SEGREDOS DE UM ESCÂNDALO (May December, Todd Haynes, 2023)

por João Lucas Pedrosa

Um dos planos que melhor encapsula o jogo central de May December, novo filme de Todd Haynes, provavelmente é o que mais inspirou os cartazes do longa: um médio conjunto das duas protagonistas femininas olhando para a frente, com a câmera – e, nisso, também o espectador – representando um espelho. Nele, a atriz Elizabeth Berry (Natalie Portman) observa a boleira Gracie Atherton (Julianne Moore), personalidade real que interpretará em três semanas num filme, maquiar-se. Ela reencenará o polêmico início do romance entre Gracie e seu marido Joe Woo (tocantemente frágil na interpretação de Charles Melton), quando ele tinha apenas 13 anos e, ela, 36; um caso manchete de todos os tablóides nacionais à época. O filme de Todd Haynes se passa durante o “processo criativo” de Elizabeth para o papel, em que ela convive com o casal e seus filhos gêmeos em período de graduação enquanto entrevista as pessoas envolvidas e visita os lugares-chave do caso. A tensão é latente desde a primeira vez que Gracie e Elizabeth se encontram porque ambas representam, ao mesmo tempo, o combate a uma narrativa e o seu eterno estatuto de comoção popular. Por mais ambígua que a atriz deixe sua opinião sobre o caso, ela agita o pó da polêmica em âmbito local (a cidadezinha que vira seus olhos à figura da televisão corporificada) e lembra que o mundo logo voltará seus olhos ao caso.

De um jeito ou de outro, as duas protagonistas são mulheres que são imagem pública. Gracie, à sua maneira, é uma sorte de ícone geracional, uma imagem vertiginosamente reproduzida e já fixada no imaginário coletivo como um misto entre o arquétipo lilithiano da corrupção da pureza, e a santa punida pelo seu “amor ingênuo” (a pose quase virginal segurando o bebê de Joe, parido na cadeia, é uma das que Elizabeth tenta imitar de frente ao espelho). E muito interessa que a personagem de Portman seja constantemente mostrada posando em frente a um espelho que é a câmera. Esteja ela conversando ao telefone, esteja ela testando imitações: não vemos o reflexo, a imagem produzida. Vemos a pose deslocada de um crivo de ficção, de um contexto de encenação – vemos a pose em meio ao que entendemos, no filme, como o “mundo vivido”, o extracampo dos tabloides. Elizabeth suga em tempo real sua fonte original e, por isso, sua presença é intrinsecamente vil, vampiresca. Ela habita os espaços à volta do casal como a câmera de um reality show, próxima o bastante para um ângulo privilegiado, mas distante o bastante para abster-se da responsabilidade de sua presença. Seu ofício é o subterfúgio de seu fetiche.

A lacuna é gritante entre a atriz e o casal não só pela sua presença de invasora, mas pelo que ela busca e o que se apresenta em sua frente. Ela revira águas passadas e ressecadas, em busca do contexto para o fogo entre mulher e menor, mas o momento atual é o fim de um ciclo. A iminente partida dos filhos vira em Joe uma melancolia profunda; ele sente o luto do seu objetivo direto de viver até então – as crianças -, e parece perceber que os gêmeos entram agora no início de uma fase que ele renunciou permanentemente por um amor que ele jamais pôde questionar pela integridade pública do seu par. Joe parece tão alienado ao ponto de sequer saber expressar seus sentimentos em palavras; ele gagueja e soluça impotente. Em sua pureza de criança grande, Joe é uma ferramenta tanto para a esposa quanto para a atriz. Para Gracie, ele é um ponto a se provar; para Elizabeth, um objeto de desejo.

É inevitável falar de fetiche ao adentrar um pouco mais em Elizabeth, pois é sua forma de se relacionar com o mundo. A ligação safada com o diretor casado, o flerte muito frontal com Joe em toda oportunidade, a resposta que vira monólogo sexual a um público adolescente em espaço escolar, o sexo simulado sozinha na despensa da loja de animais onde o Gracie e Joe fizeram sexo pela primeira vez. Sua relação com o mundo é fortemente – senão inteiramente – filtrada pelo potencial sexualizante das coisas. Sua relação com o caso que encenará, naturalmente, também é contaminada pelo fetiche, de forma que Elizabeth parece uma potencial reprodutora do comportamento de Gracie (como nos sugere o plano final do filme). Aqui voltamos ao plano comentado no início: ambas estão de frente ao falso espelho. Gracie começa em foco, se maquiando, enquanto Elizabeth apenas observa ao fundo, ligeiramente turva; as duas se olham pelo reflexo implícito do espelho. Então Gracie a convoca ao mesmo plano focal, “é melhor se eu fizer isso em você”. Ambas passam a se olhar de frente e , pela primeira vez, Gracie é quem faz as perguntas sobre o passado de Elizabeth. As duas começam uma troca estranhamente confortável. Os subterfúgios de Elizabeth não conseguem evitar: ambas estão equiparadas.

May December é um filme que poderia facilmente alimentar-se da profusão de reflexos, duplos, e demais jogos de espelhamentos envolvendo as duas personagens principais em suas composições cênicas. Mas a obra parece preferir que elas se manifestem quase unicamente pela sua presença, pelas implicações da trama. Ao contrário, o mundo é que parece um reflexo (a imagem de Joe soltando a borboleta sobre a janela da casa; uma libertação unicamente simbólica, sublimada no insetinho. Só lhe cabe assisti-la.) dos seus mecanismos de manipular a própria imagem. A pergunta que se levanta quando Haynes rejeita o jogo dessas opacidades é “o que sobra dessas mulheres sem as imagens que lhes sucedem e precedem?”.

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