O CORPO CONCRETO DO DESEJO E DO RITUAL

Por Gabriel Papaléo

“E depois de fazer tudo o que fazem, os dois se levantam, tomam banho, passam talco, passam perfume, se penteiam, se vestem, e assim vão voltando progressivamente a ser o que não são.”

                                              Julio Cortázar, Amor 77

Desde o setting, a escolha de Claire Denis para “Noite de Sexta” é curiosa: em meio a dois de seus melhores filmes, “Trouble Every Day” e “O Intruso” (ambos, em escala maior, retratando brutalidades de personagens perdidos pelo tempo e com históricos imensos de violência), a diretora elege para este uma noite qualquer em 1995, em Paris, para abandonar seus personagens. Sua protagonista, engarrafada no trânsito, lidando com o rádio constante e a gritaria noturna dos motores humanos e artificiais da metrópole, Laure precisa chegar a um encontro para descarregar sua mudança de apartamento. A noite vai se movendo por estímulos altos – a chuva, as buzinas dos carros, o trânsito incessante, o falatório dos motoristas entre si -, e com uma surpresa no caminho, o surgimento de um homem, vê que sua noite encontra refúgio em um quarto, mais silencioso, afastado.

A cada pequeno acidente que acontece no percurso da noite – seja a demora dos sinais, a discussão dos motoristas, o pedido de carona, ou mesmo os devaneios da câmera de Agnes Godard procurando pequenas outras histórias nos motoristas dos outros carros -, esses entraves e essas interações interrompidas vão aos poucos construindo o tédio e a incerteza da vida de Laure, preparando a atmosfera de frustração que será descarregada no sexo com desconhecidos. O fato da trilha não ser do grupo Tindersticks, como de costume em Denis, faz toda a diferença para a forma que encaramos essa noite: a música de Dickon Hinchliffe é mais ancorada nos violinos, nas notas agudas, até mesmo num flerte com o melodrama. Não estamos diante da noite ameaçadora e misteriosa de “Bastardos”, por exemplo; estamos numa narrativa de frustração e melancolia a serem liberadas, uma das muitas interpretações de Denis para o sexo puro e simples.

Esse mistério construído pacientemente para descambar em desespero pelo toque e pelo sexo está presente em “Trouble Every Day”, seu filme anterior, que também registrava corpos próximos como objeto de lascívia e vampiros sexuais como em suas origens, sem saber como lidar com os impulsos de fome. O ritual também ágil, desesperado, cujos planos-detalhe não reforçam a crueza das ações, mas as recontextualizam no que importa a Denis: dois corpos desesperados por contato se encontrando numa noite abandonada. Sem o contexto de fantasia dos canibais de seu filme anterior, a urgência da transa de vida ou morte dá lugar à solidão da madrugada e das relações duradouras e falidas à margem dos personagens. Quando o trânsito entre Laure e Jean encontra um porto seguro, o filme muda.

E, a partir do encontro no terço final do filme, o casal vive a noite no quarto, descobrindo um ao outro na cama, no toque singelo da pele, no sexo afobado. Denis usa seu trabalho de câmera característico em primeiros planos de teleobjetiva para recortar ao máximo os corpos de Laure e Jean, até que não saibamos aonde essa mão está tocando, de quem é, se esses pelos são os peitorais de Jean ou os pubianos de Laure, se a carícia é no ventre do homem ou da mulher; não era novidade para Denis em 2002 esse tratamento quase místico de um desconcerto material e palpável dos corpos que se fundem no sexo perante a câmera e, até em seus filmes mais recentes, “Com Amor e Fúria” e “Stars at Noon”, a diretora retrata o erótico visceral do close, a sugestão do explícito, o sexo de respirações.

A câmera próxima de Denis mostra braços fragmentados, um toque intenso registrado em minúcia desconcertante, que se pergunta, com o quadro – e com a montagem que a cada corte mais bifurca que acumula -, se a falta de contexto para aquela relação sexual retira o julgamento moral que ela suscita.

Não por acaso, esse encontro só funciona ali, no momento da cama. Quando Laure e Jean saem para jantar, algo parece ser desvelado: um ritual por demais cotidiano diante das transas longas e pacientes do filme. A Denis, interessa o sexo pela sua transcendência de encontros, sim, mas também pelo tesão compartilhado que passa. Laure abandona seu amante de uma noite para vagar por uma rua vazia, como se tivesse encontrado não uma conquista ou um sentido de vida, mas o alívio e a curiosidade de um encontro efêmero com hora para desaparecer da memória.

A mediação do close é radicalmente oposta à de “Carol”, de Ed Emshwiller. Neste curta, o close é da câmera caseira de um homem apaixonado filmando sua esposa Carol Emshwiller, uma intimidade diferente, na qual o contexto é construído detalhadamente pelo quadro. Tal qual Júlio Bressane filmando Rosa Dias em “A Fada do Oriente”, Ed faz em “Carol” um filme estrutural sobre as diversas formas de filmar o corpo da pessoa incondicionalmente amada.

O rosto de Carol já é erótico muito antes de aparecer pela primeira vez, por conta da aproximação da câmera entre as paisagens ao redor e uma sensualidade vinda toda da sugestão, dos recortes de árvores, pedras, fissuras e folhas filmados pelo diretor para preparar a chegada de sua esposa, vinda das sombras, do seio da floresta.

Ed era cineasta experimental, mas também fazia capas para diversas revistas de ficção-científica – entre elas, a Galaxy e a Astounding Science Fiction -, obras que renderam a ele cinco prêmios Hugo, um dos mais prestigiados no gênero. Carol também trabalhava com ficção-científica, e um dos seus contos ganhou o Nebula, outro dos grandes prêmios da comunidade. Era um casal interessado no místico, que fez da sua carreira imaginações de planetas e paisagens alienígenas, e que, aqui, ganham o peso do terreno, do material, do que é aparentemente trivial e ganha contornos fantásticos pela simples organização do espaço.

Como olhos abrindo e fechando, os planos iniciais filmam a paisagem em duplas, o mesmo plano repetido entre a luz mais estourada e a mais sub-exposta – a criança que observa o mundo em Brakhage, por exemplo. É nesse esforço calculado matematicamente, num evidente diálogo com o cinema estrutural, que Emshwiller retrata o sensorial daquele lugar, estranho aos olhos, familiar e palpável mas com contornos extraterrenos: a floresta de onde sairá seu amor.

Nisso, o papel da música é fundamental, num compasso quase metronômico, acompanhando as imagens que retornam entre os fades num sintetizador que evoca justamente o desconhecido excêntrico das ficções-científicas dos filmes americanos B dos anos 1950 – como “A Ameaça Veio do Espaço”, “O Homem do Planeta X”, e tantos outros. O diálogo formal com Jack Arnold e Edgar Ulmer para por aí, mas esse desconhecido caro aos personagens curiosos do gênero são o assombro da vida do casal Emshwiller, e Ed não por acaso comenta sutilmente essa iconografia na hora de sintetizar o que representa sua esposa.

Quando surge Carol, andando decidida na floresta após sair da total escuridão, a câmera de Ed organiza diferentes dispositivos visuais para retratá-la. O caleidoscópio breve, os múltiplos closes em backlight que se sucedem quase em estrobo, as sombras do seu rosto desfocado; se o erótico é a sugestão, não apenas a preparação para a descoberta, como o próprio acompanhar de Carol são extremamente sexuais, de forma que, quando surge seu corpo nu fotografado em contraluz, montado também como em estrobo, toda a intimidade dividida e o tributo a um corpo desejado florescem de vez em tela.

A textura da película é exposta no grão (diferente da maior limpeza do filme de Denis), como reforçando uma visão passada, de acumulados, de uma memória vivida a dois. Para arrematar, Ed funde o rosto de Carol às paisagens que vimos no início, o rosto dela em todos os lugares, em toda rocha sobre a terra, em toda árvore que farfalha. Uma existência não menos erótica por sua sutileza.

No encanto desesperado de duas pessoas com um maníaco tesão noturno que precisa ser imediatamente saciado, e no encanto cuidadoso de alguém que pega uma câmera para estudar e homenagear o corpo de quem passou uma vida amando, as câmeras de Denis e Emswiller se aproximam de pessoas porque precisam urgentemente encontrar no cinema o canal para expressar o tesão visceral que se passa sob as peles de seus realizadores, cujas visões sobre sexo e sobre o erótico desafiam moralidades e crenças metafísicas.

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