Editorial: Cinema e natureza, paisagens em perspectiva

por Gabriel Papaléo

“Aqui do alto, contemplo o campo, que se estende como uma pradaria sem fim. (…) Paisagem estática, desoladora. Bem longe, um homem atravessa os campos. (…) A verdade caminha por si através dos bosques.”

                           Caminhando no Gelo, Werner Herzog

Dos registros de população e máquinas urbanas do final dos anos 1890 às sinfonias de cidade soviéticas e europeias dos anos 1910 e 1920, o cinema investiga sensorialmente sua ligação intrínseca com a cidade e seu movimento. No entanto, o oposto do trânsito constante citadino encontra diálogo na investigação de diversos realizadores que imaginam, retratam, debatem e evocam, a natureza e seu tempo próprio – e como os registros dela são realizados, quais procedimentos utilizados.

A natureza filmada em locação, sob diferentes códigos de uma paisagem, é das bases mais sedimentadas de cinemas como os de Peter Hutton e Apichatpong Weerasethakul, que flutuam entre a sideração e a palpabilidade da concretude natural de uma vista, do fluxo de um rio ou da neve que cai, da floresta que respira ou do mar à espera. Nessa mesma disposição pela locação, dois italianos com códigos muito particulares (e semelhantes) filmaram natureza: Roberto Rossellini criou em Stromboli uma grandiosa representante do tumulto interno de sua protagonista à espera de uma experiência de estupefação, enquanto Michelangelo Frammartino fez em As Quatro Voltas e Il Buco um desencadear de acontecimentos místicos nas ações mais mundanas, linhas mais simples e diretas da comunhão sagrada entre o humano e o natural, um continuação do outro. Ambos sob a visão de uma névoa que a natureza deixa pra trás após agir.

Também temos a natureza hostil, filmada como ameaça, palco para violências imensas e alegorias políticas. John Boorman em Amargo Pesadelo cria um filme de guerra em microcosmo, com seus homens da cidade que vão à caça. Já Nelson Pereira dos Santos e Jim McBride em Quem é Beta? e Glen e Randa propõem utopias de novas organizações amorosas diante do pós-apocalipse e da terra arrasada, como se a falta da suposta civilização da cidade nos liberasse para lidar com a vida sem tabus. Kelly Reichardt, entusiasta do retrato natural como seu mentor e amigo Peter Hutton, filmou em O Atalho um velho oeste de travessias nada explosivas, que vencem pelo cansaço, cujo sobrevivente mais apto será aquele que entende a história da terra onde pisa.

Há também diretores que preferem filmar a natureza artificial, recriada e filmada em estúdio, para diversos efeitos – seja realçando a ilusão, como Powell e Pressburger em Narciso Negro com suas construções impossíveis e planos cuja magnitude da natureza, evocativa das pinturas de paisagem de artistas românticos como Caspar David Friedrich e mesmo revisionistas como Turner; seja para um controle maior da estrutura de produção, como Erle C. Kenton em A Ilha das Almas Perdidas, e no tanto que essa escolha se reflete em tela, do filme como resultado estético desse modelo de filmagem, da selva domada do estúdio servindo de palco direto para um cientista que cravou uma cicatriz a seu desejo no meio da natureza intocada, reflexo direto do colonialismo tratado pelo filme – assunto esse também tratado por Chantal Akerman em A Loucura de Almayer, mas sob o calor da locação, que encarna o natural como um pesadelo do colonizador em febre, a umidade sentida na pele, nas embarcações ruindo.

James Benning já filmou a natureza indo de um extremo de humor ao outro em filmes diferentes, das paisagens alienígenas de Sogobi à aridez se Equinócio de Outono, enquanto Herzog geralmente concebe esses extremos dentro do mesmo filme: em Aguirre, a grandiosidade contemplativa da paisagem rivaliza diretamente com sua implacabilidade, a loucura megalomaníaca do humano que brinca de Deus numa natureza indiferente. Em Claire Denis, a natureza desértica do passado de Bom Trabalho contrasta diretamente com o movimento da cidade do presente. Em James Grey e David Lean, essa megalomania do ego que se estende para conquistas da natureza ganha uma dimensão mais épica, cuja escala e aparato cinematográfico buscam a vocação (e construção) clássica dessas jornadas.

São formas que se interpolam e dialogam entre si, sempre sob um véu de dúvida e mistério, como exemplos da nossa própria comunicação tortuosa com a natureza. Buscando entender o idioma desconhecido do que o vento fala, ou o comportamento de quem passa por aqueles lugares, cineastas ao longo do século apontam suas câmeras para o mundo natural atrás de perguntas. Essa edição propõe investigar algumas delas.

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