Natureza do Desaparecimento: Parallel I-IV, de Harun Farocki

por Waleska Antunes

When I speak of time, it’s not yet
When I speak of a place, it has disappeared
When I speak of a man, he’s already dead
When I speak of a time, it already is no more
– Raymond Queneau

Nós somos fascinados pelo fantasma de uma realidade integral, pelo alfa e ômega da programação digital. O real é o leitmotiv e a obsessão de todos os discursos. Mas não somos muito menos fascinados pelo real do que por seu desaparecimento, sua inelutável desaparição?
– Jean Baudrillard

Uma das grandes questões que afligem a arte de modo geral desde o princípio e perpassam gerações de pintores, teóricos e até mesmo espectadores é a questão de verossimilhança da imagem. Seja em movimentos como o suprematismo ou o cubismo, nas artes, seja com o cinema experimental ou com a poesia concreta, a necessidade de uma representação de mundo tal como ele é, é uma porta entreaberta, um mistério sem solução. Afinal de contas, tudo depende do interlocutor e de como vemos. O mundo, em geral, é formado de grandes mistérios imagéticos e cabe a nós sabermos interpretá-los.

Há quem se confronte com as peculiaridades entre o mundo real e o mundo imaginário, o natural e o humano ou o real e o virtual. Esses questionamentos tem tido uma grande prevalência no cinema atual, principalmente com o advento do digital como matéria primordial de fazer fílmico. Fomos do assombro em captar o movimento das folhas ao fundo em O Almoço do Bebê pelos irmãos Lumière em 1895 até ao assombro da recriação do movimento das folhas e das paisagens em videogames com um grau de realismo exacerbado. Na fronteira entre o real e o maquínico, se encontra Harun Farocki, cineasta alemão que se põe em frente às máquinas para botar a câmera em cena, como uma espécie de figura anônima em uma estrutura mecânica; uma engrenagem em uma máquina.

Nesse caso, em Parallel I-IV (2012-2014), há um ciclo de filmes com foco na construção de um simulacro de mundo real em meio a ambientes virtuais, como os videogames e representações gráficas. Não é novidade que o confronto entre o homem, a máquina e o mundo das coisas é algo presente em grande parte dos filmes de Farocki; no entanto, o questionamento quanto à representação do mundo natural como simulacro e a interação entre simulacro/realidade e espectador é uma fórmula essa que vai se repetir em outras instalações, principalmente nas obras derradeiras (como em Serious Games e Eye/Machine). [1]     

Em Parallel I-IV, a historiografia apresentada vai desde as primeiras formas de animação até os últimos avanços dos videogames, como a jogabilidade e a interação com o espaço se tornam figura central de questionamento do aparato cinematográfico; tanto os Lumière quanto Farocki almejam a mesma coisa, buscar um retrato do mundo, mas a intenção do segundo é questionar se, no realismo simbólico da natureza construída pelos jogos, uma árvore representa de fato uma árvore, apesar de não ser feita da matéria orgânica. Afinal de contas, na voz de Antje Ehmann por entre as paisagens computacionais, se torna a regra a emulação de mundo através da animação, oferecendo uma possibilidade de superação do cinema como retrato do real. No entanto, ela nos diz: Nos filmes, há os ventos que sopram e os ventos que são produzidos por um ventilador. Nos mundos animados, o vento sopra em uma única direção. E como considerar um mundo construído como algo natural? Ao mesmo tempo, como não dizer que aquele não é um mundo?

O que rege Parallel I-IV é a noção de que a representação natural de mundo pelo cinema e pela virtualização da natureza e das paisagens é uma espécie de retomada ao ímpeto inicial renascentista – onde a técnica e a ciência estavam à serviço da arte. Parece uma afirmação bastante controversa; porém, considerando um mundo em que a água se torna mais reluzente e as árvores são colocadas em coordenadas e tudo, absolutamente tudo, é formado por pontos e vírgulas e coordenadas cartesianas, talvez não seja de tão absurdo. Afinal, o plano achatado e o nada além da superfície das coisas é uma noção pré-helênica de mundo.   

De toda forma, essa espécie de mistério representacional do mundo e da natureza, a água composta por algoritmos, um horizonte plano infinitamente finito e um mar sem fundo ou função causa um assombro. Quantas vezes, ao ver um retrato de um videogame ou de uma emulação, não se diz ‘isto é mais real que o próprio real’?   
Será mesmo?  Se este é o mundo real, ele deixa de existir quando eu não o vejo? Onde é que esse mundo termina? E esse é o ponto central de Parallel: A natureza virtual é composta de um vazio e pontos de fuga inexistente. O mundo que se vê pode parecer, mas não o é e sua ideia de infinitude e o que há além do alcance mostram que talvez não tenha sido o movimento das folhas ao fundo do quadro que interessem nas emulações do mundo, mas sim, o seu desaparecimento. Queremos saber o que há por trás da montanha, para além do mapa, fora do horizonte. É uma necessidade sobre-humana: Alcançar o inalcançável.

Disse Jean Baudrillard: ‘Por trás de cada imagem, algo desapareceu. E isso é a fonte de sua fascinação. Por trás da realidade virtual em todas as suas formas, o real desapareceu. E isso é o que fascina a todos. Segundo a versão oficial, adoramos o real e o princípio da realidade, mas — e isso é a fonte de todo o suspense atual — é, na verdade, o real que adoramos, ou seu desaparecimento?’  

De fato, o desaparecimento é a única constante real e virtual de mundo e Parallel I-IV reforça um mundo fadado ao constante desaparecimento e que tudo isso flutua no vazio.

Isso só evidencia que a diferença entre o mundo dos jogos e o mundo vivente é a regra primordial da finitude; se na Terra tudo nos é finito e regido por leis da física, no mundo virtual, a noção de infinito no simulacro só define o quão limitado é a existência dos seres nas telas e nos filmes. Isso possibilita infinitas representações de mundo dentro de um só local; no entanto, o horizonte é oco. O fundo do mar é o vazio. As criaturas são regidas pelas suas próprias regras, mas ao mesmo tempo a sua existência é somente entre si próprias, sendo eles mesmos obliterados por um poder invisível. A natureza que as cerca transpõe barreiras anti-naturais, obstáculos invisíveis. Tudo desaparece, até mesmo o infinito artificial.


[1] No caso de Serious Games e Eye/Machine, o questionamento da imagem cinematográfica vai além da simples manipulação imagética, mas sim, das implicações sócio-políticas de um mundo virtualizado; afinal de contas, segundo Farocki, na representação da guerra o sol somente brilha em tanques e personagens animados americanos, enquanto os personagens do Oriente Médio até de sombra são desprovidos, dada a desumanização entre invasor e invadido. 

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