EDITORIAL – CINEMA E SILÊNCIO

Por Chico Torres

O cinema nasceu mudo, mas ainda não havia o silêncio. Este seria uma conquista do próprio cinema, um desdobramento significativo de sua linguagem. Portanto, é possível dizer que o silêncio tem uma história no cinema e é também uma história do cinema.

 Uma de suas possíveis origens: as lágrimas de Joana d´Arc, de Dreyer, nos instantes que antecedem a sua morte pelas mãos da inquisição. A câmera, por alguns segundos, interrompe o fio narrativo para mostrar o rosto molhado e o olhar vago da personagem, deixando que o tempo passe e que seja possível visar mais detidamente aquela composição, é aí que o silêncio começa a ganhar os primeiros contornos como linguagem cinematográfica própria.

Na presente edição da Multiplot!, o silêncio se apresenta, como aponta Eni Orlandi em seu livro As Formas do Silêncio, como sentido: não o negativo, a sobra da linguagem, mas como o ativo, com capacidade de significar. Um significar que pode ser o da errância, do vazio, das interrupções, enfim, da vasta capacidade de sentido incompleto dentro da linguagem incerta do silêncio. 

Chantal Akerman, cineasta que se dedicou ao silêncio de forma especial em suas obras, aparece em dois textos desta edição, ambos em diálogo com outras obras: em seu comentário sobre Days, Gabriel Moraes procura mostrar como Tsai Ming-Liang toma distância de Chantal, apesar de uma aproximação formal na utilização de planos longos e silenciosos, para construir uma obra fundamentalmente melancólica e de fisicalidade sensória. Já Gabriel Papaléo, aproximando Chantal de Peter Hutton, nos apresenta formas de quebrar o silêncio ao experimentar a adição de música a filmes que se fundamentam na ausência do som. 

Ainda segundo Orlandi, o silenciamento surge como o lado negativo do silêncio, já que advém da ideologia que deseja “pôr em silêncio”. Pensar nos efeitos das diversas censuras impostas pela ideologia: recalques, proibições morais e políticas, atravancamentos diversos em consequência dessas repressões. No texto de Ana Júlia Silvino sobre La Noire De,temos o silenciamento enquanto instrumento colonizador, causando a desilusão material e espiritual de uma mulher que se encontra em uma situação de exploração e deslocamento. Bernardo Moraes Chacur, em seu comentário sobre Near Death, documentário de Frederick Wiseman, nos mostra os entraves comunicacionais existentes em situações de tensão entre pacientes, médicos e familiares dentro de uma UTI de Boston. 

Talvez como contraponto ao silenciamento colonizador, Georgiane Abreu traz uma perspectiva de um silêncio reverente e cuidadoso em seu texto sobre o documentário etnográfico Reassemblage – from the firelight to the screen. Penso que esse silêncio que se constitui como um se debruçar paciente em função de uma alteridade, também está presente em meu comentário sobre Mato seco em chamas

E há outros textos que trazem uma diversidade desses silêncios do cinema: silêncio e ruína, silêncio e mito, silêncio e sua relação com os outros sentidos que não a audição, silêncio e palavra. São diversas as formas do silêncio: atravessando as palavras e imagens ou entre elas; ocultando aquilo que é mais importante de ser dito; indicando que o sentido pode ser outro. Todos esses silêncios significantes fazem parte no desenvolvimento da linguagem do cinema, das múltiplas formas em que o cinema, em silêncio, faz a sua história. 

Boa leitura.

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MAL TROPICAL: O RASTRO DO RASTRO

Por Luiz Soares Jr.

Wittgenstein, creio eu, falava que há experiências infensas ao conceito e impossíveis de serem submetidas ao cravo da mediação: a prece, a música, a arte em geral não significam nada, pois não pretendem ser cooptadas pela teia espessa e irisada de significantes da semântica. Elas antes nos mostram coisas, mundos, sentidos, corpos, devires; elas dão a ver. Portanto, há um bruit de fonds imarcescível de silêncio contra o qual se contrapõe ressonante de glória o primeiro plano da aparição destas supracitadas ‘criaturas’ em Mal tropical, obra-prima de Apichatpong Weerasethakul. É uma mulher com rabo de bicho que nos introduz neste cosmo mimético primordial da segunda parte em que homens ainda compartilhavam com animais pedaços de corpo e de ditirambo para contar ainda a mesma história.  A história do mesmo? Da natura imemorial?

É aquela que mais absolutamente fala de nosso segredo, do nosso logos primevo, que é a plenitude e condensação por analogia porque prescinde do signo. Godard dizia que “se eu tivesse a força, eu me calaria”; e o que é a força senão a integridade (não estilhaçada pela separação da mediação, impoluta e irredutível à queda da significação) que os condena de forma bem-aventurada ao mutismo do logos originário?

A arte sempre alcançou as profundezas sem precisar nomeá-las, e se Godard lamenta a sua perda é porque antes de tudo é um artista tardio, aquele que tem por objeto propriamente o trabalho da linguagem. A queda, de fato, consiste na necessidade de recorrer ao signo para poder ser; mostrando-nos um mundo que escapou ao fórceps da significação pela boca humana, o artista dos primórdios profere de boca fechada um litígio inelutável, aquele que separa sem chance de remissão aquilo que é daquilo que é dito; Mal tropical é um dos filmes mais sérios feitos sobre esta impossível sutura: só existimos mais plenamente na boca da noite e da floresta mágica, quando nossa figura, nossos gestos linguísticos estão esmaecidos, esgarçados o suficiente para a emergência de uma força das origens, que dizima e aniquila tudo o que de ulterior nos empenhamos em dizer: o plano sequência, a profundidade de campo e locação resgatados pelo cinema moderno ao primitivismo das origens , seja em Feuillade, Griffith da Biograph, Pastrone, ou Thomas H. Ince, além dos nórdicos servem para Apichatpong como um ponto de partida sem volta, mediúnico e rapsódico, para lidar com este mundo subterrâneo e silente que aflora à superfície do plano cada vez que um corpo inerme se move na floresta intumescida de escuridão.

A prova material de que o silêncio devorou a carne do filme e abriu sua embocadura para uma alteridade infensa à cooptação pela significação é a retomada em um cinema tardio que “ultrapassou mantendo” os dados do cinema moderno – som direto, locação, plano sequência. Uma característica que assistiu à autora do cinema e que é retomada em seu crepúsculo: o intertítulo que nos conta o conto que servirá de fora de campo para o conto entoado pelo filme Mal dos trópicos, aquele contexto fecundo sem o qual o texto do filme permanecerá silente: o xamã e sua encarnação no tigre são os princípios de taumaturgia narrativa, deste conto imemorial que precede e possivelmente vai sobreviver ao filme em questão e a todos nós. O silêncio de que o intertítulo é o representante excelso de escritura é o estigma da nossa finitude. Sua cicatriz insuturável: antes de falar ou sermos falados (pelas obras, pela música, que aliás entretém com o silêncio uma relação privilegiada), somos ex-votos do silêncio. A entrada do silêncio na cena amorosa e rapsódica de Mal dos trópicos instaura de chofre uma profundeza abissal, que nenhuma narrativa com raccord diretivo causal teleológico, no esquema campo e contracampo, jamais vai conseguir instalar.

A grandeza do filme de Apichatpong consiste antes de tudo em nos assegurar um lugar na narrativa, retomando os dados do cinema moderno que permitiam, ao mesmo tempo, um lugar identificatório no mundo e a sua distância em uma clareira vidente: na ‘primeira parte’, somos apresentados à família dos personagens, o espaço-tempo de seu trabalho, namoros casuais, cotidiano hebdomadário, mas tudo de sopetão epifânico, como os filmes do Rossellini ou Bergman nos ensinaram a ver em sua cartilha hierofântica: uma viração de existência, o trecho de um corpo, o encontro inaudito entre estes dois dados, um tanto de tempo em estado puro, as coordenadas de um espaço comezinho. Depois, o corte abrupto, a ruptura fatal, que os vai projetar no horizonte do mito, que vai espessar e escurecer as figuras mostradas até aqui segundo o diapasão de um nomos e um logos obscuramente táctil, aquele mesmo primevo que assistiu à nossa chegada ao mundo e será testemunho de nosso fim.

 Até aqui, o encontro decisivo com a floresta como o contexto iniciático e a clareira maiêutica da experiência fabulosa só nos aparecera como fresta, quando o rapaz que corta gelo se demorara incisiva, mas fortuitamente a olhar para a floresta, que parecia, segundo a aura benjaminiana, lhe virar o olhar de volta. Mal dos trópicos é destas obras prenhes de aura que sempre vão nos levar a voltar o olhar para trás e para dentro, segundo o paradigma de anamneses que nasce platônica e que permanece baliza de nosso autoconhecimento, agora sob os auspícios do cinema tailandês.

Buscamos, talvez em vão, mas isto nada prova em contrário da fecundidade de nossa investigação, pelas pistas, pelos olhares e pelos rastros que melhor nos poderiam assegurar um lugar no filme, e isto porque o homem ocidental será sempre esta errata pensante credora de significação. A grandeza de Mal dos trópicos reside antes de tudo em saber que a verdade, de que é debitaria toda arte, é o lugar de uma revelação, mas para que haja revelação, é necessário que seja dada a condição de possibilidade do velamento. A  segunda parte é o lugar do corpo, do silêncio, da paisagem que agora nos contempla: a primeira, sob o verniz digressivo do cinema moderno, é o véu de Maia cuja revelação nos será permitida efetivar na segunda parte, e reciprocamente se implicam numa diacronia miraculosa; esta estrutura, cuja chave de fá consiste no arremate circular com que o filme se inicia (a descoberta do corpo do soldado apaixonado), é um corpo ressoante de analogia que unicamente ao espectador cabe fazer pulsar, arrematar, levar à plenitude, como em toda experiência hermenêutica poética (e quem há de negar que a essência de toda arte consiste na poesia?).

Se a primeira parte, vigente sob a narrativa ‘moderna’ é aquela que nos permite ter acesso à figuração e estruturas enquanto tais do filme, a segunda parte, sob a égide metafísica do silêncio, nos permite uma abordagem transcendental. O rastro do rastro, aquilo que permite que a primeira metade seja vista com a devida transparência seja usufruída como um assombroso espécime de cinema moderno, mas a Mal dos trópicos, tal como Plataforma, Le monde vivant, Quei loro incontri, não basta robustecer o atalho do caminho moderno, mas estabelecer, sobre os fundamentos deste caminho já traçado, uma rota idiossincrática, não original, mas originária, dada a infraestrutura de um cinema moderno de tudo, o grund da primeira metade. Aqui, este será o lugar do velamento daquilo que só será desvelado a partir do desaparecimento do rapaz, que nos introduz a um filme literalmente pós-moderno, entendendo-se aqui a pós-modernidade não como um arsenal retórico de gosto duvidoso sob a égide de iniquidades como significante flutuante, etc. não: é pós-moderno porque vem depois da primeira parte, sendo esta um experimento digno de Stromboli ou Jaguar, mas não permanece nesta. A complementa e atualiza sob o horizonte que deve preceder e inspirar a tudo o mais – a saber, o substrato de fundamento do filme: a dimensão mimética, inscrita nos corpos fabulosos humanos, da hierarquia mítica dos deuses, tudo, na segunda metade, se plenifica, universaliza e poetiza, porque, bem treinados pelo experimento moderno – plano sequência, som direto, raccord diretivo – somos introduzidos no reino do divino, de que o trágico moderno Hölderlin nos deu descrições tão apofânticas de fábula poética.

 O gênio do filme consiste em que jamais Apichatpong literatize a metáfora em Mal dos trópicos, fazendo poesia e erigindo uma mitologia e jamais abandone o hic et nunc deste mundo:  somos introduzidos em uma percepção vidente sem jamais deixar para trás a “evi-dência” destes rastros atropelados de poeira e palmas, floresta adentro. Os corpos humanos emulam os dos deuses, mas em instante nenhum deixam de sangrar, amar e morrer.

Falei no início deste texto da prece como de uma linguagem consanguínea ao silêncio por excelência. De fato, se observarmos com atenção analítica, os versículos da Bíblia só nos revelam a Verdade sob a égide da tautologia, do “Eu sou Aquele que é”. Correlata à tautologia sublime da prece, nós temos a figuração do ícone, que em sua frontalidade expositiva sempre foi encarregada de revelar o Dom de Deus. No final de Mal tropical, comparecem na imagem pergaminhos de linho puro onde se inscrevem os ícones a que se dirigem as preces laicas do soldado: “Pelas nossas memórias”, a infinidade da memória da fuga do Egito ou da estrela guia que coordenou os passos dos pastores até a manjedoura do menino Jesus, ou ainda as ressoantes de númen palavras de Buda. Mnêmosis (Memória) foi a musa das musas para os gregos, e não por acaso: é lembrando que o homem entoa sua prece primordial, é lembrando que ele transcende absolutamente a imanência de suas misérias para se alçar a um parentesco com a divindade; ao lembrar, por intercessão da imago-mater do tigre xamã, dos seus amores com Tong, o soldado Keng presentifica na figura espavorida do tigre os contornos figurativos de seu amado projeta e vivifica o seu dorso caricioso: “eu me lembro”, sussurra  com o vento da noite aquele cuja figura agora se associou indelevelmente ao animismo do ser.

 Neste lento e suntuoso trabalho de campo e contracampo com que o soldado, ajoelhado, dedica uma prece untuosa ao seu amor de sempre, Apichatpong reivindica o sagrado da prece, do confronto sobrenatural entre aquele que crê (no poder do amor) e aquele a quem se dirige esta unção para falar de unio mystica em um contexto de rapsódia tailandesa. Um desperdício de númen, uma configuração estelar onde a finitude e a infinitude contraem núpcias na noite transfigurada deste enleio. Poucas vezes o cinema (sobretudo o contemporâneo), arte laica da encarnação de Deus e, portanto, de certa forma de sua decadência num corpo qualquer, soube como entoar um canto de amor silente, dueto concertante, entente miraculosa onde a mística, o mito e o homem souberam novamente ser um só.

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DÉPAYSEMENT: SILÊNCIO E RECUSA EM La Noire De

Por Ana Júlia Silvino

A importância da transmissão oral no continente africano, segundo Amadou Hampâté Bâ, etnólogo e escritor malinês, se dá porque as heranças culturais e as memórias coletivas transmitidas pela fala são concebidas nestes territórios como sagradas. Para o autor, a performance oral pode ser entendida como um testemunho daquilo que é o indivíduo. Ao falar, o sujeito torna-se a palavra que profere. Ousmane Sembène se dedicou, fundamentalmente, em preservar a tradição oral através da criação de um método próprio. Na estética sembèniana a língua é concebida como um fator primordial para a representação do cotidiano e, com exceção dos três primeiros filmes do diretor senegalês: Borom Sarret (1963), Niaye (1964) e La noire de… (1966), todos os outros são em línguas nativas como o wolof e não em francês.

Em La noire de (Ousmane Sembène, 1966), a protagonista Diouana é uma babá que se muda de Dacar para Antibes, na França, para trabalhar em uma casa de família. Entretanto, em território francês, Diouana quase não se pronuncia, o espectador só constrói um imaginário acerca das opiniões dela devido a uma concepção formal de voice-over.  Diouana não dialoga com os patrões, mas seus monólogos interiores, onde se questiona sobre a sua vida na metrópole, são todos em francês. A protagonista entende a língua do colonizador, mas escolhe não a reproduzir. Enredando-se numa fala que só diz respeito a si mesma, Diouana constrói entre a voz e o silêncio, um entre-lugar. Paradoxalmente encontra no ato de imaginação da língua francesa, mas não na reprodução dessa linguagem, um espaço possível de pertencimento. 

A primeira manifestação do voice-over é logo na sequência inicial quando Diouana, usando um vestido de grife dado de presente pela patroa em Dacar e uma peruca, desembarca em Antibes e se pergunta, em monólogo interior, se alguém a veio esperar. Ela encontra o seu patrão e no percurso até o apartamento, onde irá viver e trabalhar, Diouana tem o primeiro e único vislumbre romantizado da metrópole. No carro, o patrão diz que a França é um bom país, e a protagonista responde com a única frase que sabe pronunciar em francês: Oui, monsieur (sim, senhor). Quando Diouana chega a seu novo local de trabalho e é introduzida às suas funções, o clima da história muda completamente. As atividades domésticas que ela exerce são muitas e aos seis minutos de filme, com o auxílio do voice-over para representar os pensamentos e a insatisfação da personagem com a rotina, o espectador tem conhecimento de que as funções que ela exerce não correspondem à promessa de trabalho. 

O monólogo é apresentado ao mesmo tempo em que a personagem trabalha de forma silenciosa. A sua vocalidade ocorre apenas na representação formal dos seus pensamentos, como acontece predominantemente no filme. Entre reflexões interiores da personagem acerca da França e dos muitos lugares que ela gostaria de visitar, há uma sequência de suma importância. Na cena, Diouana limpa o chão da sala usando uma variação do traje que vestiu para desembarcar em território francês: um vestido de gala, sapatos altos e uma peruca. A patroa reclama da vestimenta dela e, em um plano americano, a batiza com um avental. Daí em diante, a rotina exaustiva só se intensifica. Diouana gradualmente vai deixando de ser um sujeito para se tornar uma ferramenta de trabalho cuja única função é manter a casa limpa.

Em um momento de catarse após repetições arraigadas na rotina metódica, Diouana transforma a sua postura silenciosa em ação e se tranca no banheiro. Pressionando o próprio corpo contra a porta, a personagem escolhe quebrar o fluxo mecânico da rotina. A voz off é inexistente. Diouana não pensa em nada; só age. O banheiro, apresentado pela primeira vez no filme, é o cenário de um momento de suspensão, uma vez que ali a personagem encontra uma saída, um espaço para além da cozinha e da sala de jantar, que vale a pena ser ocupado. Enquanto a patroa bate incessantemente nessa porta, o corpo de Diouana, que como uma máquina nunca para de trabalhar, permanece imóvel pela primeira vez. Silencioso por completo. A câmera, que antes prioriza filmar as mãos que lavavam os pratos e cozinhavam o arroz, agora foca no seu rosto, a humaniza. 

Esse dispositivo de tomada de consciência é semelhante ao utilizado no filme Jeanne Dielman, 23, Quai du Commerce, 1080 Bruxelles (Chantal Akerman, 1976). A narrativa, assim como a desenvolvida em La noire de, acompanha com rigor a rotina metódica das tarefas domésticas. Jeanne, uma dona de casa viúva, levanta sempre no mesmo horário, arruma a casa, acorda o filho e prepara o seu café da manhã. Sai para fazer compras, prepara a comida, arruma a casa novamente e vai dormir. No dia seguinte realiza exatamente as mesmas funções. A quebra do fluxo narrativo está no fato de que Jeanne faz sempre as mesmas coisas, até que, certo dia, acorda mais cedo e decide se sentar por alguns minutos no sofá de sua própria casa. Esse momento de suspensão, onde esse corpo deixa de trabalhar, causa um desequilíbrio na rotina e, a partir daí todas as tarefas que colocavam Jeanne como objeto mantenedor da ordem familiar começam a dar errado.  

La noire de possui o mesmo gesto. No entanto, diferente de Jeanne Dielman, os usos do voice-over ilustram uma trajetória de tomada de consciência que ocorre na mente da personagem. A vivência de Diouana na Riviera Francesa tem consonância com a experiência do negro estrangeiro. A linguagem, nesse caso, se configura em mais uma armadilha colonial. Segundo Frantz Fanon “Falar é ser capaz de empregar determinada sintaxe, é se apossar da morfologia de uma outra língua, mas é acima de tudo assumir uma cultura, suportar o peso de uma civilização”.

Depois da cena no banheiro, Diouana se recusa a seguir a mesma rotina de antes. Não veste mais a peruca e nem usa avental. Posteriormente, escapa das condições de trabalho análogas à escravidão no mesmo banheiro, encerrando um ciclo de auto-percepção com uma reflexão profunda sobre a ex-metrópole e as pessoas que deixou em Dacar. Silenciosamente, ela faz as malas como se estivesse se preparando para retornar para a África e as posiciona do lado da banheira. Submersa na água, o silêncio de Diouana aponta para um grito de emancipação no único lugar onde se sente livre na França. Sembène utiliza o voice-over como recurso estilístico para permitir que Diouana se aposse da morfologia da língua francesa em seus pensamentos. Entretanto, não permite que a personagem assuma essa cultura – neste caso, o lugar do colonizador – através da palavra.

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NOTAS SOBRE QUEBRAR O SILÊNCIO – Assistindo Hotel Monterey e Three Landscapes

Por Gabriel Papaléo

Nunca houve ‘cinema mudo’, aliás, apenas um cinema surdo ao tumulto que se produzia no interior do espectador, no seu próprio corpo, quando este se tornava a câmera de ecoar as imagens; as do vento, por exemplo.

(Serge Daney, Cinemetereologia, 1982).

Um elevador à espera, seus passageiros entram e saem e preenchem e esvaziam o quadro, num fluxo cotidiano retesado, uma espécie de abandono construído através de uma imagem supostamente banal. Num dos planos mais marcantes de Hotel Monterey, o primeiro longa-metragem de Chantal Akerman, observamos a passividade do comportamento daqueles habitantes temporários do hotel do título, transitórios por natureza, solitários por contexto imagético, fantasmas pela circunstância. A disposição da diretora belga em mapear espacial e sensorialmente aquele hotel qualquer em Nova York parte de uma essência quase de exercício estruturalista para então alcançar uma cidade em transformação, vista por janelas e terraços, intuída, mas não necessariamente vista.

Na solidão dos corredores, a vocação retratista do imenso trabalho de Akerman já aparece viva, mas diferente do som ambiente da cidade em Notícias de Casa, sua obra-prima realizada três anos depois na mesma (não exatamente a mesma) Nova York, aqui não existe som algum; o filme é intencionalmente construído com ausência de banda sonora. Nos travellings austeros do corredor vazio mirando a janela, esse silêncio cria uma tensão claustrofóbica, como se aquele movimento fosse revelar algo que não está de fato lá; encenação criada através de ar rarefeito. Já no plano estático do elevado, a falta de som revela um mundo alienígena, sem contato com a realidade e estilizado justamente pela ausência dos diálogos e ruídos da cidade – não ouvimos o que se espera, o movimento sem contraparte, esgarçando ainda mais o tempo, um passo em falso. Mesmo a libertação espacial do final, ao acessarmos o terraço, soa sob retenção, uma visão descontínua de uma cidade que mesmo das alturas ainda soaria barulhenta.

Se em Hotel Monterey a ausência de som é angustiante pela falta da tapeçaria sonora rica da cidade e dos habitantes que entram e saem do saguão, dos quartos, dos corredores do hotel, em Three Landscapes, de Peter Hutton, o vazio é outro: estamos diante de paisagens majestosas da natureza, com poucos traços humanos, e que estão igualmente sem som.

Por mais que ambos tenham uma tenacidade especial em conjurar drama através do que é concreto e bruto, seja uma paisagem enigmática de um rio ou de Skagafjordur ou o rosto humano calejado de Delphine Seyrig ou Stenislas Merhar, a arquitetura da obra do diretor americano é bastante distinta de Akerman em um ponto específico, uma vez que suas operações foram através da ausência de banda sonora por toda a sua carreira; o silêncio total é sua contraparte visual por definição.

Three Landscapes tem no grão do 16mm dos maiores responsáveis por esse procedimento de tornar o espaço palpável, bitola essa usada por Akerman e Babette Mangolte em Hotel Monterey também; a difusão da luz e a textura da película dando um caráter documental aos dois supostos documentários. No entanto, no que Akerman é crua e concreta em registro de espaço, Hutton é místico e etéreo. Ambos lacunares, ambos misteriosos, mas uma através da aproximação sangrada do que entendemos por realidade, o outro através das distâncias secretas entre mundos – em a ausência de som em Three Landscapes realça também essa distância, porque por paisagens entendemos um som, intuímos ruídos distante, sons se propagando ao infinito, mas ainda presentes, um murmurar dos tempos.

O que acontece quando se propõe um som a essas duas obras tão aterradas no silêncio? Vamos às breves profanações: assisti novamente ambos os filmes ouvindo dois dos meus álbuns favoritos: comentando Hotel Monterey, ouvi Ravedeath, 1972, de Tim Hecker; comentando Three Landscapes, ouvi F#A#Infinity, do Godspeed You! Black Emperor.

O álbum de Hecker, gravado em 21 de julho de 2010 numa igreja na Islândia e lançado em 2011, parte de melodias esparsas tocadas no piano se proliferando pelo espaço, como reminiscências que se esgarçam até esbarrar no noise e no drone, um conjunto ambient melancólico sobre a decadência e destruição de um lugar desconhecido. Combinado com os corredores vazios de Akerman, a sensação de abandono ganha uma ressonância diferente, como se o algo à espreita sugerido pela diretora ganhasse uma ameaça, sem sublinhar suas articulações.

Na longa sequência do elevador, o plano fixo da câmera estacionada no fundo observa o saguão, depois a porta fechada, depois os corredores pouco iluminados, volta para o saguão, volta para os corredores, e todo esse trânsito constante de pessoas e lugares coincide com o segundo movimento de In the Fog, cujos ruídos em loop sujando a melodia do piano abafado tornam a repetição dos padrões da viagem ainda mais soturnos, a duração inquieta dos planos de Akerman tornando-se quase ansiosa. James Benning contou em alguma entrevista que fazia seus filmes de paisagem, extremamente pacientes e com ações comedidas, como contraponto e antídoto justamente de sua ansiedade natural; na guitarra que rasga os loops ambient do álbum de Hecker parece que acessamos uma ansiedade de Akerman, mais sublinhada e pontuada, menos sutil, tão agressiva quanto.

Já na combinação entre Hutton e GY!BE, o abandono social articulado pacientemente pelas imagens do filme ganham contornos de puro horror. O senso de estranheza espacial da paisagem é provocado tanto por imagem quanto som, e a banda canadense transforma a calma insidiosa do diretor em suspense contínuo, tensão em combustão crescente. Num dos planos mais impressionantes, três trabalhadores realizam alguma atividade em cordas suspensas, numa altura absurda e perigosa; a visão mais próxima com as lentes teleobjetivas se concentram no caminho da ação, nos homens a trabalhar; a visão mais distante com as lentes abertas ressaltam o perigo do trabalho e a vastidão majestosa do céu que os engole, ocupando o quadro e trazendo uma dimensão ainda maior para aquele trabalho aparentemente trivial.

F#A#Infinity é pontuado por gravações de vozes como se em transmissões piratas de uma rádio no pós-apocalipse, com depoimentos sobre destruição e sobre o fim do mundo. E enquanto se tem essa imagem dos homens, a voz no álbum fala: “this is the perfect place to get jumped”. O tipo de diálogo de sombras involuntário, como uma batida de portas na sessão de cinema na qual assisti ao filme acordar um dos rostos que dormia na tela no Sua Face de Tsai Ming-liang, que enriquece tanto a experiência de assistir algo que não era para ter conexão tão imediata.

Ambos os exercícios são reimaginações e interpretações livres dos filmes; não evoco a ideia de uma pureza de obra na forma que foi concebida pelos diretores, até porque assistir a esses filmes 16mm em 720p não deixa de ser também uma profanação enorme. No entanto, ressalto que são filmes afônicos por essência, e é fundamental que sejam apreciados também como tais. Filmes em um silêncio específico, com o espírito aberto da descoberta e da ventura que Chantal Akerman e Peter Hutton tanto encorajaram com seus filmes; o som de uma sala de cinema viva respirando, ou de um quarto aonde assistimos filmes, na nossa casa, com a cidade insistindo em entrar pelas frestas e comentar involuntária, e crucialmente, essas duas obras do silêncio nunca total.

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SILÊNCIO – É PRECISO QUE OS MORTOS FALEM

Por Chico Torres 

Aqueles que foram silenciados precisam falar. Aqueles soterrados pelos vencedores de um tempo linear e uniforme, precisam, ainda que mortos, falar. A morte, aqui, em sentido literal e simbólico, com o poder de representar tudo aquilo que produz o emudecimento, que demarca o lugar do vencedor e do vencido. É preciso, então, que esses mortos falem, que ressurjam dos despojos do tempo e que possam dizer o que precisa ser dito. 

No campo artístico, o cinema é uma ferramenta eficaz para cumprir com essa função política da arte, já que consegue produzir diversos jogos e transgressões no tempo e no espaço para que possamos vivenciar as suas histórias e fundamentar outras narrativas para a História.  Quero tentar explorar um pouco melhor essas questões através de um olhar sobre “Mato seco em chamas”, de Joana Pimenta e Adirley Queirós. 

 O filme amplifica as vozes das gasolineiras que trabalham, lutam e se divertem com o máximo de autonomia que conseguem obter naquela realidade pré ou pós-apocalíptica. Por outro lado, penso que o que aprofunda o sentido político da obra não é propriamente o seu perfil militante, mas a fusão entre ficção e documentário e a utilização de planos longos na composição da narrativa. Nesse sentido, quero pensar como esses elementos compõem o filme através de silêncios que a meu ver contribuem para o aprofundamento do caráter crítico da obra. 

É possível apontar duas formas de silêncio em “Mato seco em chamas”. O primeiro é o silêncio das vozes emudecidas, o silenciamento. Esse tipo de mudez se apresenta como a expressão mais militante da obra, ainda que suas imagens não sejam convencionais. O silêncio que se faz presente, por exemplo, na madeireira onde as mulheres passam a trabalhar depois da ruína do seu negócio, ou antes do sucesso da empreitada (o filme joga com essa temporalidade circular). É o silenciamento de uma realidade invertida, de quem não é mais dono do seu próprio trabalho e, agora, apenas responde a comandos aleatórios. É preciso lembrar que essas mulheres constroem uma base de extração de petróleo, produzem gasolina e vendem para motoboys da região. Todas as etapas de produção são realizadas por elas: extração, industrialização e venda. Depois de experimentar a autonomia de produzir, o silêncio se apresenta, portanto, nesse lugar da subalternidade e da exploração.  

Outro momento que se utiliza desse tipo de recurso, agora através de um efeito de choque dentro da montagem, é o ônibus que se converte em espaço de festa para logo em seguida, em um corte abrupto, transportar as presidiárias para a penitenciária, todas bem sentadas, uniformizadas e silenciadas. Há no filme, portanto, a construção desse contraste entre expressão e silenciamento. As gasolineiras se expressam de diversas formas, mas há sempre a presença da repressão que tolhe, simbólica e literalmente, a liberdade daquelas mulheres. 

A filmagem da vitória eleitoral de Bolsonaro é a realização extrema desse tipo de silenciamento advindo de forças externas, só que em um nível de drama coletivo que agora não afeta somente as personagens, mas também nos põem calados. O que o traveling de quase cinco minutos impõe é também o nosso emudecimento incrédulo, porque somos espectadores daquele passado recente e traumático. Ao nos impor de uma vez por todas os limites entre ficção e realidade, instaura-se na obra o efeito da distopia e sua presentificação. 

Uma outra forma do silêncio se dá através dos planos longos do filme, revelando aspectos mais imagéticos e contemplativos. Os planos se demoram naquilo que é mais prosaico nas personagens, nos dando o tempo necessário para conhecê-las por meio de suas peculiaridades, em uma dinâmica de contrastes entre imagens/situações. Mais do que acompanhar a trajetória das gasolineiras, nós a sentimos em suas subjetividades, adentrando nos detalhes de suas expressões, contradições, falas e pausas. Contemplamos os silêncios do cigarro, do posto de vigilância, do trabalho da extração do petróleo, das danças, andanças e lembranças que preenchem suas vidas. Todos esses momentos compõem as frechas por onde nós espectadores devemos adentrar de quando em quando para preencher a história das gasolineiras da Ceilândia. 

O interessante é que o heroísmo daquelas mulheres acontece através da junção entre o prosaico e o grandioso. São mulheres muito reais, mas ao mesmo tempo estão envoltas em uma pictorialidade mágica através da construção dos planos e daquela ambientação apocalítica de futurismo precário. E assim se desenvolve a lenda das gasolineiras: uma ultra ficção dentro de uma ultra realidade. Talvez esse seja o grande mérito do filme, sua capacidade de documentar e ficcionalizar de modo que esses elementos sempre se interpenetram e se complementam adequadamente. 

 Quando nos deparamos com a interrupção da narrativa por causa da prisão de Joana (Léa) e vemos essa própria interrupção se converter em elemento estético para o desfecho da obra, mais uma vez o peso daquelas representações recai sobre nós, porque estamos de novo diante da realidade que se apossa da ficcionalidade (ou seria a ficção se apossando do real?), impondo os seus limites e nos fazendo adentrar nessa atmosfera ambígua e politicamente poderosa. O filme, por fim, é silenciado, mas no limite da voz ainda se deve falar e essa fala vem como denúncia contra o emudecimento. Ainda que exploradas, presas, mortas, impedidas de qualquer maneira, as gasolineiras procuram falar, existir e se constituir como uma lenda brasileira, com o devido respeito que todas as lendas devem possuir. 

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PARA AQUILO QUE SOBREVIVE

Por Luiz Pretti

I play because it is one of the things that come out of my existence. 

(Wadada Leo Smith)

Quando Pedro [Tavares] me convidou para escrever um texto sobre a influência do free jazz (música de improviso) no cinema, e também no meu próprio cinema, logo aceitei porque é um tema que me movimenta há bastante tempo e a oportunidade de levar essa conversa para a esfera pública não costuma aparecer. Nutro uma paixão duradoura pela música de improviso e uma inquietação enquanto realizador que me proporcionou certa experiência prática tentando encontrar formas de aproximar a realização cinematográfica do improviso musical, testando diferentes procedimentos de filmagem, descobrindo resultados estéticos variados. Vou passar por alguns experimentos e exemplos dos últimos 60 anos com o objetivo de mostrar a importância que essa expressão musical tem no cinema feito aqui e alhures, ontem e hoje. Não pretendo me deter em demasia sobre cada filme, mas a partir deles jogar luz nessa história pouco conhecida. Desejo ainda colocar alguns filmes dos quais participei, dirigindo, tocando ou montando, em diálogo com essa tradição. Falar um pouco de como temos trabalhado e pensado o improviso no cinema.

Podemos começar com alguns exemplos do que é possível ser feito colocando a música na trilha sonora. Lembramos rapidamente de Sarah Maldoror que pôs o Art Ensemble of Chicago em seu filme Monangambé. A música funciona como elemento dramático/psicológico para o que se passa com a personagem aprisionada e torturada, mas é também uma declaração política de Maldoror: se a revolução é um ato de radicalidade das pessoas que a constróem, a música revolucionária também deve ser um ato radical. Não é tão difícil de entender isso se ouvirmos, por exemplo, Albert Ayler ou Linda Sharrock, junto de imagens dos Black Panthers, façam o teste. Imagino que Koji Wakamatsu estava pensando nisso quando fez Êxtase dos Anjos. De um jeito menos óbvio e mais sofisticado Masao Adachi também devia ter isso em mente quando fez Serial Killer. Mesmo Ugo Gregoretti quando fez Apollon, una fabbrica occupata, devia estar levando isso em consideração, apesar da música mais reflexiva. 

Pelas bandas de cá pensamos logo em Alma no olho do Zózimo Bulbul onde ouvimos Kulu Se Mama tocada por Coltrane (a quem o filme é dedicado). Aqui também a música tem a função dupla de dramatizar e fazer uma afirmação política. Mas de Zózimo eu gostaria de lembrar um outro momento de sua cinematografia, o final de Abolição: primeiro vemos a estátua de Zumbi dos Palmares na Presidente Vargas, dois planos; ouvimos um sax furioso acompanhado de uma bateria não menos furiosa, baixo e piano; corta para uma imagem do centro do Rio de Janeiro, 1988, 100 anos após a suposta abolição da escravatura no Brasil, a câmera recua em travelling out e em seguida, num movimento de grua, desce revelando uma grade que antes não se via; a câmera estaciona e continua observando a cidade por detrás das grades; a música continua rasgando a imagem, sobem os créditos. De um lado, a música parece acompanhar a radicalidade revolucionária na figura histórica de Zumbi dos Palmares, que através de sua presença no filme faz oposição direta à data oficial da abolição. Por outro lado, a música grita o sofrimento que ainda assola a população negra no Brasil, nos dizendo que a luta segue, que as grades ainda precisam ser derrubadas. Esses poucos minutos parecem encapsular o que o filme estava dizendo até ali, e a música funciona como elemento intensificador, se adaptando, se transformando ao longo desses minutos.

Abro um parêntese, fugindo do assunto, para algo curioso que me chamou atenção. O final de Abolição parece diametralmente oposto ao início de Cidadão Kane, onde a câmera avança sobre a grade onde uma placa diz “não ultrapasse”. Para Welles, entrar pela grade é abrir as portas de um mundo misterioso que iremos conhecer, é começar a desvendar a figura de Charles Foster Kane. Já em Abolição não tem personagem a ser desvendado, o que temos é uma população inteira de desconhecidos que não serão desvendados. Coletivo x indivíduo. Opacidade x transparência. É possível que eu esteja viajando, é pura intuição essa interpretação. De qualquer forma, sobre Abolição e Zózimo Bulbul recomendo enfaticamente o texto de Bernardo Oliveira[1].

Para terminar o raciocínio em torno de Abolição, diria ainda que é elucidativo observar que na história do cinema brasileiro o cineasta que mais utiliza o free jazz em seu cinema seja um cineasta negro. Para além da linguagem musical compartilhada, ou seja, através da música falamos a mesma língua (Juçara Marçal aponta para isso em Delta Estácio Blues), essa constatação sugere uma relação umbilical entre o improviso, enquanto procedimento criativo (poderia dizer sobrevivência também) e a experiência diaspórica. Anos mais tarde Kbela[2], de Yasmin Thayná abriria uma nova página nessa história. Filme que retoma e dá seguimento a algo iniciado por Alma no olho, e, ao mesmo tempo, aponta para novos caminhos. No filme de Yasmin, a fúria do sax e bateria convive com o canto delicado de um ponto para Iemanjá. Um dos gestos mais radicais de nosso cinema recente, onde a música também exerce a função dupla de dramatizar e fazer uma afirmação política. 

Em The cry of jazz, de Ed Bland com música de Sun Ra, nos explicam que jazz é o grito de alegria e sofrimento do povo preto, uma música que só poderia ter sido inventada pela população negra, pois é a expressão musical de seu triunfo espiritual (poderíamos dizer o mesmo sobre muitos estilos musicais inventados nas diásporas africanas). Acho que isso nos diz muito sobre o uso que Bulbul e Thayná fazem dessa música em seus filmes. Me faz perguntar qual seria a presença da música improvisada, ou do improviso enquanto procedimento de realização, no nosso cinema, se ele fosse menos branco. O filme de Bland além de explicar o que é o jazz oferece um retrato da vida cotidiana negra, norte-americana, naquele momento. Penso que talvez o filme encontre um paralelo no cinema contemporâneo em Love is the message, the message is death, de Arthur Jafa, pois Jafa igualmente percebe e concebe sua arte como um grito de alegria e sofrimento. 

Sun Ra ainda nos ofereceu dois filmes importantes para a história da música improvisada com o cinema, o mais conhecido Space is the place, de John Coney e The magic sun, de Phil Niblock, que dirigiu esse filme, no entanto é mais conhecido por suas composições. Belíssimo filme em negativo, invertendo preto e branco, ressaltando o desenho das silhuetas dos instrumentos e músicos, acentuando através dos cortes os ritmos e texturas da música. Filme que talvez encontre um primo formal em New York eye and ear control, mais um belo e estranho filme de Michael Snow que termina com lindos retratos dos músicos que estão fazendo a trilha.

A princípio eu não ia me deter muito na história do cinema e nem em análises de filmes, minha ideia era dedicar a maior parte do texto aos trabalhos dos quais participei, em parte por ter mais intimidade com o assunto e me sentir mais à vontade de escrever, mas também por saber que esses filmes foram pouco vistos e que ninguém ainda se aventurou (ou se interessou) em escrever sobre a maior parte deles. No entanto, comecei diferente, então vou escrever sobre mais alguns filmes marcantes que podem nos ajudar a demonstrar como pode ser frutífera essa relação cinema-improviso. Dando certo, pode ainda servir como um pequeno panorama dessa história. Já sei que vou deixar muito de fora, então quem quiser conhecer mais filmes sugiro que leiam o artigo de Fabrício Vieira, Cinema e Free Jazz[3].

Step across the border nos oferece um exemplo de como a própria forma do filme pode incorporar uma lógica musical improvisada. A música deixa de ser elemento dramático e se torna o próprio objeto fílmico. Documentário sobre o guitarrista Fred Frith, concebido como um retrato do músico, o filme envereda por outros caminhos e resulta em uma obra regida por uma musicalidade livre que extrapola o gênero cinematográfico. Seguimos as andanças do músico por diversos países em um formato próximo ao road movie, como sugerido pelo título, gênero propício para se abandonar narrativa, pois o movimento do viajante cria a sensação de linearidade, mesmo quando inexistente. Através de cortes bruscos, saltos no espaço e no tempo, movimentos de câmera soltos, atenção aos detalhes na imagem, como por exemplo o efeito do vento nas coisas, e ainda o jogo constante entre as formas visuais e musicais, o filme se livra do formato didático, tão comum em documentários de personagens, e se apoia na força das performances enquanto espinha dorsal estruturante. Com isso, os diretores, Nicolas Humbert e Werner Penzel, conseguem criar a sensação de que estamos sempre no instante presente. Não importa a cronologia dos acontecimentos e sim a presença, no sentido de estar presente de corpo e alma. Desafio nada fácil e que talvez seja um imperativo para se filmar a música de improviso. 

Em muitos casos, a busca por essa presença parece conduzir a uma prevalência no uso do plano-sequência: a duração do plano como forma de garantir a integridade performática e musical. Podemos lembrar por exemplo da câmera flutuando pelo apartamento em The Connection de Shirley Clarke. Mas para falar sobre planos-sequências gostaria de ampliar o escopo do free jazz/improviso livre para o improviso em qualquer estilo musical. Isso porque eu gostaria de falar de alguns filmes brasileiros importantes que ao meu ver fazem parte dessa tradição e demonstram muito bem o que é a presença de quem escuta e vê. Esses filmes também servem como belos exemplos de como uma câmera e um microfone de cinema podem se comportar, participando do improviso, dialogando com a performance e com a cena. 

Partido Alto[4], de León Hirszman, feito com a colaboração de Paulinho da Viola, começa com o Candeia organizando, explicando e demonstrando o funcionamento de uma roda de partido alto. A câmera de Lucio Koldato passeia pela roda seguindo o compasso da música, tentando antecipar o que vai acontecer e acompanhar o caminho da fala de Candeia e o improviso entre músicos, cantores/as e dançarinos/as. A câmera precisa sambar se quiser participar. Depois, o filme vai a um encontro de partideiros. Mesa, comida, conversa, e a roda começa. A câmera continua zanzando em meio ao pessoal, os microfones fazem parte da cena. A única forma que a montagem encontra de cortar é fazendo uma elipse do dia para a noite. E a roda continua, momento lindo de cinema. Já todos bêbados, tropeçando nos versos, ouvimos em off a voz mansa de Paulinho “A roda de partido é um momento de liberdade, o partideiro mesmo tira o verso do improviso” e depois diz uma frase, que não poderia ser dita de forma mais clara, sobre a beleza da improvisação “A arte mais pura é o jeito de cada um e só partido alto oferecia essa oportunidade”.

Mais cedo no filme Candeia nos dizia “O samba de partido alto, em alguma forma, existe uma grande semelhança com a música nordestina, com repentistas nordestinos. Porque o samba de partido também tem aquela forma da improvisação, a improvisação que vai nascendo não só sobre o tema, refrão, mas também sobre ambiente, sobre um clima que vai se criando aos poucos”. 

A Cantoria[5], de Geraldo Sarno, documenta o encontro de dois cantadores de profissão, Lourival Batista e Severino Pinto, para um desafio em Caruaru. Aqui, o plano-sequência também prevalece como opção, mas ao contrário do que acontece em Partido Alto, Affonso Beato opta por manter a câmera fixa no tripé e observar a arte do improviso se desenrolar. Imagino que a decisão tenha sido feita a partir da própria forma como se dá a cena, os dois cantadores sentados, viola apoiada na perna, língua afiada. O público também permanece sentado ao longo da performance. No samba a câmera dança, na cantoria ela se senta.

Em dado momento no meio do filme a câmera usa o zoom que fecha o quadro e se aproxima aos poucos de Lourival e Severino, permitindo enfim uma quebra na rigidez fixa da câmera, nos colocando perto dos cantadores e gerando uma mudança na montagem que passa a cortar de um para ou outro. 

Sobre zoom vale ainda trazer uma cena que não é musical no sentido estrito, mas que esbanja destreza na relação da câmera com a cena. Fotografado por Dib Lutfi, O Jogo da Vida, de Maurice Capovilla, nos oferece uma palinha da arte da sinuca com a participação de uma lenda do jogo, o sergipano Carne Frita[6]. Quis também trazer essa cena para o texto por exemplificar como a duração do plano-sequência é utilizada de forma a privilegiar as nuances da performance. Essa mesma cena cortada, utilizando vários planos, não seria capaz de abarcar a tensão a cada tacada e, mais que qualquer coisa, não seria capaz de capturar o pensamento vivo do Carne Frita. A presença da câmera consegue acompanhar as sutilezas das escolhas feitas pelo jogador a cada bola na caçapa. Dib consegue essa proeza se posicionando em uma altura acima da mesa, o que lhe dá um ângulo onde consegue ver tudo o que acontece no jogo sem que haja variação de foco excessiva, a uma distância que o permite fazer o plano geral com a lente aberta e o detalhe da caçapa com a lente fechada. Entre a movimentação do jogador e a da câmera ocorre um diálogo espontâneo que nos oferece algumas pistas do que pode ser um cinema aberto ao improviso. E como vocês podem ver, o resultado é de uma precisão que ultrapassa muita ficção controlada, onde filmar significa realizar o que está no roteiro. 

Quando fizemos Os Monstros em Fortaleza queríamos a princípio fazer um filme que fosse em si uma improvisação livre. Passamos um tempo debatendo o que seria um filme-improviso e depois de algumas ideias amalucadas desistimos. Mas de qualquer forma, decidimos que a última sequência do filme seria um improviso de guitarra e sax de bambu (Ricardo e Luiz) gravado pelos dois personagens técnicos de som (Guto e Pedro), cada qual com seu gravador, pois são instrumentos igual ao sax e a guitarra. A câmera é o quinto elemento e mais um instrumento musical participando do improviso[7]. Foi essa a direção principal que passamos a Ivo Lopes Araújo. Juntos entendemos que o plano-sequência com a câmera na mão seria a melhor opção. O filme já estava estruturado, na sua maior parte, por planos-sequências, às vezes fixos, outras com movimentos em panorâmica usando lente zoom e algumas poucas vezes com a câmera na mão. Filmamos essa cena em dois dias diferentes até acreditarmos que um diálogo entre nós havia realmente acontecido.

Essa experiência com Os Monstros foi de certa forma um ponto culminante de algumas outras tentativas de colocar música improvisada nos filmes. Gostaria de dar um panorama. 

O primeiro filme que Ricardo e eu fizemos em Fortaleza, também o primeiro da Alumbramento, nos mostrava tocando violão e flauta, respectivamente. O filme se chamava Às vezes é mais importante lavar a pia do que a louça, ou simplesmente Sabiaguaba. Antes mesmo de ir embora do Rio de Janeiro para o Ceará eu havia tocado o sax de bambu em um filme chamado Amador. Em Estrada para Ythaca fizemos uma cena onde os quatro personagens corriam em uma estrada de terra enquanto passavam a câmera de mão em mão: acaso controlado que é outra forma de dizer improviso.

Uns anos depois, no filme Com os Punhos Cerrados, optamos por uma tela preta enquanto se ouvia a Barry Guy New Orchestra. Tirar a imagem e deixar as pessoas ouvirem a música. Pode ser mais uma forma de levar a música para as telas, porque não? Na mesma cena, Uirá dos Reis participa de uma entrevista que concebemos como um improviso, reminiscência de uma das ideias amalucadas para Os Monstros. Na época, estávamos influenciados pela entrevista de Carlos Castello Branco feita por Antonio Pitanga em Idade da Terra, de Glauber Rocha, filme que considerávamos repleto de boas soluções para a pergunta de como trabalhar o improviso no cinema. 

Em O Porto[8], realizado por Clarissa Campolina, Julia de Simone, Ricardo Pretti, além de mim, levamos dois solos improvisados para o filme: Paal-Nilssen Love, baterista que costuma tocar com músicos brasileiros e Mats Gustafsson tocando um saxofone barítono gutural e angustiado sobre a estátua de Pereira Passos.

Alguns anos depois fomos convidados, Ewerton Belico e eu, por Ricardo Aleixo e Marco Scarassatti para participar de um encontro/performance/filme em torno de Exu a que chamamos de padê-improv e demos o título de Vira a Volta que Faz Nó[9]. Marco e Ricardo não queriam um registro da performance, mas que nós fizéssemos parte dela. O plano-sequência com a câmera na mão também foi o caminho escolhido, mas dessa vez havia uma diferença em relação a Os Monstros. Ricardo e Marco se movimentam muito, dançam e andam pela casa. O comportamento da câmera e do som precisavam entrar nesse baile. Aqui optei por manter a lente sempre fechada e me concentrar nos movimentos que me chamavam, evitando a armadilha de querer dar conta do todo e assumir meu olhar na condução da imagem. A gravação feita na casa de Ricardo em Campo Alegre fez parte do Improfest, festival brasileiro dedicado à música de improviso, existindo há anos sem praticamente nenhum apoio. 

Fizemos dois encontros, às segundas-feiras, logicamente. Essa versão do Improfest contém um desses encontros. Sentar, conversar, uma cachacinha, cozinhar, tocar, gravar, sentar de novo e conversar um pouco mais. Ritualizar e improvisar. 

No ano seguinte, também a convite do Improfest, me juntei com Francisco César, Natália Reis e Fáio Janhan para fazer Lava[10]. Também concebido de forma ritualística, evocamos a forma água, em suas diversas consistências e intensidades, enquanto imagem, enquanto som, para fazer uma lavação. Algumas palavras escritas e dispostas em um papel guiaram a tocada. Chico e eu gravamos a música, sax tenor e piano, e só depois enviamos para a Natália fazer o vídeo a partir da música, invertendo a ordem que costuma acontecer em produções de filmes, questionando a primazia da imagem sobre o som, desierarquizando essa relação. Alguém pode até se perguntar: isso é um filme? 

Enquanto escrevo percebo que precisaria de muito mais fôlego para conseguir falar de tudo que gostaria de falar sobre cada filme e cada experiência. Serei forçado a ficar na superfície das coisas, mas espero que o texto atice a curiosidade de quem chegou até aqui. De meu lado, fica o desejo de que essas palavras estimulem outras incursões no assunto.

Mas para finalizar um pouco sobre o que aponta para o futuro. Em duo com Marco Scarassatti seguimos buscando outras formas de seguir desvendando as possibilidades nessa relação entre performance musical e câmera. Dá pra dizer que é uma pesquisa contínua, sem o objetivo claro de gerar obras. Tem mais a ver com o jeito que queremos viver.

Em outra frente, fizemos uma mostra a convite de Samuel Marotta, programador do cinema no Minas Tênis Clube, em que a exibição dos filmes era acompanhada por uma trilha sonora tocada e improvisada ao vivo. Convidamos musicistas da cena local para participarem[11]. Preciso dizer da importância da QI: Quartas de improviso, que há mais de dez promove temporadas de improvisos entre musicistas e pessoas das mais diversas expressões, artísticas ou não. Atualmente lutando para obter recursos mínimos para viabilizar o projeto, as quartas de improviso seguem acontecendo com a curadoria de Henrique Iwao, Patrícia Bizzotto e Marco Scarassatti. Cine Improvisado: música das luzes, não existiria se não houvesse um evento como esse na cidade. Estar na sala de cinema, repensar seu uso, me faz atentar para soluções possíveis que nos ajudem a driblar, um pouco pelo menos, a dificuldade que encontramos com a exibição de filmes na atual conjuntura. 

Por fim, vale dizer que essas experiências influenciam também os filmes que não abordam tão diretamente a música de improviso ou o improviso enquanto método, pois o que se aprende ali é levado adiante e testado em outros contextos, afinal com as condições que tive até hoje só se faz cinema improvisando (e não seria exagero dizer que isso serve para a maior parte do cinema brasileiro, mesmo que não queiramos admitir). Bom, outros filmes foram feitos, estão sendo feitos e serão feitos. Mesmo que no meu caso, a esmagadora maioria das vezes sem recurso algum, infelizmente. Seguimos.


[1] Disponível em https://www.cinelimite.com/post/abolicao-o-cinema-atlantico-de-zozimo-bulbul

[2] Assista aqui: https://www.youtube.com/watch?v=LGNIn5v-3cE

[3] Disponível em http://www.freeformfreejazz.org/2022/08/cinema-free-jazz.html

[4] Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=wmYhNYyUpCI

[5] Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=iY05I-2qQn8

[6] Cena disponível em https://www.youtube.com/watch?v=ckXfu4C-Vm4

[7] Assista aqui: https://vimeo.com/488090151

[8] Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=m46Cqp1oTas

[9] Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=aw0IP37e3Zc

[10] Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=C9e7-GYMCfY&t=57s

[11] Disponível em https://minastenisclube.com.br/noticias/cultura-cinema-improvisado/.

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ISSO E NADA MAIS: SO IS THIS (Michael Snow)

Por Waleska Antunes

Letter to Jane (…) presents a critical analysis of a still single image, subjecting the photograph to an intensive ideological interrogation, completes a historical cycle. In so doing, it once again frame the question: when is a film a movie? Or: what is cinema?

(Annette Michelson, The Art of Moving Shadows)

A unidade primordial do cinema é, de toda forma, a noção de movimento, seja este da ordem do diegético, como um bebê a almoçar em primeiro plano, ou da ordem do mimético, com o vento farfalhando as folhas ao fundo. Porém, narrativo ou não, silencioso ou não, todas as histórias dentro do cinema possuem uma característica peculiar: em algum momento, a palavra se fará presente. É impossível que um filme não passe por qualquer vocábulo incólume, desde a sua concepção até à sua exibição. O ato de editar ou montar um filme exige um léxico imagético. Façam as coisas sentido ou não, ordenar, classificar e estruturar é uma espécie de sistematização do pensamento. Ou seja: por bem dizer, nenhum filme é, de fato, silencioso, no sentido amplo da coisa: mesmo quando não há som ou ruído, algo está sendo dito, na ordem do discurso.

Porém, mesmo que por via de regra a junção de imagens como um todo componham um filme e nós damos a ela sentido enquanto espectadores, unindo as narrativas cinematográficas e, através do princípio da montagem, criamos associações. Parece simples. Hollis Frampton defende que o filme é uma máquina de imagens, e nisso ele não está de todo errado.  Mas aqui falamos da junção de palavras. Palavras em grupos podem formar imagens e grupos de imagens podem formar palavras.

Mas o que se pode fazer com a palavra em si, enquanto elemento isolado?

As palavras, em teoria, não se movimentam. São seres estáticos e nós tentamos dar a elas movimento e ritmo com representações visuais (com as artes, plásticas ou não, e na literatura, como os poetas concretos faziam) ou com discurso. Mas a palavra em si não se move.

Logo, um filme composto de palavras é um filme?

É uma representação de discurso?

Afinal de contas a palavra não se move. Quem move ela somos nós.

Retornemos ao questionamento de Annette Michelson sobre Letter to Jane (1982), de Jean-Luc Godard, um filme sobre uma única imagem: Pode um objeto estático isoladamente em um plano cinematográfico ser um filme? Isso é cinema?

Que é possível se fazer um cinema sem som já se sabe. Mas e o oposto? É possível se fazer um cinema somente composto de palavras isoladamente e criar uma voz?

A good thing about reading words and not hearing voices is that you can’t accuse it of being male or female. Also, it’s pleasant not to having a voice yakking (about a film they’re going to make, for example). 

(Michael Snow, So Is This)

O pensamento de Michael Snow em termos de linguagem está no cerne de sua obra. Sejam em filmes como Wavelength (com a narração de quatro eventos no decorrer de um dia em uma sala e um glissando de uma onda sonora ao ponto de se confundir com a representação da onda do mar), Back and Forth (com a ida e a volta de uma câmera, e adição e subtração de elementos) ou no ápice da verbivocovisualidade (se é que tal palavra existe), com Rameau’s Nephew by Diderot (Thanx to Dennis Young By Wilma Schoen) onde as palavras se confundem com as imagens e suas enunciações, sendo um experimento mallarmaico pautado no acaso, uma espécie de lance de dados. Porém é em So Is This (1982) em que o elemento fílmico é reduzido a um só: um filme de uma palavra por vez em tela. 

So Is This é um filme estrutural e estruturado de maneira simples: cada palavra é exibida em um período de tempo, criando uma narrativa ao seu fim. Não temos ali um filme que conte uma grande história, mas sim um filme que questiona sua própria materialidade: faz-se um filme para falar que a palavra é a unidade individual da escrita e o frame é a menor parte constituinte de um filme. O que Snow propõe não é nada novo; ele mesmo o diz convocando nomes como Su Friedrich, Richard Serra e Drew Morey. Porém, é possível ir até a gênese da questão – afinal de contas, Sergei Eisenstein propôs isso trazendo à baila o princípio ideogramático para a construção de sentido na montagem, onde duas palavras formam uma terceira, e o mesmo se aplica ao ato de montar o filme – porém, ele o faz de maneira muito mais astuta: em um filme composto de uma palavra por vez, ele propõe exercícios discursivos de ritmo, voz, silêncio para além da simples narratividade. A palavra é a unidade significante, e é o que faz com que o filme se mova com esse objeto estático. 

Parece complexo, mas Michael Snow nos diz: esse é um filme que “não vai falar sobre si mesmo” (o que é mentira e torna Michael Snow um ‘narrador não-confiável’, um conceito muito caro à prosa como um todo), esse filme já foi feito por outras pessoas, este filme não é para crianças (representando palavras ‘proibidas’ rapidamente), pode ser censurado (ele o descreve como uma violência sexual e verbal, uma orgia de palavras!), esse filme pode ser recontado a quem está chegando (e mais de uma vez e em mais de uma forma), este filme é a junção de todas as cores em luz em uma tela negra, este filme pode ser odiado por quem não entende uma palavra de inglês ou por quem detesta quem lê sobre os ombros: afinal de contas, há uma voz que lê uma palavra por vez em vários ritmos e tonalidades. Você não vê essa voz. Ela é quem te vê. 

Em um filme onde cada palavra se expressa unicamente na tela, há a expressão do silêncio, da pausa e da risada por elas mesmas – a palavra Silence, Pause e até mesmo a representação do riso por um ‘Ha Ha Ha Ha’ – conseguem dar o tom em algo tão material quanto a palavra por si só. Snow conta piadas, uma palavra por vez, assobia insistentemente e propõe que se cante internamente, sem mover os lábios, a canção Somewhere Over The Rainbow, bate palmas, ri de maneira funesta e, sem dizer um “A” (com o perdão do trocadilho), ainda por cima questiona os limites da linguagem cinematográfica e da linguagem e sua representação, citando a proposição de Magritte em La Trahison des Images, de Magritte: ceci n’est pas une pipe.

Isso não é um cachimbo. 

Mas o que é isso? Isso é um filme? 

Isso é a representação de um filme? Isso é um espectro de Michael Snow falando por entre os ombros? Essas palavras se movem e falam conosco? O que é o Isso (ou o this ou o ceci), no fim das contas? O Isso plurivocal pelas tipografias e ritmos de montagem mas, ao mesmo tempo, silente e material da palavra em Michael Snow, constituem um universo de possibilidades discursivas e imagéticas por meio de algo estático e concreto, sendo anterior ao próprio cinema: na mais antiga das histórias se diz que, no princípio, há o verbo.

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À SOMBRA DA SAUDADE

Por Gabriel Moraes

Antes mesmo do início, um aviso nos informa de que o filme foi intencionalmente não legendado. Já de partida, estamos diante de um distanciamento da palavra falada que supõe uma estética que se faz sobre uma certa forma de silêncio, que se faz com uma linguagem de hipervalorização dos espaços, corpos e objetos em quadro; uma estética que leva ao limite a fisicalidade como premissa de construção tanto do impacto sensório quanto das estruturas de significado da diegese. Se a palavra é um dos instrumentos mais eficientes para a elaboração discursiva de um filme, para a engenharia de um projeto de ideias que tende a se valer do texto para orquestrar a própria hermenêutica na qual procura operar, caberia, a partir desse disparador, avaliar quais pontos de acesso um filme que resigna abertamente esses caminhos pretenderia conceber.

É certo que levantar uma questão dessa ordem implica pensar problemas de espectatorialidade, e ainda que a essa altura seja um assunto muitas vezes desgastado e infestado de lugares comuns, Dias (2020) age diretamente sobre princípios epistemológicos e empíricos do ato de espectatorialidade. Narrativamente, o filme não poderia ser mais simples: a sinopse de duas frases que se encontra por aí basicamente resume a totalidade da história. Há uma cena de planos longos em que um personagem realiza tarefas de casa – lavando a salada e descascando legumes – à qual é impossível assistir sem pensar em Jeanne Dielman (1975), de Chantal Akerman. Em muitos sentidos, não é por acaso, porque em Dias, assim como também muito se falou do cinema de Chantal, “nada acontece”.

Levada literalmente, é claro que a expressão é uma falácia autoevidente, mas o seu teor pejorativo parte não de um lugar genérico, mas específico: é uma resposta de uma espectatorialidade arraigada sobre um modelo narrativo institucionalizado que atravessa a história do cinema americano. A questão, portanto, não é exatamente que “nada acontece”, mas que não acontece nada do que deveria acontecer. O ponto de ruptura está na noção de que, para Chantal – tal como para Tsai Ming-liang –, a maneira com que um conjunto gestual se dilata no tempo é definidora da matéria histórica e dramática que articula os significados de um corpo no mundo. Para a narratividade de um cinema americano informado por “escolas de roteiro”, drama e história são problemas de estrutura narrativa mais do que de imagem; são questões de encadeamento de causa e consequência entre blocos narrativos mais do que de desenvolvimento da ação no plano.

A aproximação entre Dias e Jeanne Dielman não pretende assumir que os significados da dilatação entre os dois filmes são os mesmos, já que a viscosidade dos dias para Tsai, por exemplo, é muito mais melancólica do que opressiva – como é o caso para Chantal. O sentido da comparação está em como, apesar dessas e outras diferenças, ambos estão similarmente localizados diante de uma certa expectativa narrativa e estética. Tendo estabelecido esse parti pris é preciso, no entanto, investigar a especificidade de Dias em relação a esse terreno, caso contrário o argumento se bastaria indistintamente para qualquer filme de planos longos sem amarrações convencionais de roteiro.

Se o filme de Chantal parece sempre reconhecer tacitamente – e lutar contra – a força gravitacional dessa normatividade narrativa, temporal e estética na epiderme de suas imagens, de tal modo que a densidade atmosférica que transcorre Jeanne Dielman sob a chave dos seus conflitos de gênero é também uma metáfora sobre os regimes de visibilidade implicados nos instrumentos de um fazer cinema hegemônico, fazendo com que o filme ocupe ativamente o lugar da disputa, Dias, por outro lado, é uma espécie de travessia sobre o pathos da solidão contemporânea das cidades, que existe em uma dimensão estética alternativa, pós-narrativa – se pensada em termos convencionais. Enquanto para Chantal importava tensionar as estruturas simbólicas hegemônicas atacando suas fronteiras, para Tsai o movimento está mais ligado à criação de um arsenal estético autônomo – ou seja, cujos significados não se organizem como terceiros da oposição entre duas estruturas simbólicas, mas nos seus próprios termos.

Assistir a Jeanne Dielman é como assistir a dois filmes em um: em primeiro plano, aquele no qual “nada acontece”, e em segundo plano, o regime de visibilidade no qual todos aqueles filmes em que as coisas “acontecem” estão sublimados no reconhecimento de que o que existe entre as suas elipses é a matéria mesma de construção do filme de Chantal. No caso de Dias, temos o inverso: o filme é como uma ilha esquecida pelo tempo cujos referentes simbólicos naufragaram em terras distantes e agora o que resta é o mergulho nas águas profundas de uma cosmologia soberana que avança sobre si mesma a todo vapor. Em outras palavras, é um filme de imanência radical do plano: só o que importa, só o que há, é o que está na superfície da imagem. É um filme sobre o qual não se poderia dizer que algo está à flor da pele, porque a fisicalidade não é circunstancial: à flor da pele é um ser e não um estar, é uma condição de existência das suas imagens.

Em Dias, os elementos que compõem uma imagem cinematográfica – corpos, espaços, objetos, cores, movimento – não formam uma estrutura de representação, não reportam a uma realidade exterior os seus significados. O filme é uma experiência estética que testa os limites do exercício sensório que se dá entre um corpo e uma imagem no ato da espectatorialidade, e é aí que precisamos retomar a questão inicial do texto. A cena da massagem no hotel, ponto-chave, a partir do qual tudo parece orbitar ao redor, lida intensamente com diversas camadas da experiência estética. Ela tem um efeito hipnótico que dialoga com o ASMR – no sentido de suscitar uma atração sensorial pela audiovisualidade. A cena também leva ao paroxismo a elaboração de intimidade e tesão como elementos estéticos, a partir da qual, inclusive, faz-se uma relação de expectativa e catarse que é inerente à própria composição do plano, com uma masturbação em extracampo que dobra a aposta na economia de atenção que se pretende gerar sobre a superfície.

Se a relação entre excitação e gozo é a de um processo constante de estímulo rumo a um extremo de prazer, a cena da massagem é uma tentativa de produção do gozo estético, ou, dito de outro modo, como criar uma dimensão de fisicalidade, a partir de ferramentas audiovisuais, que se aproxime em intensidade o máximo possível de uma experiência sexual. Por isso, a espectatorialidade é um problema importante para Dias: não é sobre ver um filme, mas sobre literalizar a premissa de experienciar um filme, como um ato de corpo e alma. A imagem cinematográfica como esse evento que se faz no modo com que um corpo sente o atravessamento de uma audiovisualidade.

A cena em si é de uma potência acachapante, porém o que verdadeiramente define a sua força é o contraste com todas as outras que existem ao seu redor: imagens geladas, cheias de espaços negativos no plano e afundadas em sentimentos de solidão. Dias é como um grande experimento kuleshoviano de dilatação. Da mesma maneira que, para Kuleshov, o objetivo era compreender os resultados durante um processo de montagem entre A, B e A no qual A apareceria reconfigurado a partir do contato com B – ainda que se tratasse da mesma imagem –, para Tsai, é como se a cena da massagem no hotel fosse B e todo o resto fosse A.

Por mais que, ao pé da letra, não se trate da mesma imagem relida por uma nova chave de significação, a possibilidade de aproximação com Kuleshov está dada porque a diferença de narratividade entre as imagens, entre o que está acontecendo em cada uma, se o personagem está andando na rua, observando a paisagem ou fazendo tarefas de casa é bem menos decisiva do que as experiências sensíveis que elas conseguem produzir a partir da solidão. No fim das contas, outras situações poderiam estar sendo encenadas. A coerência entre elas é estética mais do que narrativa. O fluxo e a continuidade que devem ser gerados são da ordem das sensações, dos sentimentos, das sensorialidades.

O que faz a cena da massagem no hotel agir sobre o filme como um deslocamento de placas tectônicas não está ligado a processos de identificação e construção de personagem, ao contraste com lógicas narrativas de solidão, situações específicas de melancolia, e sim o contraste com mais de uma hora de imagens plasticamente pensadas para alimentar um certo estado de espírito, uma certa paisagem emocional, um certo terreno de sensações. É emblemático, inclusive, que o primeiro e único contato entre os personagens se dê também plástica e não narrativamente. Vemos Kang (Lee Kang-sheng) sentado na cama do hotel, corta e no plano seguinte já estamos na massagem. Não há cena de contato prévio, ligação, não há contextualização narrativa alguma. A causalidade é secundária em comparação à imanência do encontro entre dois corpos no plano.

Ao fim do filme, os dois retornam à solidão de uma rotina que vai permanecer inalterada. Na prática, o encontro não muda nada na vida deles, é uma mesma imagem que se repete, mas os significados dessa melancolia tornam-se drasticamente distintos. Enquanto imagem vista, mero registro de espaços, corpos e gestos, é uma repetição. Tal como em Kuleshov, a reconfiguração da imagem não é visível, mas sensível. A caixa de música, presente que se torna um pequeno artefato de transcendência do encontro, dá um lastro no tempo para uma intimidade efêmera que vai para sempre ressignificar a penitência de vidas que um dia viveram o paraíso, e que agora estão fadadas a revivê-lo como miragem para o resto dos dias.

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THE BROWN BUNNY OU AS FLORES NA ESTRADA

Por Gabriel Papaléo

(…) e enfrentar, sem mais, não a vida, que é muito grande, mas a frágil armadura do presente”

Alejandro Zambra, A Vida Privada das Árvores, 2007.

Uma moto num circuito, uma moto no deserto, uma moto no escuro de uma caçamba. A imagem forte de uma moto sendo domada pelo movimento de alguém anônimo debaixo do capacete é a eleita por Vincent Gallo para personificar toda a fuga física e psicológica de seu personagem em The Brown Bunny, seu último longa-metragem lançado antes do sumiço autoimposto de Promises Written in Water, e a subsequente aposentadoria do diretor. Uma imagem simples e arriscada, nada trivial, como costumam ser as imagens de Gallo. No começo a moto está em círculos, disputando contra os outros pilotos até a dilatação do tempo transformar essa experiência de catarse em melancolia imersiva; no deserto de sal do Vale da Morte, é uma miragem distorcida pelo campo de visão do calor insuportável, distante e perdida aos poucos, numa fuga e numa dor que não sabemos acessar. A voz calma, serena, conduz a estrutura do filme na estrada entre as corridas do piloto, pontuada por promessas descumpridas e assentamentos silenciosos. A intensidade maníaca do olhar de Gallo e seu rosto angustiado guardam um filme solitário e extremamente furtivo sobre o abandono.

Como nos contos de estrada de Kelly Reichardt e nos retratos de trânsito de Jem Cohen, para ficarmos em dois cineastas contemporâneos a Gallo que também se interessaram pela solidão de quem viaja para fugir, o ambiente esvaziado reverbera uma trama fantasma, de histórias outras que ocupavam aquele espaço antes e nunca vemos, mas percebemos pela melancolia impressa no ambiente e no rosto dos atores. Não por acaso os três diretores costumam trabalhar com a película em 16mm, a matriz visual de The Brown Bunny; o registro entre o documental e o místico que a latitude imprecisa e o campo de visão enevoado da bitola dá uma intimidade maior à distância entre a câmera e as paisagens, entre a lente e o rosto de Gallo. O grão mais forte e as luzes mais estouradas são fundamentais para a costura do filme, na disposição hipnótica para o arco dramático do personagem.

Wendy e Lucy e Chain, dois outros excelentes filmes de estrada de Reichardt e Cohen, respectivamente, são rodados nesse mesmo 16mm que embaça o ambiente e captura os lugares como se fossem reminiscências, memórias frágeis, envoltas ao abandono social que acomete as duas protagonistas de cada filme; existe um comportamento acossado pelo capitalismo e suas entranhas mais perversas, mesmo que exposto por sentimentos mais soturnos e internos, mais reféns de uma inevitabilidade estrutural, e daí tiram suas forças. Diferente de ambos, a malaise de Gallo é mais individual, menos reflexiva sobre o Estado, mas tão sócio-política quanto. A violência dos signos masculinos que rodeiam o filme são sentidas sem a menor necessidade de comentário sublinhado, porque tem seu ataque perverso fundado nos traumas de imagem e de orgulho, uma culpa de morte surgida da impotência de um parâmetro impossível e egoísta de ser cumprido.

É nessa dimensão da estrada, nessa calmaria e melancolia dos entreatos, que a van de Bud atravessa – e nisso o papel da trilha sonora na captura desse sentimento é fundamental. Composta inteiramente de músicas selecionadas por Gallo, a trilha entra em três momentos chave de trânsito no filme, três preparações para encontros centrais, fugidios como tudo o que o personagem toca aqui. O folk de Gordon Lightfoot e Jackson C. Frank preparam outras flores da estrada, na contemplação da estrada silenciosa embalada pelo motor de som baixo da van que cruza os Estados Unidos, e demonstram o apreço do diretor pela voz mansa, o tom secreto, a voz e violão de homens melancólicos que cantaram sobre a solidão do personagem em seus discos três décadas antes da jornada trágica de Bud. Já o murmúrio de Jeff Alexander em Come Wander with Me, distinto em forma mas não em tom, é pregresso ao encontro com os pais de Daisy e o seu coelho marrom, essa responsabilidade suspensa em vida interrompida por uma desgraça não-contada. Gallo suprime a letra da música e mantém apenas o instrumental e o murmurar da voz, antecipando algo familiar, quase uma cantiga, instaurando com economia um mal-estar que não fica totalmente claro até a revelação final.

O embalo letárgico que conduz e atravessa The Brown Bunny origina justamente desse trauma suspenso; sua estrutura dramática é remontada quase como seu próprio oposto, um evento transformador que é primeiro sentido para só depois ser compreendido, um convite do diretor às sensações simples e honestas pelas quais já declarou ser seu majoritário interesse. Suas capas letárgicas encontram paz no trânsito, mas sem soluções, sem dilemas esmiuçados; mais como paliativo dessa dor.

A sequência do encontro com Lilly, uma das melhores do filme, representa esse tratar momentâneo das angústias. O silêncio, a dinâmica estabelecida só pelos olhares, sem diálogos claros ou passados dramáticos, mapeia todo aquele ambiente de beira de estrada, um espaço de trânsito, sem possibilidade de escolhas ou futuro, um não-lugar. Esse silêncio se estende na cuidadosa mixagem do som baixa nos poucos diálogos, mais interessada em contemplar os sons ambiente das paisagens que as palavras – e mesmo em diálogos importantes para a trama, mais próximos do final, Gallo não abre mão de os deixar difusos, em meio à guia sonora do ambiente, porque as vozes baixas fazem parte da consciência de Bud e da forma que esse universo se articula.

O som das músicas também é estilizado, mixado não como se tivesse tocando no rádio, embalando a viagem, mas como se tocasse atrás da cabeça do protagonista, escondido em suas memórias, sem reverberação. É um movimento similar ao álbum musical When, lançado por Gallo via Warp Records dois anos antes de The Brown Bunny, na disposição pelo acústico distorcido pelas ondas da guitarra, guardando a voz suave do diretor confessando seus estados mais complexos; o ruído da produção em lo-fi e a simplicidade das letras funcionam como um complemento sensorial do filme, como a trilha que Bud comporia para sua dor. Mas como a operação de Gallo é na furtividade, nunca se cai numa autopiedade ou numa crise de consciência masculina banal; é na voz abstrata e persistente da ferida que não se regenera onde adentramos.

O que culmina invariavelmente numa catarse dramática: dois amores perdidos, se enfrentando pela última vez, trancados num quarto. Num filme tão calcado nos silêncios e na atmosfera, é surpreendente o controle de modulação dramática de Gallo nessa sequência, um expurgo total de passados insuficientes e escavação de erros e mais erros. A duração da briga do casal é sentida nas minúcias, se estende no abandono que viram xingamentos que viram compreensão que viram afeto para virarem abandono novamente. E mesmo quando se conduz pelos diálogos, é à furtividade que Gallo retorna: o segredo no ouvido de Bud e Daisy no final, que não ouvimos, para dar conta de um lugar rarefeito de um sentimento mais etéreo ainda, de uma alma perdida e um coração sem rumo, presos para sempre num quarto anônimo de hotel.

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OBITUÁRIO: WILLIAM FRIEDKIN

Bêbado de azul e vermelho: William Friedkin está vivo

Por Rubens Fabricio Anzolin

     A função cinematográfica se mostra então eminentemente
favorável à obra inovadora do demônio.

(O cinema do diabo, de Jean Epstein)

O olho. A testemunha, a chave de acesso por onde entra o demônio, o portal que permite transformar-se em outro. Os olhos arregalados de Max Von Sydow em O exorcista, o desatino fulgurante de Al Pacino em Parceiros da noite, a fúria sombria de Benício del Toro em A caçada. O gesto de olhar: atingir algo, fitar um objeto, absorver e ser absorvido. Tudo começa no olho — depois do olho nada mais é igual. Tudo no cinema de William Friedkin é sobre o olhar.

O corpo. Corre desmedidamente. Sua, agita-se, dobra-se e retorce, tal qual uma massa de modelar. O corpo é uma plataforma, que zanza incessantemente por todos os lados, rápido e arteiro, mas também frágil e sensorial. É um sintoma do meio: o corpo adere àquilo que está ao seu redor, é o instrumento pelo qual instala-se a selvageria, o caos, o conflito. O corpo possui e é possuído. Tudo no cinema de William Friedkin é uma questão de possessão.[1]

As coisas. Deslizam. Às vezes ligeiras demais. Às vezes lentamente.  Chocam-se até se converterem em rastros pelo ar. As coisas pegam fogo, tornam-se pólvora, viram partículas de guerras interiores e exteriores. É difícil capturar as coisas, elas se alternam rapidamente, trocam de dono, de aparência, de usabilidade. As coisas são para o bem e as coisas são para o mal. Tudo no cinema de William Friedkin é sobre como filmar as coisas, como dar movimento à matéria do mundo de modo que até o mais estático dos enquadramentos adquira uma energia caótica.

A topografia. Localiza cada um dos personagens em um breu, radiografa seus sentimentos. Não se trata de uma mera questão de geografia, é sobretudo um estado de espírito: Comboio do Medo e Parceiros da Noite são filmes terrivelmente azuis; O exorcista é embalsamado, fosforescente e esfumaçado, composto de neblinas; Viver e Morrer em Los Angeles queima a pele, é indissociavelmente vermelho, como também o é Possuídos, mas dessa vez com um vermelho diferente, um vermelho cristal, refletido, quase branco. Caçado é gelo. Tudo no cinema de William Friedkin é sobre ficar embevecido de cores e estágios mutáveis de sensações, é sobre um estado de espírito dominante, avassalador, quase homogêneo.

Os homens. São braços do estado, da instituição, do status quo. São também a ponte para que cada um desses órgãos, da polícia ao FBI, da Igreja ao exército americano, sejam corrompidos pela indissociável, mágica e cruel realidade do mundo real. Os homens de William Friedkin — e seus filmes em boa parte são sobre isso, homens — são frágeis e indeléveis. Eventualmente podem ser cruéis, mas são sobretudo frágeis, carcaças quebradas de um mundo mecanizado que sucumbe aos seus próprios traumas e mistérios. Tudo no cinema de William Friedkin é sobre traumas e mistérios, sejam eles do corpo, da carne ou do sobrenatural. Nenhum de seus personagens passa ileso a eles.

A madrugada. Foi onde conheci os filmes de William Friedkin. Suas obras me educaram no calabouço das madrugadas quando não havia nada que poderia parecer mais aconchegante e desafiador do que uma imagem de dois carros se chocando vertiginosamente pelas ruas de Los Angeles ou Nova York. Não haveria nada de mais enigmático que o rosto celestial de um jovem Willem Dafoe sob o bálsamo de uma magnânima luz vermelha numa câmara de revelação de fotografias. Afinal de contas, colocar fogo em todas as coisas sempre foi uma opção das mais razoáveis, e ele fazia isso como poucos. Tudo no cinema de William Friedkin é sobre colocar fogo em todas as coisas, ativar aquilo que foi esquecido ou deixado de lado, dar à matéria outra significação que possa parecer a destruição total ou o acendimento de uma nova partícula de força sob a luz das chamas. 

Se William Friedkin está morto, coloquemos fogo em suas vestes, para que ela possa transformar-se então em outra coisa, para que o sujeito possa ser possuído pelo outro tal qual seus próprios personagens. Não poderá haver inércia, é tudo movimento.

William Friedkin está morto: ele está mais vivo do que nunca.


[1] Luiz Fernando Coutinho escreveu um texto exemplar sobre possessão no cinema de William Friedkin. Algumas de suas ideias estão neste parágrafo. https://limiterevista.com/2021/03/30/a-possessao-no-cinema-de-william-friedkin/

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CINEMA E SILÊNCIO

EDITORIAL – CINEMA E SILÊNCIO

Chico Torres

MAL TROPICAL: O RASTRO DO RASTRO

Luiz Soares Jr.

DO SILÊNCIO ÀS PALAVRAS DOS OLHOS: DISINTEGRATION LOOPS 1.1.

Pedro Tavares

DÉPAYSEMENT: SILÊNCIO E RECUSA EM LA NOIRE DE

Ana Júlia Silvino

ANOTAÇÕES SOBRE QUEBRAR O SILÊNCIO: ASSISTINDO HOTEL MONTEREY E THREE LANDSCAPES

Gabriel Papaléo

É PRECISO QUE OS MORTOS FALEM

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PARA AQUILO QUE SOBREVIVE

Luiz Pretti

ISSO E NADA MAIS

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ENTREVISTA: LEWIS KLAHR

Pedro Tavares

QUATRO FILMES CURTOS

João Pedro Faro

À SOMBRA DA SAUDADE

Gabriel Moraes

DESCRIÇÃO SILÊNCIOSA: REASSEMBLAGE (Trinh T. Minh-Há)

Geo Abreu

RUÍDO E SILÊNCIO: NEAR DEATH (Frederick Wiseman)

Bernardo Moraes-Chacur

THE BROWN BUNNY OU AS FLORES NA ESTRADA

Gabriel Papaléo

A MELODIA MUDA DO DESTINO: O SILÊNCIO (Mohsen Makhmalbaf)

Felipe Leal

OBITUÁRIO: WILLIAM FRIEDKIN

Rubens Fabrício Anzolin

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Festival ECRÃ: Vermelho Bruto (Amanda Devulsky, 2022)

Outros caminhos

Por Chico Fireman (@filmesdochico)

Deve ter sido bem dolorido para Alessa, mãe de Raquel, 9 anos, tentar acalmar a filha, que “queria ter virado o voto do vovô”, quando a menina se deu conta da eleição de Jair Bolsonaro. É um dos momentos mais tocantes — e mais transformadores — de “Vermelho Bruto”, primeiro longa-metragem de Amanda Devulsky, tanto pela comoção de uma mãe que, com a voz embargada, tenta acreditar ao dizer que nem tudo estava perdido quanto pela potência que esta cena encontra dentro da escolha formal da diretora: num documentário que apresenta as histórias de quatro mulheres, raramente vemos os rostos destas personagens.

Com origens, classes sociais e estruturas familiares diferentes, Alessa, Eunice, Fabiana e Jô têm em comum o fato de terem sido mães ainda adolescentes, em Brasília, no período da redemocratização do país, entre 1985 e 1995. Projeto antigo da cineasta, o filme se apóia basicamente em duas matérias-primas: imagens de arquivo destas mulheres e registros feitos por elas mesmas ao longo de 2018, ano-chave para a captação do conteúdo. Justamente o momento em que a democracia brasileira entrou em crise. Um ponto de partida que parecia traçar um estudo sociológico, já que o filme aborda rejeição, machismo, responsabilidades antecipadas e dificuldades econômicas.

Mas as escolhas são bem diferentes. Quando decide, num documentário de personagens, que essas histórias serão contadas só por suas vozes, sem o ponto primordial de reconhecimento de alguém, o rosto, Devulsky assume o risco da falta de identificação e é mesmo difícil estabelecer quem é quem nos primeiros relatos do filme. Além disso, os trechos de voice over são intercalados por uma terceira gama de imagens, abstratas, poetizadas por filtros, zooms, recortes e sobreposições, retiradas dos arquivos ou dos registros que as personagens fazem do cotidiano. O efeito desta dinâmica pode ser frustrante para quem acredita que um documentário precisa ter um recorte efetivo, mas liberta o filme de um cárcere formal.

“Vermelho Bruto” pode ser associado a um cinema de fluxos que tem ganhado muitos e diferentes exemplares nos quatro cantos do mundo. Um cinema em que o não dito tem tanto ou mais importância que o dito e, inclusive, o completa, projeta e distorce. Por isso, é tão simbólico quando, num filme que parte de histórias individuais para representar um estado de espírito, um incômodo, uma condição, algo muito mais amplo e impalpável, se recorra repetidas vezes às imagens de fungos que, vistos de tão perto, parecem composições estelares. Se foge ao desenho mais íntimo de cada uma destas mulheres, Devulsky, numa escala dilatada de espaço e tempo – quase 3h30 de duração -, discute a existência, feminina ou não.

Um caminho curioso para a coautora das comédias dramáticas cheias de ironia de Marcus Curvelo. Mas, como responde Jô, num dos vários momentos em que o filme se abre para a intimidade de suas personagens, tudo é sobre por onde seguir:

Tá sumida!

Eu não, percorri outros caminhos.

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Festival ECRÃ: SINF0N14 (Raúl Perrone, 2022)

Amor pelas imagens

Por Chico Fireman (@filmesdochico)

Na sequência final de “SINFON14”, atração do Festival Ecrã, o veterano argentino Raúl Perrone parece tentar desconstruir seu filme. A trama, se é que alguma obra do cineasta pode abrigar esse conceito, já acabou e numa cena de bastidor, em preto-e-branco, ele conversa com seu protagonista, Edgardo Cozarinsky. Entre várias outras coisas, diz que as imagens mais belas que ele já captou são aquelas em que seus atores mal sabem que estão sendo filmados. Registros espontâneos de beleza pura. Pode até estar sendo fiel a seus sentimentos e ao que enfatiza (“imagens que captou”), mas se há um diretor atual que consegue fazer artesanato em seus filmes, este é Perrone. “SINFON14” é a prova disso.    

Como em “Casanova e a Revolução”, os personagens, nobres aristocratas, dividem uma carruagem, mas ao contrário do longa de Ettore Scola, em que uma fotografia clássica ilumina rostos conhecidos, aqui o cenário é noturno e a viagem, profana e lisérgica, ganha tons e representações fantasmagóricas. Em praticamente todas as cenas, Perrone explora essa atmosfera sobrepondo imagens, distorcendo, dilatando e multiplicando rostos, criando pinturas em composições exuberantes ao longo de todo o filme. É um caminho curioso porque esses quadros que partem da deformação, como se simbolizassem a perversão sexual daquelas pessoas, encontram resultados que se não negam, complementam a busca do diretor. São registros construídos, mas de beleza pura.

Essa construção reforça uma obra que se move entre onírico e o herege, que não tem intenção de ser decifrada, que existe pela força das imagens que consegue produzir.

A busca por dar significados extras às imagens é o motor de outro filme presente na programação do Ecrã, o colombiano “Testemunhas Silenciosas”. Neste caso, as imagens dos filmes são “roubadas” de outras criações, obras da época do cinema silencioso que o também veterano Luis Ospina decidiu resgatar sob a ideia de criar uma narrativa completamente nova a partir delas. Com sua morte, Jerónimo Atehortúa Arteaga assumiu a tarefa, adicionando uma nova camada de resgate ao projeto. Enquanto Perrone cria imagens para estabelecer o ambiente de seu filme, Ospina e Arteaga reagem a imagens criadas por outros para transformá-las e, em algum nível, honrar sua própria memória. Em ambos os casos, são dois filmes que olham para a matéria-prima no cinema apaixonados pelo poder que ela tem.

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Festival ECRÃ: Mangostão (Tulapop Saenjaroen)

Por Chico Fireman

Um voice over didático e cadenciado sugere, ao lado de imagens funcionais filmadas em digital, que veremos um daqueles documentários de observação sobre o funcionamento de algum sistema industrial, gênero muito comum nos dias de hoje. Em detalhes, o narrador explica a mecânica de uma fábrica onde o bagaço de uma fruta típica do Sudeste Asiático é separado da polpa e reprocessado algumas vezes para que se extraia o suco. Mas “Mangostão”, média-metragem batizado com o nome deste fruto, tem outras ambições e uma delas é provocar estranhamento.

A mesma voz doce e professoral nos apresenta Earth, um homem que volta, depois de muitos anos, para sua cidade natal e reencontra a irmã, que administra a fábrica. Após introduzi-lo, o narrador passa a, deixando claro seu papel como condutor da história, interpretá-lo. É só o começo de uma série de “interferências” com que o diretor Tulapop Saenjaroen subverte a estrutura inicial. O registro documental vai se alternando com uma investigação psicológica de Earth. E mesmo esse registro se desdobra quando a narração, a princípio tão oficial, passa a elencar as falhas das máquinas da fábrica.

Earth, para o narrador, é como se fosse uma destas falha. Ele suspeita de que seu retorno não é apenas uma visita, contrapondo as visões diferentes que os irmãos têm de mundo. Os registros mudam, a mistura o documentário com a ficção se acentua, o protagonista de poucas palavras se opõe a um narrador com muitas ideias e tudo isso alimenta uma atmosfera de mistério que contrasta com o tom um bocado melódico da narrativa. O filme adota um caminho mais introspectivo e menos palpável quando Earth se refugia no hobby antigo de criar histórias com personagens violentos que insinuam os sentimentos que tem por sua família.

Tanto a presença de um narrador quanto a decisão do protagonista de virar escritor, que ainda reverbera em outra decisão parecida na trama, indicam que, mais que contar uma história, Tulapop Saenjaroen quer falar sobre contar histórias. E nesta pequena joia chamada “Mangostão”, ele faz isso reprocessando memórias, rancores e a própria lógica da estrutura que propõe para mergulhar e transformar os tecidos desta narrativa.

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