O mundo é o culpado: O oficial e o espião (Roman Polanski, 2019)

Por João Pedro Faro

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Não há mediações possíveis na cena que abre O oficial e o espião (2019, Roman Polanski). Um letreiro avisa que todos os personagens que veremos foram pessoas reais, seguindo para uma sequência de enquadramentos rígidos da condenação e humilhação pública do jovem militar franco-judeu Dreyfus (Louis Garrel). A praça em que ocorre a situação está dominada por fardados em formação perfeita e cercada por um cenário de CGI da Paris de 1895. Direciona-se, portanto, sem qualquer termo inacabado, o conto de desconforto, injustiça, perseguição e  realidade fabricada dirigido pelo criminoso convicto vencedor do César 2020 de melhor direção.

Através da narrativa envolta nos esforços do investigador Picquart (Jean Dujardin) para provar a inocência de Dreyfus em sua injusta condenação por espionagem, Polanski cria um “thriller de rotina” mais interessado nas implicações visuais do ambiente em que se insere e nos personagens que o formam. Grande parte da duração do filme é construída por transições entre cabines, quartos, escritórios e quartéis frequentados por Picquart, com o suspense da investigação surgindo sempre pela exploração desses locais tão marcados por acessos difíceis, gavetas trancadas, arquivos perdidos e dominações hierárquicas militaristas que impedem penetrações mais incisivas por seus segredos. Predomina a agonia do impossível, a distância entre um homem e um sistema estruturado, colossal, que permite apenas brechas do que esconde de mais tenebroso.

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Espaços em que a sordidez é controlada por convenções ou imposições sociais e políticas sempre estiveram presentes no cinema de Polanski. Em O Oficial e o Espião, esse controle é assumido como mote temático e visual de toda a sua ambientação. Polanski filma grandes salas escuras em planos que não passam do enquadramento médio dos personagens, valorizando imagens aproximadas que potencializam o efeito de intransigência do ambiente militar. Assim, não importa quantos segredos sejam descobertos ou quantas polêmicas sejam provocadas entorno do caso Dreyfus, o que permanece é um pessimismo vigente em desacreditar na possibilidade de sucesso no enfrentamento entre o indivíduo e o sistema. Um estado de vigia também é constante, a partir do momento em que a instituição é questionada, todos os arredores parecem ir se fechando ainda mais. Estamos acompanhando uma construção de universo baseada em regras muito próprias de postura e comunicação, desconjuntada em sair de qualquer eixo pré-formulado. A construção da rigidez do espaço serve como fonte de um “medo do autoritário”, instaurado quando a rotina é quebrada pelo incomum questionamento.

Picquart é um personagem em revolta, porém interrompido em seu ultraje pela manutenção da formalidade militar e pelas posturas obrigatórias do cargo que exerce no espaço em que ocupa. Já os algozes, o grupo da alta cúpula do exército que condena um inocente, são caracterizados pela vilania de suas ações frontalmente impostas e inquestionáveis, fortalezas humanas que protegem princípios tortos carregados por noções de patriotismo que Polanski rejeita. São, em sua maioria, figuras caquéticas, decompondo-se por trás de uniformes intocados, fisicamente rejeitáveis, enquadradas pelo contraponto vívido do rosto de Picquart. Nada é tão claro quanto a cena em que o protagonista visita um antigo superior, enfermo e apodrecido em sua cama, que ainda reverbera com dificuldade um discurso contra estrangeiros: “Não reconheço mais a França”, diz.

O poder vigente é tratado como detentor de tradições rejeitáveis, injustas pela própria natureza, propensas a condenar qualquer um que esteja beirando os limites que impõe politicamente. A grande virada rítmica do longa ocorre após Picquart declarar-se totalmente contra as decisões de seus superiores, desfazendo-se da própria honra que existia enquanto aceitava as barreiras de seu cargo. Polanski permite a idealização de um possível herói justo, de um personagem disposto a desacreditar completamente da instituição a qual dedicou sua vida por perceber algo que desmonta suas crenças. O ideal do francês tipicamente moderno, o anti-idealista nato. Porém, ao mesmo tempo, não permite que as forças da tradição sejam facilmente instabilizadas. O artigo que Èmile Zola escreve sobre o caso Dreyfus, “J´accuse!”, entra como o motor subversivo mais explosivo da narrativa. Uma possibilidade de acusação e enfrentamento direto, porém reprimido e insuficiente em níveis mais gerais. O oficial e o Espião abraça o fatalismo da realidade que propõe, enxerga um poder inalcançável com rancor, busca imaginá-lo em sua sordidez institucionalizada e apontar a revolta, mas nunca acredita que seja passível de uma queda total movimentada pela exposição de suas tripas.

Parte dessa exposição contida, que vai formando-se de documento revelado em documento revelado, apoia o tom do filme que varia do escárnio ao temor. Os superiores de Picquart aparecem, em um primeiro momento, como clara ameaça, vestidos em uniformes impenetráveis e posturas estáveis. No decorrer das tribulações que abrem portas nunca antes abertas, nos aproximamos de humanos mais reconhecíveis e inevitavelmente mais passíveis de exporem pontos de fraqueza. Outra cena que explora a fisicalidade dessas figuras: Picquart é desafiado para um duelo de espadas contra um superior que ajudou a condenar Dreyfus. Estão sem uniforme. Depois de poucos minutos, Picquart fere o adversário no braço. Ferido, ele tenta buscar a espada do chão com o braço perfurado, tornando-se despido de qualquer honra, sendo apenas uma figura tosca tentando se apoiar em um poder armado que não consegue mais empunhar. O poder pode não ser derrubado, mas não quer dizer que esteja a salvo da humilhação proporcionada pela verdade, voltada contra todos os mentirosos.

As noções de verdade e mentira estão apoiadas, dentro da obra, em sua noção de uma sociedade em decadência moral. Não há golpe concretizado, mas há a aparição de uma noção de que alguns traços costumeiramente aceitos não passam de absurdos. O fator mais central, o ódio declarado contra os judeus, em um primeiro momento tratado como costume, sofre um tratamento quase anacrônico no miolo do filme. Picquart, antes dotado de um antissemitismo prosaico, deixa de falar qualquer palavra contra os judeus em dado momento de sua imersão no caso Dreyfus. O que é opressor, o que é falso e é dado como verdadeiro pelo interesse de comandantes caquéticos, torna-se cada vez mais um terror esclarecido e as verdades absolutas são a justificativa de qualquer perseguição que possa ocorrer. A insurreição torna-se obrigatória a favor da justiça.

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Polanski fomenta um ideal de culpa generalizada em todos os cercamentos que condenam Dreyfus. Filma uma França antissemita, tradicionalista, de um nacionalismo autoritário, contra qualquer fator externo. Portanto, a partir de um grupo que defende Dreyfus sempre tratado como uma minoria quase milagrosa, fortalece-se a concepção de que a injustiça contra um oprimido não é somente inevitável como também incentivada pelo poder. A instituição militar é retratada quase como comandante de toda a nação, O oficial e o Espião é tão firme em representar o alcance íntimo de órgãos de inteligência do exército e seus mais poderosos membros que surgem como o contorno oficial do universo retratado. Os rumos do mundo pertencem aos fardados, suas armas e bigodes, e Polanski é incansável em retratar todo o terror e todo o ridículo dessa realidade.

 

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Eu ainda acredito em seus olhos: Joias Brutas

Por João Pedro Faro

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(…) que apagaram em imensos cinemas sórdidos, foram

transportados em sonhos, acordaram numa Manhattan

inesperada e se resgataram de ressacas em porões

de Tokays impiedosos e terrores de sonhos cruéis da

Terceira Avenida & cambalearam até

agências de emprego

– Allen Ginsberg, “Uivo” (trecho)

Compreender cinematograficamente a estética de determinado momento histórico é um trabalho ingrato. Ao mesmo tempo que é possível se render a caricaturas reconhecíveis e trejeitos visuais passados, também é possível complexificar os motores, personagens, consequências e atributos da estética histórica, caso bem trabalhada. Não à toa, Joias Brutas (2019, Josh e Benny Safdie) é um grande exemplo de filme histórico: passado em 2012, criando cinema entorno da enervante temporada dos Celtics com Kevin Garnett, o filme compreende cultura, consumo e história como possibilitadores diretos da formação de uma imagem.

Howie Bling (Adam Sandler), uma espécie de “agente do caos de si mesmo”, funciona como centro de capacitação dos fluxos sonoros e estéticos que cercam qualquer enquadramento de Joias Brutas. Em outras palavras, Howie é um protagonista completo, sendo todo o filme moldado entorno de sua presença e de suas necessidades. Em seu percurso por apostas arriscadas que afundam o personagem em um caos incontrolável pela cidade de Nova York, o que fica marcado pelos Safdie é a acumulação de informações que formam o cosmo do personagem.

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Existem dois fatores principais na grandeza do personagem Howie. O primeiro está diretamente ligado ao que Joias Brutas compreende como “cultura”: um balanço entre a tradição e a tendência. Howie e seu mundo de venda de joias, apostas e barganhas é apresentado como parte da comunidade judaica novaiorquina. Nesse contexto, carrega inevitavelmente o histórico milenar do judaísmo e de seu povo, além de seu espaço dentro da própria América, seu passado de imigração e sua conquista de poder financeiro e político dentro desse ambiente junto com a atualização de seus conflitos sociais e econômicos. O protagonista de Joias Brutas se veste com brilhantes e se afunda em seu próprio excesso de possibilidades financeiras, sua má relação com a própria história pelo sincretismo impossível entre a religião do espírito e a do capital (expostos no desconforto da cena do jantar e o desastre de sua jornada com a joia que importa de outros judeus). Portanto, a cultura do consumo está em colisão com as antigas organizações sociais de uma comunidade, e Howie é uma síntese desse conflito que desestabiliza todo o espaço em que pertence. Nada é o bastante, sua nova regência cultural é pela exploração dos limites de seu consumo.

Um segundo fator que potencializa o protagonista parte do seu intérprete. Nada diz mais sobre Adam Sandler do que seu papel “oscar baiting” ser nada mais do que uma repetição de seu típico personagem manchild recontextualizado para uma história que foca nas consequências de seu comportamento. Sandler é o mesmo paizão de Esposa de Mentirinha (2011) ou de Gente Grande (2012), o homem que se entrega aos desejos juvenis voltados ao próprio egocentrismo. E seu tom é o mesmo durante todo o filme: não há grandes explosões emocionais ou momentos que só serviriam para demonstrar uma “capacidade escondida” do ator. Sandler é o que é, é um comediante que compreende um certo tipo de interpretação e só precisa de justificativas para fazer valer o esforço de sua presença. Joias Brutas enquadra Sandler até o limite de sua persona, testa todas as possibilidades que esse tipo de interpretação pode oferecer ao cinema de inquietação que os Safdie buscam. Para isso lhe foi entregue um personagem como Howie, e certamente faz justiça ao ator que pertence.

Sandler constrói, em sua postura de imaturidade, um personagem que acredita no que faz o tempo inteiro. É isso torna sua persona genuína. Ele aposta em negócios arriscados pelo vício e pela grandiloquência, mas nunca deixa de crer que seus caminhos são os melhores possíveis para seu destino. Isso está diretamente ligado com o que resta de sua tradição espiritual, do senso da fé por um futuro melhor para si mesmo. Isso é base de sua vivência e também de sua danação, é um humano feito para colapsar entregue em uma performance que mantém isso no rosto durante toda a projeção.

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O cinema de inquietação dos Safdie é o produto final das imagens que criam. Howie é enquadrado dentre o brilho dos ambientes que transita, de flares das joias até telinhas de celular, e as pessoas que o cercam, de agiotas violentos até ex-esposas. Um acúmulo de figurações visuais, energizando um sentimento de excesso que nunca deixa de cansar e testar suas bordas. Um exemplo é a sequência da boate: após uma briga com sua amante Julia (Julia Fox), decupada em planos fechadíssimos e escuros, Howie abandona a garota, que sai andando sozinha. Em um dos poucos momentos do filme sem o protagonista, Julia caminha pela fila da boate, troca xingamentos com uma outra mulher que permanece no extracampo e segue a rua olhando para o chão, em silêncio. Poderia parecer um breve momento de descanso dentro da narrativa intrincada pela correria, mas é apenas um acúmulo de amargura que acompanha a personagem, mesmo que longe de Howie, o centro dos conflitos.

 Joias Brutas está sempre cercado de problemas a serem resolvidos e pendências amontoadas, ninguém que está sendo filmado está livre desse cercamento asfixiante. Diversas vezes, os Safdie aproveitam o tamanho de seu scope  para colocar o desfoque da imagem no centro da ação de um quadro, gerando a instabilidade necessária para seus interesses de desestabilização. Se não estão à beira do desfoque, os personagens estão enquadrados por trás de vidros, entre lentes de óculos ou por reflexos, gerando sempre a sensação de que cada pessoa em cada plano está a beira de se desfazer por meio da multiplicação, distorção ou má-resolução de suas próprias imagens. Os olhos sempre estão guiados, o eixo entre os cortes está constantemente sendo quebrado, nada parece juntar em uma narrativa impulsionada pela fuga.

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Parte dessa inquietação gerada em Joias Brutas surge também da percepção de seus personagens como frações de algo maior. Howie é apenas uma peça de uma movimentação em cadeia do sistema de consumo, começando do nível mais baixo de exploração com os mineiros etiópes e atingindo o consumidor e astro mundial na figura de Kevin Garnett. Nesse contexto, Howie existe como um rosto esquecido que esbarra com consequências maiores. Ele não é uma celebridade, mas circunda seus meios, ajuda a criar suas imagens de riqueza, revende seus brilhantes. No caso da narrativa de Joias Brutas, Garnett precisa de uma joia cedida por Howie que lhe oferece capacidades especiais místicas que ajudarão no resultado de uma partida aguardada. É a partir desse momento que a realidade do anônimo e a realidade do sujeito histórico se intervém, pois o segundo passa a depender do primeiro. De alguma forma bizarra e enervante, Howie, um anônimo à história, está como parte da resolução final de um contexto maior, portanto suas ações se tornam ainda mais inconsequentes e inquietantes quando sentimos que o resultado final delas pode estar sendo, por exemplo, televisionado ao mundo inteiro em uma partida decisiva da NBA. Howie não é uma estrela, é um anônimo que vive por trás do luxo da história, um personagem secundário dos protagonistas da vida real que, por ironia do destino, pode estar interferindo na realidade exposta oficialmente.

Na obsessão do jogador de basquete pela joia-mcguffin, também ressurge o conflito entre o consumo e sua personalização dentro da modernidade. Garnett, ao observar a joia importada por Howie de mineiradores judeus negros, encontra um universo particular que capacita tanto sua trajetória pessoal enquanto astro negro quanto um estado de exploração escravagista sofrido pelos negros que mineiraram aquela joia. Isso é mostrado através de flashes de imagens que correm por alguns segundos de tela enquanto Garnett está hipnotizado pela joia, e automaticamente após essa percepção de um produto de consumo que comunica diretamente com seu estado de existência no mundo, onde também se percebe como parte de algo ainda maior que seu próprio estrelato. Primeiramente, Howie contesta a decisão de Garnett levar a joia, sendo retrucado pelo jogador: “Por que você me mostraria algo que eu não posso ter?”. O consumo e a existência, portanto, habitam um mesmo estado de essencialidade aos personagens-chave do filme.

É muito característico a um filme como Joias Brutas poder ser intitulado como o primeiro filme de época situado nos anos 2010, afinal é o produto audiovisual de um mundo em aceleração. Atualmente, apenas ter personagens usando um modelo “antigo” de Iphone, usando o Instagram em sua interface passada e falando sobre The Weeknd como um vindouro sucesso já garantem um tom de antiguidade. Escolher criar a ficção a partir de um momento recente de nossa história, ainda mais de um causo tão específico quanto três partidas da NBA, carrega em si todo o peso de um aceleracionismo vigente.

O que existe como histórico em Joias Brutas é o reconhecimento de passagens aparentemente irrelevantes ao processo “oficial” do mundo contemporâneo como carregado de uma série de imagéticas próprias, como um clima de início de década e de correria que perpassa seus momentos de cultura popular (o esporte, as celebridades, a exposição virtual), através de uma série de personagens que habitam os bastidores de uma cultura de consumo imediato cada vez mais veloz, retroalimentada e exacerbada pela acumulação. A história dos anos 2010 já começa a partir dessa velocidade, e nada mais justo que um filme de 2019 retorne à 2012 para reaver o que já é concretizado como intrínseco à década que conhecemos. No caso, flashes de celular, excesso de informações e um sentimento de esgotamento agoniante. Só podemos parar para descansar no anonimato post-mortem, lá o universo nos aguarda. Basta acreditar.

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Aves de Rapina: Arlequina e sua Emancipação Fantabulosa (Cathy Yan, 2020)

Por Pedro Tavares

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Suprir representações de padrões sociais é um código bastante utilizado em narrativas fantásticas e, no universo particular de Gotham City – ou melhor, Nova Iorque -, há um exercício de projeção muito claro, principalmente nos vilões – que agora ganham atenção dos grandes estúdios. Pela lógica, este reflexo catapultou o Coringa de Todd Philips para o sucesso por um tipo de condecoração emocional generalizada. Para Aves de Rapina, a lógica é a mesma: a performance ideológica a seguir o fio obrigatório do produto, da obediência às normas comerciais e de um lugar seguro para estar.

No início dos anos 90 há um capítulo muito claro na ação de convergência entre ideologia e produto na cultura americana: enquanto o movimento Riot Grrl crescia na costa leste, oriundo da cena punk underground, composto basicamente por reuniões semanais entre garotas, shows, zines e convenções, a mídia rapidamente o transformou numa tendência. Se as garotas usavam códigos de reconhecimento como corações e estrelas desenhadas nas mãos, logo a revista Spin tratou de transformar em artigo de moda, por exemplo. Para encurtar a história, este empenho de releitura de um movimento feminista desembocou em estranhos elementos da cultura pop dos anos 90 como as Spice Girls e as Meninas Super Poderosas a julgar o seu ponto de partida.

Susan Marcus, que narrou os anos das Riot Grrls no livro Garotas à Frente, complementa sobre a ideia de produto: “Artistas do Top 40 não são movimentos culturais; são projeções holográficas ultra-homogeneizadas e extremamente comercializadas, aspectos de cultura que são ampliados em telões eletrônicos e levados para o ID por um cateter central. Cultura de massa sempre contém variações limpas e fotogênicas do underground, incorporando apenas o suficiente da parte “provocadora” para manter a própria relevância”.

Nesta declaração, há o lugar de habitação de Aves de Rapina. Uma variação limpa e fotogênica do underground – mesmo que ela seja a repetição ensolarada da Gotham de Christopher Nolan e de um jogo de alegorias que Arlequina por si já se encontra: uma sequência que a protagonista entra numa delegacia e dispara balas e sinalizadores coloridos, o mundo composto, o microcosmo, é tão límpido quanto um código de reconhecimento que fora transformado em elemento visual, pura e simplesmente. A destreza de subsistir num mundo sinistro e repleto de ambientes regidos por homens cede espaço para um tipo de narração infantilizada, “esperta” e pronta para subestimar a persona de Arlequina e suas asseclas em nome de algo maior e intangível. A emancipação da protagonista, à priori jogada para uma segunda camada, está mais para uma escada humorística do que um assunto a ser pautado em algum momento do filme.

Cathy Yan, em sua primeira inserção no mercado americano, opta pela provocação visual: são nas sequências de ação que toda referência à trilogia John Wick dada pela própria Yan é lembrada e sem a intensidade de Chad Stahelski. Se há alguma sugestão de sujeira e flerte com algum extremo, logo são lavados, no qual a provocação é sempre dominada por uma obrigação obscura; Se Kick-Ass – Quebrando Tudo de Matthew Vaughn, para nos atermos ao mundo dos heróis e HQ’s, já desconstruía a figura do narrador e Scott Pilgrim Contra o Mundo de Edgar Wright compôs um mundo estético capaz de unir organicidade ao postiço, o filme de Yan está mais para a aproximação mais mastigada de um discurso moldado pela a noção de produto: se nos anos 90, foram de Bikini Kill às Meninas Superpoderosas, Aves de Rapina é o ponto final desta descida.

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Canto dos Ossos (Jorge Polo e Petrus de Bairros, 2020)

Por João Pedro Faro

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Entre o vampirismo como manutenção de um poder vigente e como puro hedonismo, Canto dos Ossos (2019, Jorge Polo e Petrus de Bairros) estrutura-se na variação de possibilidades do mito. O vencedor da Mostra Aurora na 23ª Mostra de Cinema de Tiradentes é a tentativa de emular possibilidades imagéticas de um cinema de gênero com regras próprias de execução.

Localizado tanto no litoral do Rio de Janeiro quanto no do Ceará, Canto dos Ossos e seu tamanho de tela reduzido busca um conto juvenil de horror vampírico atado ao tema do abandono. As instituições públicas em crise, totalizadas na professora-vampira que guia a narrativa, e a maresia litorânea de uma rotina marcada pelo ócio da adolescência, vivida pelo casal de amigas que acabaram de se formar, formam o mosaico de ideias prontas para serem experimentadas pela derivação.

Dos clássicos de monstro da Universal e do cinema de terror descolado oitentista, especialmente de referências como Os Garotos Perdidos (1986, Joel Schumacher), os autores integram o desejo de seus personagens pela transformação pulsante de um estado atual, independente das consequências dessa transformação. Dois rapazes se conhecem por acaso em uma noite e transam no dia seguinte, com a descoberta de que um deles é um vampiro sendo apenas a pulsação pela mudança do marasmo rotineiro que cansa em existir. Mesmo como monstros, os personagens jovens de Canto dos Ossos reconhecem a necessidade da mutação do corpo, da imagem e do espírito como essenciais à sobrevivência, são vampiros que devoram em tela seu próprio desejo de não sepultar-se ao tédio.

Outros vampiros, que surgem como a única ameaça real de uma trama que não se importa muito com o próprio desenvolvimento, estão em putrefação, definhando com seu poder dominante que sabota as possibilidades de prazer da juventude. O único momento de invenção que essa classe dominante pode viver é em sua destruição, sendo a morte do patriarca-múmia-vampiro-chefe preenchido na tela por uma gosma verde e por um incêndio controlado que fura o enquadramento.

Canto dos Ossos é dosado pelas experimentações impulsionadas por seu contexto enquanto percorre uma dicotomia estranha entre pequenas tramas inacabadas e uma intensidade de ambientações. A gratuidade de ideias, com diversos personagens protagonizando diversos conceitos, por ora gera um constante investimento na experiência do filme, mas também acaba por desvalorizar uma certa pontualidade de momentos mais congratulatórios, revestidos de maior originalidade imagética e sonora. O grupo de vampiros que protagoniza as sequências no Ceará, os melhores momentos do filme, possui um encontro de invenções que estabiliza conceitos do gênero (existe uma luta de vampiros, uma obsessão pelos signos clássicos subvertida em um ambiente próprio do longa) com interseções típicas ao jogo de juvenilidades e fluxo do filme (na interessante sequência do banho no lago). Mas sua potência parece perdida dentre outras, de menor calibre imagético e de ideias menos singulares, como a trama detetivesca de um fotógrafo e as longas incursões pela narrativa de um texto gótico. Uma mania constante a um cinema de gênero mais contido: a fixação por pequenos amuletos, de passagens antigas empurradas em qualquer canto da obra até a brevidade de objetos fora-de-lugar que parecem querer puxar a todo custo algum significado místico por si só. Por vezes, do muito surge pouco.

Inevitavelmente expressivo em concepção, Canto dos Ossos não parece querer ser um trabalho finalizado, em termos tradicionais e superficiais do termo. Porém, mesmo na incompletude, seus coitos interrompidos e seu apreço narrativo pelo mínimo oscilam entre resultados genuinamente desestabilizadores e projeções mornas do gênero derivativo. Aí está o abandono consentido, presente tanto na relação de seus personagens com o mundo quanto em seu próprio ideal de cinema. É como a promessa de uma eternidade melhor que o presente, ou sobre a confusão entre esses dois conceitos que torna instável um projeto mais concretizado de invenções.

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Cabeça de Nêgo (Déo Cardoso, 2020)

Por João Pedro Faro

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Uma alternativa para o cinema jovem brasileiro está em Cabeça de Nêgo, de Déo Cardoso. É quase como se as temporadas recentes de Malhação, da TV Globo, tivessem um senso político menos raso e liberal. O longa de Déo, ainda que didático e por vezes ingênuo, combina uma competência formal com um senso interessante de cinema popular.

A história de Saulo (Lucas Limeira), jovem negro que decide ocupar sozinho a escola pública em que estuda, preza pela objetividade. Os personagens são estabelecidos em diálogos rápidos e o ambiente onde instaura-se a revolta é naturalmente propenso à indignação, sendo um espaço totalizador de uma geração de periferia marcada pela continuidade do abandono estatal e pelos meios modernos de disseminação de ideias. Esses dois fatores se chocam em Cabeça de Nêgo e acendem a pólvora de um trabalho que busca as últimas consequências de sua premissa, ainda que empatadas por decisões narrativas.

A ingenuidade ocasional parece perdoável pela apropriação de Cabeça de Nêgo dos moldes do cinema adolescente. Porém, mesmo que atrás de um meio mais massificador de representação, nem sempre sua proposta é bem conversada com os tons mais aprofundados do longa. Saulo é um personagem-modelo, sem erros, sem conflitos que não estejam externalizados, e sofre ao tornar-se uma figura totalizadora da revolta que não permite momentos mais reconhecidamente humanos. O filme sofre de uma clara euforia de querer falar de tudo ao mesmo tempo e ser absoluto sobre todos os seus temas, e isso custa alguma parcela de humanidade aos personagens, por mais que os minutos finais tenham uma potência inevitável de luta. Fica a sensação dúbia: essa potência é natural ao contexto, não ocorre necessariamente pela construção de um mundo de pessoas reconhecíveis e complexificadas, que merecem esse tratamento mesmo dentro de um filme mais juvenil. Perde-se um grupo de atores que parece ter muito mais potencial do que conseguem demonstrar durante a projeção.

A integração do meio digital gera algumas das sequências mais interessantes. Saulo registra sua ocupação em vlogs verticais, em uma transferência muito orgânica entre linguagens que se afasta de tentativas caquéticas de outros trabalhos recentes em representar a vida virtual da juventude. Posteriormente, outros registros feitos no digital de celulares também integram a montagem e movimentam a narrativa, com a pixelização das imagens aproximando o longa de uma realidade mais reconhecível e mais desestabilizadora, distanciando-se de um filme teen mais típico. A presença policial, um assombro crescente durante o filme e uma ameaça sempre presente nos entornos da existência periférica, fica ainda mais reconhecível e brutal quando filmada pelas lentes de um celular, quando o digital se desintegra diante da violência. O filme busca uma linguagem própria dentro do gênero adolescente, ainda que carregado de derivações assumidas. A sequência final, especialmente, que compila e entrecorta diversas filmagens amadoras de enfrentamentos entre policiais e estudantes, claramente se inspira no que Spike Lee buscou nos minutos finais de seu recente Infiltrado na Klan (2018).

Déo Cardoso oferece uma construção justa de um gênero que nunca se importou pelo grupo que o cineasta quer retratar. Essa tentativa de reparação gera certos meios totalizadores que não servem bem ao filme, que confunde cinema jovem com condução juvenil. Ainda que preso pela euforia da proposta, Cabeça de Nêgo é um ponto de partida para um tipo específico de filme feito para adolescentes que quase ninguém parece interessado em produzir de maneiras menos óbvias, ainda mais para um público geralmente marginalizado por esse cinema.

Visto na 23a Mostra de Cinema de Tiradentes

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Mascarados (Henrique e Marcela Borela, 2020)

Por João Pedro Faro

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Uma primeira diferenciação possível entre Mascarados, nova longa de Henrique e Marcela Borela, e outros trabalhos similares do cinema latino-americano contemporâneo, é a desritualização do trabalho. Diferente de filmes como La Libertad (2001, Lisandro Alonso), não há interesse em ritualizar o gesto do trabalhador braçal. A percepção desse fator é essencial a Mascarados: para os autores, a tradição, o rito do trabalho, não exalta o trabalhador, ela apenas valida a exploração.

O tradicional trabalho das pedreiras, típico da cidade de Pirenópolis que serve de cenário ao longa, não gera nada além de exaustão ao trabalhador explorado. Mascarados é um filme curto, mas de muitas imagens, de planos breves e estáticos que ressaltam o sentimento de apatia e marasmo vivido pelos membros da pedreira. Nesse contexto, surge a festa do Divino e seus mascarados. Os trabalhadores que querem participar da festa usando máscara continuam cerceados, sofrem a imposição de um fichamento individual, fica marcado como eles se tornam uma ameaça ao poder vigente a partir do momento em que não estão mais de uniforme. Não há festa, não há cultura que comporte um espaço para quem é condenado ao ambiente subalterno. A máscara esconde o rosto que precisa sempre ser vigiado, encarado.

O som de Mascarados também potencializa o abismo entre os planos. Uma música de Milionário e José Rico começa a tocar na rádio em um enquadramento e continua no próximo, indo do espaço caseiro para o espaço da pedreira. Uma explosão interrompe a canção, com milhares de pedregulhos caindo da montanha, marcando a chegada de mais trabalho para os pedreiros. As marretadas nas pedras são a única sintonia possibilitada. Assim, a mudança de sequências, mesmo entre cortes que fazem o tempo passar, parece contaminada por um sentimento conjunto de dominação.

É do trânsito entre esses espaços, da pedreira à casa, da casa ao festejo, que começa a emergir uma atmosfera de desconstrução das estruturas tão marcadas por uma montagem tão rígida. As máscaras usadas na festa são uma liberdade temporária, falsa, encerrada de um corte para outro que já coloca os trabalhadores novamente no ambiente de exploração. A câmera, dentro da festa, circula livremente pelos pedreiros que finalmente são vistos como algo além da força usada para aumentar as riquezas de quem os explora. E isso se encerra de um plano para o outro. O trabalho é contra a cultura, e a cultura é do domínio de quem impõe o trabalho, portanto não há como perdoar cultura alguma. Ela atrasa a revolta.

A demissão encerra a mudança de espaços, e dela surge um ultimato. Não há mais escape pelo festejo, a máscara é trocada por uma espingarda e ela movimenta todo o plano final. Entre um plano e outro reside uma sensação amplificada pela sequência das imagens, de uma certeza e uma precisão para o encaminhamento final do longa. O homem, não mais o trabalhador, atinge um estado de liberdade com a arma na mão. Atravessa um cercado, em uma imagem final sísmica de fuga. O plano se alonga pela floresta, em uma correria que vai contra todo o marasmo das imagens criadas anteriormente na obra. Não há apatia possível quando se está livre do domínio, sem as máscaras, sem as tradições, sem qualquer rito que seja. Apenas um último momento de intensidade onde o sujeito se reconhece como possibilitador da própria liberdade.

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Cadê Edson? (Dácia Ibiapina, 2020)

Por João Pedro Faro

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Em dado momento da cerimônia de abertura da 23ª Mostra de Cinema de Tiradentes, quando convocavam ao palco os apoiadores do evento, um representante da Polícia Militar foi chamado para integrar o grupo. Recebido com aplausos, o comandante fardado foi bem recebido pelo evento, sendo a PM Mineira listada como “parceira cultural” da mostra. Nos próximos dias, o que ocupou uma grande parcela das telas foram longas e curtas denunciando a ação policial, especialmente da PM. Cadê Edson?, de Dácia Ibiapina, é talvez dos exemplos mais claros e diretos que expõe o terrorismo de Estado imposto pela polícia.

Sendo dos mais “tradicionais” documentários vistos na Mostra, com cabeças falantes e legendas que localizam o espectador no tempo-espaço, o longa busca centrar-se em um protagonista. Edson Francisco da Silva, figura de liderança do Movimento de Resistência Popular, é filmado entre 2012 e 2018 em suas ocupações e discursos, passando pelo golpe de 2016 até a eleição do atual presidente. De início, sua forte presença parece ser o guia narrativo do documentário, junto com o caso da remoção do grupo que ocupava o hotel Torre Palace, promovida brutalmente pela PM brasiliense em 2016. Quando o filme progride, Edson perde o lugar que havia construído no longa, com uma condução desfocada que perde-se em imagens que a cercam.

A quantidade de trabalhos documentais recentes sobre os caminhos tortuosos vividos na política dos últimos 4 anos exige que novos lançamentos criem cada vez mais personalidade. Cadê Edson?, ao mesmo tempo, carrega ideias muito próprias (estudo de protagonista, uso de imagens não registradas pela equipe) e rende-se ao “lugar comum” encontrado nesse tipo de longa. Quando se afasta do seu personagem-título, a sensação é a de que estamos vendo as mesmas imagens que vimos em todos os outros filmes que circulam pelo mesmo momento político. A divisão do verde-amarelo e do vermelho, os personagens que encaram o planalto central e as falas absurdas dos trio-elétricos direitistas são alguns exemplos que tomam tempo de tela em um filme que parecia buscar enquadrar momentos e pessoas pouco vistos em outros projetos similares.

O título acaba sofrendo da ironia da direção, pois Edson desaparece dos registros à certa altura do longa. A falta de um foco tão claro acaba com a firmeza inicial da diretora, que parece querer totalizar uma narrativa que era tão forte justamente por estar focada em um ambiente menor e mais concreto. O que há de poderoso nas imagens ao fim do longa, razoavelmente entrecortadas pela presença do protagonista, é o uso dos registros em drone feitos pela polícia em sua ação de violência contra os membros do MPR que ocupavam o Torre Palace.

Dácia parte da reapropriação das imagens policiais: o drone busca tornar heroico o ato da polícia covarde, mas suas intenções iniciais são completamente subvertidas pelo contexto apresentado. Os helicópteros, lotados de policiais armados, sobrevoam um grupo de ocupantes do MPR desarmados, tratados como criminosos de alta periculosidade. É gratificante em ser impiedoso na exposição do antagonismo policial, um maniqueísmo justo e condizente com a premissa da obra de Dácia.

Mesmo bagunçado e desfocado, Cadê Edson? é mais bruto e enervante do que a maioria dos trabalhos que circundam um atual momento político. Não há relativização possível da presença policial, registrada como assombro, como terrorismo declarado pelas próprias imagens feitas por agentes policiais em operações, apropriadas de seu discurso de origem e expostas sem o filtro tenebroso do bom-mocismo. Um trabalho de erros e acertos mas que nunca dá o pé atrás no que acredita, nunca higieniza uma realidade tão sórdida.

Visto na 23a Mostra de Cinema de Tiradentes

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Ontem Havia Coisas Estranhas no Céu (Bruno Risas, 2019)

Por João Pedro Faro

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Desde o princípio de sua imagem, o disco voador surge como interrupção de um estado de normalidade da sociedade moderna. Mesmo em uma cidade global como São Paulo, primeiro mundo do terceiro mundo, não há arquitetura mal projetada ou viaduto erguido que esteja no mesmo nível de um OVNI. Parte do que torna Ontem Havia Coisas Estranhas no Céu (2019) um diferencial dentro do desgaste atual do filme-rotina ou do filme-caseiro é sua relação com o objeto voador não identificado: sua presença reafirma o ordinário.

Filmado entre 2010 e 2017, de um experimento comum de registro e encenação que se complexifica ao longo da projeção, o primeiro longa de Bruno Risas coloca sua própria família como protagonista. Não há qualquer novidade na premissa de buscar (ou melhor, observar) mise-en-scène na rotina do próprio lar, nem na inserção de elementos fantasiosos em um contexto social, é a execução que cria sua personalidade. Sendo todo o processo de filmagem, seus conflitos, distâncias e erros expostos em veia aberta, com a iminência da fantasia construída no extracampo sonoro, Ontem Havia Coisas Estranhas no Céu sugere renegar os próprios meios. A construção de sua dramaturgia, mostrada em tempo real por Risas, transforma a suspensão de descrença em pura descrença. Ao mostrar a briga com sua mãe por errar um dos planos, a diretora de fotografia repetindo os takes sem corte e a conversa sobre o ato de filmar como parte constante do filme, cria um estranhamento através da desimportância de uma divisão entre o registro do espontâneo e do ensaiado.

Enquanto isso, vem chegando o disco voador. O som do tremor espacial é reconhecível desde a primeira vez que surge, mas parece tão comum ao espaço caseiro paulista, entrelaçado por brigas de família e marasmo do desemprego, que a comunhão entre o elemento de ficção científica e do cinema observacional tornam-se inseparáveis. Risas filma seus parentes como a típica classe média em crise, dentre idas e vindas de dinheiro ao longo dos anos e um senso de inquietação por uma falsa estabilidade, sempre à beira de desmoronar. O espaço da casa é um ambiente alienígena por si só, e aí não se encaixa metáfora qualquer, apenas um senso de alienação por parte de um grupo de pessoas que flutuam sobre a instabilidade do espaço em que habitam, tanto em termos de classe quanto de interpessoalidade.

As conversas corriqueiras são montadas por sequências paralelas e hipnóticas, quando sons intergalácticos parecem interferir no comportamento de pessoas brutalmente comuns. Ou talvez elas estejam agindo normalmente, e talvez a normalidade seja mesmo uma inconstância de gestos que variam entre o comum e o bizarro sem que possamos perceber. A não ser que tenha alguma câmera posicionada em nossa sala de estar, uma presença ao mesmo tempo consentida e invisível, que transparece a quem assiste seus registros nossa incapacidade de permanecer comum o tempo todo. Encenações ou espontaneidades? Provavelmente temos menos controle sobre isso do que imaginamos.

Ontem Havia Coisas Estranhas no Céu extrai uma potência quase magnética dessa ambiguidade. Dá até para dizer que o filme atinge um entretenimento muito direto na curiosidade pelo mínimo e pelo máximo, pelo mínimo em situações como uma risada estridente e esquisita no meio de um diálogo ou pelo máximo em aparições iminentes de figuras de outros planetas. Como em outros trabalhos construídos por encenações caseiras e planos, ao mesmo tempo, genuínos e calculados, esses momentos são capazes de tornar uma imagem corriqueira em uma construção até o enervante. Sendo exemplo 11×14 , de James Benning, em que um longo take de cozinha torna-se emocionante pela rápida passagem de um vulto no fundo do quadro, o filme de Risas tem total confiança no poder de ações menores transformadas em ações máximas pelo enquadramento. O contrário também acontece: situações máximas tornam-se mínimas diante de um dia a dia tão cheio de mistérios intrínsecos a sua natureza. Passar o dia inteiro esperando pelo dinheiro na conta ou pela hora do café, sem perceber as entranhezas naturais de uma rotina ensaiada. Resta aguardar por visitas interplanetárias que provem a nossa incapacidade de sair do lugar.

Visto na 23a Mostra de Cinema de Tiradentes.

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Sequizágua (Maurício Rezende, 2020)

Por João Pedro Faro

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A distância entre a encenação e o registro documental  sempre foi muito pequena. O modelo de ficção documental, provavelmente a maior tendência dos festivais nas últimas duas décadas, nem sempre percebe que a divisão entre esses dois termos é praticamente inexistente. Com algumas imagens poderosas, Sequizágua, de Maurício Rezende, erra justamente na fragmentação típica do gênero que pertence.

Em um plano inicial preciso, um morador de uma cidade no norte de Minas Gerais explica a tragédia vivida pela intrusão do agronegócio em suas terras. O resto do longa acompanha alguns outros personagens da cidade em sua tentativa cotidiana de desviar das consequências desse terror. É possível compreender o filme em duas metades: a primeira, interessada pelo registro de imagens rotineiras, a segunda, construída em cima de encenações mais claras em que os protagonistas interagem. O desenvolvimento acontece sem que elas conversem diretamente, a divisão não mescla o potencial que cada metade apresenta. A construção de imagens fortes fica perdida nessa primeira metade (a caminhada sobre a terra seca, as crianças e os facões, a procissão) e a narrativa mais clássica da segunda metade não alcança mesmos potenciais imagéticos.

Na objetividade da estrutura, Rezende acaba passando por manias desgastadas da ficção documental. Um exemplo, que acontece lá pela metade, é a sequência de “montagem de rostos”: o filme para afim de que alguns locais, que não estão inseridos na narrativa, façam um plano estático e austero encarando a câmera diretamente. É uma mania contemporânea que perde seu potencial por desgaste, quase como se tivesse que estar lá simplesmente para cumprir uma tabela de requisitos que o gênero insiste. Estão em Sequizágua também há o plano das roupas no varal, o plano do pôr do sol e o plano close dos alunos na escola que geram a sensação de que estamos assistindo um compilado do que é mais comum de encontrar em um filme desses.

Ainda que não seja tão próprio, Sequizágua ainda alcança trechos interessantes. A sequência em que duas adolescentes buscam os irmãos caçulas, perdidos em um rio que secou, e a cena do “amigo oculto” na escola conseguem apresentar uma construção visual vista no início do longa trabalhando coletivamente com ideias próprias de relação narrativa moldadas na montagem. Débora Anjos dos Santos, protagonista desses momentos, atinge um potencial de performance que gratifica algumas passagens mais singulares à Sequizágua.

Maurício Rezende é ocasionalmente inventivo e registra um respeito louvável aos residentes do espaço em que seu filme reside. O que distancia Sequizágua de trabalhos similares mais memoráveis acaba sendo esse excesso de segurança em provocar pouquíssima novidade, dotado de uma cartilha de traços reconhecíveis a esse tipo de cinema sem trabalhar muito em cima deles. Um experimento de personagens poderosos e condução distante.

Visto na 23a Mostra de Cinema de Tiradentes

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Até o Fim (Ary Rosa e Glenda Nicácio, 2020)

Por João Pedro Faro

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Com grandes momentos pontuais, os limites do atual cinema de afeto brasileiro estão expostos em Até o Fim, último trabalho da dupla Ary Rosa e Glenda Nicácio. Por mais que estejam lidando com quatro atrizes interessantes, interpretando quatro irmãs que se reúnem na ocasião da morte do pai, a condução não parece estar à altura de quem filma.

Arlete Dias, Jenny Muller, Wal Diaz e Maíra Azevedo carregam todo o peso do longa. Nesse Longa Jornada Noite Adentro baiano, as performances tomam conta de todo o espaço cênico e ditam os rumos narrativos da obra. Existe um vigor muito genuíno em cada uma das personagens, uma credibilidade quase imediata pelo nível de expressividade do grupo. Ainda que expressivas, nem sempre o texto (que acaba sendo incessante, com pouquíssimos momentos de imagens sem intrusão verbal) acompanha o nível dessa vividez. Uma contradição esquisita: ao mesmo tempo, os diretores parecem confiar totalmente em quem estão retratando mas também não deixam que os conflitos entre as personagens sejam expostos de maneiras menos óbvias. Muito do que é verbalizado já estava exposto em olhares, planos/contraplanos e tensões mais sutis. Especialmente a resolução entre duas personagens específicas, desenvolvida a partir do conflito de um abuso, é tratado com uma verborragia excessiva que desvaloriza a potência do tema e das atuações.

Essa desvalorização por verborragia é uma constante no filme. Os autores claramente expõem uma herança do melodrama mais clássico, com diversas tragédias entrelaçadas e simultâneas, mas sem um tratamento fílmico que as justifique. A câmera na mesa de bar repete diversos planos entrecortados, que vão de detalhes das mãos que não apresentam gestos reveladores até planos conjuntos que não conversam com o tom dos diálogos. Se o melodrama é construído, essencialmente, pelo tempo dedicado a rostos, olhares e contatos, Até o Fim acaba apressando demais seus ritmos visuais. Não que os diretores devam qualquer coisa ao clássico, muito pelo contrário, mas suas reinvenções nem sempre alcançam o potencial do drama. O conceito da execução contemporânea não monta com a tradição de seu texto, e esse conflito distancia o efeito de ambos.

Até o Fim, filme-irmão de diversos outros trabalhos da recente filmografia nacional, sofre de um mesmo problema de confundir educação sentimental com didatismo emocional. Um exemplo está em uma das irmãs do longa, uma mulher transexual. Por mais que seja muito gratificante finalmente ver uma personagem trans que não é interpretada por uma mulher cis, a atriz recebe um material que descomplexifica seus potenciais conflitos. Nada do que acontece com a personagem vai além do que esperamos desse tipo de retrato, entrando em uma espiral de repetições e explicações que são mais do que óbvias na atual produção nacional. Típica situação que entende “afeto” como simples representação, e não como aprofundamento, compreensão e imagem. As outras irmãs também passam por momentos similares, onde o que é dito parece ser o único veículo de aproximação entre autor e personagem. Ao cinema de afeto, faltam imagens verdadeiramente afetuosas, que não se apoiem quase unicamente em seus pressupostos.

O desfecho se aproxima de uma catarse coletiva que é genuína e comovente, onde as quatro atrizes finalmente entram em comunhão em tela. O momento musical é gratificante, um respiro de possibilidades entre quatro mulheres que não receberam toda a atenção cinematográfica que mereciam em boa parte da projeção. Mas há uma forte esperança nos momentos finais, uma expectativa por futuros imagéticos e sonoros mais condizentes com a grandeza de seus temas e pessoas.

Visto na 23a Mostra de Cinema de Tiradentes

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Sertânia (Geraldo Sarno, 2019)

Por João Pedro Faro

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Geraldo Sarno está entre os nomes deixados de lado pelo cânone do cinema brasileiro. Dentre longas e curtas em uma carreira que se estende por quase cinco décadas, o cineasta baiano moldou uma filmografia de conceitos muito próprios, porém bem menos celebrada do que seus colegas de profissão que trabalharam no mesmo período. Sendo assim, Sertânia (2019) surge como um trabalho de purgação, um épico sertanejo de proporções que fazem justiça à sua carreira, elevada na ponta da carabina.

O faroeste sensorial parte das entranhas de seu protagonista Gavião (Vertin Moura), perpassando sua relação de amor e ódio com seu capitão jagunço Jesuíno (Julio Adrião) e encontrando redenção pelo juízo final de um homem que está tão perto de morrer quanto o período histórico em que existe. Existe um clima quase rastejante quando percorre o processo social e político do tempo, a fotografia melindrosa e sísmica, entrecortada por montagens velozes e industriais, sugere o nível de violência do materialismo exposto. O cangaço em decadência, intercalado não-linearmente por tempos áureos do banditismo, sempre puxa as imagens para a cova.

Carregado por um preto e branco quase psicodélico, a imagética de Sertânia busca a danação completa. O extenso scope nunca enquadra caminhos menos asfixiantes para seus personagens, quase sempre posicionando-se do plano médio ao primeiríssimo. A trajetória de Gavião rumo ao terror é potencializada por imagens banhadas por um sol ardente que possibilita as sombras e contornos de quem está em tela. Diferente de outros recentes experimentos de PB do cinema mundial, Sertânia nunca usa o recurso como preciosismo. Pelo contrário, o branco quase sempre estourado pela luz solar incidente e o preto carregado de sombras amargas reforçam a cada plano um mal estar generalizado. Ao mesmo tempo, remete a um registro documental custoso à filmografia de Sarno e também é totalmente próprio em seu interesse pela intensidade do tenebroso.

Por mais que pareça, em superfície, não dá para chamar o filme de faroeste revisionista, porque o gênero original já se encontra completamente revirado. Sertânia é um revisionismo das concepções formuladas historicamente pelo cinema brasileiro em relação a figura do cangaceiro. Tanto as visões populares de cangaço que datam desde o cinema dos anos 50 até o cinemanovismo de Mandacaru Vermelho (1961, Nelson Pereira dos Santos) e Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964) estão compreendidas em Sertânia. O banditismo existencialista e seus questionamentos pelo vazio do mundo encontra grandes cenas de tiroteio e embates mais do que enraizados pelo imaginário popular. Ao mesmo tempo, Sarno busca um intimismo radical, de imagens sobrepostas e explorações oníricas do indivíduo jagunço, e sequências dignas de um cinema mais clássico. O que determina essa dialética é a montagem: tudo está fervilhante em uma sequência comum de intensidade.

O que atrasa certos momentos do filme é essa mesma intensidade que gera outros momentos brilhantes. A ambição do projeto não dá qualquer descanso que seja às suas ideias, fazendo com que praticamente toda cena aposte numa potência de sensações que nem sempre é alcançada, uma potência que deveria estar reservada aos momentos realmente cruciais. O encontro da trupe de Jesuíno com os imigrantes, a jornada mística de Gavião ao plano superior e toda a sequência final são alguns exemplos de uma execução brilhante que não atingem todo o impacto que deveriam pelo excesso de força entregue a momentos anteriores naturalmente menos poderosos. A decisão de Sarno por um filme que praticamente não descansa é ao mesmo tempo seu triunfo e sua limitação.

O que melhor funciona, dentro desse aspecto, é o mosaico que o longa vai formando entre o registro etnográfico e à descida profunda a narrativa ficcional. Um desses entrecortes memoráveis acontece a partir da repetição: depois de Sarno nos acostumar com o gesto de enquadrar famílias sertanejas reais como uma fotografia da época em planos breves e estáticos, ele quebra a própria expectativa ao colocar o personagem de Gavião escondido no meio de um desses planos. Um grupo enorme de pessoas rendidas por soldados da república formam um dos planos, primeiramente compreendido como mais um dos enquadramentos anteriores. Até que um soldado intervém na imagem, chamando um jovem Gavião perdido dentre o quadro, explorando diretamente a combinação de registros do cineasta.

Incansavelmente inventivo e ambicioso, Sertânia é o testamento de um autor para sua obra. Um cinema nordestino idealizado é revirado pelas tripas, expondo sua carne aos abutres até o último minuto de tela. Tipo de filme para ser descoberto. Talvez não hoje, mas quando o cinema nacional tiver real interesse pela sua própria história.

Visto na 23a Mostra de Cinema de Tiradentes

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Sofá (Bruno Safadi, 2019)

Por João Pedro Faro

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Não é grande elogio dizer que determinada obra é “sobre o nosso momento”. Muito mais interessante do que isso é perceber um trabalho como desmembramento de imagens inevitáveis ao que está sendo produzido atualmente, e a partir delas gerar impressões e sensações que remodelam o que já era conhecido pelo espectador antes de entrar em contato com a produção em si. Sofá, de Bruno Safadi, é um filme de desmembramentos. Desde o ator global visto como potência de um cinema sem distribuição comercial até a reinvenção de imagens cotidianas do Rio pelo filtro de um cinema interessado em som e textura antes de poder interessar-se pela própria atualidade do contexto em que se insere.

Entender o popular e o erudito como frutos de um mesmo chão é o primeiro passo para que filmes como Sofá ainda possam existir. Joana Darc (Ingrid Guimarães), removida de sua casa pela prefeitura para obras olímpicas no Rio de Janeiro, e Pharaó (Chay Suede), o pirata caolho de língua presa, são personagens que carregam tanta a história de seus títulos quanto suas imagens de celebridade, e Safadi aproveita as duas possibilidades imediatas disso ao inseri-los em ambientações e enquadramentos que sempre valorizam o artesanato de cada plano para realçar quem está em tela. É pela complexificação do aparato fílmico, típico das referências mais do que escancaradas ao autor que se estendem desde experimentos seculares de película até o cinema de invenção brasileiro dos anos 70 e 80, que Sofá se torna bem mais do que um experimento banal de inserir rostos conhecidos pela mídia em um filme autoral. Tanto para Safadi quanto para os mentores que carrega na filmografia, esses dois universos separados por conceitos de consumo existem justamente para serem mutualmente devorados. Desde que seja imagem e som, qualquer que seja o material está apto para ser explorado nos mais livres contextos, sempre chocando-se entre o que já esperamos e o que ainda está para ser imaginado.

Sofá se concentra nesses choques. As cores, de rosa, verde e amarelo são intercaladas, mixadas e exploradas quase sempre que muda o plano. Geram a sensação de um microcosmo cheio de capacidades próprias de mutação, uma utopia visual que é contraposta por uma realidade rasteira que sempre ocupa o extracampo do filme e, vez ou outra, se infiltra nas imagens do longa apenas para recapacitar os desejos de desmembramento que Safadi busca no que é possível e no que talvez seja impossível.

Por mais que lide com pessimismos diretos e ocasionais obviedades inevitáveis do pós-apocalipse olímpico carioca, não existe cinismo em sua frontalidade. O que é carregado pelas duas performances principais é uma capacidade lúdica em aproveitar possibilidades oferecidas por um cinema de imediatismo criativo, de derivações muito claras que nunca estão escondidas e por isso são tão bem aproveitadas para serem reimaginadas e avacalhadas. Como Chay Suede já fez anteriormente em seu brilhante trabalho no A frente fria que a chuva traz (2016), acompanhado do lendário Neville de Almeida (um dos autores digeridos pelo universo de Sofá), a liberdade em poder escrotizar conceitos de atuação do cinema nacional, no caso do Frente Fria, o playboy, e no caso de Sofá, o bandido carioca, gera alguns momentos de genuíno brilhantismo da avacalhação filtrada pelo tratamento de imagem de um cinema de profundo valor imagético. Novamente, o plano popular e erudito coexistem em invenção.

Ainda é gratificante perceber o tal pessimismo do longa como um desprezo pela reconciliação. Joana Darc não consegue sua casa de volta, é traída pelo plano superior do poder assim que confia cegamente nele. Nizo Neto, que reinterpreta o prefeito do Rio como um nobre francês, brutaliza a obviedade de certas imagens e reafirma que não há espaço para simbolismos ou metáforas, apenas para a extrapolação de conceitos mais do que enraizados. Aí que está o elogio justo a Sofá: não é sobre “o nosso momento”, é sobre qualquer momento, sobre a percepção de que a paródia é cotidiana e não há tempo para qualquer metáfora que seja, nos resta a avacalhação. Melhor do que isso é ver como a maior traidora da narrativa, a filha do prefeito interpretada por Laura Neiva, tem como único figurino a camiseta do New York Herald Tribune usada pela personagem de Jean Seberg em Acossado (1960). Portanto, Godard existe tanto como referência quanto algoz, elevando o poder de escárnio que o filme busca a todo momento.

Júlio Bressane, que trabalha com Safadi há duas décadas e que está nos nomes que abrem o filme, já chamou o cinema de “música da luz”. Essa definição seria, em superfície, saber como ritmar o que está sendo iluminado e a partir disso possibilitar. Sofá leva esse conceito para se movimentar como um dos sambas de rádio que faziam os embalos do Rio no início do século passado: uma dialética entre o humor escapista, a marginalização do que o cerca e um pé firmado na noção de um mundo mais próximo da realidade. O que define o alcance de suas pretensões é a execução, e Sofá é satisfeito em fazer de seu processo de criação o meio transformador de todo um universo de derivações, sempre pronto para ser demolido e reconstruído.

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O Lodo (Helvécio Ratton, 2020)

Por João Pedro Faro

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Um despertador toca, fade in. Vemos um homem de meia-idade acordar, emburrado, seguindo para sua rotina desgastada no tão temido mundo corporativo. Esse tipo de premissa para representar qualquer personagem masculino “cansado desse mundo” já parece ter se tornado um pressuposto automático desde meados do século passado, inclusive com a mesma sucessão de gestos. A primeira meia hora de O Lodo, novo filme de Helvécio Ratton, já denuncia uma percepção mais do que costumeira de uma realidade em desencanto, e o resto do filme mantém a linha tênue entre a saturação dos conflitos típicos para um determinado tipo de personagem e a banalização do próprio mundo fantástico.

O evento que transforma o mundo do protagonista (Eduardo Moreira) é uma visita ao psicanalista Dr. Pink (Renato Parara), que revela-se um stalker do cliente, cercando sua vida de situações bizarras. Ratton tem uma rigidez formal curiosa ao longo de todo o filme: a tela reduzida conduz planos estáticos e longos, que constantemente entram em conflito com o andamento da própria narrativa. Enquanto absurdismo protokafkiano transformado em comédia de erros com elementos fantasiosos superficiais, nem sempre as decisões mais rígidas conversam com o tom de estranhamento. Lodo parte de tantos lugares comuns a esse tipo de história que parece não perceber seus pontos de maior interesse, sendo o peso de um mundo desanimador e não-naturalista desconversado com o que existe de próprio ao universo que cria. É como se sentisse a necessidade de uma atmosfera de cinema mais prestigiosa que afunda muita de suas pretensões em imagens e ideias desgastadas aos pequenos filmes de realismo fantástico que aparecem quase sempre em grades de festival.

Os signos desse tipo de cinema resistem em ir embora. As sequências de sonho com breves retoques de horror, a psicanálise e seus tipos como mote de uma desconstrução visual quase sempre óbvia demais, o espaço dos escritórios como opressão de um “mundo moderno” que existe como entidade e figuras religiosas como símbolos de uma culpa católica elementar são alguns dos elementos mais cansados e repetidos desse tipo de construção de mundo, e que ocupam tempo demais em tela no longa de Ratton gerando a extensa sensação de que este filme já foi feito muitas e muitas vezes. Os dois primeiro atos, muito definidos em uma obra que preza por um teor quase caquético de narrativa (não que isso seja o maior dos problemas), tomam muito tempo nesses mesmos cacoetes de um realismo fantástico que parece sempre muito mais interessado pelo tal do realismo do que pelas implicações do fantástico.

É no ato final que surgem ideias mais singulares ao longa, especialmente pela aparição da personagem interpretada por Inês Peixoto. Sua relação com o protagonista é genuinamente interessante, apoiada por uma performance vívida da atriz. Com ela, o filme finalmente parece abraçar um certo caos ainda que contido nos enquadramentos austeros. Infelizmente esse caos é breve, perpassado, pesando bem menos do que a construção feita na última hora de filme que gera pouco mais do que uma cena ou outra de curiosidades.

O Lodo é um experimento de poucos riscos e excentricidades pontuais, sendo confortável demais para gerar perturbação e contido demais para gerar interesse. Para um filme com esse título, se suja bem menos do que se limpa.

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23ª Mostra de Cinema de Tiradentes

hds_and_visitorTextos por João Pedro Faro

OS ESCRAVOS DE JÓ (Rosemberg Cariry)

O LODO (Helvécio Ratton)

SOFÁ (Bruno Safadi)

SERTÂNIA (Geraldo Sarno)

ATÉ O FIM (Ary Rosa e Glenda Nicácio)

SEQUIZÁGUA (Maurício Rezende)

 ONTEM HAVIA COISAS ESTRANHAS NO CÉU (Bruno Risas)

CADÊ EDSON? (Dácia Ibiapina)

MASCARADOS (Marcela e Henrique Borela)

CABEÇA DE NÊGO (Déo Cardoso)

CANTO DOS OSSOS (Jorge Polo, Petrus de Bairros)

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Os Escravos de Jó (Rosemberg Cariry, 2020)

Por João Pedro Faro

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O último filme de Rosemberg Cariry exibe um fenômeno cinematográfico bem específico: um clima cansado e tardio de obras que parecem pertencer à retomada do cinema brasileiro da década de 90. A fixação por temas totalizadores, estética televisiva e a planificação de simbolismos são algumas características desse tipo de cinema que ainda persistem em cineastas como Cariry. O diferencial maior, que separa essas duas décadas, é o baixo orçamento atual e sua tentativa de adequação à agendas políticas em pauta.

Recontando o mito grego de Édipo por vias confusas, Os Escravos de Jó estrela um grupo de diferentes personagens na cidade de Ouro Preto em conflito com suas descendências. O estudante judeu órfão (Daniel Passi) que se apaixona por uma jovem árabe (Daniela Jesus) enquanto flerta com uma francesa (Romi Soares), aprendiz de um idoso sionista (Everaldo Pontes), mais parecem ter saído de um anedota de mau gosto do que da recontextualização de uma tragédia. Inicialmente, a falta de naturalismo das atuações e o nível desconcertante das caricaturas podem até parecer escolhas estilísticas arrojadas, mas o desenvolvimento do filme de Cariry e a seriedade falsamente poética que tenta empurrar em sua pretensão política risível não deixam dúvidas de que tudo se trata de um tenebroso equívoco em forma de cinema.

Diálogos com frases como “vamos mandar um e-mail para o Latuff, grande ativista pela causa palestina” ou então o ataque bizarro de um grupo de personagens contra um imigrante árabe berrando os mais inacreditáveis clichês colocam em cheque a mistura de má consciência política e péssima condução fílmica. Personagens que parecem caracterizados para uma esquete de comédia de baixo orçamento e colocados em conflitos políticos rasos não fazem jus tanto à tragédia da realidade quanto do próprio universo fantasioso que o filme parece querer situar-se. Estruturado em um esquema de debate cena-a-cena, nada que sai da boca dos protagonistas vai além do esperado de uma vergonhosa discussão corriqueira nas redes sociais. E tudo piora quando a narrativa decide tornar-se ainda mais destrutiva no ato final, percorrendo os caminhos da história de Édipo que surgem quase que aleatoriamente na narrativa.

As imagens criadas por Cariry não vão além de uma decupagem encontrada em qualquer programa educativo da TV aberta. Sempre que um personagem decide ser didático sobre algum dos diversos assuntos abordados sem grande desenvolvimento, a câmera aproveita um plano médio que coloca locutor e interlocutor juntos para a conversa. Além disso, quase todas as cenas estão devidamente iluminadas por luzes brancas que criam planos chapados, aumentando a atmosfera de televisão com pouco dinheiro que precisa otimizar imagens em prol de um funcionalismo fácil. Não existe qualquer valor de interesse quando se trata de cinema em Os Escravos de Jó. Os enquadramentos são pobres em preenchimento, criação e ideias, acreditando que podem ser apoiados pelo o que está sendo demagogicamente dito pelas figuras que filma. No caso, o que está sendo dito é tão raso e juvenil quanto o que está sendo filmado.

Os Escravos de Jó apresenta uma série de conceitos que fracassam antes mesmo de serem executados. Seu desejo por alguma consciência política sempre sugere ser uma âncora, mas só afunda ainda mais o filme quando expõe que seu conceito de “político” gira entorno de cenas como uma jovem palestina tirando fotos íntimas com seu celular, apenas para se tornar a falsa musa de um amante judeu. É desse tipo de ideia para pior, embalado em uma noção visual que já pareceria fora de lugar há duas décadas. Um caso de cinema excessivamente didático que parece deseducar qualquer um que assista.

Visto na 23a Mostra de Cinema de Tiradentes

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