EDITORIAL: O ERÓTICO E O PORNOGRÁFICO

por João Lucas Pedrosa

Apesar de o maior consenso nas discussões entre erotismo e pornografia ser que a diferença entre ambos é turva e ambígua, as diferenças são palpáveis na filosofia de suas respectivas estéticas. Decerto que ambas tratam do corpo, da provocação da carne e da promessa (ou consumação) do contato sexual. Se partirmos do erotismo como Georges Bataille o define, ele parte da manifestação da descontinuidade do ser. Morremos e, portanto, somos finitos física e psiquicamente, mantidos talvez genética e memorialmente pela prole, pela reprodução. A sensação, unicamente psicológica, da continuidade se estabelece pela manifestação concreta ou estético-simbólica do erotismo, seja pela carne (o membro que penetra adentro como uma faca, o sexo que flerta com o desmonte e remonte uno dos corpos envolvidos), pelo amor (o “eu” que continua pelo vínculo com o “tu”), pela religião (a expansão transcendental do íntimo). Sob essa chave, o erotismo se alimenta de uma noção de limite – definido, a princípio, pela morte. O erotismo existe por causa da morte. Transamos porque morremos. Se cientificamente, a necessidade é reproduzir, psiquicamente, é ser eterno (por um momento que seja). Bataille se estende à noção de interdições e transgressões, na medida em que o prazer vem de uma transgressão que suspende sem nunca suprimir a proibição, porque dela depende. Como o tesão do casado em “pular a cerca”, mas não em se divorciar ou abrir o relacionamento. Como o tesão do pastor em dar para a travesti na encolha sem abdicar do sermão dominicano. O prazer é de, por um tempo determinado, suspender o rigor do casamento, o ascetismo da religião, a iminência da morte.

Sendo assim, o cinema é erótico desde que nasceu. Pela sua batalha contra a morte que inevitavelmente registra sua ação sobre os corpos das gentes, dos animais e das cidades; pelo limite que o enquadramento impõe, a fragmentação do todo que faz do extracampo uma provocação estendida ad eternum, uma inevitável, incontornável metonímia do mundo; a montagem que esconde ou ostenta a descontinuidade de cada plano; o “eterno enquanto dure” num plano de Apichatpong Weerasethakul ou James Benning ou Chantal Akerman. O cinematógrafo é uma ferramenta de continuação da imagem.

A pornografia funciona numa chave análoga e, ao mesmo tempo, quase oposta. É intimamente ligada ao obsceno (não apenas no que fere o pudor, mas no que reside usualmente fora da cena) ao ostentá-lo: exibe a genitália, a penetração, a cunilíngua, a felação, o beijo grego, a fistada, etc. Trazer à luz a imagem escondida – e daí sua afinidade com o gore, as imagens explícitas de violência que ostentam o sangue e as tripas escondidos sob a pele e sob os músculos. É a suposta revelação de todo segredo que pode, e, talvez, a mais bem-sucedida ilusão de transparência – à medida que se segura na encenação da imagem de choque para reivindicá-la. Os gestos sexuais explícitos se seguram na condição de acontecimentos, mesmo sob um espalhafatoso, ostensivo crivo de ficção (as atuações nos filmes de indústria pornô tendem à iconicidade camp não apenas pela falta, como mesmo pela rejeição da naturalidade). Com frequência, a pornografia é amalgamada com o farsesco. Retomemos o potencial primeiro filme erótico, Le Coucher de la Mariée (Eugene Pirou, 1896): 

Dois recém casados – um homem de smoking e uma mulher de vestido de noiva – estão sentados lado a lado dentro de um quarto. Ele beija sua mão e tira os sapatos dela e, quando parte para beijá-la, ela recusa e aponta para o biombo atrás deles. Ela o posiciona entre si e -, pelo que indica o contexto, – seu marido, e começa a despir-se sorrindo e olhando para a câmera, exibindo e ostentando cada camada para nós. Aqui, o jogo pulsional é diretamente ligado à estrutura cênica: há um segredo ao qual só nós, de fora, temos acesso. A posição de voyeur nos garante um prazer que é negado ao marido, que virá a consumir o casamento. Aqui, a visão é liberadora, enquanto a consumação é privada do sentido principal que constitui a obra: o prazer da visão. Um jogo sacana, em que a visão tem mais poder que a ação. 

Frame de Le Coucher de la Mariée

Nuno César Abreu, em “O Olhar Pornô”, retoma o pensamento de Jean Baudrillard acerca de como “a obscenidade é uma tentativa desesperada de sedução pela evidência grosseira da verdade”. Naturalmente, a obscenidade é um conceito altamente variável entre tempos, espaços e circunstâncias de onde se fala, e o que sobreviveu de Le Coucher… poderia estar, hoje, num filme para todas as idades. A grosseria da “verdade” em questão também é discutível, e prefiro entender que Baudrillard refere-se a um apelo como a, por exemplo, a quebra de quarta parede da noiva, assim como seus trejeitos afetados, seu sorriso malicioso e caloroso para nós. A função do burlesco em sua interpretação para nós é dizer a sedução ao invés de fazê-la.

Onde, nessa reflexão, ficam as pornochanchadas políticas de diretores como Carlos Reichenbach e Neville D’Almeida, cujos estereótipos farsescos refletem farsas do próprio extrato sociopolítico brasileiro, e o sexo funciona como elemento de suspensão momentânea desse funcionamento, ostentador de sua hipocrisia? O plano da penetração no início de Anticristo (Lars von Trier, 2009), que prenuncia a morte da prole dos que consumam o ato reprodutivo? As inúmeras cenas de sexo explícito em O Império dos Sentidos (Nagisa Oshima, 1976), que vão gradativamente do encantamento à mortificação? As duas cenas antitéticas de sexo em Je, Tu, Il, Elle (Chantal Akerman, 1974), em que um homem em close up solo descreve comandos de masturbação à protagonista, em contraste com a cena de sexo a duas, em que o casal lésbico em plano inteiro conjunto não solta uma palavra e quase não estimula as genitais diretamente? Longe de encaixar obras assim na categoria “erótica” ou “pornográfica”, esta edição pretende aprofundar-se no espectro de potências, problemáticas e abordagens autorais nas representações do sexo e do corpo no audiovisual. 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ABREU, Nuno Cesar. O Olhar pornô: A representação do obsceno no cinema e no vídeo. São Paulo: Alameda Casa Editorial, 2012.

BATAILLE, Georges. O Erotismo. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2017.
BAUDRILLARD, Jean. “What are you doing after the orgy?”. Travers, nº 29, 1983.

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