborar pensamentos difusos sobre o mundo entre o barulho da Baía do Guajará ou da Guanabara, tiros, gritos, co(r)pos tilintando e uma imagem enorme, um frame do filme, do qual só lembraremos do essencial amanhã. Esse modus operandi Exu, de conexão e fruição, de estabelecimento de ligações entre sentidos dispersos, como partículas de saliva que a gente tem precisado evitar é o que forma o melhor do pensamento macunaímico. Já que a tranquilidade agitada dos filmes do tailandês Apichatpong parece difícil de alcançar por aqui é preciso abordar a realidade como possível.

 

[1] http://www.cachoeiradoc.com.br/festivalimpossivel/relatos-tecnopobres/

[2] https://www.redalyc.org/jatsRepo/814/81457433002/html/index.html

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A revolta das opacidades, ou o pop e a ultraviolência na virada do milênio japonês

 

por João Lucas Pedrosa

Perfect Blue mostra pela primeira vez o rosto de sua protagonista por volta de 2min40s de filme. Formas desfocadas que sugerem um túnel correm para a direita para revelar uma ampla visão em movimento da cidade. O enquadramento recua e revela o semblante de Mima Kirigoe refletido no vidro de uma janela. Nosso primeiro contato com os traços pelos quais a identificaremos ao longo do filme – e que, portanto, supostamente representam sua identidade – é por um reflexo sobreposto à concretude do espaço externo. Mima está do lado de dentro, apartada, e a barreira entre esta e aquele não é apenas o vidro, mas a sua própria imagem, que dificulta uma visão clara da vista. Apenas o plano seguinte localiza a cena dentro de um vagão de trem, de forma que, antes do corte, existe apenas a personagem, o mundo, e uma impossibilidade relacional.

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Parte respondendo a tendências da época, parte estranhamente premonitório de um zeitgeist vindouro, o primeiro longa de Satoshi Kon lançou em festivais num ano peculiar da história japonesa recente. Uma bolha financeira e imobiliária inflacionada que estourou em 1991 levou, enfim no ano de 1997, à falência em série grandes instituições bancárias que equivocadamente investiram em seus ativos ao longo dos anos.[1] É também o ano em que Shinichiro Azuma, 14 anos, assassinou duas crianças de 10 e de 11 anos, respectivamente. Deixou a cabeça da última, o menino Jun Hase, em frente a uma escola secundária com um bilhete enfiado na boca. Nele, ameaça continuar matando para se vingar do “sistema educacional compulsório”. Azuma é preso após mandar uma carta para um jornal local: “Eu só consigo me libertar do ódio e me sentir em paz quando estou matando alguém. Só vendo outros sentindo dor, eu consigo aliviar a minha.”.[2]

Ele é o marco inicial de uma feroz onda de delinquência juvenil que marcaria a virada do milênio japonês. As oportunidades de emprego continuam diminuindo e a excelência acadêmica é essencial para a definição de um futuro. O rigor das escolas é mantido, mas os alunos nunca foram tão frustrados, desrespeitosos ou violentos. Agressões físicas a professores não são mais inconcebíveis, e o bullying institui na adolescência comum o direito do mais forte, levando à introversão exponencial dos alunos abusados. O alheamento causado pela televisão e pelo computador é eleito culpado direto segundo comentaristas e políticos conservadores nacionais, já que não tão raramente crimes partem de jovens retraídos e famintos por evasão. A maioridade penal desce de 16 para 14 anos. O comportamento predominante da juventude é a alienação e a ultraviolência.[3]

A protagonista de Perfect Blue está abandonando a carreira musical como líder do grupo j-pop CHAM para investir na atuação televisiva. Ela deixará de ser uma idealização feminina de pureza e alegria para incorporar papéis difíceis e violentos. Sua imagem é violada por dentro (num dos papéis, ela assassina alguém como consequência de um transtorno dissociativo) e por fora (noutro, ela é uma stripper que sofre estupro coletivo sobre o palco em que dançava[4]). Essa maculação gera atentados e assassinatos contra seu agente, contra o roteirista de sua série e contra o fotógrafo de seu ensaio nu. Mas a ameaça não é só externa. Mima perde vertiginosamente noção do limite entre real, interpretação e alucinação, uma difusão que se prenunciava desde a montagem paralela em que integra o plano revelador de seu rosto: por meio de um falso raccord, seu balançar de braço no vagão torna-se o mesmo movimento feito sobre o palco em sua apresentação de despedida. Procedimentos formais similares se dão quando falas se repetem em diferentes circunstâncias, circunstâncias se repetem em diferentes ambientes, ambientes se alteram num piscar de olhos, encenações e acontecimentos se espelham e se sobrepõem. Ao longo do filme, essas falsas continuidades e familiaridades viram reflexos da moribunda lucidez da protagonista, jogando-nos no abismo ao confiar por instinto numa sugestão de linearidade.

Desenfreadamente, a subjetividade de Mima se desfaz – desfaz-se sua condição de sujeito. Ela não sabe se é Mima Kirigoe, atriz, personagem, cantora, e até mesmo se inocente ou culpada das mortes à sua volta. Em dado momento, a Mima-virtual (seu primeiro produto em imagem, das tevês e monitores) afronta a Mima-sujeito de dentro do computador, dizendo ser a “verdadeira Mima”. Ela sai da tela e pula janela afora, após a promessa de retomar seu lugar. A imagem não mais é apenas uma barreira na relação entre Mima e o espaço, mas é quem exerce a função de agente dentro dele, no mundo concreto.

A bidimensionalidade opaca das figuras animadas, assim como próprio o formato animado, têm peso discursivo, autoral. Kon percebe que a potência da animação está no traço que compartilha com o cinema filmado: a ilusão de movimento. Ilusão, esta, que rivaliza o real e o simulacro, tornando a obra um quebra cabeça de (i)materialidades. Faz também parte da ludibriação dos estímulos o número de frames usados por segundo em cada personagem ou momento de filme. Cenas animadas a 10FPS, principalmente as de cotidiano, são alternadas com ou justapostas a movimentos mais cadentes e palpáveis, geralmente feitos com apoio de rotoscopia (animação pelo contorno direto de um corpo/objeto filmado). A técnica, além de copiar para o traço o movimento, reproduz em sua opacidade plástica a ação da gravidade sobre os corpos, conferindo às cenas uma mistura entre familiaridade e estranhamento (o famoso uncanny valley). A cadência dos corpos é particularmente hipnótica e flerta com o fetichismo quando Mima performa sobre palco ou sobre tela, e é particularmente assombrosa na cena do assassinato do fotógrafo, em que tudo exala uma corporalidade cruamente agressiva e responde ao fetiche com o horror. Os ápices sensoriais do filme se dão, assim, no encantamento do simulacro e na fisicalidade da violência: as reações conseguintes da juventude pós-estouro da bolha.

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Se a animação ganha involuntariamente tom premonitório, é principalmente pela rica formulação de um descolamento subjetivo com a realidade urbana concreta. Decerto que o simulacro não opera como gatilho da violência, mas de vertiginosa sublimação individual num sistema social de severa contenção física e subjetiva em prol da produtividade, na época em decadência. O funcionamento nipônico usual é o do sacrifício. Pelo bem maior, pela manutenção do ritmo coletivo (que, em última instância, é o da economia nacional). Mas a crise de uma ideologia da unidade corpórea e mental entre indivíduo e nação, iniciada com a derrota na Segunda Guerra e aprofundada com a modernização econômica conseguinte (mote central da filmografia de Ozu), esgarçou-se com o tempo e desembocou na violência anárquica como resposta extrema.

É partindo das reconfigurações dessa relação que o horror satírico de Sion Sono, O Pacto (2002), opera. Na cena de abertura, cinquenta alunas secundaristas se jogam, de mãos dadas e cantando em gracejo até três, nos trilhos do trem. A sequência é frenética e ironicamente ornada por uma trilha folk alegre e dançante, enquanto os passageiros horrorizados à plataforma são banhados por violentos jatos de sangue. Apenas um plano mostra uma jovem tendo sua cabeça esmagada de forma cartunesca pela roda do trem, todo o resto é o devastador efeito: uma surreal chuva vermelha, tão poderosa que cobre tudo e todos no local e quebra o vidro da janela de um dos vagões. O passar do trem gera um jorro tão forte que obstrui a objetiva da câmera – uma resposta ácida a L’Arrivée d’un train à La Ciotat (1895), dos irmãos Lumiére, símbolo da modernidade e do advento do cinema: o sangue faz irrefreável o andar maquínico, que por sua vez só gera ainda mais sangue. A sanguinolência cumulativa representa o peso social massivo do acontecimento que, como no caso dos crimes de Azuma, será o primeiro de uma onda suicida no país.

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Os suicídios que se dão, entretanto, são expressivos exatamente pelo seu teor anti-sacrificial. A fracassada busca policial pelo suposto “culpado” do ocorrido é, em última instância, uma busca pelo seu sentido. Ela parte, certamente, de algumas evidências que sugerem conexão entre os eventos (como os rolos de pele deixados nas cenas “de crime”), mas também da lógica cultural que gerou o seppuku, esse gesto final de honra e dignidade por samurais e ronins após serem capturados por inimigos ou terem seus senhores feudais mortos. Porém, os gestos, se entendidos enquanto “movimentos expressivos a um interlocutor”, são nada confiáveis neste filme: os suicidas são sorridentes e jocosos[5], e a escolha pela autodestruição parece nada além de um paradoxo. Uma enfermeira, ao abrir a janela e sentir o vento pelos cabelos, diz ao segurança do hospital que se sente ótima num tom satisfeito consigo mesma logo antes de se jogar pela abertura. Uma dona de casa, no imparável cortar de um legume, fatia junto seus próprios dedos em frente à filha pequena (formando um riacho de sangue pela pia, o movimento automático sempre a vazar um abundante vermelho) sem abalar o sorriso ou a serenidade de seu semblante. O indivíduo se faz opaco, ilegível ao coletivo, pois o seu gesto traz uma camuflagem automática, cuja espontaneidade verdadeira surge com a violência autoinfligida. Qualquer pessoa, a qualquer momento e em qualquer lugar, sem qualquer sinal prévio, pode vir a brutalmente se matar. A opacidade social faz das reais intenções de cada um uma completa incógnita, até o corpo que a performa entrar em combustão.

Se apenas o suicida sabe o porquê do suicídio, é porque, a priori, ele é um ato individual, cujas motivações podem nascer e morrer dentro da subjetividade que por ele decidiu. Se ele é um ato individual, descolado e independente do coletivo que o corpo como agregado, tem potencial subversivo. À medida em que é feito em grupo, torna-se um ato anárquico. Mas à medida em que é ferramenta de um gracejo jovem, torna-se entretenimento. O caso das jovens ganha grande atenção e, em consequência, inspira ecos performáticos. Na manhã seguinte ao incidente das secundaristas na estação, estudantes no terraço de uma escola brincam incitando o suicídio uns dos outros. Uma moça, a fim de atenção e instigada pelos colegas, se posta à beira do terraço, ameaçando fazê-lo para fundar o “Clube do Suicídio”. Uma outra se posta a seu lado, falando que faria de verdade, diferente dela. Cerca de 10 alunos se juntam no total. Dão as mãos, contam até três e pulam… mas três sobram. Nem todos levaram de fato a sério. Uma das que sobrou vai até um rapaz catatônico e o puxa junto consigo para baixo, contra a vontade dele (“Temos que morrer”, ela diz). Alunos e professores correm para salvar a única que ainda não pulou: a primeira a subir na beira do terraço. Ela incitou todos, agora não pode ser a única a viver. Ela se vira para trás e diz: “Clube do Suicídio. Nós somos os fundadores do Clube do Suicídio.” e pula.

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A cena se destaca no filme sem fugir de seu tom geral por desenhar complexidades e contradições que surgem da opacidade comportamental, e por ela se sabotam. O tortuoso encontro entre inconsequência pueril (lidar com o suicídio como um jogo adolescente), joguete performático (fingir querer se suicidar até que seja verdade), coerção do coletivo (não poder voltar atrás quando todos os outros já seguiram em frente) e desejo de status (querer impressionar os colegas seguindo com a ideia errada e, em última instância, ser marcado como “fundador” da mórbida associação) explica a morte de outro número significativo de estudantes, nuances que apenas existem pela hesitação dos três adolescentes. Um evento deslocado do primeiro, mas que será tomado pela polícia e pelos jornais como a formação de uma tendência. Eis, então, que o “Clube do Suicídio”, ao partir de diferentes grupos jovens e sob a alcunha de “clube”, torna-se uma sorte de moda, aderida em massa. Sequências de violência como a cena de abertura são guiadas pela trilha, num conjunto que flerta ironicamente com o formato de videoclipe. O pop japonês, também aqui, se sobrepõe à ultraviolência anárquica, mas no que tange sua fome de potência performática e de produção de seguidores. Numa cena, Gênesis, o líder de uma gangue de assassinos seriais (interpretado pelo músico Rolly Teranishi) canta e toca guitarra para uma informante da polícia que sequestrou, enquanto um de seus capangas estupra e mata uma moça a facadas. Ele a deixa entregá-lo e ser falsamente culpado pela histórica onda de suicídios mídia nacional afora: o que ele queria era ser um ícone pop, o rosto por trás da moda da morte (sua falsa Gênese). Mais uma vez, as instituições do coletivo caem nas pistas fajutas da performance.

Sono demoniza menos o pop que o sistema subjetivo em que ele é ferramenta. A raiz de tudo está, ironicamente, numa banda adolescente de j-pop chamada Dessert. A namorada de um fã que se jogou do alto de um prédio encontra pistas que a levam aos bastidores do próximo show da banda, onde descobre um culto presidido por crianças. Sobre um palco, e com um holofote sobre sua cabeça (o teste final da integridade se dá no lar da performance, do distanciamento do si intrínseco), os menores, no auge da idade curiosa, atiram, da platéia, perguntas de fervor existencialista: “Você veio refazer a conexão consigo mesma? Ou veio destruí-la? (…) Está conectada consigo mesma como eu e você, como você e seu namorado?”. Ela responde com um impaciente e seguro sim. O questionário do culto punha em cheque única e simplesmente o quanto o ser é sujeito e o quanto é dependente do outro – em última instância, se existe além da opacidade que usa para funcionar em coletivo. Sob a salva de palmas da plateia, cai um pano com alegres desenhos infantis coloridos. Era redescobrir a existência no mundo com os sentidos mais primários a resposta de tudo?

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Mima também só triunfa com a autoafirmação em meio à anarquia dos sentidos. Ela descobre que sua gerente, a ex-pop idol Rumi Hidaka, teve um surto psicótico e assumia a personalidade da Mima-virtual, sob a qual cometeu os crimes. Tudo culmina num embate final entre a Mima-sujeito e sua imagem, corporificada em Rumi. Em fuga, ela pula da janela de seu apartamento e corre pelas ruas gritando por ajuda, sangrando com a facada que tomou no ombro. Ela restabelece o contato com o concreto à sua volta, com o concreto de seu corpo.

Tempos depois, saindo do centro psiquiátrico em que Rumi está internada, nossa protagonista tem outra identidade visual. Duas enfermeiras se perguntam se era de fato a Mima Kirigoe ou alguém parecido. Dentro do carro, no banco do motorista (ela não mais é levada por um trem – talvez o sob o qual as secundaristas se jogaram – mas agora guia o próprio deslocamento), Mima quebra a quarta parede no plano final do filme, olhando-nos pelo retrovisor e proferindo num sorriso: “Não, eu sou a real!”. O jogo entre imagem e realidade não vai terminar, e, mesmo que não saibamos onde ir, a capacidade do movimento é segura com a certeza do existir.

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[1] “Japan’s Financial Crises and Lost Decades – Federal Reserve ….” https://www.dallasfed.org/assets/documents/institute/wpapers/2014/0220.pdf. Acessado em 17 jun.. 2020.

[2] “14-Year-Old Arrested in Japan for the Brutal Slaying of a Child ….” 29 jun.. 1997, https://www.nytimes.com/1997/06/29/world/14-year-old-arrested-in-japan-for-the-brutal-slaying-of-a-child.html. Acessado em 17 jun.. 2020.

[3] “Violent juvenile crimes in Japan point to a deeper social crisis ….” 18 out.. 2000, https://www.wsws.org/en/articles/2000/10/jap-o18.html. Acessado em 18 jun.. 2020.

[4] A representação do corpo violado (em predominância o feminino) é particularmente simbólica na cultura japonesa, frequentemente retomada em momentos de turbulência sociopolítica. É expressivo, portanto, que no filme as vítimas sejam os homens produtores dessa imagem. Sobre o assunto, há a tese de doutorado de Marcia Regina Casturino, Autonomia e sujeição na aporia da modernidade japonesa: Representações do corpo violado como expressão política. Disponível em: http://www2.dbd.puc-rio.br/pergamum/tesesabertas/1211382_2017_completo.pdf

[5] O suicídio sorridente é, interessantemente, uma imagem que aparece em trabalhos de Satoshi Kon: a corrente de executivos risonhos que se jogam em mergulho sincronizado do topo de um prédio corporativo em Paprika (2006), e a abertura de Paranoia Agent (2004), com seus personagens gargalhando em cenários de desolação. A primeira é a protagonista, rindo descalça do topo de um prédio.

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Entrevista: Luiz Pretti

Por Pedro Tavares

Coletivo-Alumbramento
Estrada Para Ythaca

Junho, 2020. Pouco mais de dez anos do prêmio dado para Estrada Para Ythaca na Mostra Aurora dentro da 13ª edição da Mostra de Cinema de Tiradentes, tive a oportunidade de conversar com Luiz Pretti que, à época, junto de Guto Parente, Pedro Diógenes e Ricardo Pretti dirigiu, produziu e escreveu o filme e compunha a Alumbramento. Muita coisa aconteceu para a Alumbramento desde então, inclusive o encerramento de suas atividades oficialmente como um coletivo, ainda que seus integrantes colaborem uns com os outros em seus respectivos filmes. Para o cinema brasileiro, na última década, o turbilhão foi ainda mais intenso. Da ascensão da produção de filmes independentes, cursos e mostras de cinema ao declínio que chega à máxima intensidade em plena pandemia. O que naturalmente serviria como um papo-celebração sobre o trabalho de um modelo-chave de produção independente nos últimos dez anos virou um diagnóstico sobre como a união e poesia trazem a mínima sensação de liberdade em tempos de revolta.

Começo pulando algumas etapas na linha do tempo falar sobre um momento muito simbólico para a carreira da Alumbramento que é a cena-motim final d’Os Monstros. A cena do free jazz, especificamente. Gostaria que você falasse um pouco sobre a criação e a sensação sugerida por ela.

Luiz: Cara, a palavra motim a princípio me remete a algum tipo de relação com uma força maior, geralmente representado pelo Estado, pelo exército. Nesse sentido específico, acho que não tem nenhum filme da Alumbramento com esse tipo de relação, talvez Com os Punhos Cerrados. Mas a ideia de unir forças para enfrentar os desafios impostos pelo capital, por exemplo, são o cerne do cinema feito pela Alumbramento. Tudo que foi feito lá, em alguma medida, era um pequeno levante frente à certas regras impostas pelo mainstream do cinema, como ele é financiado, etc. Todos os filmes ali têm a sua parcela e sua forma particular de fazer esse levante. Agora, sobre essa cena d’Os Monstros, é uma cena que eu tenho um carinho especial. Acho que a música de improviso, pra mim com certeza, foi uma referência muito forte sobre o que poderia ser esse coletivo. Na música a gente via uma forma de co-existir, com vozes vindas de diferentes culturas, com visões de mundo diferentes e que se encontram através da música e conseguem formar esse coletivo provisório de uma força incrível.

E o free jazz faz parte do seu processo de criação? Pois acredito que ele incita algum tipo de ordem numa segunda camada.

Luiz: Sempre conversamos muito sobre como traduzir o improviso livre musical (que é misto de espontaneidade e composição) para o cinema. Não acho que conseguimos, mas a cena final d’Os Monstros é debitaria das inúmeras ideias e tentativas. E mesmo hoje é um desafio que continua me interessando.

Os Monstros - Improviso
Improviso em Os Monstros

A Alumbramento começou em 2006, certo? Se me recordo vocês fizeram um longa-metragem filmado no Leblon…

Luiz: Sim, mas isso foi antes de irmos para Fortaleza. Ainda não existia a Alumbramento. Foi bem antes, na verdade, e se chamava A Estética da Solidão e só foi exibido na Mostra do Filme Livre em 2000. A gente conseguiu uma mini-DV emprestada com um amigo e testamos algumas coisas. É um filme muito mais de exercício, de rascunho do que exatamente um filme…

Um detalhe que lembrei agora e que acho importante mencionar, é que o site da Alumbramento, que também é um gesto de preocupação com a memória, disponibilizou os filmes do coletivo e também de realizadores do mesmo círculo. Agora com o fim do coletivo, como vocês pretendem manter a memória viva? Existe essa intenção?

Luiz: Existe, demais. O site infelizmente não está no seu melhor, precisamos atualizar alguns links antigos. O site é dividido em três seções: os filmes, os textos e uma parte de memórias, com fotos de making of, fotos da galera. O site foi criado justamente pra resguardar a memória da Alumbramento. Lá tem um link que leva para três textos diferentes, um de 2006 que escrevi para simbolizar o início do coletivo e falar sobre nossas motivações naquele momento. Um segundo texto que eu escrevi quando o coletivo passou por uma transformação com a saída de algumas pessoas e a entrada de outras, diminuindo o seu tamanho. Tentei colocar ali quais seriam as motivações dessa segundo fase da Alumbramento. E tem um terceiro texto escrito pelo Ricardo uns dois anos após o fim da Alumbramento e se esforça em fechar os trabalhos relembrando pontos chaves na história do coletivo. Os textos nunca vão dar conta do que foi a Alumbramento, mas é um desejo de guardar uma parcela dessa memória, mesmo sabendo que parte de pontos de vista específicos que não necessariamente representam os vários outros pontos de vista. Dentro do coletivo cada qual tem sua história pra contar. Eu adoraria ver essas histórias contadas, compartilhadas e preservadas.

Já que falamos de memória…há um filme inicial oficial da Alumbramento?

Luiz: A gente considera que o primeiro filme da Alumbramento é o Sábado à Noite do Ivo Lopes Araújo, lançado em 2007. Sem dúvida alguma é o ponto de partida do que veio a ser a Alumbramento. Todas as pessoas que trabalham nele fizeram parte do coletivo diretamente ou eram muito próximas, envolvidas. Sábado à noite é muito importante, pois uniu pessoas em torno de um projeto cinematográfico que buscava uma relação intensa com a cidade de Fortaleza, que era uma das questões primordiais do coletivo. Perguntas como: a gente como artista consegue intervir na cidade, criar relações entre o que a gente faz e as pessoas que habitam a cidade? Outros filmes nossos partiram desse interesse, como o Praia do Futuro…são filmes que desejavam se colocar em relação ou em conflito com a cidade. Geralmente exibíamos os filmes no São Luiz, um cinema da região central da cidade. Teve uma sessão histórica do Sábado à noite, com pessoas que embarcaram no filme, outras que detestaram, mas tinham pessoas de todos os cantos da cidade, do entorno, que entraram lá pra assistir.

Coletivo-Alumbramento
Sábado à Noite

Outro ponto importante é o Estrada Para Ythaca. Já havia uma movimentação para um “novo cinema” com a criação da Mostra Aurora, a sessão do Novíssimo cinema brasileiro que posteriormente virou a Semana dos Realizadores no Rio, mas o Estrada para Ythaca passou do circuito dos festivais e chegou ao circuito. É um marco muito importante. 

Luiz: Sim, ele foi lançado na Sessão Vitrine.  Só para não perder o fio, os primeiros quatro anos da Alumbramento foram essenciais para que o Estrada Para Ythaca pudesse existir. Foi o momento que começamos a realizar um cinema que conseguia quebrar com certas estruturas opressoras, que geralmente aceitamos de cabeça baixa, que determinam as regras para ser um cineasta…

O cinema da retomada.

Luiz: A retomada não retomou porra nenhuma. O cinema brasileiro continuou muito restrito a uma elite que já estava segurando o dinheiro, era detentora do poder em relação ao cinema brasileiro. Não foi nada democrática essa retomada. Em 2006 começa uma reação a isso, com o entendimento que o Brasil é algo muito maior que Rio de Janeiro e São Paulo. O que parece hoje óbvio, não era nada óbvio. Quando eu e Ricardo decidimos sair do Rio para ir para Fortaleza, nós éramos ridicularizados. O preconceito que existia…e eu tô falando de gente do cinema, progressista. Tinha muito preconceito mesmo. Esse movimento que a gente fez teve muita reação de piada. Bem, a gente era visto como uma piada. E falavam que a gente ia sair do Rio, onde acontece tudo…não acontece porra nenhuma! No Rio, só se você trabalhar na Globo ou na Conspiração. E eu não queria entrar no esquemão. Eu não julgo ninguém que trabalha para lá, mas acho estranho considerarem isso um grande acontecimento, um plano de vida. Eu tive sorte de ir para Fortaleza na época do governo Lula, pois permitiu que o Brasil como um todo entendesse que o país é maior que o sudeste. Em Fortaleza a gente começou a realizar filmes independentes, da nossa maneira e quebrando a lógica estabelecida. Começamos a ter alguma atenção, tinha algum desejo de conhecer o cinema fora do eixo Rio-São Paulo. E eles começaram a serem vistos nos festivais. Quando a gente lançou parecia que as pessoas se perguntavam o que tinha acontecido em Fortaleza, de repente, e achavam que o Estrada Para Ythaca era o início da Alumbramento, mas não é.

E isso ficou com claro com o interesse pelo cinema mineiro, especificamente, e pelo diálogo de vocês com os autores mineiros.

Luiz: Sim, total. A [produtora] Teia era uma referência pra gente, uma galera de BH. Isso começou com o Ivo [Lopes Araújo], o primeiro filme que ele fez por lá acho que foi O Céu Sobre os Ombros do Sérgio Borges. Depois ele fez A Falta que Me Faz da Marília Rocha, Girimunho da Clarissa Campolina…ele ficou muito empolgado com o pessoal de BH, mostrou os filmes da galera pra gente, do Dellani [Lima].

E vocês já mensuraram o tamanho dessa ação que de certa forma é contrária ao cinema da retomada? 

Luiz: Pra mim é um pouco difícil mensurar. Uma coisa que o Estrada Para Ythaca fez que eu acho muito importante, mais que conquistar circuito, foi abrir a porta do “podemos fazer filmes”. Sem precisar fazer no sistema tradicional. Acho que a nossa geração e a seguinte foi muito influenciada por esse gesto. O Ythaca, em alguma medida, empolgou a galera a fazer cinema, fazer bons filmes, sem precisar passar por todo o processo habitual. Ao invés de esperar dez anos pra fazer seu primeiro longa, essa geração esperou dois, três anos. E em muitos dos casos feito com espírito coletivo, com orçamento de curta, ou nenhum orçamento. Isso é uma quebra de paradigma. Mas não chegamos a um circuito maior, estamos num nicho. O circuito de cinema é dominado pelo mainstream e furar isso é muito difícil, ainda mais com esse cinema que fazemos.

E nos tempos de streaming a internet é um bom lugar para distribuição? Como falamos, o site de vocês sempre disponibilizou por tempo limitado os filmes…

Luiz: A gente sempre quis abrir pra internet. É um campo fértil para alcançar as pessoas. Agora tão na moda, em tempos de pandemia, mas sempre fizemos sessões virtuais. Em 2012 fizemos com os curtas. A ideia de um curta-metragem ficar preso aos festivais é muito estranha. A gente deixava por uma semana porque o tempo limitado faz as pessoas não perderem os filmes no oceano de informações. Colocamos o Não Estamos Sonhando, Dizem que os cães veem coisas, Retratos de uma paisagem. Aí notamos que seria legal ter filmes de outros realizadores com dificuldade de distribuição. Aí nós exibimos filmes do Ricardo Miranda, da Helena Ignez, Luis Alberto Rocha Melo, Paula Gaitán, Flora Dias…foi um momento ótimo. E também convidamos pessoas para escreverem sobre os filmes, tipo o Hernani Heffner escreveu sobre o filme da Flora Dias. É a ideia de criar uma cultura ao redor desses filmes. E recentemente colocamos o Estrada Para Ythaca online. O Guto me mandou uma crítica de um usuário do Letterboxd sobre o filme que é super sincera e direta, e esse tipo de retorno é o mais legal. Digo isso sem demagogia. É mais importante que o reconhecimento do festival X ou Y. No fundo o que dá sentido ao que fazemos é a troca com as pessoas, seja em pequena escala ou grande.

Sobre isso, lembro-me da primeira vez que vi o filme na mostra dedicada à primeira década dos anos 2000 curada pelo Eduardo Valente. Preciso revisitá-lo, mas lembro de referências claras ao Glauber ali.

Luiz: Sim, tem a cena do Glauber no Vento do Leste. A gente faz uma citação a essa cena.

E depois do Ythaca como foi o fluxo de produção de vocês? Havia algum tipo de planejamento “de carreira” para os longas? Visto que todos eles de alguma forma rodaram em festivais e foram lançados no circuito.

Luiz: Não, isso não era planejado. A gente nem sabia da possibilidade de carreira pra filmes. Depois do Estrada Para Ythaca a gente começou a entender que haviam espaços pra passar os filmes. A gente mandou o Ythaca pra Tiradentes meio que rezando pra passar, já preparados pra levar um não. Como depois o filme teve alguma reverberação, a gente começou a conhecer alguns festivais, outras pessoas tiveram interesse em assistir os nossos filmes, tanto aqui quanto lá fora…

E como foi essa chance de intercâmbio com o público e realizadores internacionais? 

Luiz: Uma sessão muito legal foi no BAFICI. Marcou a gente na época, abriu uma possibilidade de diálogo com o pessoal da América Latina. A gente não tem muito ainda, é uma pena. Depois da exibição a gente teve uma conversa longa, fomos pro bar com uma galera jovem, todos realizadores. E abriu-se ali uma possibilidade de intercâmbio, ideias de fazer filmes. Acabou que não rolou nada, mas no ano seguinte quando voltamos com Os Monstros, o pessoal também estava lá exibindo um filme novo chamado Hoje eu não tive Medo, que era claramente um gesto de libertação e que dialogava com Ythaca. O diretor desse filme já havia até passado um filme em Cannes. Ele se chama Ivan Fund.

E com os festivais de fora, havia um trabalho concentrado nas burocracias de inscrições? 

Luiz: Na verdade ninguém queria fazer nada disso! O Guto tinha mais paciência, chegou a fazer uma planilha com uma lista de festivais que nós exibimos os filmes, pra facilitar. Mas na hora de mandar era sempre uma bagunça…Aí gente tentou fazer da Alumbramento uma produtora respeitável, contratamos uma estagiária, a Amanda Pontes (que hoje é ótima produtora e diretora e continua trabalhando com Carol e Pedro), e ela fazia esse trabalho de organizar melhor os festivais e contatos.

E depois da Alumbramento, cada um foi fazer o seu projeto solo. O Ricardo fez um filme para a trilogia Sonia Silk com o Bruno [Safadi], o Guto fez o Doce Amianto, você se concentrou no trabalho de montador…

Luiz: É, eu sou montador. O Bruno fez o Uivo da Gaita, o Ricardo fez O Rio Nos Pertence e tem o Fim de uma Era, que é dirigido pelos. E é isso, o Guto fez o Doce Amianto com o Uirá [dos Reis] e A Misteriosa Morte de Pérola com a Tici [Ticiana Augusto Lima], fez o Inferninho com o Pedrinho [Pedro Diógenes] e com o grupo de teatro Bagaceira. Você falou em projeto solo, mas é curioso porque a maior parte dos filmes depois da Alumbramento foi feita em parceria com alguém. O Guto fez sozinho  O Curioso Caso de Ezequiel e o Clube dos Canibais, o Ricardo fez O Rio nos Pertence sozinho também, eu fiz o Enquanto Estamos Aqui com a Clarissa [Campolina], fizemos O Porto, eu, Ricardo [Pretti], Júlia [de Simone] e Clarissa. Tem um tanto de filmes…eu tenho prazer nessa troca. É um desejo de continuar fazendo filmes onde minhas ideias podem ser confrontadas com as ideias do outro. As ideias fundadoras do filme, sabe?

Coletivo-Alumbramento
A Misteriosa Morte de Pérola

E houve um fator decisivo para esse distanciamento de vocês como um coletivo?

Luiz: Acho que um fator foi a intensidade que a gente se jogou nessa parceria. Não há relação que aguente. É muita intensidade. O Guto foi o primeiro a sacar que as ideias que ele tinha não ia…ia ser demais. Ele tinha um desejo de pesquisa de cinema que dentro do nosso coletivo não tinha espaço e naturalmente foi encontrando o seu lugar para realizar sua pesquisa. A gente fez cinco longas em conjunto e vários curtas-metragens em que participávamos como equipe, mas chegou a um certo esgotamento. Ia implodir. Precisávamos extravasar para outros lados.

Há um caso interessante nessa trajetória que é o de Com os Punhos Cerrados, considerado como um comentário imediato sobre as manifestações de 2013…

Luiz: Acho que é um filme que a cada dia que passa fica mais como um reflexo do nosso tempo. Eu gostaria de aproveitar para tentar consertar certos equívocos. As pessoas acham que é uma reação às jornadas de junho e na verdade não é. A gente filmou aquilo antes, mas ele foi exibido depois. Estreou em agosto de 2013 em Locarno e a reação em torno dele foi instantânea: um filme que respondendo à 2013. Mas ele foi concebido em 2012, em dezembro. Acho interessante que a gente fez esse filme antes de tudo ficar uma merda. Quando a gente lançou o filme ainda não tinha o golpe, mas sabíamos que as manifestações não tinham dado certo. Já se via a ascensão de figuras como o Marco Feliciano, essa galera que tomou o poder aos poucos…e quanto mais eles apareciam, mais absurdo o Brasil parecia. E com isso mais sentido o filme fazia. Uma das críticas que o filme teve é que ele era muito caricato. Porque a figura do vilão, ele ficava de costas com um discurso reacionário exagerado…e logo depois disso apareceu esse pessoal com discursos semelhantes, à la tradição família propriedade. Nesse momento, o filme parecia uma reprodução fiel do que a gente vivia no Brasil. E ainda vive. Esse embate dos discursos da extrema direita aos discursos anarquistas do filme é o nosso dia-a-dia, de certa forma. Seja no jornal, nas mídias sociais…e no filme a gente dizia que a batalha estava perdida. Ao mesmo tempo insistíamos na ideia de movimento, de continuar se movimentando, como forma de continuar vivo. Eu gostaria de revê-lo para saber como ele bate hoje em dia. Acho que isso está na cena final d’Os Monstros que você comentou. A gente entendeu por via do anarquismo que a primeira transformação é a do eu. Acredito que assa transformação possa se dar pela poesia, no sentido amplo, como uma experiência poética de vida, que qualquer ser humano pode ter, uma experiência de transformação, maior…que acabar por transformar a sociedade.

Coletivo-Alumbramento
Com os Punhos Cerrados

Então temos um certo complemento ao comentário inicial dessa cena.

Luiz: Sim, e acho que o Estrada Para Ythaca também tem um pouco disso. É uma coisa muito forte que a gente tinha nessa época. É conseguir ver a arte num lugar cotidiano. Não fazer uma diferenciação da expressão artística com a vida cotidiana. Quebrar essas barreiras e é por isso que eu falo “poética” e com isso, por exemplo, viver o tempo de uma forma particular. Por exemplo, no Ythaca, viver o tempo pleno do luto. Não deixar que a máquina do capital atropele o tempo do luto. O Ythaca é basicamente sobre isso e no filme tem uma fusão entre vida e arte nesse sentido.

Como o poder da música pra sintetizar tudo isso também.

Luiz: O caso da música sempre traz isso pra mim também. Ela tem o poder…é uma coisa que eu gostaria de estudar um pouco mais.  A relação entre a música de improviso negra vinda dos anos 60 e 70 e o ativismo político da mesma época. Vejo nessa música uma forma de ação direta. É pra mim entrar em contato direto com isso que eu chamo de vida poética. Acho que não dá pra desassociar o que Malcom-X e Martin Luther King faziam na luta política daquilo que John Coltrane estava fazendo na música. E acho que isso ainda pode ser uma chave de entendimento para nós, de como podemos agir no mundo atual. Perder um pouco o sentimento de impotência. Na sessão de curtas da Sarah Maldoror, a Janaína Oliveira fez uma associação da obra da Sarah com a do o Zózimo Bulbul e ela relacionou o Art Ensemble of Chicago na obra da Maldoror com o Coltrane no filme do Zózimo [Alma no Olho, 1974]. Ela percebe um ponto de conexão entre esses filmes, realizados por dois cineastas da diáspora africana, através da música. Acho isso muito bonito. A música como um elo, como aproximação das diferentes lutas.

Isso me remete ao movimento No Wave de Nova York, que tinha ligação direta com a música de improviso e o cinema de improviso. Os filmes do Amos Poe, da Beth B…filmes sem orçamento e músicos que tinham carreiras baseadas no underground.

Luiz: Essa cultura do do it yourself conecta com certeza. O movimento punk, o movimento free jazz, o reggae na Jamaica, o funk no Brasil…

E sobre o tempo de produção/filmagem/montagem? Geralmente quando duas ou mais pessoas estão na direção a diferença de ritmo cria algumas dificuldades…

No caso do Com Punhos Cerrados, a pré, ou uma espécie de pré, foi em dezembro de 2012 e já tinha uma espécie de equipe formada. As filmagens foram no final de dezembro e começo de janeiro. Os Monstros passamos três semanas filmando. O Ivo fotografou uma parte e o Vitinho de Melo fotografou outra parte. O No Lugar Errado foi super rápido porque o grupo tinha uma janela de uma semana de ensaio da peça e a gente foi lá e filmou nessa semana. O que a gente conseguiu filmar virou o filme. O Estrada Para Ythaca foi uma semana também, uma semana na estrada, filmando direto. À noite a gente decupava, de dia a gente filmava, foi um trabalho insano. A gente editava tudo junto…passamos um tempo montando, tivemos duas ou três etapas de montagem. A gente tinha treze horas de material bruto. A primeira cena, a do bar, foi a mais difícil pra montar. A gente voltou várias vezes nessa cena. Já Os Monstros foi ao contrário, a gente montou em uma semana, pois tinha uma narrativa simples e trabalhamos com planos-sequência. Foi bem rápido.

E nessa época você começou a montar mais filmes, inclusive de outras pessoas…

Luiz: Por mim poderia ser de mais pessoas até. Eu adoro montar filmes, tenho um prazer enorme. Adoro entrar e participar de universos novos e sinto que contribuo bastante.

E aquela pergunta cliché de quarentena: conseguiu produzir alguma coisa nesse tempo?

Luiz: Sim, eu estou finalizando um curta novo chamado Jogo de Sete Lances (Perdido No Fabuloso Universo Dos Fragmentos). Eu comecei em pré-quarentena, ainda estou mexendo um pouco na imagem e no som. É um filme que fiz a partir de arquivos pessoais, dos últimos sete, seis anos. Ele tem uns vinte minutos.

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Crônica de uma Criança Solitária: A balada de Leonardo Favio

Por Daniel Dalpizzolo

Entre cigarros, bofetadas e castigos, um grupo de garotos atravessa os dias em um reformatório na Argentina. Não sabemos quem são ou o que passaram até chegarem ali, mas as cenas introdutórias revelam um núcleo de personagens ao mesmo tempo homogêneo e singular. Embora eleja entre os garotos um protagonista para acompanhar no restante da narrativa (Polín), o olhar lançado por Leonardo Favio para aquele ambiente é preciso ao estabelecer seu contexto, instaurando, por meio de poucos e elaborados planos, um cenário sombrio habitado por múltiplas almas solitárias, moleques errantes cujas trajetórias de vida os levaram para trás das mesmas grades e muros, de onde expressam sua inquietação provocando brigas no banheiro, jogando, contrabandeando fumo ou curtindo o alvorecer da sexualidade ao redor de uma foto da Monica Vitti.

As sequências iniciais inserem Crônica de uma Criança Solitária entre as grandes obras que exploram a juventude em conflito com os limites da ordem social, a exemplo de clássicos europeus como Zero de Conduta, de Jean Vigo, e Os Incompreendidos, de François Truffaut. Entretanto, se existem óbvios pontos de conexão temática entre essas obras, todas elas debruçadas sobre um mesmo recorte de final da infância de seus personagens, o que imediatamente salta aos olhos na estreia de Favio são os elementos que exaltam suas singularidades: os ambientes decrépitos do reformatório, com iluminação escassa, vidros quebrados e paredes descascadas; os brinquedos singelos ou imaginários; as fardas militares; os olhares duplamente tristes dos garotos; as sombras preponderantes no quadro; o ritmo singular das cenas, que parecem suspensas no fluxo de um pesadelo.

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Estamos, enfim, na América Latina dos regimes fascistas, na qual, entre golpes militares e governos provisórios, crescia uma juventude periférica apartada dos principais avanços da modernidade. Se os jovens de Truffaut rebelavam-se contra as autoridades matando aula para frequentarem casas de jogos e salas de cinema parisienses, aos de Favio resta a crua dimensão da realidade das ruas, percorrendo becos das periferias argentinas, espiando atentamente sobre o ombro antes de virarem a esquina para desviarem de desafetos ou da polícia. Celebrado como uma das mais importantes vozes da geração do cinema argentino que despontou na década dos Cinemas Novos, Favio aproxima sua obra do que Glauber Rocha nomearia como Estética da Fome, filmando em diálogo com mestres do cinema europeu, porém dando forma a uma estética que assimilava a realidade latino-americana e a representava em tela por meio de uma assinatura urgente, autoral e singular.

A assimilação dessas influências torna o trabalho de Favio ainda mais notável. É possível pensar em Vigo e Truffaut, mas também em Robert Bresson, Jean-Luc Godard, Jean Renoir, Roberto Rossellini, Michelangelo Antonioni e Ingmar Bergman, com os quais a relação se constrói às vezes simultaneamente, em uma mesma cena, na transição de um plano para outro. Cineastas formalmente muito distintos, mas que compartilhavam um mesmo anseio por materializar em suas imagens as inquietações existenciais e sociais da Europa pós-guerras, e que aqui tornam-se somente um ponto de partida para estabelecer um conjunto de referências que serão ressignificadas pelo modo como Favio articula a ação com o cenário filmado. Por essa perspectiva, é possível pensar que trata-se de um dos trabalhos mais complexos e ricos realizados na América Latina durante a década de 1960, a década em que, até então, com maior atenção se olhou para a história do cinema, propondo a partir dessa autoconsciência a construção de um novo marco revolucionário na cinematografia mundial.

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Como os filmes anteriormente mencionados, Crônica de uma Criança Solitária retrata uma juventude em revolta com o meio que habita. Mas a revolta, aqui, possui uma dimensão de tristeza e desconsolo. Relembro o filme com uma frase na cabeça: “A revolta é uma forma de impotência diante de uma situação de desespero”. A sentença é verbalizada por uma presa política recém libertada da prisão, durante uma conversa documentada por Pere Portabella em El Sopar, e revela uma perspectiva possível para dar conta das experiências representadas por Favio (por sinal, autobiográficas). Os garotos de Favio não escolhem a errância, são escolhidos por ela em razão da realidade que os circunda. Jovens desamparados, perseguidos pelo mesmo Estado que ignora sua existência enquanto não se tornam assunto das páginas policiais, mantendo esses garotos em um looping infinito entre delegacias, reformatórios e a incerteza das ruas.

Por esse contexto é que a fuga da prisão, o ímpeto que materializa a revolta de Polín logo no primeiro terço da obra, é das mais tristes cenas de fuga já filmadas, lembrando uma versão ainda mais desolada do bressoniano Um Condenado à Morte Escapou. Ambos os registros compartilham um interesse pelo silêncio e pelo tempo dilatado da ação, que transcorre vagarosamente e acompanha com esmero os movimentos empreendidos pelo fugitivo – aqui, ao longo de mais de 10 minutos de um silêncio absoluto e ensurdecedor. Entretanto, enquanto em Bresson a fuga é o apogeu da narrativa, culminando no triunfo da ação prometido pelo título da obra (o condenado à morte escapa, afinal), em Favio a fuga de Polín é um recurso com o qual o diretor convoca o espectador não a desfrutar da sensação de liberdade com seu protagonista, mas sim a conhecer, ao seu lado, a dura realidade do meio em que sobrevive, a respirar o mesmo ar e mergulhar na mesma água condenada.

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O filme se divide entre o dentro e o fora da prisão. Entretanto, as sensações provocadas pelas imagens, seja em cenários abertos ou fechados, podem coexistir em um único plano. Estão no dentro e no fora os mesmos ambientes decrépitos, com iluminação escassa, vidros quebrados e paredes velhas e descascadas; os mesmos brinquedos singelos ou imaginários; as mesmas fardas militares habitando cada esquina; os mesmos olhares duplamente tristes dos garotos; as mesmas sombras preponderantes no quadro; o mesmo ritmo singular das cenas, que parecem suspensas no decurso de um pesadelo, mesmo quando ambientadas à luz do dia, mesmo quando parecem romper a regra à beira de um rio, numa tarde ensolarada de verão; uma tarde de liberdade que culmina na violação do corpo, no choro, grito, dor, silêncio, desespero, o desespero de lidar com a impotência que convoca à revolta.

A estética de Favio, que sustenta essa angústia pelos breves 75 minutos, é construída com um trabalho fascinante na condução da câmera, desde os inúmeros movimentos aos jump cuts da montagem, criando imagens ambivalentes e misteriosas, que flertam com o testemunhal, com a crueza do registro realista, ao mesmo tempo em que compartilham uma dimensão quase onírica. Uma explicação possível para o estilo elaborado de Favio talvez seja sua relação com a música, ofício que exercia ao lado de suas aventuras no cinema (onde, além de cineasta, também era ator). A impressão é de que Favio extrai musicalidade de suas imagens, as encadeia e as monta como quem combina notas e acordes para a composição de uma canção – cujos tons variam ao longo de sua obra, do dedilhado solitário de um violão em Crônica de uma Criança Solitária até chegar ao psicodelismo de um Nazareno Cruz e Lobo.

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Como uma balada tocada em repeat, o garoto solitário de Favio transita entre delegacias, reformatórios e a incerteza das ruas, idas e vindas para dentro e fora das grades, numa canção cujos versos conduzem sempre a um mesmo e melancólico refrão. O semblante desolado testemunhado em Polín ao longo do filme, a farda e as mãos autoritárias que sempre o espreitam, retornam mais uma vez à imagem final da obra, mas agora não somos somente nós que olhamos Polín. Polín também nos olha. O choro, a dor, o silêncio, o desespero, a revolta. Na última nota tocada, a criança desaparece na penumbra do quadro enquanto, com a quebra da quarta parede, nos convida a segui-la, para quem sabe, junto dela, atravessar os dias em uma cela, uma delegacia, um reformatório na Argentina, entre cigarros contrabandeados, bofetadas e castigos, provocando brigas no banheiro, jogando, contrabandeando fumo ou gozando o alvorecer da sexualidade ao redor de uma foto da Monica Vitti, até que a balada recomece mais uma vez.

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O complô dos inocentes — notas irresponsáveis sobre a criança no cinema

por Bernardo Oliveira

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1.

As representações da criança no cinema resultam de diversas concepções científicas e correntes relativas à educação e ao crescimento humano, com enfoque nos aspectos subjetivos (psicológicos) e sociais (sociológicos), que resultaram na instauração da ciência pedagógica e, como consequência, na invenção da sala de aula no século XIX. Buscando na história dos conceitos os elementos, acontecimentos e ideias que circunscreveram a emergência da sala de aula global e sua centralidade característica na educação moderna, percebemos que é neste período que o campo semântico da educação se estrutura. Primeiramente, segundo Philippe Ariès, através da ideia de passagem entre o mundo da criança e o mundo dos adultos. Depois, em termos de construção de ferramentas teóricas e institucionais que promovem termos como formação, transmissão, emancipação e autonomia. O que se observa, entretanto, é que como o peixe cai na rede, a criança entra no balaio da reprodução social, através de processos intensivos de formação e disciplinarização. “O grande tema da pedagogia que surge e se desenvolve no século 16” é o governo das crianças, escreve Foucault. Capturada por uma reforma do “ensigno”, a criança foi “ensignada” — (observação mental: ensinar, isto é, entranhar um signo).

2.

E é fácil notar como o cinema absorveu de diversas maneiras, algumas sem eira nem beira, não somente a criança enquanto corpo expressivo, como também enquanto significação de cunho social, cultural e político. Em relação à criança, a associação entre a escola e família encarna na maioria das vezes um poder de intransigência social, por vezes autoritário, a ser ultrapassado, ridicularizado ou destinado a servir como foco e motivo de resistência. A criança no contexto moderno/liberal/eurocêntrico: tanto a imagem “fofinha”, edulcorada e vulnerável de bochechas carnudas e rosadas, como o sujeito psicológico e social a ser educado (produção do comportamento) e ensinado (transmissão do conhecimentos) pela própria vontade do estado e da sociedade, dentro de estabelecimentos controlados e aptos a criarem força de trabalho e sociabilidade. A educação obrigatória emerge como um novo dispositivo para produzir obediência em massa, no contexto de migrações forçadas, cidades crescendo descontroladamente e ritmo frenético de crescimento em todas as ordens.

3.

Todavia essa estrutura que vai se formando ao longo do século XIX para ser plasmada sobre o corpo infantil, na maioria das vezes, não explica por si só a solidariedade da visão moderna “progressista” e seu diálogo direto e indireto com o senso comum: a criança apresenta, como a mulher e o escravo, um risco permanente de insurreição contrária à estabilidade social. Para que o perigo seja neutralizado ou domesticado, é preciso estabelecer um modelo através do qual as ferramentas disciplinares possam produzir um corpo dócil e moldável. Desde o século XVIII, com Kant, torna-se central a noção de que a criança deve ser educada e ensinada, visão esta que contrasta com as reais necessidades de controle. Não parece de todo absurda a mítica dickensiana acerca dos bandos que aterrorizam com saques e demais delitos as primeiras cidades erigidas pelo capitalismo fabril europeu do XIX, bandos de crianças esquecidas, insubmissas aos novos códigos e a marra das novas instituições.

4.

Nasce então a apologia da imagem de uma criança indefesa e inocente, que carece de cuidados e nada sabe da vida e do mundo. Aliás, sob esse ponto de vista, a criança não é bem um “ser”; como a mulher e o escravo diz-se dela que não possui densidade ontológica, que precisa ser controlada ou que deve vir-a-ser, “tornar-se” humana. Algumas crenças começam a ganhar forma: a disciplina, a economia do silêncio e da postura podem preparar esse corpo rebelde para assimilar palavras de ordem e conhecimento. A criança é mais um dos corpos a serem estratificados e sobrecodificados pelas instituições discriminatórias que nascem com a nova ordem. O século XX, o século da família e da conveniência, o século dos produtos “para todas as faixas etárias”, consolida-se a consciência de que produtos culturais específicos devem ser adaptados e traduzidos para uma suposta linguagem mais acessível ao “público infantil”. Materializa-se o fenômeno da infantilização da infância, do nivelamento arbitrário das crianças para fins de reprodução. É neste momento que, para uma sociedade, torna-se plausível adaptar, por exemplo, um disco dos Beatles para arranjos musicais considerados aceitáveis do ponto de vista de uma dita “música infantil”. É nesse panorama que o problema da criança e da infância é como que apreendido única e exclusivamente sob a ótica da infantilização familial-institucional.

5.

Nesse processo, generaliza-se a concepção de que a criança não é um adulto em miniatura, que a criança deve ser contida, educada e ensignada (como diz o outro, a escola provê as “coordenadas semióticas” que ensignam todas as “bases duais da gramática”…). No cinema, amplas representações da criança e da infância que se aproximam e distanciam do primado pedagógico moderno. Em sua base genealógica, nos séculos XVI e XVII, a Educação Moderna encontra o método mecânico-catecista dos Jesuítas, um dos primeiros experimentos concretos e exitosos de processamento didático coletivo (vale perguntar “exitoso para quem ?”, mas essa é outra história…). A criança é representada sob o duplo signo de uma representação estática e pueril e de, outra, a possibilidade de uma coletividade ameaçadora. A imagem da pureza absoluta se coaduna com a necessidade de produzir uma obediência coletiva, revelando um cotidiano brutal, através do qual se deseja criar um tipo de comportamento. Daí que algumas representações oscilam no mais das vezes entre a romantização da infância — o aspecto lúdico dos “anjinhos” ou o aspecto pitoresco dos “pestinhas” — e os enfrentamentos reais ocasionados pelo complô dos inocentes.

6.

Acerca do “pestinha”, os anos 90 trouxeram sua versão edulcorada por criancinhas loiras e sapecas através de filmes como “Esqueceram de mim” (1990), de Chris Columbus e “Dennis, o pimentinha” (1993), de Nick Castle. Já a relação entre a figuração da inocência e o chamado à responsabilidade como um fator de mediação, surge décadas antes, por exemplo em ”O Garoto“ (1921), de Charles Chaplin  — a infância romantizada, infantilizada, a celebração da inocência, a ética da empatia. Tomado pela ternura e vivendo nas condições que prenunciam a Grande Depressão, o Vagabundo recebe um chamado à responsabilidade: encontra um bebê órfão chorando no chão da rua. Imediatamente se vê compelido a participar da criação, do crescimento desta criança, pois, diz o senso comum, a criança é um ser indefeso que precisa ser protegido, educado e ensinado. A concessão do vagabundo à nobreza desse chamado corresponde a uma concessão que ele faz contra si mesmo. São conhecidas as sequências em que ambos, criança e vagabundo, se completam, sentados na beira da calçada ou dobrando uma esquina, como que exibindo a materialização de uma necessidade de acolhimento que se impõe. As crianças em “tempos interessantes”, retratadas pelo Neorealismo, são personagens inspiradas no garoto de Chaplin, como em “Ladrões de Bicicleta” (1948), de Vittorio De Sica. O impressionante personagem Bruno Ricci (Enzo Staiola), é forçado a adotar uma postura adulta e tomar iniciativa diante dos problemas, encarnando uma infância cuja representação fora atualizada pelas necessidades trazidas pelo contexto do Pós-Guerra. “Pixote, a lei do mais fraco” (1981), de Hector Babenco, esgarça ainda mais o tecido da infância destruída pelas condições políticas e sociais, exibindo o cotidiano escabroso de um menor abandonado de 11 anos nas periferias do Brasil.

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7.

Nos sécs XVII e XVIII, a pedagogia do detalhe de La Salle institui o chamado Método global, seguido dos conteúdos normativos no “aprender a pensar” de Trapp e na humanização dos humanos de Kant no XVIII. A sala de aula prussiana, conhecida como a primeira experiência organizada de educação pública coletiva, representa o coroamento dessas tendências disciplinares e normativas, transformando o grupo de crianças em rebanho e ligando seu controle a um poder pastoral. “A escola é uma cultura coercitiva”, escreve Kant em seu conjunto de anotações posteriormente intituladas “Sobre a Pedagogia”, postulando a vigilância e a correção como tarefas da educação. Para aprender a pensar, para manejar os códigos civilizacionais e participar da sociedade, o corpo da criança deve ser controlado, calado e, daí sim, ensinado.

8.

Nos anos 30, surge um filme de revolta infantil coletiva, que bota abaixo o otimismo rousseuaniano: “Zero de Conduta” (1933), de Jean Vigo expõe os perigosos e contraditórios códigos do complô infantil. A criança isolada, enquanto modelo conceitual, remete à puerilidade, mas em grupo, organizados e agindo coletivamente, a potência pueril se desdobra em características capazes de desordenar os espaços disciplinares, como as guerras que ocorrem no refeitório e no dormitório. A ação coletiva desse corpo rebelde requer todo um aparelho de vigilância que, contudo, falha. Usando as penas dos travesseiros e a câmera lenta, Vigo, então, converte o corpo coletivo rebelde em uma ordem angelical, expondo a ironia ambígua de uma oscilação que é marcada no próprio projeto de controle do corpo infantil. Alguns filmes manifestam essas relações ambivalentes entre o aspecto pueril e a maldade latente ao complô dos inocentes: a obra-prima “Bom dia” (1959), de Yasujiro Ozu, “A Aldeia dos amaldiçoados” (1960), de Wolf Rilla, e sua refilmagem, “Cidade dos Amaldiçoados”, por John Carpenter em 1995.

Zero de conduta 2 Zero de Conduta

Cidade dos Condenados

9.

Com a consolidação de uma ampla zona de correntes  pedagógicas modernas nos sistemas de educação pública do XIX e do XX, de Pestalozzi a Herbart, as representações da infância coletiva passaram a atender às necessidades e protocolos impostos por uma pedagogia psicossocial. “Fanny & Alexander” (1983), de Ingmar Bergman, narra a história de duas crianças a quem o complô fora negado, construindo-se como uma espécie de corolário da interpretação psicológica. Quando todas as forças disciplinares conseguem calar os códigos do complô, enclausurando o poder desordenador das crianças, o filme abre espaço para uma representação romântica da clausura. O diretor parece assistir, até mesmo com certa nostalgia, seu duplo infantil se desdobrando para resistir e superar os conflitos e a opressão.

Fanny Alexander 2 Fanny Alexander

10.

Na oscilação entre o senso comum e a psicologização da pedagogia, o cinema investe muitas vezes em uma exploração banal da criança no drama e no terror. A criança representa algo da ordem do não-natural, de um acesso perigoso ao insconsciente, àquilo que “ainda não é”, que ainda carece de vir-a-ser. O cinema instala uma tensão sobrenatural nesse vão entre o ser e o não-se, o meio termo entre o natural e o sobrenatural. No drama, o cinema usa a Inocência para gerar a piedade. No terror, porém, partindo da criança como meio despersonalizado, suspensa entre o inconsciente e a vigília, e, portanto, aberta às possessões e à mediunidade, chovem exemplos: desde filmes como “A Profecia” (1976), de Richard Donner, e, mais tarde, “O sexto sentido” (1999), de M. Night Shyamalan, até as franquias de terror como as do boneco Chucky — a propósito, noto que as motivações adultas que sustentam a insustentável visão de um “brinquedo assassino” parecem revelar algo de uma significação coletiva muito particular, de uma uma perversidade assentada sobre algumas visões coletivas da criança e da infância. Tem que ver isso aí.

11.

Há os exemplos mais complexos como “Um mundo perfeito” (1993), de Clint Eastwood, que se apresentam como ramificações moderadas da infância infantilizada, estipulando uma inocência básica, um tipo de comportamento parece atender às expectativas do senso comum, porém abrindo espaço para modos de existência divergentes, agentes de rupturas e gestos imprevistos. De formas diferentes, “Os Incompreendidos” (1959), de François Truffaut, “Mouchette, a virgem possuída“ (1967) de Robert Bresson, “As Boas Maneiras” (2017), de Juliana Rojas e Marcos Dutra, e ”En Rachâchant” (1982), de Danièle Huillet, são exemplos que manifestam o inconveniente da criança singular, que reage à brutalidade. Um passo adiante, pois aqui não há redenção. A criança como um não-destino, a captura de um aqui-e-agora puro, a criança liberada da infância e aberta para as potências e descaminhos da vida.

12.

É neste ponto que entramos nos casos problemáticos, como o do professor e pedagogo Fernand Deligny e “O Mínimo Gesto” (1971), filme que realizou com seus pacientes autistas na Instituição La Grande Cordée entre os anos de 1962 e 1965. Para Deligny, a carga de controle dos afetos que é despejada sobre a criança, com o intuito de produzir uma estabilização psicossocial, mata boa parte do élan vital e criativo. É preciso recuperá-los através de uma outra educação, outros ritos de passagem, outras maneiras de “tornar-se quem se é”. Assim, contra a infância inadaptada preconizada pelo governo francês, Deligny e seus parceiros autistas opunham uma “pedagogia da revolta”, a única resposta possível à violência institucional. Ao lado de Yves Guignard, criança autista considerada “ineducável”, Deligny se lança em uma viagem que os levará para fora da instituição através de situações aparentemente sem sentido, como cair em um buraco. Nem a grandiloquência luxuosa de “Satyricon”, nem a “descida aos infernos” de Dante, Deligny simplesmente abandona o sanatório junto com seus colegas. O mínimo gesto é o gesto de grandeza, devir minoritário, salto de banda.

O Minimo Gesto

13.

Dentre os contextos mais radicais, em que as crianças se encontram expostas a uma experiência pedagógica particular e até mesmo ao perigo, vale lembrar o caso controverso de Otto Muehl. Integrante ativo do Acionismo Vienense, inspirado pelas ideias de Wilhelm Reich, Muehl fundou a Comuna Friedrichshof (1972–90) e, com Therese Schulmeister e as crianças da comuna, realizou os “Friedrichshofer Kinderfilme”. Nos anos 80, a comuna comprou equipamento de vídeo e, entre 1985 e 1987, produziu filmes de curta e média-metragem encenados e realizados pelas crianças, jogando com a história e a biografia de personagens como Stálin, Hitler, Picasso e Colombo. Em 1991, Muehl foi condenado a sete anos de prisão por pedofilia e por incitar as crianças a usarem drogas. Depois de pagar a pena, sua visão do processo oscilou entre pedir desculpas e relativizar as acusações até morrer em maio de 2013. No quesito “infância e perigo”, recordo também das crianças delirantes em “Trás-os-Montes” (1976), de Margarida Cordeiro e António Reis, sobretudo na primeira parte em que as crianças recaem em uma espiral do tempo que os leva a encontrarem-se, bem mais velhos, consigo mesmos.

Friedrichshofer Kinderfilme

Trás os montes

14.

Há também um cinema que, partindo de um legado não-eurocêntrico, despreza as pedagogias modernas ocidentais e aposta em outras possibilidades, como a de uma “pedagogia da estratégia” — isto é, um outro sentidos de “autoridade” através da qual a desobediência é calculada e até mesmo esperada. Último filme do senegalês Djibril Diop Mambéty, lançado após sua morte em 1998, “A pequena vendedora de Sol” (1999) é um média-metragem impressionante pela sensibilidade com que expõe um cotidiano marcado pela miséria, por relações de poder injustas e pela vontade inexorável de resistir a todo um ambiente atravessado pela opressão. O filme narra as desventuras de Sili Laam, personagem principal desempenhada pela incrível Lissa Balera, uma menina com deficiência motora nas pernas e muita personalidade para encarar a violência, o machismo e a polícia. Sili sai de sua casa no bairro pobre de Tomates em busca de comida e acaba descolando um trabalho como distribuidora do Soleil, jornal da região. A menina enfrenta o machismo dos patrões (“as mulheres também podem fazer o que os homens fazem”), a desconfiança dos distribuidores, a arbitrariedade da polícia e as ameaças do grupo de pequenos vendedores do Soleil. Contudo, vende todos os jornais a bom preço e, com o dinheiro recebido, tenta comprar uma sombrinha para a avó, mas um policial desconfia da nota de dinheiro alta e lhe dá voz de prisão. Sili responde com convicção: “só se for agora”. Chega na delegacia, mostra o recibo de vendedora, dá um pito no policial e no delegado e, para completar, questiona o aprisionamento de outra mulher que, aos gritos, alega sua inocência. Livre, comemora com amigos dançando ao som do boombox de um cadeirante desempenhado por Moussa Balde, que cobra por música tocada e que a observa durante toda a jornada. O cerco dos meninos jornaleiros cresce, eles agridem Sili, mas surge Babou Seck, um amigo que lhe salva de apanhar. Com ele, tem um diálogo esclarecedor de sua posição enquanto uma criança capaz de uma estratégia e de um sentimento ético superior em relação a sua comunidade:

— Por que o Sud vende mais do que o Soleil?

— Porque o Sud é do povo e Soleil é do governo.

— Então continuarei a vender Soleil, assim o governo se aproximará do povo…

As sequências finais são incríveis: o bando de meninos jornaleiros vendendo jornal (“África sai da zona do franco!”), roubam as muletas de Sili, ela sobe nas costas de Babou e prosseguem por um corredor escuro: “quem respirar primeiro vai ao paraíso”. Mambéty dedicou o filme “à coragem das crianças de rua”, o que de certa maneira vai direto ao ponto: sobreviver com coragem a uma situação de acentuada pobreza, repressão e divisão de classe é também o papel a ser cumprido por muitas crianças que não cabem nos códigos pedagógicos hegemônicos.

vendedora do sol

15.

Da mesma forma que reconhecemos e identificamos a criança pueril e nos emocionamos com sua aparente fragilidade, portadora do aspecto cativante de um indivíduo em crescimento, assim também nos é verossímil a representação de uma criança que, como no filme de Mambéty, demonstra uma razão superior. Uma criança que nem sempre maneja seus sentimentos com inocência e ingenuidade, algumas possuindo desde cedo o sentido da responsabilidade, da força, da resistência e da estratégia, seja mediante a ameaça do castigo, ou mesmo dos constrangimentos políticos e sociais. Novamente Bruno Ricci, o menino de “Ladrão de Bicicleta”, mas também Ahmad, a criança em “Onde fica a casa do meu amigo?” (1987), de Abbas Kiarostami. Ahmad leva o caderno de turma do colega Nematzadeh para casa e sabe que isto lhes renderá castigo. Ele se arrisca a levar possíveis palmadas do pai e da mãe e parte para o vilarejo próximo de Poshteh, onde se encontra seu amigo. Ao longo da jornada, Kiarostami vai construindo paulatinamente um personagem que tateia o mundo e utiliza seus poucos conhecimento para fazer cumprir o destino ético. Ahmad pergunta para os habitantes do vilarejo, entra nas casas, verifica a umidade da calça no varal em uma quintal, pergunta novamente, escuta atentamente os sons dos animais e das conversas ao longe, rastreia o percurso da água nos encanamentos para descobrir a presença humana e, quem sabe, encontrar seu objetivo. O medo do castigo que o professor severo impõe à desobediência faz coro com o que o avô afirma para um amigo: “é preciso dar umas palmadas para que ele não seja preguiçoso”, associando castigo físico e disciplina. Visando o nivelamento do comportamento e o fortalecimento do sentimento de responsabilidade, as crianças são submetidas a humilhações e ameaças violentas. O medo do castigo queima sua alma sem que os arautos do castigo, os adultos, facilitem ou ajudem em sua empreitada. Aliás, é na conversa entre os adultos que percebemos os motivos pelos quais uma sombra de desconfiança paira sobre as crianças. Pois conforme a fala de seu avô e dos amigos adultos de seu avô, percebe-se o quão desrespeitosos e indisciplinados são os adultos que preconizam palmadas para que as crianças não sejam desrespeitosas e indisciplinadas. O avô faz apologia da obediência ao contar uma história da época em que trabalhava como engenheiro, quando recebia pela metade por não assimilar o trabalho a ser realizado desde a primeira ordem. E completa: “temos que lhes dar disciplina para que obedeçam às ordens e recebam o salário completo.” Durante todo o filme, Ahmad defenderá justamente a “primeira ordem” sem que os adultos sequer lhes dê ouvidos. A lógica da disciplina e do castigo imposta pela escola e pela família contrasta com a atitude civilizadora de Ahmad. E, por fim, Kiarostami introduz a percepção de que crianças oprimidas pela escola mantém entre si relações solidárias e, ao contrário dos adultos, ajudam-se umas às outras.

Title: KHANE-YE DOUST KODJAST? / WHERE IS THE FRIEND'S HOME ¥ Pers: POOR, BABEK AHMED ¥ Year: 1987 ¥ Dir: KIAROSTAMI, ABBAS ¥ Ref: KHA004AB ¥ Credit: [ INSTITUTE FOR THE INTELLECTUAL DEVELOPMENT OF CHILDREN AND YOUNG ADULTS / THE KOBAL COLLECTION ]

16.

Nota conclusiva: por que irresponsáveis? Ora, Lili e Ahmad são crianças que encarnam a razão superior da infância, na infância. As representações comuns do cinema norte-americano exibem o corpo infantil como o espaço de tudo aquilo que escapa ao racional e ao compreensível: a compreensão vital, o terror, a mediunidade, a desordem absoluta, a empatia natural pela ausência de civilidade, de responsabilidade… É evidente que a heterogeneidade das representações da criança e da infância no cinema me obriga a assumir uma postura modesta, pé-no-chão, beirando a irresponsabilidade: não tenho qualquer pretensão de esgotar o tema, sequer de apontar uma interpretação geral. Também estou ciente de que misturo criança e infância, educação e pedagogia de modo demasiado ambivalente. Ok, ciente. Trata-se de uma delimitação primeira, que toma como ponto de partida um conjunto limitadíssimo de filme, um enquadramento tão breve quanto possível. Filmes e abordagens que ficaram de fora e poderiam ter entrado: “O Balão Branco”, “Boyhood”, “A infância de Ivan”, “Meninos de Tóquio”, “Aniki Bobó”, “Pather Panchali”, uma análise mais densa para “Bom dia”, os filmes de Tatit (Sr. Hulot era uma espécie de criança…), “Criança cega” do grande Van Der Keuken, “Um dia quente de verão” e “Yi Yi” de Edward Yang, “Jacquot de Nantes”…não foi possível. Sinto muito.

 

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Nós (Us, Jordan Peele, 2019): apocalipse subterrâneo

Por Kênia Freitas

No conto “Aqueles Que Se Afastam de Omelas”, Ursula Le Guin descreve uma cidade paradisíaca e feliz: com festivais de verão, prosperidade, bela arquitetura, sem soldados e sem clero, sem reis e ditadores, com orgia e drogas e sem culpa. Omelas pulsa arte e inteligência em uma felicidade não pueril. Há, no entanto, um grande porém: toda essa felicidade é dependente da manutenção de uma criança com problemas mentais suja, doente, subnutrida, e constantemente maltratada, em um porão imundo. E a narração não deixa dúvida:

“Todos eles sabem que está lá, todo o povo de Omelas. Alguns deles chegaram a vê-la, outros se contentam apenas em saber que está lá. Todos eles sabem que tem que estar lá. Alguns deles entendem o porquê, outros não, mas todos entendem que a sua felicidade, a beleza de sua cidade, a ternura de suas amizades, a saúde de seus filhos, a sabedoria dos seus estudiosos, a habilidade de seus fabricantes, mesmo a abundância da sua colheita e o clima agradável de seus céus, dependem inteiramente do sofrimento abominável desta criança” (Ursula K. Le Guin).

A felicidade descrita no início do conto e a ciência da criança torturada como a sua base de manutenção criam a complexidade ética da história de Le Guin: é possível ser feliz às custas da desumanização brutal de uma pessoa? Ou se é mais feliz ainda sabendo-se do sofrimento e da dor de Outro, que poderiam ser mas não são suas? A salvação de uma única criança valeria pela infelicidade de milhares de pessoas e de toda uma população? Se não, mais uma vez, é possível ser feliz em Omelas? Como?

Sem mais respostas, a última parte do conto apenas nos diz que alguns jovens e algumas pessoas mais velhas eventualmente partem em linha reta (não se sabe bem para onde, embora eles pareçam saber) e se afastam de Omelas.

***

Em Nós (Us, Jordan Peele, 2019) o apocalipse se mostra justamente com a ressurgência de seres subterrâneos e maltratados – os acorrentados (Tethered). Diferentes da criança de Omelas, eles não são um Outro distante na aparência, mas cópias dos seres da superfície: ligados por um espelhamento corporal, eles repetem de forma tosca mas inevitável as ações dos seus duplos do lado de cima. Dois corpos presos pelo compartilhamento de apenas uma alma, como Red – a chefe da rebelião dos acorrentados – explicará para Adelaide (a sua cópia que vive na superfície).

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Nós não é construído, no entanto, em uma chave comum de filmes apocalípticos de grandes eventos – nos quais o fim do mundo (ou do mundo como conhecemos ou o fim dos EUA lido como o fim de todo o planeta) é contado de uma perspectiva dos macro poderes e dos seus agentes (governantes, cientistas, mídia, forças policiais, etc.). Jordan Peele ancora o seu filme a partir de uma narrativa do trauma e da sobrevivência de uma mulher negra de classe média comum, Adelaide: ex-bailarina, mãe de dois filhos, levando uma vida aparentemente tranquila e próspera com o marido. Como heroína desse apocalipse, Adelaide não pretende salvar o mundo ou encontrar alguma solução de convivência com os duplos, mas apenas seguir viva (matando quantos acorrentados forem necessários para isso).

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O fim da vida como se conhece em Nós chega pela rememoração do trauma de infância de Adelaide, ao voltar para a casa de férias e para a praia em que tudo aconteceu. Imageticamente o filme trabalha com sinais de um alinhamento cósmico: a simetria do 11:11, um círculo que se encaixa perfeitamente sobre o outro, repetições e duplos. Sinais que anunciam que algo excepcional está por acontecer.

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Nesse sentido, vale retomar a ideia de apocalipse não apenas como um sinônimo para o fim do mundo, mas como uma revelação (na sua etimologia original): a palavra faz mais referência a uma ideia de desvelamento, de iluminação de um segredo divino. Na bíblia, o livro do apocalipse descreve visões terríveis da luta final entre o Bem e Mal como uma revelação (em algumas interpretações, um aviso) aos humanos para que se alinhem e confiem na força de Deus  (que sempre triunfa ao fim). Ou haverá consequências…

A ideia de um Deus punitivista paira sobre a narrativa de Nós. De forma mais evidente com as menções do versículo bíblico Jeremias 11:11: “Portanto assim diz o Senhor: Eis que trarei mal sobre eles, de que não poderão escapar; e clamarão a mim, mas eu não os ouvirei”. E na referência ao mito “Das 4 Criações” do povo nativo americano Hopi, que aparece como uma narração na casa assombrada quando Adelaide e Red (o seu duplo acorrentado) encontram-se crianças pela primeira vez. Nas duas narrativas originárias, as passagens evocadas falam de um Deus que pune aos humanos por estes terem esquecido das suas origens e espiritualidade. Esse esquecimento das origens e as suas consequências se mostram peças chaves para pensar a relação entre Adelaide e Red[1] e a rebelião dos acorrentados liderada pela segunda. O trauma criado quando a acorrentada rouba o lugar de seu duplo na superfície desdobra-se em Adelaide em um apagamento/esquecimento e em Red em uma pulsão vingativa e punitivista (tal qual dos Deuses…). Se o apagamento/esquecimento é o que permite a sobrevivência (e a felicidade?) de Adelaide, é ele quem impulsiona a ira de Red.

Editorial use only. No book cover usage. Mandatory Credit: Photo by Universal/ILM/Kobal/Shutterstock (10162635c) Lupita Nyong'o as Adelaide Wilson/Red 'Us' Film - 2019 A family's serenity turns to chaos when a group of doppelgängers begins to terrorize them.

Assim como no conto de Le Guin, o que me move no filme de Peele não é encontrar equivalências concretas às metáforas e alegorias propostas nas narrativas especulativas. Os acorrentados (e a criança) são e não são ao mesmo tempo toda uma gama de grupos oprimidos: os povos de África escravizados, os povos indígenas dizimados pela colonização, os operários sacrificados no capitalismo industrial, os pobres, os imigrantes, as pessoas racializadas em um mundo organizado pela supremacia branca, etc., etc.[2]. O que assombra em Nós e “Aqueles Que Se Afastam de Omelas” são as implicações éticas internas às narrativas e o seu desdobramento no mundo.

E um dos atravessamentos principais das duas narrativas é a linha divisória entre os que são considerados parte da humanidade e os que não. O título do filme aponta para esse pertencimento de forma dúbia. De um lado, “Us” como “United States” abreviação comum entre os estadunidenses para se referir aos EUA – importante aqui lembrar quando Adelaide pergunta à Red quem eles são, e ela responde “nós somos americanos”. De outro, “Us” como “nós”, essa terceira pessoa do plural que agrega um conjunto incerto de pessoas e/ou grupos: Nós da superfície? Nós a família de Adelaide? Nós humanos?

A linha entre humano e não humano que o filme invoca implica em uma estruturação justificada de opressões. Assim, se os acorrentados são criaturas não humanas e sem alma, apenas cópias rudimentares dos humanos da superfície, então é aceitável o seu aprisionamento nos subterrâneos e o seu extermínio durante a sua rebelião (?). E se Red pode se tornar Adelaide como lidar com essa divisão?

E essa linha imaginária das humanidades também implica em um questionamento de quando as engrenagens do apocalipse entraram em ação. Quando os acorrentados foram criados em uma tentativa humana de assumir o lugar de criação divina? Quando o projeto fracassou e os acorrentados foram abandonados à própria sorte? Quando Adelaide e Red nasceram com uma ligação acima do comum? Quando a criança do subterrâneo trocou de lugar com a da superfície? Ou quando, por fim, Red buscou à sua redenção junto com os demais acorrentados à categoria humana?

O que o apocalipse filmado por meio do trauma de Nós nos indica é que na linha divisória entre o humano e o não-humano fins de mundos estão sempre em ação – em Omelas, na Califórnia, ou em qualquer porão imundo. E esquecer disso pode despertar iras divinas ou subterrâneas.

[1] Seguirei chamando de Adelaide a cópia que inicia a narrativa na superfície e de Red a acorrentada, pois isso facilita o entendimento. Ainda que tecnicamente pela troca ocorrida na infância os nomes estejam invertidos.

[2] Esse fio no Twitter traz algumas dessas possibilidades de leitura do filme: https://twitter.com/kenialice/status/1111105047142825985

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Pode até ser que isto seja um grito

Por Lucas Saturnino

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Contes de juillet (Guillaume Brac, 2017)

Como imaginar o porvir em um país sem futuro?

(Jean-Pierre Bekolo, Les saignantes)

Lá está ela, um ser humano, mergulhando no desconhecido, e ela está bastante acordada

(Ottessa Moshfegh, Meu ano de descanso e relaxamento)

 

A linha-mestra de Ne croyez surtout pas que je hurle (Não pense que eu vou gritar, de Frank Beauvais, 2019) é um monólogo autobiográfico de Frank Beauvais — o narrador, protagonista e diretor. Em tom confessional e memorialístico — procedimentos muito caros à literatura contemporânea —, Beauvais disserta sobre cerca de 7 meses que passou isolado em uma aldeia na Alsácia, para onde havia se mudado com um ex-namorado e onde permaneceu após o término da relação.

Psicologicamente estagnado e vivendo como um ermitão, Beauvais isola-se ao extremo, reduz qualquer possibilidade de contato social ao mínimo e passa a assistir 4, 5 ou mais filmes ao dia, donde são originárias as imagens de Ne croyez…, obra inteiramente composta por excertos dos mais de 400 filmes vistos por ele no período.

Ne croyez… tem sido descrito como um filme sobre cinefilia — sua premissa não é de difícil identificação para uma plateia de cinéfilos, críticos, curadores etc. No entanto, Ne croyez… é tanto uma obra sobre cinefilia quanto sobre tecnologia e isolamento — e individualismo? —: ser capaz de baixar filmes e vê-los a sós em casa, fazer dinheiro vendendo coisas na internet — desempregado, é sua fonte de renda ocasional — e ir vivendo enquanto continua a ignorar os vizinhos e o contato social em geral.

O que fazer — quarentenado — durante uma pandemia? Ver filmes? Ver muitos filmes? Ver não apenas muitos filmes como especificamente os filmes que queres ver, tendo acesso a inesgotáveis bibliotecas — peer-to-peer, em especial — online? Tão óbvio quanto esquecível, isso só é possível com determinada tecnologia. Assim, Ne croyez… é o testemunho duma forma contemporânea de se consumir de arte e entretenimento.

Beauvais retrai-se radicalmente em resposta a — ou como sintoma de — uma sociedade doente. Para além da corrosão generalizada das relações interpessoais, há o preço dos aluguéis em Paris e os ataques terroristas que se sucedem na França entre 2015 e 2016. Longe de tudo, as notícias chegam a Beauvais — e a nós espectadores — com certo ar de irrealidade. Enquanto assistimos às imagens de uma vasta e eclética biblioteca cinematográfica, ouvimos-lhe comentar sobre o ataque terrorista em Nice.

Contudo, sem poder ver para crer, imersos na sedução estética dos excertos que nos sugerem outros filmes e outros mundos, torna-se difícil dimensionar o ataque referido — para os cinéfilos, existe um conforto, uma familiaridade, naquele fluxo visual.

Pensemos em Hanne e o Feriado Nacional, um dos médias-metragens que compõe o belo díptico Contes de juillet (Contos de Julho, de Guillaume Brac, 2017). Num dia vadio de verão — 14 de julho de 2016, Dia da Bastilha e data do ataque em Nice —, os jovens personagens bebem, flertam, divertem-se e fortalecem até que quebram laços de amizade.

No final, Hanne, bêbada, após brigar com a amiga por causa de homem, chora sozinha na cozinha do alojamento universitário. De repente, junto ao cair da noite e aos fogos do 14 de julho, surge o sorrateiro som do noticiário comunicando o ataque terrorista em Nice. Enquanto os personagens gozavam do ócio que dá sabor à vida, a morte dava as caras por aí. A qualquer momento, uma notícia poderá irromper inadvertidamente no cotidiano: um ataque terrorista, um novo vírus, um golpe de estado, uma invasão alienígena. Em 2 de agosto de 1914, a Alemanha declarou guerra à Rússia e Franz Kafka foi nadar, etc.

Diz a clássica metáfora que o cinema seria capaz de fazer o espectador viajar —transportá-lo-ia para outras realidades, outras peles. Beauvais, porém, compara filmes a curativos, ataduras. Assim são os cinéfilos calejados: entendem demais do riscado para conseguirem vê-lo inocentemente — ora guardiões, ora túmulos de ilusões. Para ele, os filmes, acumulando-se, funcionariam como analgésicos — um cine-narcótico, sedativo e aditivo, frente à nação convulsiva.

Não é uma lógica semelhante — a da saturação — que anestesia o peso das tragédias? Elas vão ocorrendo, sendo noticiadas e se acumulando. Beauvais abre o computador, vê a notícia do ataque terrorista, pondera que não conhece ninguém em Nice e vai dormir.

Ansiando por outra coisa, Beauvais põe-se a assistir antigos filmes da Alemanha Oriental e da URSS à procura de personagens que questionavam seu papel na sociedade, enquanto lutavam para construí-la. O compromisso comunitário: o que terá sido feito dele?

Em decorrência do isolamento autoimposto, ele confessa que pegou o costume de só ir ao supermercado uma vez a cada dois meses. Em 2019, isso soava como um exagero, indício irrefutável de que Beauvais não andava em seu melhor — o brasileiro, por sua vez, talvez se lembrasse do hábito, causado pela inflação, das “compras do mês”.

Cá estamos, entretanto, em 2020, espaçando as idas ao mercado… Terá Ne croyez… adquirido contornos — por que não — singelamente proféticos? O que vem e o que veio é muito pior e incerto, então permitam-me o ensejo para uma digressão cinematográfica ao ocaso de duas sociedades muito diferentes, embora originárias do mesmo lugar:

Há muitas formas de se fazer um filme em uma sociedade prestes a desaparecer, frente a um apocalipse particular iminente. Por exemplo, Veit Harlan fez Kolberg (1945) — o mesmo Harlan que viria a ser julgado por crimes contra a humanidade devido ao seu envolvimento na máquina de propaganda nazista. Kolberg, a última superprodução do Terceiro Reich, narra — manipulando os fatos segundo os ditames da propaganda — a resistência suicida da pequena cidade de Kolberg contra o exército napoleônico.

Imoral ao extremo, o objetivo de Kolberg era convencer os espectadores de que a Alemanha não deveria parar de lutar, mesmo que a guerra parecesse perdida, conclamando-os a perseverarem até morrer, cumprindo assim o desejo/impulso de morte — suicida — que está na base da ideologia nazifascista. Pois o horizonte nazifascista é a aniquilação, nem que seja a autoaniquilação, e daí também o fetiche sacrificial.

Goebbels mobilizou cerca de 187 mil soldados para atuarem como figurantes. E quis realizar a première em La Rochelle, das últimas bases sob controle alemão em uma França em processo de libertação, onde uma cópia do filme teria sido insolitamente jogada de paraquedas. Quando os soviéticos tomaram Kolberg, Goebbels omitiu essa informação do público, temendo que o potencial inspirador do filme fosse prejudicado pela realidade.

Harlan busca transformar a aniquilação da cidade resistindo ao invasor em algo belo — Kristina Söderbaum, embalada por sinos e canhões, acariciando loiros cabelos infantis, enquanto canta e chora a incineração da Heimat —, como se o sacrifício encontrasse sua razão de ser no espetáculo audiovisual do canhoneio e na representação do povo — uma massa magnética e acima de individualidades — como repositório da energia belicamente sexual da nação. A catarse resultante seria a maneira de seduzir o público a aderir a uma luta fadada à morte. A imoralidade no cinema poucas vezes terá ido tão longe.

Os cinemas mantiveram-se abertos até a rendição ou bem perto dela. Goebbels julgava-os essenciais, uma “necessária distração”, pois seria necessário que o povo tivesse onde desanuviar. Conforme os bombardeios iam destruindo o circuito exibidor, teatros e outros estabelecimentos eram transformados em cinemas. O Tauentzienpalast, a primeira sala a exibir Kolberg em Berlim, não terminaria a guerra de pé.

Depois do fim, depois de Kolberg, restam as ruínas. É nas ruínas, das ruínas, que surgirá o cinema da Alemanha Oriental: com narrativas de perda, culpa coletiva e reconstrução nacional como Die Mörder sind unter uns (Os Assassinos Estão Entre Nós, de Wolfgang Staudte, 1946). E o que começa em ruínas morais e concretas, terminará em ruínas simbólicas — retratos de uma sociedade estagnada e estagnante: a utopia fossilizada.

Andreas Voigt documentou, na linha de frente, o colapso do comunismo na Alemanha. Em Leipzig im Herbst (Leipzig no Outono, 1990), realizado em conjunto com Gerd Kroske, Voigt registra as manifestações de massa nos meses que antecederam a queda do Muro, o momento em que o povo vai abandonando o regime e a inépcia do Estado em reestabelecer um diálogo, um pacto de confiança e governança com os cidadãos.

A câmera de Voigt permaneceria em Leipzig nos anos seguintes, documentando a convulsão social subsequente ao fim do comunismo. Glaube, Liebe, Hoffnung (Fé, Amor, Esperança, 1994) é possivelmente o primeiro retrato cinematográfico da ressurgência da extrema-direita na Europa pós-1989. O filme deixa implícito um motivo até simples: a vida dessas pessoas é uma merda e por acaso alguém se importa com elas?

Antes, em Letztes Jahr Titanic (Ano Passado Titanic, 1991), Voigt acompanhara diversos moradores de Leipzig entre os dezembros de 1989 e 1990, ou seja, entre a queda do Muro de Berlim (09/11/89) e a reunificação da Alemanha (03/10/90). Letztes Jahr Titanic retrata um período composto por incerteza, desconfiança e esperança. O tempo parece simultaneamente suspenso e acelerado. Sobre imagens desamparadas — angustiadas, à deriva, esperando —, paira o fantasma do desemprego. O porvir lhes obsoletará, tirando-lhes a subsistência, ou lhes dará oportunidades para melhorar a qualidade de vida?

A jornalista Renate confessa seus sentimentos conflitantes: está alegre em ver renovado o seu horizonte de possibilidades, mas crê não ter futuro profissional ou social, sentindo medo e vontade de desistir. Renate havia colaborado com a Stasi (a polícia política) após ser estuprada e chantageada por um oficial. “Com um passado desses, não há futuro”, diz. Muitos pararam de cumprimentá-la. “Quando deveríamos ou poderíamos ter sido mais espertos lá atrás? O meu ideal de sociedade parecia realizável na Alemanha Oriental”.

A jovem gótica Isabel comprou uma arma após passar a ser constantemente assediada por grupos de extrema-direita. Tentam agredi-la, ameaçam cortar-lhe o cabelo ou queimá-lo. “De onde vem essa violência?”, Voigt pergunta. “De tudo o que aconteceu”, ela responde, “A merda toda. Por conta da reunificação […] As coisas estão ficando mais conservadoras […] Eu terei que me conformar, mudar o meu estilo […] usar roupas normais”.

— “Como você quer viver no futuro?”

— “Não sei. Não faço ideia. Eu tentarei seguir com a minha vida. É isso.”

Perto do final, um dos entrevistados observa que Voigt e sua equipe também ficarão desempregados com o fim da DEFA — o estúdio cinematográfico do regime comunista, o qual, sendo estatal, deixará de existir com o fim desse mesmo Estado — e recomenda-os procurar trabalho no lado ocidental: “Há muita oferta de emprego lá”, ele lhes diz e ri, entre um gole de cerveja e outro. Em seguida, corta para a fachada de um cinema. “Dicas de filme”, lê-se na vitrine — a recomendação é Crocodile Dundee II (John Cornell, 1988). Ao lado, outro cartaz: “Um filme só se torna uma experiência na sala de cinema”.

Um pouco como no mundo todo, a introdução da televisão na Alemanha Oriental provocou uma queda no número de espectadores dos cinemas. E fez diminuir o orçamento da indústria cinematográfica estatal, uma vez que, à nível de produção audiovisual, passou a sofrer a concorrência da televisão também estatal. A competição com a TV era dupla: do lado ocidental, torres de transmissão foram erguidas perto da fronteira, sendo possível sintonizar os canais do vizinho capitalista em quase todo o país — as duas regiões onde o sinal ocidental não pegava ganharam o apelido de “vale dos inocentes”.

Segundo Sabine Hake¹, o declínio no número de espectadores e de produções contribuiu para a crescente marginalização do cinema na vida cultural da Alemanha Oriental, o que transparecia em narrativas menos tradicionalmente politizadas, em contraste ao projeto pedagógico comunista/antifascista que deu origem à DEFA — sinalizando, ela conclui, um tácito reconhecimento de que o “cinema socialista” havia falhado. Por conseguinte, a DEFA desaparecerá porque o mundo a que servia e reportava deixará de existir.

Enquanto a câmera percorre a fachada do cinema, ouvimos a melodia de La Paloma, canção imortalizada na língua alemã por Hans Albers em Große Freiheit Nr. 7 (Grande Liberdade Nº 7, de Helmut Käutner, 1944) — realizada na fase final da guerra, uma obra-prima desesperada e alucinatória, sobre ilusões e frustrações, a instabilidade de promessas portuárias e a desolação decorrente das esperanças estilhaçadas pela liberdade dos outros.

Dentro do cinema, a câmera nos mostra um ambiente completamente destruído. No interior da sala, uma panorâmica revela apenas destroços. Corta e surge uma loja mais moderna. Na fachada, lê-se: “VIDEO–WORLD”. La Paloma ainda está a tocar. Segue-se um skinhead raspando a cabeça de outro — Voigt retrata skinheads de esquerda e de direita em seus filmes, o que causa confusão visual — e, ao som quase inaudível do hino nacional alemão porcamente executado, fogos-de-artifício explodindo colorido no céu.

Letztes Jahr Titanic se inicia com a imagem de um trem chegando na estação e se encerra com a imagem de um trem deixando essa mesma estação. No começo, sabemos que ele está a chegar em Leipzig. Ao final, porém, não conhecemos seu destino. Nesse ínterim, a Alemanha tornou-se novamente uma só. No último plano, a câmera está no mesmo lugar onde se encontrava no primeiro. O início e o fim mostram-nos um mesmo trilho em momentos distintos, cada qual com um trem percorrendo-o em direções opostas. Assim sendo, na nossa perspectiva, a dianteira converte-se na traseira do comboio. E, dessa maneira, a câmera passa a só ser capaz de filmar aquilo que deixa para trás.

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Letztes Jahr Titanic (Andreas Voigt, 1991)

¹ Hake, Sabine. German national cinema. London: Routledge, 2008.

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Circuitos ao vento: a solidão no fim do mundo de Kairo (2001), de Kiyoshi Kurosawa

Por Diogo Serafim

Eu me sinto sozinho às vezes. Mesmo quando rodeado por pessoas que amo, mesmo quando cercado por pessoas que eu poderia amar, mesmo quando sozinho no meu quarto pensando nas pessoas que amo ou que poderia amar. Quando afirmo que me sinto só, não tenho a intenção de estruturar um relato de mim mesmo enquanto ser solitário, mas sim da condição de solidão que se apresenta no meu espírito. A priori o que pode aparentar um simples jogo retórico é de fato uma concreta alteração analítica do problema: a solidão é uma condição maior, primária, da qual a minha consciência faz uso. A solidão me atravessa – eu estou sozinho, mas nunca sou sozinho. Vista assim, a solidão pertence ao espírito, não à consciência. Empregada essa ótica, a solidão tem pouco a ver com a propriedade de um indivíduo e tem consequentemente muito pouco a ver com o não-ser – o ser é, e sempre será, assim a solidão não é uma condição existencial, mas sim espacial. A solidão não se apresenta como não-ser, e sim como não-estar. E poucas coisas assustam tanto quanto o não-estar.

Eu me sinto só quando o que se apresenta fora da minha consciência me é apreendido como puramente externo, algo do qual eu jamais poderia fazer parte. É o solipsismo puro, o raciocínio cartesiano primário, a ontologia natural da essência humana associada à ideia de propriedade. Hegel apresenta uma solução para lidar com essa problemática: quando eu mesmo me apresento como um elemento a ser reconhecido, o ser sai da sua condição em-si rumo ao para-si. A consciência-de-si se dá quando eu mesmo sou Outro. Quando o meu último amigo no mundo sou eu mesmo.

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Michi trabalha com plantas. Estas são criadas no alto de um edifício em Tóquio, em um escritório, frequentemente cercadas por plástico. Taguchi, um colega seu, não vai ao trabalho há mais de uma semana e com isso o disquete contendo os dados que ele deveria analisar não lhe foram enviados. Michi não entende muito bem como funcionam computadores e disquetes. Ela tem uma televisão em casa, que também não sabe como funciona. Se o virtual é um mistério para ela, o material também, tendo que um dia lhe vem ao espírito uma ideia que a assusta bastante: a de que talvez seja muito fácil se suicidar.

    Ryosuke tem um computador no seu quarto. Na tela, ele vê imagens de pessoas que estão longe dele, também sozinhas nos seus respectivos quartos. As janelas no quarto de Ryosuke estão normalmente fechadas. O seu computador já é uma abertura para o mundo, assim como as suas janelas, mas aqui a questão espacial já não se põe em jogo – no virtual, o espaço é subordinado ao tempo. Ryosuke, assim como Michi, não entende muito bem como funcionam computadores.

Ryosuke, apesar de não ter muitos amigos, gosta bastante de uma estudante de computação chamada Harue. Ela se considera uma amiga de Ryosuke, ou algo próximo disso. Harue, diferentemente de Ryosuke e Michi, entende muito bem de computadores. Apesar de ter alguns amigos, ela se sente muito sozinha e é frequentemente assombrada pela vida que a circunda e os afetos que circulam à sua volta. Ela tem muito medo de morrer sozinha.

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    O fim do mundo em Kairo é a perda da relação do Eu com o mundo. Se eu não estou mais no mundo, ou se ele já não se apresenta mais como algo material para mim, o mundo chegou ao seu fim. Como poderia ele durar mais que eu, sendo que ele estava contido em mim? O apocalipse é a desapropriação epistemológica da experiência com o mundo.

Poderia a solidão ser filmada? Sim, respeitada a condição de que a câmera represente essa solidão ela própria. O dispositivo captura um estado de espírito, se apossa dele, não o descreve. A inteligência formal de Kairo está na maneira como Kurosawa estabelece a própria câmera como um elemento assombrado do filme. A decupagem faz uso da profundidade de campo, de glitches, de diferentes texturas, diferentes ângulos e composições, de variados valores de plano, sempre numa lógica de isolar os personagens dos espaços que eles ocupam. O dispositivo aprisiona esses personagens em um universo em ruínas do qual eles não podem nunca efetivamente fazer parte.

Os espaços em Kairo aparentam quase desprovidos de materialidade. Quando seus personagens fazem um percurso de ônibus, o mundo exterior sempre aparenta desarticulado das suas propriedades, em um estado de desapropriação entre duas abstrações temporais, em certa medida não pertencente ao instante em si. Esse desmembramento se reduz numa dicotomia fundamental entre o movimento e o estático, traduzida em absoluta suspensão, tanto espacial quanto temporal, da experiência. Isso se dá muito pela maneira como Kurosawa usa o digital no seu filme: o avião e a subsequente explosão no fim do filme, a poeira digital de Junko, amiga de Michi, quando esta se desintegra perante seus olhos, os espaços percorridos pelo ônibus efetivamente, tudo é estranhamente texturizado, quase virtual, desarticulado da dramaturgia e dos personagens. Kairo é um filme de pessoas que vivem em um mundo ao qual elas não podem pertencer.

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    Esse conflito entre o movimento e o estático é provavelmente fruto de um embate mais fundamental entre a tradição e a marcha do tempo, a cultura e o progresso, a identidade e a universalização, contradições que vão se estabelecendo cada vez mais claramente em Tóquio, numa lógica de otimização espaço-temporal que acaba por destituir essas propriedades das suas fenomenologias constituintes, alcançando um estágio abstrato de alienação entre o perene e o terminal.

    A construção atmosférica de Kurosawa geralmente se dá por pacientes planos gerais, de uma singular perspicácia composicional, dispondo seus elementos formais de maneira que os traços que remetem ao isolamento de seus personagens coexistam numa paleta monocromática sombria, frequentemente contrastada por elegantes jogos de luz. O diretor faz uso de linhas estruturais que deslocam os elementos centrais de cada cena, conduzindo em seguida o movimento desses elementos em um ritmo hipnótico que dão protagonismo à iconografia desoladora de horror psicológico.

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    Se muitos diretores fazem uso de exposições fugazes e esporádicas dos seus elementos de horror para não os desgastar, Kurosawa parte de uma abordagem oposta, apresentando essa iconografia como subordinada a uma temporalidade que não nos assusta num estado de euforia, mas sim nos aprisiona em um estado constante de agonia e ansiedade. Ele confronta o horror como um verdadeiro elemento a ser internalizado, não apenas um artifício de estimulação sensível. Tudo vale: a suspensão do som, a manipulação do obturador da câmera, o uso do foco e da profundidade de campo, a espacialização, a expectativa, a sugestão – nesse sentido, não seria exagero dizer que Kairo está entre os filmes mais inventivos da história.

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Em Kairo, desaparecer não significa a morte. Um fantasma é só alguém que se sente sozinho. No filme, um programa de computador simula o nosso circuito de afetos: se duas pessoas estão muito próximas, elas morrem. Se elas estão muito longe, elas se atraem. Os fantasmas tentam conversar conosco exatamente por estarem muito longe, presos em um solipsismo existencial, enquanto essa aproximação nos aprofunda progressivamente nesse mesmo solipsismo, até que nós mesmos ou morremos, ou seguimos o resto das nossas vidas sozinhos.

A grande questão é que eu próprio sigo me afastando constantemente de mim mesmo. Mas não sinto uma atração que me chame de volta para a minha fonte própria. Aproximar-me de mim mesmo, um outro muito próximo que se afasta, é um esforço ativo que deve ser exercitado – seria essa então a subversão da morte? Aceitar a si mesmo como algo a ser assimilado e não como algo espontaneamente inexorável seria a etapa final para tornar-si?

    Suicidar-se é sempre tão fácil. Principalmente quando nós estamos todos tão sozinhos, principalmente quando tirar a sua vida só concerne a você próprio. Encontrar a felicidade já não é tão simples assim. É preciso afirmar estar vivo, a vida não é uma propriedade passiva, e sim um enfrentamento ativo face às forças erosivas da existência. No fim de Kairo, a felicidade é encontrada quando o meu último amigo no mundo sou eu mesmo. Isso quando o maior medo que se pode ter é continuar sozinho mesmo após a morte.

Nada muda com a morte. Como agora, para sempre. A morte, como a solidão, não é não-ser, a morte é não-estar. Continuamos seguindo em frente, um navio solitário no meio de um oceano sem cartografia definida. Vento e plástico, água e pó, eu e vocês, nosso circuito.

Referências

Fenomenologia do Espírito – Georg Wilhelm Friedrich Hegel

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O Sertão como meio e o Sertão como fim

Por João Lucas Pedrosa

O “Apocalipse”, último livro das Sagradas Escrituras, já tornado conhecimento geral, transcreve as revelações (raiz etimológica do título) do que Deus teria guardado para o futuro dos homens. O autor João redigiu o que Jesus Cristo recebia de seu Pai em forma de visões, elementos simbólicos (“em apocalipse tudo ou quase tudo tem valor simbólico”, diz a Bíblia de Jerusalém), sem rigor com a coerência dos efeitos obtidos. O contexto histórico de autoria – pouco antes de 70 d.C. ou em 95 d.C., quando crê-se ter sido escrito[1] – é a violenta perseguição à Igreja pelo Império romano. A necessidade de elevação do ânimo dos fiéis para resistirem à repressão motivou a narrativa de punição e aniquilação dos inimigos adoradores de Satanás (e do próprio) para que, enfim, se estabelecesse a paz e a prosperidade do Reino celeste para todo o sempre.

Uma questão primordial em narrativas apocalípticas é que representação de mundo é esta. Mimesis, de Erich Auerbach, começa dissecando a que é traçada na Bíblia: em seu modelo (que chama de exegese), descrições de espaço e de tempo são sempre vagas. Abraão chega com seu filho Isaac a alguma montanha na terra de Mariá em três dias, e não importa onde ela fica exatamente nem o que se passa na cabeça dos dois nesse tempo, e sim a obediência da ordem divina. O resto é entrelinha, preenche-se no imaginário do leitor. Na representação do sacrifício por Caravaggio, não se vê olhos ou expressão facial no patriarca. A ordem é cega a todo o resto, e seu rosto sequer olha diretamente ao anjo, que precisa impedi-lo fisicamente. Da mesma forma, o mundo varrido por Deus no Apocalipse não conhece os povos ameríndios ou a dinastia chinesa pois se reduz à polarização promessa do Reino de Deus/ameaça satânica (o Império romano). Nosso mundo, na Bíblia, é unicamente campo de guerra para Deus e para o Diabo. A narrativa funciona na chave da falta, ambos de objetivo concreto e de subsistência (como não nos deixa esquecer as provisões divinas no deserto do Êxodo), e faz todo sentido, portanto, que sua verdadeira consistência esteja no plano transcendental.

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No Brasil, esse campo de guerra é representada de forma inigualável pelo Sertão nordestino, e a narrativa cinematográfica que compreende melhor a sobreposição psíquica desse mito sobre uma terra marcada pela falta é provavelmente Deus e o Diabo Na Terra do Sol (1964), de Glauber Rocha. Se o fim do mundo necessita do filtro simbólico nas Escrituras, para o filme é esse mesmo filtro sobre a subjetividade sertaneja que confere a seu povo o eterno estado de fim do mundo. O filme parte da travessia pelo deserto em busca de futuro, o movimento primordial do Êxodo. Como os israelitas no Egito, Manoel era escravizado por seu patrão – a violenta insurgência do protagonista vem ao ser por ele chicoteado -, e sua peregrinação com a esposa Rosa acontece na fuga da reprimenda que matou sua mãe. A busca dos dois é, essencialmente, por um Moisés, por um guia pelo caminho do deserto. Juntam-se ao beato Sebastião (numa mistura de Antônio Conselheiro com Padre Cícero) e depois a Corisco, o Diabo Louro. Os dois funcionam como alusões a figuras históricas que entraram para a mitologia regional, e escolhem derramar sangue até que “o Sertão vire mar e o mar vire Sertão” – em última instância, até que o dilúvio divino chegue para instaurar o Reino celeste depois de aniquilar o grande inimigo sertanejo: a sede. Antes disso, os dois morrem. O religioso pela mão de Rosa, após ele tentar purificá-la com o sangue de um bebê sacrificado nos braços de Manoel, e o cangaceiro por Antônio das Mortes (que alude, por sua vez, ao caçador de cangaceiros José Rufino, que matou Corisco na vida real). O primeiro é motivado pela metafísica e o segundo pela anarquia, mas ambos abraçam a lógica da arbitrariedade idealista, que no plano terrestre se converte em tiros ao céu (como o fim de Paulo Martins em Terra em Transe, Glauber e seus mártires do vazio). Manoel e Rosa terminam ainda correndo a esmo. Ela cai no meio do caminho e ele continua correndo pelo cascalho até chegar numa estrada. Um insert do mar ao som de Villa Lobos fecha o filme como uma meta inatingível, como o petisco pendurado na frente de um cachorro na esteira, e que mantém o nordeste brasileiro afundado em sua miséria alienada.

Como uma das obras que anteciparam um vazio ideológico e político que se estenderia à esquerda intelectual urbana após o Golpe de 1964, o filme estende a expressão da crise de sentido ao uso da linguagem cinematográfica. Essa mesma crise se transforma em quebras de eixo, jumpcuts, métodos contrastantes de direção de atores (Corisco quebra a quarta parede e atua para ela como um personagem brechtiano; Manoel está preso à diegese e à atuação naturalista, sofrendo os impactos mentais de seu entorno), letra da trilha sonora em diálogo com os diálogos proferidos pelas personagens. A quebra de códigos de uma representação de mundo fechada e de referenciais bem definidos (Auerbach chama de diegese, usando a Odisseia como contraponto à Bíblia) cria esse desnorteamento sensorial para expressar o conflito do sistema de signos que move a psiquê nordestina comum. O Sertão em Deus e o Diabo, como lembra Ivana Bentes, opera como espaço do imaginário, não do concreto. É possível, portanto, que nele Canudos e o cangaço se sobreponham temporalmente, pois nele opera o sempre eterno, o tempo de Deus. Na cena final, Corisco é emboscado por Antônio das Mortes ao som da trilha de Sérgio Ricardo. Ele pula para trás em sobressalto, gesto repetido três vezes e ampliado em três diferentes ângulos. O caçador dá três tiros pausados para a frente, e um plano afastado mostra Corisco girando ao invés de cair morto. Ele para, solta sua peixeira, e logo antes de começar a cair, grita – num brado que interrompe a trilha sonora – “mais forte são os poderes do povo!” e um jump cut corta sua queda pelo meio para ele direto já caído no chão. O brado segue em sua duração original, ecoando depois da queda, e só então a música volta. Cristino Gomes da Silva Cleto morreu, mas Corisco jamais. Ele pula, gira e ecoa para sempre. O Sertão, para Glauber, tem o funcionamento da metafísica subjetivista bíblica, onde a terra é zona de conflito para deidades históricas, e onde o homem é nada mais que sujeito paciente de um mundo que não lhe pertence.

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As intervenções musicais no filme quase sempre narram musicalmente momentos de importância, nunca em reiteração das ações exibidas, mas como consumador do tom fantástico, epopeico da narrativa. Pois o que vemos à nossa frente é o desenrolar de um cordel, com direito a moral da história. Durante a corrida final do casal, o cordelista conclui:

Tá contada a minha história
verdade e imaginação
Espero que o Sinhô
tenha tirado uma lição
Que, assim mal dividido,
esse mundo anda errado
Que a terra é do hômi
não é de Deus nem do Diabo!

E enquanto isso não fosse compreendido, o Sertão seria para sempre apocalipse.

* * *

            A obra que aparece como atualização definitiva da relação entre o sertanejo e o apocalipse é Bacurau, de Kléber Mendonça Filho e de Juliano Dornelles. O filme se aproxima de Deus e o Diabo acima de tudo pela oposição perspectiva, como já anuncia a primeira imagem dos créditos iniciais: enquanto Glauber escolhe começar no chão, de cara com o limite, os autores escolhem o céu, dirigindo-se ao infinito. A narrativa de Glauber é a da urgência de voltar-se à terra, de abandonar a transcendência e apropriar-se sobre o concreto. Mendonça Filho e Dornelles, por sua vez, compreendem que a mitologia anda de mãos dadas com a política, e que não pode ser abandonada ou destruída, mas pode e deve ser reconfigurada. Se, nessa escolha inicial, os autores criam o contraste inverso da abertura inicial de Glauber (constelações brancas no preto sideral ao invés dos mato desidratado cinza escuro sobre o branco da terra seca), é porque o projeto de Bacurau é a formulação de uma utopia nordestina.

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            O uso dos créditos iniciais é mais recentemente reconhecido como recurso nostálgico de referência ao cinema de cerca de 30 anos atrás, antes do hábito entrar em desuso. Eles também são ornados por uma canção sessentista, Não Identificado, na voz de Gal Costa. O uso das canções é igualmente relevante aqui, menos na intenção de inventar uma percepção nordestina quintessencial, e mais fazendo referência a uma política de estilo:

Eu vou fazer um iê-iê-iê romântico
Um anti-computador sentimental
(…)
Para gravar num disco voador
Eu vou fazer uma canção de amor
Como um objeto não identificado

            Em 1968, começou o movimento tropicalista do qual a canção faz parte. O projeto retomava nas sete artes o princípio antropofágico do modernismo dos anos 1920 numa nova busca da essência brasileira. O resultado digestivo misturaria, além das três culturas que constituem a miscigenação do povo brasileiro, também esse saldo com a pop art e com a cultura de massa hegemônica.. Um iê-iê-iê como dos Beatles, mas nordestino. Que possa voar para o espaço, chegar em outros planetas. Bacurau se apropria de códigos típicos do gênero apocalíptico estadunidense para fazer um filme que converse com a própria massa e também com o planeta que o invade. Após 55 anos de Deus e o Diabo, Dornelles e Mendonça Filho compreendem os erros da primeira fase cinemanovista e os mecanismos da indústria estadunidense, que ainda toma conta do mundo. Não é uma meta trazer à massa a “consciência de sua miséria”, isso já é dado comprovado e reiterado e esvaziado e, não obstante, ainda vivido. Tampouco é diagnosticar a religião e o povo como alienado (traço mal envelhecido no cinema novo). Trata-se de um chamado energizante à luta, erguido pela reapropriação de estruturas narrativas que constituíram ao longo dos anos a mitologia cinematográfica de sustento imperialista.

A trama é simples: o pequeno povoado interiorano de Bacurau, após a morte de sua matriarca, começa a sumir dos mapas virtuais e a ser atacada por um grupo de estadunidenses, europeus e brasileiros sudestinos abastados e armados até os dentes, decididos a exterminá-lo por esporte. Aqui, é retomado o estilo bíblico de narrativa apocalíptica pela ignorância do entorno. O mundo é Bacurau: Não Identificado continua tocando após o fim dos créditos iniciais, e uma pan para a esquerda revela a Terra. Após cruzado por um satélite, o enquadramento se aproxima do nordeste brasileiro até a imagem fundir-se, por um segundo, com o close de Teresa (Bárbara Colen) adormecida e um plano de um céu alaranjado. Então o amálgama dá lugar ao take aéreo de um caminhão de carregamento seguindo em direção à cidade. Se Bacurau é o mundo, os alienígenas são os de fora da cidade, e não à toa os caçadores usam drones em forma de disco voador para vigiar os nativos que lhes são presa. A alienação não mais vem do comportamento do povo, mas é consequência da privação de recursos que o vulnerabiliza e o invisibiliza, e é essa condição mesma que estabelece Bacurau como centro do próprio universo – e que, em última instância, sustenta a associação não nativo/alienígena.

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Essa construção metonímica de mundo é feita de forma involuntária (ou não) há dezenas de anos por narrativas de invasão alienígena no cinema norte americano, iniciadas em tramas-reflexo de conflitos políticos tornados pavores comuns, como o belicismo exponencial em O Dia Em Que A Terra Parou (Robert Wise, 1951), a ameaça comunista em Vampiros de Almas (Don Siegel, 1955), um inimigo maior que a bomba atômica em A Guerra dos Mundos (Byron Haskin, 1953). Entre muitos ecos contemporâneos, algumas particularmente bem sucedidas são narrativas de salvadores norte americanos, como Independence Day (Roland Emmerich, 1996),  – onde o contra-ataque aos alienígenas tem êxito em 4 de julho, pareando a celebração da libertação global à da independência estadunidense -, e na franquia Os Vingadores. Seus heróis são à moda americana, mesmo que não nativos dos EUA ou da Terra, pois operam em prol do status quo americano, portando um irônico domínio inato da língua inglesa. Quando perdem a batalha contra um alienígena portador de uma arma de destruição em massa, metade do Universo é dissolvido. No filme seguinte, eles se apropriam da arma e restituem boa parte do que foi perdido. O arco dos Vingadores é o arco do destino universal, eis o poderio por eles detido. O desenho dessa importância não é menos megalomaníaco que o monopólio concreto da franquia – ou dos demais filmes da Disney – sobre as exibidoras ao redor do mundo, esmagando cinemas nacionais (situação, no Brasil, agravada pelo governo bolsonarista que destrói o que pode do horizonte de produção cultural brasileira). Em Bacurau, os opostos bom/mau, alienado/alienígena, poder em massa/poder regional são reflexo de e referência a esse contexto.

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            O risco de extermínio iminente e a urgência do contra-ataque é onde se aplica o aprendizado de Deus e o Diabo, pois a narrativa parte de um conflito concreto. Há uma mudança essencial, entretanto, no olhar sobre o misticismo, saldo dos 55 anos de evolução antropo e sociológica que separam os dois filmes, e está em sua função de empoderamento e de parte do paradigma que constitui a representação de mundo. No primeiro plano, como comentado, há uma fusão simultânea do take espacial com um close de Teresa adormecida e um plano de um céu alaranjado – o de Bacurau. Entrar na cidade envolve a entrada numa sorte de transe, traço em diálogo com o trabalho fotográfico de Pedro Sotero no qual os focos de luz dissolvem os traços onde batem com força, e garantem na figuração uma presença do abstrato. Assim que Teresa vê Damiano (Carlos Francisco) em sua chegada, antes de cumprimentá-la, ele a manda abrir a boca e receber um comprimido. Sua boca o recebe em plano detalhe, como uma sorte de hóstia. Mais à frente, descobriremos ser esse comprimido um psicotrópico, dado a todos os residentes – homem, mulher, idoso, criança – antes da batalha final, que será vencida pelos residentes. Bacurau é uma terra mística, e nela o transe não aliena, mas finca em si os pés do povo, garantindo vigor na luta e sua posição de agente da própria história. A transcendência, como a alienação no filme, dualmente isola e empodera.

            Acima de tudo, Bacurau é uma obra do contemporâneo. Como tal, se passa num tempo futuro também indefinido, “daqui a alguns anos…”. O contemporâneo globalizado opera numa sorte de amálgama de tempos e de referências concretas de momentos históricos diversos, em que jovens trajados teen à la 1990 escutam discos sessentistas de vinil enquanto usam celulares touch screen. É nesse tipo de contradição que Bacurau opera, trazendo a secular questão da pobreza a um olhar específico do gênero setentista/oitentista, e fazendo ferramentas de ação tanto de tecnologias recentes quanto de antiguidades. O museu de Bacurau aparece como elemento ignorado (os sudestinos, quando passam pela cidade, não fazem questão de visitá-lo) até o momento do embate, quando um dos assassinos, à procura de vítimas, percebe que uma ala destinada a armas antigas contém apenas os selos nas paredes: os cidadãos estão armados. E aí a história vira instrumento de luta, vira via de sobrevivência; o mesmo tratamento tem a educação, que faz, da escola, uma trincheira durante o tiroteio. Na limpeza do sangue dos inimigos no museu, a responsável manda deixar as manchas nas paredes: “Quero que fique assim, exatamente do jeito que tá.”. Nesse jogo de passado e futuro, o presente vira uma feitura consciente da História.

A noção de amálgama, além do de signos geracionais, se aplica a Bacurau em muitas formas, uma outra principal a de atores, à medida que rostos já conhecidos pelo audiovisual brasileiro e mundial se confundem com os dos nativos da cidade da Barra (RN), onde o filme foi produzido. São feitos closes nos rostos familiares como nos anônimos à indústria, e os planos conjuntos e panorâmicas homogeneízam o elenco: em Bacurau não há protagonista. Faz parte da utopia que o herói seja uma massa coletiva e consciente. Uma massa plural, composta por médica, professor, puta, lavrador, matador, fugitivo. E, na sua história, são todos salvadores.

Bacurau é, em última instância, um filme que não existiria sem Deus e o Diabo na Terra do Sol, nem sem o cinema de gênero estadunidense, e nenhum deles existiria sem a Bíblia. O Apocalipse, no fim das contas, é uma narrativa de crise em torno de uma meta para o mundo, podendo ser tanto um encerramento quanto uma possibilidade. No contexto de lançamento, Bacurau é a prova de que o Brasil ainda é capaz de fazer algo que o brasileiro comum havia esquecido que podia: retomar uma mitologia que seu povo e que o resto do mundo possam venerar.

[1] Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Editora Paulus, 1998, p. 2139.

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Há um olho que me observa

Por Felipe Leal

Instigados pelo ruído grandioso, temático, que certas palavras podem suscitar a despeito de seus tamanhos ou complexidades consoantes, seríamos tentados a esquadrinhar o apocalipse sobre as mesas já demasiadamente iluminadas, ora do evento religioso, ora dos interesses filosóficos: ele é, afinal, sempre “O” apocalipse, a derradeira despessoalização; e é também, à sua maneira, um dos poucos termos limítrofes do sujeito pensante enquanto pessoalidade, humanidade de qualquer pensamento. Enquanto cá residirmos para pensar o mundo, este seguramente existe, existe ao menos enquanto algo a se pensar. Entretanto, ele continuaria a existir, uma vez que não houvesse ninguém para concebê-lo? Sedimenta-se um nó – algo emperra e impede que a ideia de fim consiga conceber o próprio fim, restando-nos dois gérmens de ‘antes’ e ‘depois’. Pensar um fim final, ao que até aqui parece, é, de imediato, unir-se à pergunta do quando. Notemo-lo bem: o apocalipse é da ordem de um tempo específico tanto quanto trata de um modo específico de vida em deterioração; ele precisa da extremidade que aquilo de já estanque pode atingir.

Praticamente todo filme apocalíptico é grande dependente de um estado de exceção em que o doméstico se dissolve e, no externo, é preciso atuar em dedicação delicadamente conjunta, em definitivo e contra ou a favor de uma articulada fonte de poder. As narrativas planejam que sempre restará alguém para preservar, ou ainda, alguém que poderá multiplicar e povoar de novo, ou que sempre, e mesmo que a contragosto, um indivíduo específico poderá evitar qualquer (outro) apocalipse (realmente final) de uma catástrofe já eminente, presente, por algo de único que só ele detém. E nós que não somos o acontecimento vivemos num curioso empecilho onde o único tecido que pode nos lembrar e nos fazer durar (isso que se chama história) convoca, dos enlaces produzidos, aquele de um tênue custo ético, tão mais comprimido quanto maior nos ameaçar uma aniquilação. À pergunta, portanto, sobre se seria possível filmar um apocalipse doméstico, mas, mais que isto, um fim de toda a possibilidade de intercalar ou separar, um cineasta respondeu com uma paixão das mais afetadas e com um comedimento material dos mais notáveis.

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Pois se há marco temporal e ético na historiografia da própria história, assim como deve haver um para o cinema, em que a invasão dos corpos mais mundanos – individuais e quaisquer – faz do filme uma artimanha elaborada de des-identificação, é com o mesmo rigor de desinteresses auto-impostos pelo objeto fixo, catalogável ou escrito, historicizável enfim, que Tsai Ming-Liang construirá O Buraco (Dong, 1998). Um mundo está em colapso, decerto, mas a elementaridade virtual cultivada “por detrás” da quarentena, da escassez de apoio de saúde e da moléstia que a televisão comunica para a Taiwan-povo sem qualquer drama além do comunicado informativo, esse componente dorsal que faz do filme um filme “de…”, “sobre…” ou “ao redor de…” é extinguido através do caractere biológico. Em sua realidade mais íntima e constitutiva, o corpo é passível de contaminação, infiltração, reação: ele não é isolado, ainda que tudo se construa para que ele se separe. Os personagens, pois, funcionam apenas sob a estimativa das necessidades e funções; não possuem nomes, psicológicos ou profundidades delineadas, aquele homem e aquela mulher unidos por um vazamento e alargados por um buraco. Do lado de baixo, acumulam-se papel higiênico e a quantidade de panos necessária para conter o vazamento de cima, e o locatário de lá já se encontra a consumir os produtos do próprio mercado enquanto assiste ao aumento do buraco.

Mais do que a apocalíptica experiência do mundo enquanto labuta canina ou de assassínios, mais do que a escassez cujas narratividades “do fim” pintam pelo pontapé da animalização permitida e não-vigiada, o que eles vivem é o aglomerado de profusões voltadas à faceta microscópica e solitária do cotidiano, e, ademais, paradoxalmente, já que dos vizinhos às necessidades trabalhistas tudo está literalmente a enlouquecer ou estourar. Janelas, corredores, portas, dobradiças, resistências, materiais, vizinhanças, isolamentos, edifícios: toda a escancarada e predeterminante geografia de nosso isolamento, e, por conseguinte, de qualquer relação com um “fora”, volta-se para si mesma até que o caráter pânico e aquele cenográfico estejam imiscuídos. É somente quando o inseticida lhe vem como uma rajada imprevista, do apartamento de baixo até o olho, como um gêiser punitivo, que ele se percebe voyeur e imprensado por meio do concreto em cima daquela mulher. A trama do que nos é permitido enxergar e do que é legítimo que o outro (me) veja rui como os farelos de poeira daquele pequeno círculo encanado. Pouco parece importar, para a tragicomédia musical de Tsai, se haverá alguém para perpetuar alguma história nossa, se teremos morrido pelo malefício mutante de um ser natural ou pela punitiva temporalidade divina.

Mas que reste uma Grace Chang para nos transitar por certo acalento através de canções, que por algum lugar a vidraçaria do realismo e o cristalino do verdadeiro possam se desfrutar na dança despreocupadamente rigorosa, ressuscitada, de um outro tempo que já é também um outro vivível, permitindo a um corpo tido como efetivamente comum, o corpo da imagem, que a coisa guardada como a lembramos possibilite uma existência tanto quanto a maneira pela qual ela deve ter acontecido por norma – isso, é indubitável, importa. Tsai o mantém, literalmente, para todos os propósitos, e assim o assinou ao término da última imagem. Toda a complexidade de tal desejo de endereçamento, aliás, pode ser dita de dois modos simultâneos: a) o apocalipse lhe acontece desde já, e o que resta é selecionar, preservar e exibir aos outros apaixonados todas aquelas figuras, como num álbum passado entre mãos; b) se aquilo com que podemos devanear é somente o termo apocalíptico do acontecimento em si, é dentro do campo do “como ele poderia vir a acontecer, acontecendo” que nos cabe estar restringidos. Um filme musical, um filme endereçado explicitamente aos seus fundos de endereço, e que ele retoma retomando a parte do cinema concernida com os buracos, entrevisões e vazantes: a cinefilia.

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A rigor, tudo acontece num primeiríssimo plano de desimportância representada, o encanador, a descoberta do vazamento e o diálogo enfadonho à porta imantados por uma persistente falta de corte, por uma banalidade, como se um buraco qualquer por algum motivo nos tivesse sido aberto bem no teto, até que algo de uma inteireza também mágica é posto incessantemente ali, junto a tudo o que acontece, e um véu incontornável recai sobre uma amplitude diegética cuja única preocupação sempre será, com efeito, que se resolva o vazamento num apartamento taiwanês na virada do milênio dois mil.

Seria o apocalipse para Tsai uma paulatina não-distinção entre som, imagem, sonho, pele? Porque nunca custará lembrar do eminente e único dado informativo do filme: durante noventa e cinco minutos e unido do crescente e cômico desinteresse do liame jornalístico diante da solubilidade da crise biológica, a chuva é intermitente, a única sonora certeza. Ela é, em uma medida tão desvairada quanto concebível, até mesmo mais crucial que os próprios personagens. O aguadeiro não somente infiltra e descasca os papéis de parede dos apartamentos, não fica restrito ao aumento da umidade como símbolo do contágio afetivo nem tampouco está encerrado na forma de anúncio barrista de um fora em catástrofe. Aquela chuva, a água do elemento majoritário da terra e da composição química dos corpos ultrapassa sua qualidade retratista (de sublinhar um ambiente ora coletivo demais, ora pessoal e abstrato) quando o assunto que ela implica atinge uma mistura, uma intensidade “contaminante” e empírica além, aquém e concomitante ao filme precisamente pela constância desastrosa do empirismo em que ela outrora nos relançaria (a melancolia, o intolerável, a anulação). Pedra de Sísifo, barata kafkiana, praga bíblica, neblina mágica.

Em outras palavras, e no que diz respeito ao cênico, num termo em que a espacialidade da malha sonora possa vir a ser termo para todos, o mote epidêmico/apocalíptico, torcendo a teatralidade do personagem, ao invés de multiplicar, “universalizar”, opta por reduzir, não sendo jamais entre si que eles terão de se relacionar, já que não se trata de fabular um enamoramento pelo lampejo da tradição musical entrecortando cenas, mas com o espaço que os torna alguém um para o outro. Sofisticar e apaziguar, entranhar (sedimentar) e simplificar participam milagrosamente de um mesmo ato conjunto. A possessão repentina dos planos com um certo brilho cinemático toma dessa aclimatação do olho e de sua membrana próxima à habituação o elemento que, no cinema, mais confunde os olhos com certa extra-ordinariedade: que uma vida qualquer esteja à altura da ímpar vida que ela, para todos os efeitos, não poderia ser. Na sucessão dos dias, a mulher degusta o quinto ou sexto macarrão instantâneo – já não sabemos se a água está ou não contaminada, se certo nível de fervura a torna limpa da bactéria ou não, e pouco importa – num improvisado de assento tão esmagado pelo acúmulo de provisões e pelo acúmulo de restrições daquele estilo de apartamentos, que basta uma explícita penumbra ensaiada pelo estado refletor da água para que em seu isolamento subsista uma pose estatuesca de Elizabeth Taylor ou Cyd Charisse.

Tão contaminadas de anglicismos como se perfilavam as canções populares de jazz retidas em Grace Chang setenta anos atrás (Shidaiqu, musicalidade híbrida chinesa/jazz e próxima à outra virada de século), também o fator encantatório de tal sonoridade imagética se infiltra assumindo certo esmagamento improdutivo, ensaiado, finito. Aquela meia dúzia de esquetes musicais vem a nos parecer menos uma homenagem do que o encontro de um consolo pela composição; e ele é barato pela sua qualidade eficaz de fosforescência, pela especificidade de sua consumação. Não poderia sê-lo de outra maneira: aquele casal unido e dessegmentado por um buraco acha, no tecido para o qual o narrativo mostra as dobradiças de sua intenção, uma possibilidade de invasão e de sobrevivência cada vez mais ativa. Eles precisam sobreviver, eles são levados ao consolo sonhado pelo cúmulo de uma brecha. As separações do mundo binomial se dissolvem, como se umedecidas. No penúltimo prenúncio a esquete de Gesundheit!, ela espirra, mergulhada numa banheira em forma quase plenamente anfíbia, e a música que segue não é menos que uma literalidade de espirros compondo versos sobre o teor alergênico da vida amorosa, enquanto que a última dança do casal já rodopia artificialmente, ambos cravados num círculo minúsculo de baile, à maneira das caixas de música com bailarinas eternalizadas. O grau protético desse sonho infiltrado no decorrer dos dias (espécie de daydreaming) é a doença definitiva do mundo biológico que jaz sob o núcleo celeste econômico.

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Pois que ele pode não ter sequer mais um cliente restando para manter o negócio numa pequena mercearia, mas é ainda mais grave que sua antiga clientela e seus habitués tenham vivido a mutação completa e suficiente para torná-los organismos exemplares do mundo regido pelas máquinas: a epidemia bem sabe dançar pela transmissividade da água e pela retração de um espaço possível à humanização, e todos em breve, eles inclusos, serão ratos, baratas, animais de gaiola e sígnicos do laboratorial na experimentação. A diferença é que o buraco lhes proporciona a alternância de lugares.

Um buraco… o que é? Ele é o dado de uma brecha. Mas, no fim dos tempos, nessa exceção chamada ‘agora’, a doutrina das transparências joga “sozinha”, ainda que ao olho da câmera; o avesso por baixo de seu significado basicamente formal, o de ser estando esburacado, assumido ao mesmo tempo em que desvelado, numa transfiguração urgente e dosada vai tornando a fissura um poder de fazer participarem aqueles indivíduos de uma quantidade maior de visões, outrora suficientes à exclusividade vigiada de uma partilha. Ela telefona ao vizinho para lhe dizer de “um olho que a observa”, e o trabalho de destituição do metafórico quase nos leva a crer que ele é de fato simples. Ora, todo o cinema de Tsai jamais se deparou com um problema em assumir uma lógica da contaminação. Se a artificialidade dos números musicais nos aparece como algo que, no mínimo e ao máximo, une as canções amorosas melodramáticas ao prosaísmo de um extintor de incêndio ou de um espirro, a montagem bem soube se utilizar dessa irrupção cenográfica, típica da fortuna mágica musical. Ter outros acessos por visibilidades, neste caso, significa então simular por colagens, acrescentar gestos, realçar a determinação de efeitos.

Eles copiam os trejeitos com que a era de ouro da sonorização espetacular formulou amores dignos das simulações de romances pistoleiros, e não com menor labor o encadeamento coreográfico à miséria sanitária se adapta (re-produz) à simplicidade do ambiente para o qual a quarentena é antes habitat que exceção. Mais que uma vazante, esse buraco significa que a potência material de um atravessar se nos relaciona através de um transbordamento da visão: ver é ver sendo usado.

Cada episódio cantado acrescenta à seriedade diegética uma indiscernibilidade entre o que o passado pode recriar e o que a atualidade precisa fazer ressurgir, inventando. As interrupções não são mais fugas. Não são sequer interditos. Não acrescentam. Consolam, lembremos, e portanto não podem participar de um regime de veracidade, distorção, confusão ou apagamento, já que o consolo ameniza, desvia, reduz, sem por isso deixar de ser válido, eficaz, verossímil. Não é por acaso que o recurso televisivo é amputado até que só reste som, “informação” inútil, ou que o papel de higienização se transfigure de um amontoado de precauções até o comando disfuncional de uma sexualidade higienizada.

Se já não nos coabita um apocalíptico imaginado através de Tsai, com que suavidade ele não repousa nesses tempos distendidos por um ator que interpreta sempre o mesmo ninguém, tão alheio à própria caminhada à morte epidêmica que lhe sustém mais alimentar um gato com as mesmas latas de ração, mais chorar pelo buraco do que pelo lamentável enlouquecimento de seus semelhantes? Com que mecanismo simultâneo de espanto e deslumbramento se concebe, senão pelo impossível olho, que um carteado de canções de uma caricata estrela popular estaria à altura da sobrevivência com que um vizinho pode estender a uma mulher afogada um copo com água? São perguntas que só esse cinema conseguiu desvendar, porque só ele as propôs. A chuva, a grande pergunta da abundância da água. Ela chora copiosamente, mesmo quando o quarto já se encontra em vias de inundação. O apocalipse é essa brecha de uma dúvida desnecessária tornada lastro. Grandiloquente “e se…

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Godzilla ontem e hoje

Por Flavio C. von Sperling

Seria frágil uma análise de Godzilla (Gojira, 1954, Ishirô Honda) que não levasse em conta o contexto de sua recepção no Japão. A fita foi lançada apenas nove anos depois das explosões nucleares de Hiroshima e Nagasaki e do bombardeio de Tóquio em março de 1945 – que destruiu quase metade da cidade, ceifou mais de 100 mil vidas japonesas e alijou milhões de suas casas, apenas dois anos após o fim da ocupação estadunidense no Japão, marcada por estupros e pilhagens, e em pleno preamar dos testes nucleares no Pacífico. Em março de 1954, o barco pesqueiro Lucky Dragon N. 5 foi atingido por poeira radioativa resultante da detonação da bomba estadunidense Castle Bravo, à época a mais potente explosão causada por seres humanos (um erro de cálculo previa 6 megatoneladas, a explosão liberou 15). Toda a tripulação foi contaminada e os atuns pescados chegaram aos mercados de Tóquio. Os Estados Unidos, embora negassem os riscos de consumo destes peixes, suspenderam as importações de atuns japoneses. Concluiu-se que mais de 800 outras embarcações japonesas foram expostas à radiação da explosão e, entre março e dezembro de 1954, as autoridades destruíram dezenas de toneladas de peixes radioativos. É neste contexto apocalíptico que o filme foi lançado em outubro de 1954, um mês após a morte do operador de rádio do Lucky Dragon N. 5, e sua primeira cena faz alusão explícita ao incidente (que seria referenciado em dezenas de outros filmes, e é acontecimento central em pelo menos dois – Daigo Fukuryu-Maru, 1959, de Kaneto Shindô, e O monstro da bomba H, 1958, de Ishirô Honda). Em Godzilla, fatores extra e intra-fílmicos se emaranham de tal maneira que se tornam indissociáveis.

A década de 1950, considerada a era de ouro da ficção científica no cinema, já havia visto o medo e a angústia atômica nas telas, ora de maneira metafórica, ora literal. Embora inspirado em alguns filmes estadunidenses, especialmente O monstro do mar (The beast from 20,000 fathoms, 1953, de Eugène Lourié), Godzilla carrega uma pungência única no cinema.

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Godzilla, encarnação do apocalipse nuclear que para o Japão parecia iminente – se não em curso constante -, transcende a metáfora, e torna-se também símbolo de uma identidade nacional retalhada. O público ainda marcado pela guerra viu-se na pele do monstro, uma pele que, como a de muitos espectadores ali, carrega cicatrizes, queimaduras, deformidades advindas da violência nuclear. Godzilla, ao mesmo tempo em que amedronta, é passível de empatia. Essa ambivalência, esse caráter dual de vítima e algoz, que é da própria ontologia dos monstros, encontra sua potência máxima em Godzilla, talvez comparável apenas ao monstro de Frankenstein, e está impressa inclusive no seu rugido metálico, carregado de dor e raiva. O rugido do monstro, manifestação sonora de um páthos rudimentar, só é menos aterrorizante que seu silêncio, o de uma força descomunal, impassível, inconsciente da destruição que causa. São numerosos os relatos que fazem menção ao silêncio sepulcral que sucede o estouro de uma bomba atômica.

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Godzilla é o mais sombrio dos filmes de ficção científica. Apesar do filme ter seu arcabouço baseado na fantasia e de sua implausibilidade científica (tanto do monstro quanto da arma que o elimina), caros ao gênero, Shindô, veterano da Segunda Guerra, imprime na forma do filme um realismo quase documental, praticamente sem paralelo no gênero até então, distanciando-o de seus contemporâneos estadunidenses e aproximando-o de filmes como Hiroshima (1953, Hideo Sekigawa) e documentários de guerra. As cenas noturnas de destruição parecem filmadas in loco na noite de 9 de março de 1945 – a noite do famigerado bombardeio de Tóquio. As cenas de hospital de Godzilla e, por exemplo, do assustadoramente realista Catástrofe nuclear (Threads, 1984, de Mick Jackson), são mais próximas do que a distância de três décadas entre elas poderia sugerir. Há relatos de que, durante a cena na qual Godzilla destrói o Toho Theater, parte dos espectadores presentes no cinema real tentou fugir da sala, o que nos lembra a anedota do público amedrontado pela vinda do trem dos Lumière, quando o cinema ainda era coisa nova.

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Godzilla é permeado por diversas relações de dualidade, desde a já mencionada ambivalência fulcral do monstro, até a de um Japão tradicional e um Japão moderno, encarnada no dilema de Emiko entre o casamento arranjado com Dr. Serizawa e sua paixão por Ogata. Uma das dualidades mais marcantes do filme é apresentada nas diferenças entre Dr. Serizawa e Dr. Yamane. Este, paleontólogo, representa uma aproximação mais humanista da ciência. Dr. Yamane insiste que Godzilla não deve ser exterminado, mas estudado a fim de mitigar os efeitos oriundos da atividade nuclear. Na última cena do filme, é ele quem nos diz que, caso os testes nucleares não sejam interrompidos, em breve outro Godzilla surgirá, nos admoestando num final típico das cautionary tales – narrativas que nos servem de alerta ou reprimenda. Dr. Serizawa, uma encarnação do trauma da guerra, considera-se mais monstruoso que Godzilla, uma vez que ele criou uma arma que, em mãos erradas, seguramente seria usada para destruição em massa. Serizawa, veterano da guerra, mutilado, com um olho arrancado pela invenção de algum outro cientista, recusa-se veementemente a utilizar o Destruidor de Oxigênio contra Godzilla. No entanto, após ver o rastro de destruição deixado pelo monstro e um coral de garotas cantando em luto na televisão, ele decide destruir sua pesquisa e utilizar o Destruidor de Oxigênio apenas uma vez, para por fim às agruras sofridas pelo seu povo. A cena do coral, das mais poderosas do filme, é uma quase mística evocação de um espírito coletivo japonês que marca o ponto de virada para Dr. Serizawa, a personagem humana mais emblemática de toda a franquia. Serizawa sabe que ele deve morrer junto com sua criação. É seu dever moral sacrificar-se e levar seu conhecimento de potencial destrutivo para o túmulo. Nos filmes de ficção científica, é comum os cientistas morrerem vítimas de sua própria criação, mas o suicídio determinado de Serizawa destaca-se entre os filmes da época.  Em The phantom from 10,000 leagues (1955, de Dan Milner), por exemplo, o cientista mergulha no mar a fim de destruir a arma que criara (numa cena possivelmente inspirada no final de Godzilla) e acaba morto, mas não por algum gesto suicida. O monstro ressurge e o agarra, impedindo-o de fugir da explosão – monstrum ex machina. É possível, nesta comparação, identificar traços culturais diferentes entre os Estados Unidos e o Japão que se evidenciam nestes filmes.

Embora o monstro seja derrotado e haja algum alívio momentâneo, não há nenhum clima de vitória no final de Godzilla. Não há celebração, ao contrário da maioria dos filmes de ficção científica estadunidenses da época. A necessária morte de Godzilla é também a morte de uma vítima, e os testes nucleares, souvenirs da tara bélica americana, continuam acontecendo ali naquele mesmo mar onde estão as personagens.

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Esta ambivalência vítima x algoz de Godzilla praticamente se perde nos demais filmes da franquia, nos quais, a cada um deles, o monstro oscila mais próximo dos extremos desse espectro – embora na maior parte dos filmes ele seja tido como um herói nacional, protetor do Japão, uma figura quase paternal (algo que permanece até hoje na figura de Godzilla como ícone da cultura popular japonesa). Gosto de pensar que estes filmes (1955-2004) formam uma espécie de necrológio em painel do monstro original de 1954, onde a cada hora ele é evocado de uma forma diferente, destacando diferentes características suas.

Em Shin Godzilla (2016, Hideaki Anno e Shinji Higuchi), contudo, há uma forte reaproximação do monstro com sua versão original. É o único dos filmes, depois do primeiro, no qual o Japão ainda não conhece Godzilla, o que faz do filme mais uma refeitura do original do que realmente uma sequência.

Shin Godzilla tem o mesmo tom austero do primeiro filme e resgata vários atributos dele. Após décadas, Godzilla aparece aqui sozinho novamente, sem os demais monstros que povoavam as telas em quase todos os filmes depois de 1955 (a única exceção sendo O retorno de Godzilla, de 1984, pensado como uma continuação do filme de 1954). O realismo do primeiro Godzilla também volta e é marcante o uso de diferentes dispositivos e meios de intermediação de imagens empregados (celulares, câmeras de segurança, computadores, etc). Aqui temos de volta a ”câmera à altura do homem”, enquanto os demais filmes (exceto o primeiro) privilegiavam a “câmera à altura do monstro”.

O trauma coletivo do tsunami de 2011 e do acidente nuclear de Fukushima se soma às feridas ainda abertas da Segunda Guerra e à dominação estadunidense que se articula de outra maneira, muda de forma, mas se perpetua sobre o Japão. “O Japão do pós-guerra é um estado tributário”, comenta uma personagem. “O pós-guerra se estende para sempre”, arremata outra. Pouco mudou no estado de espírito do povo japonês desde o contexto do primeiro filme para Shin Godzilla.

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O filme apresenta uma espécie de protagonismo em painel. É o coletivo e o processo de cooperação que fazem às vezes de protagonista. Após o surgimento do monstro, o poder público é incapaz de oferecer resposta imediata. Não se sabe qual é o departamento responsável pelo inédito aparecimento de um monstro. Especialistas são reticentes em dar diagnósticos e indicar medidas a serem tomadas, com medo de ferir suas reputações e toda determinação passa por três ou quatro pessoas antes de ser posta em prática. Os centros de operação parecem um formigueiro desarticulado, nos planos gerais. Repetições enfadonhas de travellings em reuniões recheadas de desorientados homens velhos trajando ternos iguais sublinham a letargia do Estado. Novos rostos, funções, cargos, comitês e forças-tarefas aparecem a todo momento numa cacofonia que opera na chave da sátira (uma das reuniões é interrompida por uma cartela sobre tela preta que nos indica que fomos poupados de parte dela). Estes ministros, oficiais e funcionários públicos não são, no entanto, vilanizados hora nenhuma; são indivíduos que tentam colaborar para o bem comum, mas são travados pela burocracia do Estado e por alguma inaptidão. O princípio da colaboração é central em Shin Godzilla.

Um comitê paralelo, formado por párias, lobos solitários, nerds, hereges da academia, luta contra o tempo enquanto Godzilla destrói Tóquio e os EUA planejam soltar uma terceira bomba atômica sobre o Japão a fim de dar cabo ao monstro (e, obviamente, lucrar com a reconstrução da cidade). O comitê tem em mãos um enigmático mapa genético do monstro, deixado por um cientista desaparecido, que pode conter informações que levem a uma solução menos trágica do que a proposta pelo País da Liberdade. Este comitê representa uma crença na superioridade do pensamento científico sobre a violência bélica e a aniquilação. É interessante que a solução para decifrar o mapa genético se encontre na milenar arte japonesa do origami, aliando o conhecimento popular japonês ao saber científico e simbolizando um certo espírito nacional que o filme parece querer promover (vale notar que o integrante do grupo de outcasts que indica o origami como solução é representado por Shin’ya Tsukamoto, diretor de Tetsuo, Bullet ballet, entre outros).

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Shin Godzilla é o único filme da franquia no qual o monstro muda de forma. Assim como o Japão no filme, ele também é obrigado a se adaptar a situações adversas. Em sua primeira aparição, de aparência anfíbia, ele se move de maneira caótica pelos rios de Tóquio, arrastando barcos, quebrando pontes e deixando um cenário de destruição muito semelhante ao que o mundo viu e o Japão sentiu após o tsunami de 2011. Quando Godzilla pisa (ou se arrasta) em terra, ele ainda não consegue suportar o próprio peso nas pernas e se debate entre os prédios convulsivamente, em evidente desespero. Seus olhos de peixe, esbugalhados e ainda sem pálpebras, reforçam sua agonia e, como acontece com o monstro de 54, temos franca empatia por ele. Quando Godzilla atinge sua forma terrestre, a rigidez de seu corpo e seus punhos contraídos parecem indicar uma excruciante e constante dor, assim como sua carne exposta, sua pele rasgada, seus dentes deformados – marcas da violência que o originou. É, na história de Godzilla, a representação mais devastadora do monstro como vítima dos pecados humanos.

As sequências externas, salvo as de ataques aéreos, geralmente privilegiam o ponto de vista humano, do nível do chão, exacerbando o aspecto colossal e horrífico do monstro. No entanto, vez ou outra temos uma mudança de perspectiva que nos apresenta um Godzilla diminuto, em planos abertíssimos, em aparente continência perante o cosmos. Estes planos, por sua vez, rimam em sua composição com outros recorrentes planos abertos de seres humanos pequenos e sozinhos em quadro – talvez o que nos distancie dos monstros seja apenas uma questão de escala.

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“A humanidade deve coexistir com Godzilla”, diz uma personagem. O Godzilla congelado ao fim do filme, no meio de Tóquio, talvez seja a imagem mais marcante de Shin Godzilla; é o lembrete de um perigo latente, de natureza cíclica, que nunca será de fato extirpado – memória constante de que o apocalipse não acaba, mas vem em ondas, e é também um monumento de tributo ao Japão e ao viço de seu povo que sobrevive ao longo de uma história maculada por tragédias, de causas humanas e naturais; repetidos “fins do mundo”. Embora este não seja um filme exatamente otimista, ele fecha com a sensação de que se aprendeu algo com a tragédia de hoje, e exalta um espírito coletivo japonês que, embora não sem perdas, conseguiu, dessa vez, transpor suas adversidades. O Japão de Shin Godzilla é agora um país mais seguro de si.

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A festa do fim do mundo e sua nostalgia sexual em Estranhos Prazeres

Por Gabriel Papaléo

“Há uma batida de ritmo de selva embaixo de mim; o som de cassetetes batendo em escudos de choque, tradição da polícia quando a coisa fica feia. (…) Porque vai haver sangue de transientes derramado por todo esse lugar.”

Warren Ellis, Transmetropolitan 3

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Como vivemos no totalitarismo da imagem? O cotidiano pode ser mediado pelo controle absoluto dos dispositivos digitais que nos cercam?

A repressão do governo nas ruas através do uso da força policial como contenção da ebulição de pensamento de descontentamentos é o contexto das ruas de Los Angeles nesse 1999 alternativo cyberpunk concebido por Kathryn Bigelow, em Estranhos Prazeres. A população inflamada apanha sem nem ao menos sabermos o porquê e a indiferença do protagonista Lenny Nero, ao passar pelas ruas na sua Mercedes, parece deixar claro que aquela paisagem há muito é palco de confrontos. Sua jornada é no contrabando de imagens, de um dispositivo chamado SQUID – criado para acessar memórias alheias em primeira pessoa, como um videogame em realidade virtual – e seu contato com a realidade é através dessas imagens alienantes da nostalgia, do gradual descarrilamento do presente como abrigo do pensamento. A televisão mostra o rapper morto misteriosamente, as ruas sangram sua insatisfação, mas, para Lenny, as imagens digitais e seus prazeres bastam nesse estado de letargia desacreditada com o mundo típico dos detetives de noir que o filme dialoga.

Na explosiva cena de abertura, sentimos de imediato o objeto de desejo de tantos personagens ao acompanhar a ação em primeira pessoa do dispositivo, numa perseguição atordoante que termina em morte das muitas pulsões que Lenny almeja aqui. Quando o ex-detetive busca as memórias de sua ex, fica claro que o passado atormentado é sobretudo uma relação desapaixonada com as instituições e é nesse sentimento que Bigelow concentra toda a primeira hora de filme, investindo no pano de fundo, nas interações entre os personagens, em como funciona a máquina cyberpunk do pré-apocalipse da virada do milênio. O conflito racial surge nesse setting como o grande preço que as pessoas pagam ao tentar lutar no tempo presente.

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O estado policial de opressão sentido a cada interação, no abandono das interações sociais, nas vizinhanças sitiadas – devidamente ignorados pela nostalgia digital do protagonista, claro. Essas vizinhanças, por sua vez, só surgem de início em flashback, para apresentar o contato inicial entre ele e Mace, vivida por Angela Bassett. Que Bassett dê uma fisicalidade à Mace que expande cena por cena o papel da personagem é algo perceptível até no olhar da atriz e cabe a essa personagem, bem mais afinada com os dilemas sociais e com a resistência urbana direta diária, a quebra do feitiço digital de Lenny. Que Mace seja uma motorista de limusine dos ricaços, como no Cosmópolis, de Cronenberg, só evidencia seu papel mais íntimo com a cidade, de um conhecimento das ruas pelo dever direto que exerce e observa pela janela.

O conceito de explosão sensorial via realidade virtual é algo que Cronenberg viria a trabalhar diretamente em Existenz, um dos seus melhores filmes, e o título brasileiro do filme de Bigelow chega até a ser o mesmo do Crash do diretor canadense. As perversões da alma sexual do cinema do canadense aqui se tornam ponte para um discurso de privilégios, com foco outro além das inquietudes psicológicas – e aí a comparação mais afinada me parece com o já citado Cosmópolis, um filme que ocorre na pressão entre o ar condicionado da limusine de Robert Pattinson e o ar digital do lado de fora. Aqui em Estranhos Prazeres, o ar não é propriamente digital e as manifestações não exemplificam as virtualidades, as vulnerabilidades e as flutuações delirantes do mercado financeiro; o ar daqui é poluído como a geografia de Los Angeles, a segregação e suas vozes ativas diante das culturas alternativas. O embate do hip hop na televisão, atacado como símbolo político, nas tentativas de despolitizar a cultura de periferia. A motorista dos ricaços numa cidade sitiada e cosmopolita tenta sobreviver com o psicológico intacto à medida que dá, mas sem ignorar os problemas ao redor sob a égide do cinismo e da derrota. É sobretudo um ritual de disciplina, exemplificado na recusa da utilização do SQUID por parte de Mace, que exala da presença da personagem. É da dificuldade em balancear o desejo e o dever, o condicionamento da realidade sob pulsões duvidosas. Escapando de uma premissa reacionária de escapismo, Bigelow no entanto cria a virada da personagem ao fazê-la usar o dispositivo para algo que falaria com seu âmago sob a urgência do levante popular. Mace acessa as imagens, quase com medo, e tem sua realidade aumentada justamente pelo dispositivo que vemos ser anestesiante para o resto dos personagens. É como usar a ferramenta, sobretudo, e sem a inocência de negar o peso rústico do que ela pode causar – e a verdade que Mace vê é filmada como o ataque agressivo aos sentidos que é.

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Conforme a violência vai se tornando mais próxima, mais brutais ficam as cenas que as mostram – e há duas cenas de estupro fortíssimas no filme, em primeira pessoa, abordando diretamente uma questão sensorial da brutalidade superficial da imagem e da linguagem nela inserida. A visão em primeira pessoa nos faz quase cúmplices do crime, e Bigelow sabe disso, mas não na exposição de culpa, o que seria uma iniciativa cínica, e sim de exposição do ponto sem retorno sensorial causado pelo dispositivo. “A paranoia é apenas a realidade numa escala reduzida”, como um personagem diz no filme, e fica difícil estar a par das nuances da realidade quando as imagens obliteram suas córneas. A articulação da conspiração parte então da perversidade explosiva das imagens, do que a memória tornada viva expressa e, com isso, muito da miopia social de Lenny é explicada; é através de Mace, e do snuff da prostituta assassinada, que ele começa a ter relação com aqueles fatos – uma relação moral, de dever ético claro, mas que passa primeiro pelo campo do afeto pessoal, uma vez que é nele que a imagem mais ataca nesse universo.

Talvez por isso a trama de traição importa tão pouco – até mesmo para Bigelow, que encena o clímax no quarto de hotel com cortes bruscos e parecendo mais interessada em experimentar com aquele tempo que de fato resolver dramaticamente aqueles arcos -, porque no limite são atos de crueldade de pessoas ricas e brancas que estão paranoicas porque presenciaram a morte pela primeira vez. Philo Gant, personagem central vivido com a vilania dos gestos calculados e expansivos de Michael Wincott, já servira de bom grado ao papel de homem branco apropriador ao lidar com Jericho One sob o filtro das fortunas, mas é apenas quando se sente ameaçado pela primeira vez pela conspiração em curso que ele se torna não apenas paranóico com seu círculo de influência, como viciado ao extremo no uso das imagens digitais do SQUID. É quase como se a falta de tato ao lidar com situações de pressão e de cerceamento geográfico e social pelas castas mais ricas fosse diretamente culpada pelos grandes atos de destruição e pela proporção inesperada dos movimentos de mudança. Resta a autodestruição, seja na música, seja fritando o cérebro com vídeos.

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Como em um presente de imagens inúmeras, de catalogação complexa e estufada, a paranoia se intensifica e as desconfianças aumentam – as relações perigosas e sexuais surgem exatamente no nível de overdose representativa proposto por Abel Ferrara em outro clássico cyberpunk, Enigma do Poder. Ferrara também lidava com a virada do milênio como dispositivo estrutural para dialogar com videoclipes e a imaterialidade das imagens, a fragilidade da plataforma, refletindo diretamente o psicológico em xeque do triângulo amoroso devido a paranoia de encarar cada representação como a faca de dois gumes da interpretação duvidosa. A espionagem virava intriga sexual, e a perdição nos ambientes exige o total isolamento para alguma organização de pensamento. A diferença central é que, enquanto aquela trama de noir tornava-se a própria overdose de imagens orquestradas por Ferrara na meia-hora final, no confinamento do hotel vertical concebido por William Gibson, aqui em Estranhos Prazeres as imagens nunca dominam inteiramente os heróis tortos. É sobretudo na figura de Mace, sensível ao contexto político que busca as ruas para propor uma mudança significativa, que há o embate contra o império das imagens, imagens a ruir nas manifestações, contra a brutalidade policial, em nada dialogando com intrigas do ego.

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O comentário de ambientação da tensão racial e a trama principal andam sugeridos mas não interligados por mais da metade do filme e, quando eles se atravessam, é culminando todo o ponto de vista estético e emocional que Bigelow vinha conduzindo: a experiência em primeira pessoal da testemunha da brutalidade do Estado, da violência diretamente ligada a uma pulsão sexual do voyeurismo, da importância do combate. As imagens do assassinato de Jericho One surgem com o diálogo direto ao vídeo das agressões sofridas por Rodney King em 1992, que desencadearam nas manifestações pelas ruas de Los Angeles e mostraram o fascismo agindo sobre o homem comum no seu viés mais racista e segregatório. O assunto fora algo amplamente discutido por Bigelow na hora de construir sua distopia, ao aliar essa temática política à intriga romântica do roteiro original de James Cameron e Jay Cocks, e redimensiona de fato os acontecimentos daquele mundo, traz o peso do ambiente interferindo no psicológico de quem há muito luta. Toda representação a partir daí começa a contar e toda a virtualidade dos encontros com o passado de Lenny e seus clientes perdem a força diante do chamado das ruas das palavras de Jericho One, dos punhos cerrados de Mace ao enfrentar quem a persegue. Não por acaso Mace desconfia da integridade do comissário ao lhe entregar as imagens que provam o assassinato de Jericho; os algozes da lei trouxeram esse estado das coisas ao lidar com o presente sob o filtro do afastamento social.

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Ao final, o comissário é inocente e Bigelow propõe que a resistência envolve algum tipo de diálogo, até mesmo de conciliação, e então o roteiro abraça soluções que envolvem a fé na lei e na manutenção das ideias em determinadas situações. No entanto, o que move o policial inocente, no limite, não é sua integridade; é o medo, como Lenny diz, porque a opressão das castas sociais também atinge os empregados mais poderosos do maquinário fascista. As diretrizes ameaçadoras agem no sistema que se deglute pelo estado de opressão e a desconfiança da vigilância. Essa ambiguidade, em uma tentativa de jogar com o medo a seu favor, evita Bigelow de impedir o foco na pulsão pelo revide, das pessoas que aprenderam a estar atentas ao tempo presente, sem esquecer que as resoluções até são possíveis, mas a violência policial é causada por estruturas e não pela galeria de perversos que causam as atrocidades muitas de gênero e raciais. A população se revolta na festa do milênio, enquanto ouve o Skunk Anansie gritar que “Eles estão vendendo Jesus”, porque a pulsão da violência racista dos dois policiais pode ter causado os assassinatos, mas não causou o espancamento de Mace diante da multidão.

A chegada do milênio surge como prenúncio do apocalipse, do grande evento. O principal privilégio cyberpunk é buscar realidades de memórias para fugir do momento à beira do colapso, da tensão das ruas, dos anos 2000 em uma cidade com ânsia pelo fim do mundo. Esse fim do mundo é desejado como um sinal da mudança dos tempos, de que talvez as lutas sejam fortes o suficiente para desafiar e obliterar os sistemas presentes de governo e da economia, mas para as camadas privilegiadas com delírios de grandeza sobre seus problemas emocionais e suas intrigas afetivas, o apocalipse é apenas um desejo cínico de pulsão autodestrutiva de quem não tem o apreço pelo próprio corpo presente, e portanto parece o destino natural da violência, das pistas do crime, da paranoia. Mas como diz o personagem de Tom Sizemore no clímax: “não é nada; nunca é nada”. A grande conspiração megalomaníaca é apenas a forma delirante de auto importância que as camadas de cima veem para fugir da violência policial que os segregados sofrem diariamente.

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