Apaixonar-se e fundir-se à paisagem: Undine e Afire

por Carolina Azevedo 

Afire

Do fogo que incinera e da água que engole os amantes – é a natureza que consome o amor nos dois últimos filmes de Christian Petzold. Undine e Afire misturam o real com o fantástico para assombrar paixões imprevisíveis, cujo inescapável destino, no entanto, é o de se fundir, tragicamente, à paisagem natural. 

Mesmo que por acaso, a própria estrutura dos filmes de Petzold emula os mistérios da natureza: da premissa inicial – seja ela o absurdo de uma mulher que diz precisar matar o parceiro que tenta acabar o relacionamento ou o clichê dos amigos que vão passar um verão à beira mar – a narrativa muda de direção sem mais explicações. Mudam também o ritmo e o tom: entre a repetitividade de uma rotina que ocupa a cidade cinzenta e a monotonia do escritor que, rodeado de belezas naturais, se limita à tela do computador, de repente, explode a tela em sopros de romance e rajadas de tragédia. 

Em Undine, Berlim até parece ser protagonista: historiadora, a personagem de Paula Beer conduz visitas guiadas por pequenas maquetes da cidade, que, evocada a todo momento, pouco ocupa o foco da câmera. Entre as visões dos cartões-postais da capital, que só aparecem enquadrados pela janela de Undine, é no resquício de pântano logo ao lado que a magia do conto se constrói. O caminho estreito e os trilhos dos trens que o casal  percorre com um andar sincronizado – e, rapidamente, apaixonado – leva a uma paisagem bucólica mas não menos acinzentada que a cidade. 

Entre as árvores, uma barragem industrial aonde Christoph leva Undine para um mergulho. O absurdo de um encontro nas profundezas de um rio cercado por concreto se transforma em fantasia quando o bagre gigante – apelidado por Christoph e seus colegas de Big Gunther  – aparece ao lado de uma inscrição do nome da própria protagonista em uma coluna submersa. Todo mistério é pouco para Christian Petzold em Undine

Undine

O cenário de Afire é menos excêntrico, misturando clichês da tradição dos cinemas de verão. Uma dupla de amigos se vê perdida, com um carro quebrado, em uma floresta desconhecida, há alguns quilômetros da casa de praia onde passariam as férias. Terror adolescente: os sons silvestres se aproximam quando o mais inquieto da dupla é deixado sozinho no meio de uma mata prestes a incendiar-se. Quando, finalmente sãos e salvos, chegam à casa, o drama que se instala é mais próximo dos contos morais de Éric Rohmer do que dos contos fantásticos em que se inspiraram o filme anterior. 

A diferença é que as praias do diretor francês não serviam muita função além da cenográfica. Em Petzold, no entanto, a tragédia ambiental é anunciada desde o título – que, em sua versão original, Roter Himmel, traduz-se literalmente como “céu vermelho”. O som dos helicópteros de bombeiros que não se veem instalam a agonia do que estaria prestes a acabar com os dilemas morais e casos amorosos que calmamente surgiam ali. 

Quando os personagens se dispersam na mata incendiária, é novamente na figura de animais que o mistério da tragédia em curso se personifica. A imagem dos dois pequenos javalis queimados talvez seja a mais memorável do filme, sem que seja necessária uma interpretação grotesca sobre a metáfora que Petzold certamente não estava tentando criar ali. Como no poema The Asra, de Heinrich Heine – recitado pela Nadja de Paula Beer e recebido com surpresa pelo Leon de Thomas Schubert – aquele seria o destino dos amores recém formados: a terra “daqueles que morrem quando amam”. 

Quando Undine é engolida sem retorno pelas águas do rio em que vivera o amor com Christophe, a fantasia se desfaz em uma realidade sombria, em que paixão não é o bastante para transformar em realidade o ser mágico do mito que dá nome ao filme. Assim como a tragédia do fogo não é o bastante para reacender a breve paixão de Nadja e Leon. O que resta é a lúgubre magia do amor, que se foi, e a paisagem, que fica, impressa nas imagens de cada filme.

FacebookTwitter