Video por Arthur Tuoto
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EXTREMOS DA CARNE – OS CORPOS E AS POSSIBILIDADES DA IMAGEM
EDITORIAL – O RITO DE SENTAR-SE À MESA
Pedro Tavares
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CORPOS QUE COLIDEM, CORPOS QUE SE ATRAEM
Camila Vieira
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STUART GORDON: FETICHE, CAOS E METAMORFOSE
João Pedro Faro
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QUAL PEDAÇO? – SEXO SURREALISTA E VIOLÊNCIA
Adrian Martin
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A COR ENQUADRADA NOS VÃOS DA IMAGEM – EM BUSCA DO ROSTO DA MORTE
Diogo Serafim
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BUSH MAMA: ASSIMETRIAS DA CARNE E DO CORPO
Kênia Freitas
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BIOPOLÍTICA E CYBERPUNK: AS MÁQUINAS DESEJANTES
Zoë Masan
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Vídeo: CAM (2018) – AS EXTREMIDADES DO CORPO
Arthur Tuoto
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KINOGLAZ PEEPING TOM: SUTURAS
Bernardo Oliveira
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A CIDADE FOI FEITA PARA CAMINHAR – O ANDARILHO DE TSAI MING-LIANG
Gabriel Papaléo
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NÃO FUI EU QUE TRANSCENDI, MAS DEUS QUE DESCEU ATÉ O INFERNO, OU: A HISTÓRIA DO OLHO
Felipe Leal
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O CORPO COMO SENTIDO
Chico Torres
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MAL DO SÉCULO
Carla Oliveira
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21 REFLEXÕES SOBRE CRIATIVIDADE E CINEMA NO SÉCULO XXI
Daniel Fawcett & Clara Pais
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Biopolítica e cyberpunk: as máquinas desejantes
Por Zoë Masan
“O corpo sob a pele é uma fábrica superaquecida, e por fora, o doente brilha, reluz, em todos os seus poros, estourados”
– Antonin Artaud
“Se não se montar uma máquina revolucionária capaz de se fazer cargo do desejo e dos fenômenos de desejo, o desejo continuará sendo manipulado pelas forças de opressão e repressão, ameaçando, mesmo por dentro, as máquinas revolucionárias”
– Gilles Deleuze
Um fetichista por metal, um assalariado e uma prostituta. Os arquétipos base de Tetsuo: The Iron Man (1989), ironicamente, mostram protótipos nos quais os cidadãos das grandes capitais super-industrializadas do final do século XX se estruturam: a obsessão pela máquina, o homem médio executivo e as vontades carnais do sexo. Esses três pilares da narrativos de Tetsuo, encontram um lugar comum para acontecerem: o corpo.
Enquanto muitas obras de cyberpunk e outros subgêneros da ficção científica são construídas sob uma cidade distópica estruturada por um Estado controlador, Tetsuo: The Iron Man (1989), trabalha o cyberpunk fundado no corpo. Com uma visão pós-estruturalista da significação da tecnologia, máquina, industrialização e tensões corpóreas. O corpo em Tsukamoto ressignifica o próprio cyberpunk, enquanto gênero, e assume o corpo como uma estrutura onde todas as possibilidades estão abertas, até mesmo da carne ser dominada pelo metal.
Cercado por metal, O Fetichista implanta em sua carne um pedaço da pilha de metais que o cercam. O experimento não ocorre como o esperado, e como uma doença, o metal se multiplica e se alastra por sua carne, o dominando gradativamente. Não há estatização da máquina, tampouco uma indústria, apenas o desejo pulsante pela modificação e potencialização das capacidades do corpo humano, um pós-humano micropolítico que abriga poder em suas moléculas de metal. Como uma doença, o metal toma conta do corpo do Fetichista, assim como acontece com o Assalariado, quando esse, atropela o Fetichista. Uma espécie de epidemia maquinaria se alastra transformando deformando corpos, com uma força de poder incontrolável.
Em Tetsuo (1989) o metal toma uma forma autoconsciente, ele vive, como um parasita que necessita do corpo para suprir suas necessidades de dominação e sobrevivência. O metal produz uma espécie de adestramento, reeduca o corpo para transformá-lo. Não existe máquina antes do corpo, apenas metal. A máquina é a fornicação entre o metal e a carne. O organismo de poder representado pelo metal, exerce a castração das vontades humanas e impõe uma utilidade belicista para esses corpos. Quando o Assalariado está com parte do seu corpo transformado em máquina, e tenta ter relações sexuais com uma prostituta (que também começa a ter seu corpo dominado pelo metal), as vontades humanas (sexuais) entram em conflito com as da máquina (destrutivas), transformando o sexo entre os dois em uma cena tragicômica em que o pênis se torna uma broca de metal, fazendo dessa uma das cenas de sexo mais grotescas e intensas do cinema.
A biopolítica pode ser definida como uma nova dimensão de poder que visa controlar a vida humana no campo biológico dos saberes. Para estabelecer controle sobre homem enquanto espécie é necessário entender, analisar e estudar esse corpo. Em Tetsuo (1989) a biopolítica é exercida através da máquina de uma maneira prática e bem mais crua. O corpo humano é assimilado gradativamente pelo metal que o domina, criando uma tecnologia própria de controle: a epidemia. Fetichista, Assalariado e prostituta se fundem em uma grande maquina constituída de metal e carne com o objetivo desejante da dominação bélica e aniquilação. Esses novos humanos tiveram seus desejos carnais suprimidos e substituídos pela vontade latente da maquina de se alastrar e disciplinar corpos humanos ao redor do mundo e transformar carne em metal. É uma nova fase de evolução da espécie, um novo passo em um mundo regido pela biopolítica do homem, as maquinas instalaram sua própria biopolítica, muito mais poderosa, que coloca em prática um controle em níveis moleculares.
Quando o experimento inicial do Fetichista acaba o transformando em uma máquina sub-humana, é possível entender o experimento como uma tentativa de subversão e descentralização do domínio maquinário-industrial, bem como, do poder biopolítico exercido pelo Estado (controle de natalidade, políticas de controle populacional, etc.) Mas no universo de Shinya Tsukamoto, o metal vive, e a máquina emana um poder epidêmico por si só. Esse maquinario biológico e desejante, se coloca aberto a qualquer tipo de possibilidade vida. Um desejo pulsante de se expandir e criar. Recusa-se quaisquer interpretações, sejam elas de natural moral ou política. A biopolítica torna a vida humana um ato político por si só, mas a máquina aniquila o controle biológico estatal sobre o corpo, destrói a biopolítica humana e cria uma biopolítica pós-humana, a maquina controla sua própria e nova estrutura, o corpo humano.
As maquinas desejantes do Anti-Édipo de Deleuze e Guattari, são os organismos que se conectam e formam o corpo humano, que é por sua vez, outra máquina inserida dentro de uma máquina social. Pode-se dizer que “o que define precisamente as máquinas desejantes é o seu poder de conexão ao infinito em todos os sentidos e em todas as direções.” Deleuze & Guattari.
A máquina se conecta, mantém fluxo e produz. Como uma super estrutura de uma indústria, a produção não cessa. Tudo o que se cria e se expande é através do desejo. As maquinas desejantes são sistematicamente organizadas para se encaixar na máquina social, através de papéis e funções sociais bem definidas. Em uma interpretação menos psicanalítica possível, o homem-maquina de Tsukamoto, que antes era um Fetichista e um Assalariado, é o resultado mais genuíno possível da libertação da maquina social. É uma maquina desejante anti-social e anti-sociedade, um grande abolicionista dos desejos sociais, um herói que alcançou a revolução em nível celular, rejeitando a carne e abraçando as possibilidades do metal.
A cidade foi feita para caminhar – o Andarilho de Tsai Ming-Liang
Por Gabriel Papaléo
Qual a reação possível de indivíduos em um espaço social de metrópole cuja arquitetura e disposição econômica não foram pensadas para a existência deles? Nos filmes do diretor Tsai Ming-Liang, especialmente a partir de Adeus, Dragon Inn (2003), os personagens andam muito por espaços vazios, por ambientes que parecem apocalípticos devido ao abandono, mas sem que percam uma localização evidente de cidade, como dejetos espaciais de um projeto de metrópole que se renova esquecendo dos seus passados. O corpo em manifestação social quase anestesiada seja pelo excesso, pela culpa, pelo peso da memória – isso varia dentro da filmografia do malaio radicado em Taiwan. O ritmo do presente em Hong Kong, Tóquio e Marselha não parece combinar com o ritmo do corpo, e ao passo que o diretor sabe da problemática nesse conflito Tsai também sabe que andar é importante, sempre, porque é um sinal em harmonia com a ideia de que o mundo está em movimento. O convite é a repensar a lentidão, porque a velocidade está na perspectiva, e de cidade em cidade encontramos a exaustão tanto do corpo quanto do ambiente que ele está inserido.
O movimento cênico inicial de Walker e Jornada ao Oeste é um recado visual das origens imateriais do Andarilho vivido por Lee Kang-Sheng, inclusa no zen-budismo no qual a tradição do monge está inscrita: a saída de ambientes similares à cavernas, com cores terrosas, remetendo quase a um primitivismo histórico das moradas humanas, recusando não apenas estímulos visuais contemporâneos como também sonoros, cujo som da cidade abafado em Walker e o silêncio de Jornada ao Oeste se comportam como prenúncios estéticos de um excesso. A saída psicológica e física do lugar cujos costumes e tradições imateriais têm mais signos evidentes no quadro para a metrópole, lugar onde esses costumes e tradições estão enterrados, por vezes até visíveis mas ainda tímidos e em minoria, pela passagem do tempo. E se existe uma certa lamentação pela perda dessa ideia por vezes abstrata da plenitude no que não vemos mas sentimos, nunca está associada a um signo de estagnação, ou de fatalismo na passagem material do tempo. O que interessa ao Andarilho é a resistência do flanar porque não é uma antítese da cidade, mas sim uma ressignificação do espaço. A importância da cidade ser ambiente pensado para pessoas interessadas na mudança dos tempos, no fluxo – estudado pelo zen-budismo – contínuo da vida, no qual o progresso seja uma ideia espiritual ao invés de materialista do capital. O choque da violência entre corpo e cidade, da cidade hostil com o corpo habitante de outro ambiente e outro tempo – não-cronológico, mas relativo.
E por um conflito de corpos não apenas vemos o Andarilho de Tsai em choque com o urbano, mas os próprios transeuntes que por ele passam. A câmera surge como um dispositivo fílmico de observação escancarado, desvelado diante dos habitantes das cidades filmadas, e interferindo nas suas vidas mesmo apenas colocada num tripé à média distância, raramente privilegiando closes, sempre expondo a distância cênica entre ela e os sujeitos – e entre os sujeitos e a cidade. Na Marselha de Jornada ao Oeste talvez seja a relação mais agressiva dentre os três filmes do Andarilho abordados aqui, talvez por ser a única dessas cidades situadas fora da Ásia; porque para Tsai existe um movimento político no flanar, uma ocupação espacial que outrora, e sob outra via, não seria possível. A estranheza dos pedestres com aquela ação em tela é por conta do movimento extremamente lento do Andarilho e do personagem de Denis Lavant em proporção ao ritmo da cidade, mas também por uma interação entre continentes distintos, entre culturas por vezes em choque, e até por ideais religiosos: o monge budista que enfrenta a cidade esgotando seu corpo pelo oposto do hiperestímulo em uma França majoritariamente ateia.
É nesse diálogo com as narrativas mais fragmentadas que Tsai começou a explorar em seus filmes rodados em digital – culminando na duração maior dos planos que a película dificultava (ou até impossibilitava) – que o Andarilho existe nesses filmes, na alta definição das câmeras expondo o desafio de um corpo ao extremo de suas possibilidades, as pequenas expressões que vazam no rosto quase impávido de Lee Kang-Sheng na sua meditação de tempos suspensos, no tecido que parece se mover numa velocidade diferente do homem que o traja. Parece que a cidade está toda cristalina quando filmada em planos abertos, iluminada e com todos os seus pequenos movimentos em foco, e no meio desse frenesi visual banalizado pelas experiências do cotidiano a figura do Andarilho entra como um dispositivo cênico que nos convida a olhar e experimentar uma nova dimensão do que é visto como banal para quem vive em metrópoles, quadros rigorosos que expõe a escala quase operática da cidade como também explicita o esforço cru de um corpo em movimento deslocado ao meio. Não à toa Tsai expõe esses filmes mundo afora em museus, ambientes cuja natureza é mais volátil, cujas possibilidades visuais são mais diversas que a unidade da tela escura projetando uma única perspectiva – e portanto mais similares ao jogo imagético que as metrópoles que filma propõe.
A distância corpórea dos homens na sauna em Wu Wu Mian, em ritual de resistência à cidade à suas próprias maneiras, parece guardar um canal metafísico que a urgência dos planos noturnos da Tóquio lotada dos pedestres em Shinjuku e do metrô em movimento brusco a observar uma cidade cujas luzes estão se desfazendo sob nossos olhos em registro digital não chama para si. É como se fosse o chavão da cidade que nunca dorme versus os homens que dormem como enfrentamento a ela, mediada pelo monge em seu tempo próprio, encontrando ambientes que procuram essa mesma dinâmica – talvez a exclusividade de noturnas aqui seja um sinal de que é o horário do dia que mais se pensa o absurdo do fluxo irrestrito da cidade, o momento diária e também ritualístico da ansiedade da privação do sono, da dificuldade de conciliar o ritmo acelerado com a desaceleração proposta pelo corpo ao pedir repouso. É a jornada mais abstrata dos três filmes, por partir de um choque de sentimentos, de exaustão política refletida no ciclo corporal, cuja geopolítica está em segundo plano mas tão relevante e mapeada quanto nos outros.
Em Walker, o Andarilho passa por anúncios múltiplos e coloridos, por mercados ao ar livre, e filmado como silhueta em meio aos habitantes passando por uma ponte provavelmente de algum transporte coletivo, e nunca deixa de estar solitário nos quadros; não parece haver distinção tão grande entre os planos abertos afastados do monge na cidade noturna e vazia para os planos mais ocupados pelo fluxo de pedestres, porque o que o enclausura diante de Hong Kong é uma solidão que não interpreta multidões e vazios sob diferentes óticas, a impessoalidade surgindo equivalente em ambas as dimensões. O momento de maior impacto, quando este é filmado frontalmente em meia distância ocupando uma rua lotada, é reconhecido por transeuntes que param ao seu redor, o filmam, no maior diálogo que uma interação assim pode proporcionar. Se em Hong Kong e Tóquio os obstáculos são íngremes, de proporções diferentes, ambientes fechados e vazios com os mesmos estímulos visuais caóticos, em Marselha os entraves são em planície, mais turísticos, com corpos que parecem mais interessados em uma investigação/contemplação do que está ao redor, mas também aparentemente desconectados para com o outro.
Em Hong Kong o monge termina sua jornada comendo algo após ser negado o seu acesso a um lugar, em Tóquio é através de um sono em uma cápsula que lhe aliena do ambiente – ambos rituais solitários de sobrevivência, mas também de autoconhecimento dada a metafísica tão convidativa desses filmes. Mas em Marselha a jornada termina na cidade literalmente de cabeça para baixo, com o monge e seu seguidor ocidental em meio aos transeuntes, todos dispersos no ritual do flanar, sem apreensão individual, sem conciliação entre o pessoal e o público. A metrópole na França está fadada ao peso do turístico, da cidade-museu, do urbano não funcional ao humano, do ambiente cujas motivações não são de um trânsito de acasos mas a um ritual muito marcado e formulado, assimilado pelo status que o flanar com viés cultural traz.
O esforço corporal deixa de ser do monge para ser de todos os outros corpos anônimos na cidade, impessoais, diante de um ritmo imposto a eles por uma dinâmica de sociedade ao redor do trabalho, quase oposta a ideia do Andarilho a dançar no urbano. No início dos três filmes o extremo e o cansaço podem ser características associadas ao monge protagonista, mas ao final a impressão que fica é que exaustos estão os corpos em movimento desordenado e perdido que testemunhamos com frequência ao redor dele.
Kinoglaz Peeping Tom: suturas
Por Bernardo Oliveira
Em “Nós: variações do manifesto” (1919), o Conselho dos Três — capitaneado por Dziga Vertov, sua esposa Elizaveta Svilova e seu irmão Philip Kaufman — assevera que o futuro da arte cinematográfica estaria condicionado à aceleração de sua morte. “Nós afirmamos que o futuro da arte cinematográfica é a negação do seu presente. A morte da ‘cinematografia’ é indispensável para que a arte cinematográfica possa viver.” Opondo-se ao campo semântico que circunscrevia nesta época o termo “Cinema”, cuja morte o Conselho previa ainda no curso da década seguinte, Vertov propunha o Kinokismo, cujos preceitos diferiam radicalmente dos princípios norteadores da “arte sem futuro” no contexto norte-americano. Para além de um suporte meramente narrativo, o Kinokismo consistia “na arte de organizar os movimentos necessários dos objetos no espaço, graças à utilização de um conjunto artístico rítmico adequado às propriedades do material e ao ritmo interior de cada objeto.”
No contexto pós-revolucionário russo, o Conselho propunha uma clara deriva em relação à perspectiva eisensteiniana sobre a arte cinematográfica, a busca pela especificidade do cinema segundo uma sorte de acoplamento técnico. Sua autonomia em relação a outras artes estaria diretamente ligada à substituição do drama e de seu fator “psicológico” inerente, relativo à imprecisão do olho e do corpo humanos, pelo cinematógrafo, o dispositivo maquínico revolucionário capaz de captar os registros invisíveis ao olho humano, transformar a imaginação coletiva e, com isso, a experiência de mundo. Articulado à precisão da câmera e da moviola, o olho humano poderia não só captar e regular os movimentos invisíveis da realidade — por exemplo, a opressão, a superação — como também abrir caminho para outras formas de percebê-la e, por consequência, transformá-la.
Pela natureza transversal de seu movimento, o otimismo teórico de Vertov extrapolava o pensamento cinematográfico e se imiscuía nos debates políticos e científicos com suas reflexões que, sob certos aspectos, assemelhavam-se àquelas propostas pelo Futurismo e por todo o sentimento triunfalista que a ascenção dos valores tecno-científicos tornou unânime na Europa do final do XIX. Foram fundamentais suas projeções acerca de um “homem do futuro”, imune à morte e às imperfeições do corpo, da percepção, do entendimento: “o ‘psicológico’ impede o homem de ser tão preciso quanto o cronômetro, limita o seu anseio de se assemelhar à máquina.” Vale segui-los adiante em uma espécie de guinada futurista, e, a depender do ponto de vista, eugenista: “Pela poesia da máquina, iremos do cidadão lento ao homem elétrico perfeito.” A busca pela concretização do “homem perfeito” remete a um consenso de época, de caráter multidisciplinar, relacionado à perceptível tendência para a fixação de modelos ontogenéticos. Servindo de paradigma, tais modelos se constituiriam como uma estratégia eficaz de reprodução da normalidade, garantindo o enraizamento da ideologia tecno-científica que marcou a virada do XIX para o XX.
A ciência se utilizou das potencialidades do registro cinematográfico, como na produção do neurologista romeno Gheoge Marinescu, enquanto cineastas flertavam com os anseios de depuração, aperfeiçoamento técnico e enaltecimento da própria raça. Não raro percebemos os traços indisfarçáveis das linhas da produção cinematográfica atravessando o campo de batalhas políticas de cunho estatal, ou científicas, inseridas como ferramenta nos gabinetes, centros técnicos e laboratórios de pesquisa. De tal forma que o problema do racismo científico excede as fronteiras da própria ciência, reproduzindo socialmente toda a cornucópia de falseios nos quais se baseiam os modelos de segregação racial. O cinema criou suas ficções com ampla repercussão social e cultural, inclusive valendo-se de assuntos que fortaleciam as razões para a eclosão de movimentos fascistas e racistas nos Estados Unidos e em países europeus. Antes da biopolítica, antes mesmo da necropolítica, pudemos acompanhar, por dentro de suas entranhas, as sendas e veredas por onde se entrecruzaram o registro da imagem, as ciências e o racismo.
O modelo do “homem perfeito” egresso do Futurismo reverbera por todo o discurso Kinok, através de uma apologia do homem que detém o poder de subtrair-se à própria morte. Mas de que perspectiva o Kinokismo nos fala sobre a vida e a morte? A experimentação nos limites da estética como forma de purgar os efeitos libidinais de uma civilização autofágica? O acoplamento da percepção aos objetos técnicos como forma de transformar uma realidade, ampliando-a do ponto de vista da expansão do campo de experiências? Ou a utilização servilista da máquina assassina e opressora, que só concretiza seu poder através da eliminação do outro? Este último caso parece se identificar com Mark, o Peter Pan atormentado de “Peeping Tom”, filme dirigido em 1960 pelo cineasta britânico Michael Powell. Se pode ser considerado também como um “homem com sua câmera”, não me parece aleatório que sua relação com o objeto técnico seja atravessada por algumas demandas de ordem psico-fisiológica. O esquema que o filme de Powell propõe não é tão complexo, mas o resultado extrapola os fatores exclusivamente técnicos ou psíquicos e nos impele a uma análise tecno-fisiológica do que este homem faz com sua câmera.
Quando criança, seu pai, psicólogo e estudioso do comportamento humano, o atormentava registrando em detalhes todos os momentos de sua vida, focando particularmente nos momentos em que Mark sentia medo. Já adulto, ele não resistirá ao impulso de causar o medo para poder captá-lo com seu objeto técnico, no caso, o cinematógrafo. Enquanto, do ponto de vista do Conselho, o olhar subjetivo é empecilho para uma apropriação potente do dispositivo audiovisual — o olho percebendo a realidade através de uma plasticidade regulável possibilitada pela câmera —, para Mark a câmera se constituirá como um prolongamento psiquíco, um disco rígido externo capaz de reencenar e ajustar provisoriamente os sentimentos negativos que o acometem quando revive os momentos torturantes de sua infância.
O fascínio pela morte tenderia a destacar-se da pulsão de morte, a primeira remetendo ao efeito libidinal associado a um regime afetivo que goza ante a anulação de toda existência (pois nunca concretizamos a morte como uma experiência). Ao passo que a pulsão de morte encena uma contradança com o instinto de vida, lançado-nos em uma existência determinada por aquilo que Espinosa chamava conatus, a potência em perseverar em seu próprio ser. Em decorrência deste entrelaçamento entre vida e morte, eclode um conjunto de relações, de trocas e equivalências libidinais, que oscilam entre a sustentação das contradições do capitalismo e a eclosão de seu mais terrível aspecto pulsional: niilista, assassino, destrutivo — por vezes, auto-destrutivo. Atentando para a diferença de natureza entre fascínio e pulsão, chegamos à conclusão de que o primeiro, como processo isolado, tende à satisfação neurótica, ao passo que o segundo se afigura de forma inescapável a toda existência.
O Kinokismo percebe o mundo através do dispositivo cinematográfico com o objetivo de criar movimento, o que implica em escapar do caráter indireto da representação e fazer com que aquilo que escapa à nossa percepção “se torne visível”: suturas entre a realidade disponível e a força de realização concreta atravessada por uma imaginação ampliada. Substitui, assim, a máquina psicanalítica estruturada sobre a relação consciente/inconsciente pelos efeitos criadores do homem-máquina. Ao passo que Mark, tomado pela tendência à satisfação neurótica, só vê a si mesmo e, por razões diferentes, também se transforma em uma espécie de “homem-máquina”. Mas uma máquina incapaz de criar movimento, máquina feminicida que silencia, oprime, massacra e se alimenta do medo alheio. Em sua aparente vulnerabilidade, Mark encontra força na máquina: introjeta a câmera, torna-se câmera e vice-versa. A câmera também ganha uma consciência, faz-se de armadilha, captura suas presas sempre em situação vulnerável, acolhe a covardia alheia, faz dessa covardia a sua própria: preconceito de câmera. Seu movimento é negativo porque simula a interiorização da violência e concretiza uma realização escabrosamente dialética. A câmera como máquina de matar e, através do feminicídio, uma ferramenta de ajustes e auto-correções psíquicas. Uma máquina assassina que se limita a buscar incessantemente a sutura canalha para uma ferida que permanece irremediavelmente aberta.
Editorial – O Rito de sentar-se à mesa
Senta-se à mesa.
Ao comentar a análise de Giuseppe Lo Duca sobre erotismo e cinema em L’Érotisme au cinéma, André Bazin conclui que o olhar do autor enxerga a fonte do erotismo cinematográfico nos traços comuns ao espetáculo cinematográfico e ao sonho pela passagem: “O cinema está próximo do sonho, cujas imagens acromáticas são como as do filme, o que em parte explica a menor intensidade erótica do cinema em cores, que de algum modo escapa às regras do mundo onírico”.
Abre-se o cardápio.
O texto de Bazin, de 1957, parece incompatível com o ideal dos desejos da carne no cinema contemporâneo. O sonho, hoje, é de cores saturadas, não pela certeza do cinema a cores e variá-lo parece um caminho justificável, mas levado às dúvidas de uma afirmação mambembe no qual o sentido e a sugestão são mais importantes que a imagem. Ela parte de uma afirmação, de uma força insolúvel na qual filmes como Cam e Apesar da Noite carregam – ambos comentados nesta edição.
Faz-se o pedido.
Dois exemplos muito atuais da função da carne na tela: Em Sedução da Carne (2018), Julio Bressane exibe o básico do cinema: luz e sombra. Num simbolismo rasteiro considerando o tema da edição, digamos que seja o feijão com arroz do processo. Mas, ao lado, a carne, literalmente – industrializada, em estado de putrefação, que nos persegue e nos domina. O reducionismo de Bressane sobre a indústria, a morte, os cineastas, o dispositivo e as funções do corpo como símbolo vão de encontro com a proposta desta edição da Multiplot! Em Climax (2018), Gaspar Noé em sua metodologia perfumada e artificial, coloca o sistema – corpo – e seu funcionamento em constantes tropeços em entidades morais – família, religião, drogas, etc. O corpo, aquele que é vítima infecções, que possibilita o gozo e aceita a morte – resumindo, o de Cronenberg – nunca pareceu tão em voga nos tempos em que o voyeurismo é tão popular.
A sexta edição da Multiplot! no formato de revista parte de uma noção contrária à associação do discurso da carne: o corpo como bacia dos desejos no cinema de Todd Haynes – poderia ser o córrego para a discussão do cinema de Catherine Breillat e Jean-Claude Brisseau e seu lado sensorial, mas o que se discute é o coração. O corpo e a cidade que poderia passar pela noção nefasta de Jia Zhang-Ke ou Brillante Mendoza decorre para Walker, o personagem andarilho de Tsai-Ming Liang, uma visão mais intimista e que está em paralelo à análise de Peeping Tom (1960) de Michael Powell no pesadelo do homem urbano, aquele que acopla suas fantasias ao horror – e a câmera como extensão deste homem, concomitante às teorias de Marshall McLuhan. Este que tem em David Cronenberg o seu grande representante e em Crash (1996) o seu apogeu. O personagem andarilho de Tsai-Ming Liang leva ao diretor a questionar as assimetrias da carne, sobre corpos que ocupam o espaço urbano e exercem funções primordiais e que são impedidas de seguir o fluxo natural por questões cruéis, próximas ao canibalismo. O texto sobre Bush Mama é mais evidente sobre como o homem ainda é, no fim das contas, irracional.
Se Crash, um dos grandes filmes de gênero a intuir o corpo a partir de outro extremo, vale lembrar de Stuart Gordon, um grande amante das vísceras e sangue que vai além do fetiche e a carne, além do desejo, consome a vida, à espera da morte como prato principal indesejado. Abel Ferrara e Stan Brakhage, cada um à sua maneira, discutem a congruência do palpável e o sobrenatural. Vale lembrar que Ferrara sempre conta com a arma como extensão. Esta edição traz textos sobre o cyberpunk e a máquina (Tetsuo, 1989), corpos em colisão (Crash), a webcam como arma de prazer e horror (o já citado Cam), a câmera como arma mortal em Peeping Tom e o sexo e violência surrealista discutido por Adrian Martin, que vai de Franju e Buñuel a Lynch e os filmes de horror.
Sentar-se à mesa, portanto, é uma questão que engloba grandes conflitos filosóficos sobre o que e quando se consome.
Vira-se a página. Agora é degustar.
Bon appetit.
Qual pedaço? – Sexo Surrealista e Violência
Por Adrian Martin
1. Objetos Misteriosos
Perto do início de Feeling Sexy (1999), único filme até agora feito pela artista australiana Davida Allen, Vicki (Susie Porter) analisa um corte médico, um espécime cerebral em vidro, e indaga: “O que é a imaginação?”. Esta é uma das grandes questões subjacentes e anima o impulso surrealista no cinema. Eu poderia expressar isso de maneira diferente: qual é a parte invisível de um objeto e, ainda mais particularmente, de nossa experiência desse objeto? A vida cotidiana é cheia de objetos que, em sua aparência exterior, trazem pouco do que significam para nós: as memórias que desencadeiam, os incidentes em que estão envolvidos, as emoções que catalisam por meio de uma cadeia de associações internas. Para chegar a essa realidade mais profunda de aparências ocultas, você tem que contar uma história, pintar uma imagem, cunhar uma metáfora – ou fazer um filme.
E nós que estamos fazendo todo esse sentimento – nós também somos objetos misteriosos; Podemos parecer tão inertes ou inanimados quanto os objetos físicos ao nosso redor. O que é nesta massa de sangue e ossos, de órgãos e vísceras, que parte de tudo isso é materialmente nosso? Qual é o verdadeiro pensamento e sentimento, o amor e o sofrimento? Onde está o reino sensual, o reino poético, o reino criativo do ser humano? Qual é a imaginação nesse cérebro miserável e seccionado sob o vidro?
A própria palavra surrealismo, como é bem conhecido, significa um super-realismo, um realismo elevado. Não significa, em primeiro lugar, irrealismo ou anti-realismo – um equívoco comum. O alicerce da arte surrealista é, em muitos casos, extremamente realista. Jean Cocteau refletiu certa vez sobre sua experiência de fazer Orphée (1950): “Quanto mais perto você chega de um mistério, mais importante é ser realista”.
Georges Franju, com espírito semelhante, prefaciava seu curta-metragem La première nuit (1958) – um conto lírico de amor vislumbrado e perdido entre crianças, quando os respectivos trens que eles se encontram e depois passam longe um do outro em um metrô – com essa passagem dos autores originais de Vertigo, Pierre Boileau e Thomas Narcejac: “Um pouco de imaginação para que nossos gestos mais comuns se tornem carregados de um significado inquietante, pois a decoração de nossa vida cotidiana dá origem a um mundo fantástico”.
Franju também refletiu sobre a experiência inerentemente surreal da mudança de casa: de repente, os objetos domésticos se tornam estranhos e hiper-realistas, à medida que ele os remove de seus pontos habituais e os embala; espaços estranhos e zonas da casa – um canto empoeirado, um local esbranquiçado onde uma imagem pendia uma vez – são notados pela primeira vez. É a apreensão de um mundo surreal e estranho sob o mundo dado ou dentro dele.
Franju foi um dos vários artistas modernos que retornaram ao grande amor dos surrealistas: os seriados de crime e fantasia feitos na era silenciosa por Louis Feuillade, longos filmes (ou séries em episódios) nos quais assassinos em trajes de homens-sapos pulam pela verdadeira Paris e cafés com contracenantes involuntários sentados à pouca distância. A homenagem específica de Franju a Feuillade foi seu filme Judex (1963); mais recentemente, Olivier Assayas retornou a outra série de Feuillade, The Vampires (1915-1916), em seu Irma Vep (1996). Alain Resnais nutriu seu próprio projeto nesse sentido, comentando: “As pessoas dizem que há uma tradição de Méliès no cinema e uma tradição de Lumière: eu acredito que há também uma corrente de Feuillade, uma que liga maravilhosamente o lado fantástico de Méliès com a realismo de Lumière, uma corrente que cria mistério e evoca sonhos pelo uso dos elementos mais banais da vida cotidiana (entre os comentaristas de Resnais, Richard Roud chama essa conjunção de fantasia e realismo, estilo Magritte, precisamente de “o método surrealista”).
Comecei este devaneio com aquele espécime cerebral de aparência curiosa em Feeling Sexy porque aponta um conjunto de termos e sensações que são cruciais para o surrealismo. Primeiro, a filosofia deste mundo material nosso em relação a outro mundo – não um mundo em outro lugar, no céu ou no inferno ou sobre o arco-íris, mas aqui mesmo, dentro dos recessos secretos do mundo dado. Segundo, a noção de uma força animada, alguma emoção ou desejo que respira vida nas estátuas de pedra da realidade. Histórias surrealistas são tantas vezes uma forma de rejuvenescimento, reavivamento, um despertar para a vida ou uma reabertura para as maravilhas do mundo cotidiano: da alegre comédia de ficção científica de René Clair da era silenciosa, Paris qui dort (aka The Crazy Ray, 1927) – em que um laser pode congelar e descongelar o mundo em suas trilhas – para as visões políticas dos irmãos Taviani em filmes como A Noite das Estrelas Cadentes (1982) e Kaos (1984), no qual o som da música, viajando magicamente através da terra ou do mar, pode agitar um indivíduo, uma comunidade ou uma nação inteira em música e dança instantâneas e ação revolucionária, num transe febril e possuído.
Vamos considerar agora não um filme surrealista certificado, mas o tipo de filme que os surrealistas de ontem ou de hoje poderiam gostar de assistir: um filme de terror de Hollywood, The Devil-Doll (1936), dirigido por Tod Browning (que fez o inquietante clássico Freaks em 1932), derivado de uma história de Erich von Stroheim. Uma cena inicial demonstra o plano maligno e visionário de um cientista louco do estilo Dr. Frankenstein, que sonha em encolher a população do mundo inteiro (por razões não especificadas em termos racionais). O que eu acho irresistivelmente surrealista neste espetáculo? Em primeiro lugar, a louca obsessão magnífica envolvida: encolher o mundo! E porque não? Eu adoro a forma como essa suposta racionalidade científica passou completamente para a irracionalidade quase mística: isso é ciência como vodu, ou como truques de mágica de circo (e, aqui novamente, vemos aqui o legado dos filmes de truques de Méliès). Então, eu amo os efeitos especiais em dois registros: tiros nos quais uma figura humana foi inserida em uma imagem normal para criar um desequilíbrio de escala; e aqueles em que enormes conjuntos foram construídos para dar a ilusão de um vasto mundo enorme superando as matérias encolhidas. Eu também adoro os in-between shots: momentos em que atores estão segurando bonecas inanimadas ou adereços, ou aplicando pedaços de algodão apenas fora da tela, abaixo da linha do quadro.
Não me entenda mal: não estou dizendo que os efeitos especiais analógicos de 1936, porque eles não são tão simples quanto os efeitos digitais em Star Wars: Episódio 1 – A Ameaça Fantasma (1999), são risíveis. Muito pelo contrário: quando você consegue ver os fragmentos de artifício e ilusão, então o efeito estranho, onírico e poético – o efeito surrealista – pode ser aumentado em dez vezes. Claude Ollier uma vez elogiou os efeitos especiais algo desajeitados e óbvios no King Kong original (1933) ao observar: “Tão verdadeiro é que o mundo dos sonhos é um dos efeitos especiais, com deslocamentos ópticos, quebras sequenciais e descontinuidade geral”. Evocou “um universo visual que percebe perfeitamente o efeito de ‘colagem’ básico de qualquer visão de pesadelo: espaço pontilhado e tempo pontilhado, lacunas, sobreposições e incompatibilidades em ação, zonas de duração imponderável, vazias, nas quais apreensões de irrealidade caem de cabeça”.
Espaço pontilhado e tempo pontilhado – essa frase me lembra uma “inscrição” do surrealista belga Louis Scutenaire, que certa vez pensou: “Meu gosto por Popeye, o marinheiro, nos desenhos de Max Fleischer, deve muito às liberdades que ele toma. Há uma crença muito cinematográfica de que o espaço e o tempo devem ser considerados como crenças humanas estimadas – e, consequentemente, descarrilados e subvertidos. É por isso que os cinéfilos surrealistas têm tal gosto pelas muitas variedades do cinema B; porque podemos encontrar lá (intencionalmente ou não) um tipo de associação livre e hiper-lógica entre peças e pedaços de papelão, uma montagem maluca entre peças de enredo, personagem e ideia.
A boneca-diabo é explicitamente sobre o tema da animação, o sopro da vida. E que vida isso traz! Quem é essa mulher na cena de demonstração, meio humana e meio boneca, esticando os braços e bocejando como se tivesse acabado de acordar de algum sono de beleza voluptuoso e sobrenatural? Sua imagem alongada – como a imagem de seu corpo envolto em lã, energizada pela eletricidade – é uma daquelas visões impressionantes, desconectadas e excessivas que o cinema surrealista adora apresentar, e que o gosto surrealista gosta de descobrir. Imagens (ou melhor, eventos de som da imagem) que saem do filme à mão, sabotam o enredo, prendem a situação e congelam as inter-relações psicológicas dos personagens, para que algo incandescente e verdadeiramente fenomenal surja, fenômenos de absoluto , estranheza e intensidade máximas.
Em todo o cinema, minha descoberta surrealista favorita desse tipo está em um trabalho silencioso do filme de Fritz Lang, Spione (1928). Uma cena começa, não sabemos onde, como ou por que – uma moldura vazia em algum espaço não identificado. Então, um braço se abaixa lentamente em direção à estrutura: o braço de uma mulher, impecavelmente vestido, polido e apresentado, com a mão segurando uma pequena e delicada pistola prateada. O gatilho é suavemente apertado e um tiro voa. Em algum lugar no espaço que ainda não podemos ver, dentro de uma maquinação de enredo que ainda não conseguimos entender, um cara acaba de levar uma bala no coração. Aqui, em um momento delirante e sublime, é uma boa iniciação nos anais do sexo e da violência surrealistas.
2. Um modo surrealista de ver
O desejo, por muitos anos, teve uma má imprensa na teoria do cinema. O olhar e suas perversões associadas: voyeurismo, escopofilia, fetichismo. Esse tipo de visão vilificada é um olhar distante, faminto, vazio, indiferente, irracionalmente brutal. É o olhar dado por perseguidores, slashers e psicopatas por trás das folhas das árvores nos filmes de Sexta-feira 13 (1980) ou Halloween (1978) – onde a câmera gentilmente toma o lugar dos olhos de perigo estranho do assassino invisível, um olhar dirigido a colegas em dormitórios, crianças ao redor da fogueira ou ao nossos videocassetes. Muito antes da série Pânico de Wes Craven (1996-), os filmes de Brian De Palma dos anos 1970 e 1980 já estavam remetendo essas convenções do “olhar faminto” podre – e, pode-se sentir, igualmente enviando as teorias solenes que estavam ansiosas comentando sobre eles.
A visão surrealista é uma maneira diferente de ver. É criativo reinventar o que se vê. Investe-se intensidade e mistério na menor coisa, ou na menor parte de uma coisa: uma boa definição de fetichismo, se você puder separar esse termo das teorias freudianas da ansiedade de castração de um menino. A maioria dos artistas são fetichistas em um sentido positivo – certamente, os artistas surrealistas são. Eles também são perversos em um sentido positivo. Pois o que é perversão, exatamente? É a religação, a re-canalização das peças do mundo, as peças da ordem social, através de um novo e diferente tipo de lógica. Crash (1996) de David Cronenberg, por exemplo, não é um testamento triste, monstruoso, violento, ofensivo e doentio; Não acho isso frio, desumanizador ou misógino, como alguns o fazem. A visão de Cronenberg é perversa em um sentido criativo: imaginar, e imaginar conexões sem precedentes entre pedaços de corpos e pedaços de máquinas, entre estados emocionais e desejos num mundo onde personalidades e interações entre personalidades (“relacionamentos”, costumávamos chamá-los) foram além do choque, do trauma e da alienação em alguma zona límpida e misteriosa.
A maneira surrealista de ver tende a andar de mãos dadas com a criação e a chegada de novos mundos – mundos da tecnologia, mídia, showbiz, glamour e celebridade. O surrealismo gosta de qualquer estrato social que já esteja fora do chão, elevado e exagerado, em uma escada para o céu ou um elevador expresso para o inferno. A visão surrealista muitas vezes é trabalhada nos enredos e situações dos filmes de inspiração surrealista; como determinados personagens privilegiados olham, veem e nos dirigem e nos orientam nessa mesma direção sonhadora.
Os filmes de Federico Fellini, por exemplo, gostam de adotar um tipo de visão perturbada, uma percepção sensorial intoxicada. Em Toby Dammit, seu episódio de 35 minutos para a antologia de Edgar Allan Poe, Spirits of the Dead (1968), Toby (Terence Stamp), uma estrela de cinema inglesa ultra-decadente, é entrevistado em um programa de TV. Fellini, aqui, enlouqueceu a percepção sensorial de Toby, ao mesmo tempo em que a personificava e incorporava em sua linguagem de imagem e som do próprio filme. O espaço do mundo, de qualquer lugar, local ou cenário, explode em mil fragmentos cintilantes. Mais uma vez, espaço pontilhado e tempo pontilhado. Fellini dirige este set de entrevistas na TV para a descontinuidade máxima: Toby é banhado por uma luminescência branca e sobrenatural, enquanto tudo ao seu redor está girando incessantemente, movendo-se, navegando, rastejando. Cada foto, cada imagem, é como sua própria ilha atomizada. Os rituais arcanos do showbiz moderno – como o anfitrião do programa desaparecendo abaixo da linha de enquadramento da câmera de TV, avançando em suas mãos e joelhos – tornam-se um momento de visão visionário para Toby.
Tudo é artifício e ilusão, todas as costuras aparecendo – assim como a risada enlatada que vemos e desaparece manualmente, duas décadas antes de aparecerem dispositivos semelhantes em O Show de Truman (1998), de Peter Weir. O estilo de camerawork e corte de Fellini se agarra e, em seguida, trunca abruptamente tudo no meio da viagem ou no meio do gesto, em movimento incessante e inquieto, não necessariamente orientado ou motivado pela ação dos personagens. O diálogo pós-sincronizado está lá, como em um filme de Orson Welles, através das imagens sem sempre respeitar os movimentos dos lábios dos atores. Este típico herói Felliniano – uma alma frágil e perdida, flutuando em um mundo de aparências giratórias e sedutoras, que são muitas vezes, na verdade, uma infinidade de imagens de si mesmo – também é propenso a visões internas emprestadas do cinema de terror, como a notável menininha que o assombra no conto. No geral, o que recebemos aqui não é simplesmente conteúdo ou preocupações surrealistas, mas uma textura surreal mais voltada para as superfícies de um mundo moderno e maluco.
Uma cena relacionada, de uma forma ainda mais cômica, vem da minissérie de TV de três partes de Raúl Ruiz, Manoel na Ilha das Maravilhas (1984, com uma curta edição de longa-metragem intitulada The Destinies of Manoel, em 1985). Série feita, de fato, para crianças, que há muito tempo são uma aspiração de artistas surrealistas de todos os tipos (Jacques Brunius lamentou que, já no final da década de 1940, estava “se tornando quase impossível compor um programa para crianças”). A cena oferece uma cerimônia surreal, mais uma vez em um cenário moderno do showbiz: uma transmissão de rádio ao vivo. Como muitas vezes no trabalho de Ruiz, a cena nominal aqui é mais como um universo constantemente encolhendo e se expandindo como o corpo de Alice no País das Maravilhas; está constantemente se ramificando em outros mundos alternativos, transformando-se, metamorfoseando-se. Como Fellini, Ruiz emprega o máximo de voice-over e pós-sincronização para maior liberdade de manipulação do som, de modo que o estranho texto verbal flutua acima ou abaixo da ação. Esta transmissão de rádio, ocorrendo no espaço estranho e indefinível do domínio de uma menina talentosa, é introduzida no filme por uma voz desencarnada que vem através de um rádio doméstico, assim dá um salto instantâneo para outro filme virtual acontecendo longe da trama principal. As transições de cena são frequentemente traiçoeiras, dessa maneira, no trabalho de Ruiz.
Depois, há os jogos visuais que asseguram a expansão infinita do espaço e a fluidez ou maleabilidade de todas as figuras e objetos: as pessoas se tornam sombras nas paredes, uma lente Split Diopter permite justaposição de um primeiro plano extremo e um fundo extremo, com uma linha difusa ou zona no meio da tela; ângulos malucos – como o repórter de rádio visto através das curvas da pista de corrida de carros modelo – abstraem, multiplicam e redefinem as possibilidades espaciais em cada turno. Como em Fellini, tudo aqui está em movimento perpétuo, incluindo uma criança flutuante e levitando (a quem você nunca vê em toda a extensão), além de vários personagens sendo rodados em cadeiras.
Em Manoel na Ilha das Maravilhas, como um todo, o enredo continua se reiniciando, dobrando de volta, oferecendo novas versões de si mesmo. Em particular, a história é uma variação selvagem do que a psicanálise chama de “romance familiar” – a história arquetípica em que uma criança procura por sua identidade na forma de pais biológicos (que, em Ruiz, continuam transformando-se em diferentes mas com pessoas parecidas, como se todas tivessem sido fisgadas por alienígenas), e para qualquer lugar chamar uma casa estável ou sólida ou um ponto de origem. Mas o garotinho Manoel, perdido em um fluxo constante de possíveis famílias e lares, é o eterno órfão surrealista: como as crianças em Moonfleet de Lang (1955) ou A noite do caçador (1955) de Charles Laughton – dois exemplares inebriantes e inclassificáveis de Hollywood, filmes amados por cinéfilos surrealistas – Manoel é transportado de uma estranha casa improvisada para outra, para campos mágicos e cavernas assustadoras, onde a única paisagem que pode dominar ou sintetizar sua jornada é o mar, que é a imagem favorita de Ruiz do inconsciente de fluxo e auto-abandono.
3. Política Surrealista
Dirijo-me a outro diretor contemporâneo mais conhecido, cujos filmes também são frequentemente sobre identidades e famílias em crise e fluxo: David Lynch. Lynch é uma figura chave para uma sensibilidade surrealista contemporânea, simplesmente porque, em primeiro lugar, confia plenamente em sua intuição inconsciente. Ele descreve como as imagens, personagens, eventos, gestos e tramas de seus filmes surgem de um processo controlado de devaneio sonhador, meio adormecido e meditação profunda e suspensa – assim como Ruiz escreveu outra de suas obras, City of Pirates (1983), usando uma técnica que ele descreveu como uma “sesta experimental”, fazendo-se dormir todas as tardes, em algum lugar estranho da casa, segurando um objeto que ele achava que poderia usar no filme, como uma bola saltitante de uma criança ou uma estátua. Como o crítico de influência surrealista Raymond Durgnat uma vez sucintamente colocou em relação a Veludo Azul (1986): “A psicologia não é sobre o que o filme trata: o enredo é apenas um pretexto para um sonho. Ou melhor, um spin-off de um sonho. Tenho certeza de que Lynch sonhou com esse filme primeiro e planejou depois”.
Lynch faz suas narrativas e personagens, seus temas e humores, subservientes a uma lógica onírica que permanece verdadeira e parece correta, mas não pode ser totalmente articulada ou conscientemente expressa pelo artista. Essa é a diferença entre Lynch e alguns outros artistas que lidam com fantasia (como Neil Jordan ou Sally Potter), onde as lógicas dos sonhos parecem muito conscientes: racionais, teorizadas e pré-programadas na maneira como aparecem e modulam na tela.
Lynch é importante, também, pelos argumentos e debates que ele incita. Seu surrealismo é flagrantemente incorreto, na maneira insolente, desobediente, às vezes alegremente nerd e adolescente que a arte surrealista costumava ter. Como os filmes de Cronenberg, que também traçam lógicas inconscientes profundas e misteriosas, Lynch acaba se tornando provocativo na forma como eles usam e abusam das fixações políticas atuais – muitas vezes puritanas em seu fervor ideológico – e agitam os nós neuróticos e tensos no discurso público. Seus filmes muitas vezes me lembram desse famoso slogan surrealista: “Bata na sua mãe enquanto ela ainda é jovem”. Imediatamente, nós pisamos naquele campo minado de crítica política do surrealismo: particularmente o que acusa o surrealismo em geral, e alguém como Lynch, em particular, de ser nada mais do que um foco de fantasias masculinas construídas sobre os corpos irreais e ilimitados das mulheres.
Há alguma verdade nesta queixa. A recorrência de figuras más da mãe e mulheres violadas em trabalhos de Lynch, incluindo Twin Peaks e Lost Highway, é frequente demais para ignorá-las. Figuras femininas frequentemente figuram como projeções psíquicas dos personagens masculinos: sob controle até virar a mesa e começar a existir independentemente dos homens, o que regularmente desencadeia revelações conspiratórias, paranoicas e até mesmo apocalípticas. No mínimo, teríamos que admitir que Lynch produz uma fina poesia e modela um grande cinema a partir desse nexo de projeções de fantasia e pesadelos de castração – e ele investe seus estereótipos de gênero com mistérios e ambiguidades.
Considere esta passagem de duas cenas consecutivas no Veludo Azul. Jeffrey (Kyle MacLachlan), o herói geek do tipo boy-scout, divide as mulheres em sua psique em dois tipos radicalmente opostos: o tipo limpo, loiro, virginal, Sandra Dee (Laura Dern como Sandy) e o misterioso, a voluptuosa, prostituta maternal (Isabella Rossellini como Dorothy) – sendo esta última assustadora como todo o inferno, mas oferecendo uma iniciação no lado deliciosamente escuro da rua. Lynch cria um tipo diferente de estilo e textura para as cenas que envolvem essas mulheres: as cenas de Sandy são todas de nostalgia dos anos 50, malta de malhas, normalidade em tons pastel – mas não é uma normalidade que você possa realmente gostar ou endossar ou acreditar – enquanto as cenas de Dorothy desencadeiam a ideia completa do surrealismo artruso: objetos fetiches como batom vermelho, deformações de tempo e espaço na escuridão, inserções fantasmagóricas e expressionistas de chamas e outros símbolos obscuros (mas carregados).
Admitamos que Blue Velvet é, em alguma medida, uma fantasia masculina que pertence de uma só vez a um personagem fictício, ao diretor e a uma sociedade. À medida que as fantasias masculinas se passam, tornam-se mais intrigantes e cativantes. Mas certamente estamos errados se tomarmos a posição geral de que o surrealismo é inerente e suspeitamente masculino em sua própria natureza e impulso. Em sua história, sim, até certo ponto; mas em sua quintessência, não. Formas surrealistas de imaginação, visão e contação de histórias não se limitam aos homens, e temos muitos filmes, incluindo Daisies de Vera Chytilová (1966), The Pirate’s Fiancée (1969) de Nelly Kaplan e Amelia Lópes O’Neill (1990) de Valeria Sarmiento para provar.
O surrealismo não pode ser investigado, diagnosticado ou atacado de forma muito literal. Se tomarmos uma abordagem literal, se lermos puramente o que pode ser visto à primeira vista, então é fácil cair na intolerância moralista e desaprovadora – encontrar evidências a cada passo de que o surrealismo é repressivo, punitivo, dirigido pela morte, o privilegiado passatempo libertino de um culto social exclusivista, movido apenas pela ansiedade, repressão, homofobia, misoginia e alienação. Mas essa linha de ataque é difícil de sustentar quando o surrealismo se propõe a nos ensinar, em primeiro lugar, que as aparências nunca são meramente aparências. As aparências são na verdade véus, pretextos, metáforas, encarnações fugazes ou aparições de fervura de algum sentimento ou impulso mais profundo e amplo. Outro grande e lúdico slogan surrealista, este emprestado de uma era romântica de arte, literatura e filosofia há muito tempo anterior ao surrealismo: a vida é um sonho. O que significa que este mundo, o mundo em vigília, é a ilusão, a habitação temporária, enquanto o mundo dos sonhos é o reino verdadeiramente real e coletivo que só conseguimos vislumbrar e aproveitar enquanto dormimos, enquanto estamos vivos.
É nesse caminho sombrio e fugaz que devemos explorar as representações e evocações de sexo, violência e transgressão do surrealismo – o conteúdo que muitas vezes é rotulado como doente ou suspeito por seus críticos contemporâneos. O dano causado aos corpos no surrealismo é uma violação menos literal do que a fuga e o abandono figurativo, ao estilo de fantasia. Cronenberg diz isso em filme após filme: “viva a nova carne”, um grito surrealista para a era cibernética. Vamos dar um exemplo literário desse processo complicado. Em uma passagem particularmente delirante de seu romance Camponês de Paris, de 1926, Louis Aragon mergulha em um devaneio sobre a experiência do amor e do desejo como uma experiência de se perder. Quanto a mim, desejo apenas que esses corpos estranhos que me seguram juntos me deixem finalmente, que meus dedos, meus ossos, minhas palavras e sua amálgama me abandonem, que eu me separe no azul magnético do amor!
Há uma parte particular desta passagem potente em Camponês de Paris que há muito me cativa. É quando Aragon se debruça sobre o oceano (as imagens lembram a Cidade dos Piratas de Ruiz) e os cadáveres que se encontram no fundo: Mar, você realmente ama os cadáveres putrescentes de suas vítimas afogadas? você ama a suavidade de seus membros fáceis? Você ama o amor que vem das profundezas insondáveis? Sua pureza incrível e seu cabelo flutuante? Então deixe meu oceano me amar.
Um dos aspectos mais notáveis da prosa de Aragon é sua violência. Uma certa perda é descrita como um assassinato, uma automutilação prolongada, a decadência do corpo. Este é um clássico paradoxo surrealista, pura lógica surrealista: a pureza do amor (que é sobre o que Aragon realmente fala) é retratada como a pureza da morte; e imagens horríveis da morte servem, de fato, como uma imagem da vida, da força da vida. As imagens de Aragon podem parecer, à primeira vista, horríveis, mas, acima de tudo, são rapsódicas. Pois a perda ou morte de si mesmo que ele interpreta não é trágica, mas exatamente o oposto: é estática, uma celebração selvagem.
O surrealismo tem seu próprio programa político bem desenvolvido. Pode parecer um tanto utópico e antiquado hoje em dia, essa política com sua invocação de revolução permanente no plano do cotidiano. A ideia de revolução permanente é em si um paradoxo, às vezes escondendo uma reflexão tardia melancólica. A revolução é permanente, contínua, perpétua – mas nunca chega verdadeiramente. Isso não significa que a revolução não vale a pena experimentar ou lutar; mas há um ponto de interrogação sobre sua eficácia e praticidade no mundo real.
De certo modo, esse é o ponto político do surrealismo: há sempre algo mais, algo melhor, esperança, esforço, sempre um novo prazer a ser encontrado onde você está, sempre uma nova transformação a ser alcançada, algumas novas potencial a ser extraído. No entanto, é interessante que, quando se trata de surrealismo e cinema, grande parte da escrita expressa uma decepção inconfundível. Jean Epstein na década de 1920 elogiou o cinema por suas qualidades mágicas do que ele chamou de fotogênico – quando ampliado, rostos, gestos na tela se torna irreal e sublime – mas ele já pensou: “Eu nunca vi um minuto inteiro” de pura foto-gênese. Durante setenta anos, escritores e críticos surrealistas adotaram o cinema como sendo o ideal do meio de sonho, a porta de entrada para o inconsciente e o fantástico, enquanto também, na próxima sentença, expressam pesar por uma indústria cinematográfica por dinheiro, que quer nos vender apenas sonhos e fantasias formulados e comprometidos, desejos comercializados e mercantilizados. Ainda assim, eles voltam ao cinema procurando por aquele lampejo de êxtase, aquele vislumbre de outro mundo que, ainda que breve e inadvertido, pode ser profundo, devastador, capaz de mudar a vida, realçar a realidade. Talvez toda a nossa relação com a arte e a cultura siga uma lógica tão inquietante de desapontamento perpétuo lutando com uma esperança irreprimível e impossível.
Eu sou lembrado aqui de um ensaio sobre surrealismo escrito pelo famoso filósofo alemão e comentarista social Walter Benjamin. Em uma reflexão de quão fugazes, efêmeras, às vezes quiméricas são as promessas e fantasias do surrealismo, Benjamin evocou uma cena bastante melancólica, mas adorável (e certamente cinematográfica). Breton, especialmente em seu romance Nadja (1928), foi “o primeiro a perceber as energias revolucionárias que aparecem no ‘antiquado’ – nas primeiras construções de ferro, os primeiros edifícios fabris, as primeiras fotos, objetos que começaram a ser extintos, os pianos de cauda, os vestidos de cinco anos atrás, restaurantes da moda quando a moda começou a se desfazer deles”. E continua: “Breton e Nadja são os amantes que convertem tudo o que experimentamos em lúgubres viagens ferroviárias (as ferrovias estão começando a envelhecer), em tardes de domingo esquecidas pelos Deuses nos bairros proletários das grandes cidades, à primeira vista através da janela turva pela chuva. No apartamento, em experiência revolucionária, se não ação. Eles trazem as imensas forças da “atmosfera” escondidas nessas coisas até o ponto de explosão. Que forma você supõe o momento decisivo de uma vida que foi determinada como uma música de rua, passada na boca de todos?”
4. Ficção Surrealista
Precisamos prestar atenção às formas de ficção surrealista, narrativa surrealista, a fim de contrabalançar o que muitas vezes é enfatizado sobre as imagens, sensações e espetáculos singulares dessa tendência. Eu me volto para meu exemplo final, o maior filme do grande surrealista do século XX, Luis Buñuel.
Hoje em dia ouvimos muito sobre a narrativa de histórias como uma força vital, positiva e quase nova. Suntuosos manuais de como escrever um roteiro, modelados principalmente em meia dúzia de mãos, enormes sucessos de Hollywood; pregam a necessidade de heróis fortes, conflitos, estruturas clássicas de três atos – e, acima de tudo, a necessidade do (normalmente masculino) herói para fazer uma jornada definitiva, muitas vezes uma jornada literal, física, baseada em ação, na qual ele ganha algo, ganha alguma coisa e se encontra.
É esclarecedor comparar os filmes de Buñuel ou Cronenberg com esse modelo prescritivo irremediavelmente limitado. Histórias buñuelianas sobre uma gangue de burgueses que olham interminavelmente para uma refeição (The Discrete Charm of the Bourgeoisie, 1972) ou que tentam sair de uma sala (The Exterminating Angel, 1962) não têm o padrão de três atos, conflitos bons contra maus ou triunfantes. São, em vez disso, histórias de repetição enlouquecedora, construídas sobre uma sucessão quase musical de temas e variações. Esses filmes surrealistas têm formas e padrões notáveis, altamente originais e únicas de um trabalho para o outro, mas raramente (ou nunca) o gráfico de Hollywood normal e padronizado.
A ideia de uma jornada, no entanto, pode ser resgatada e reescrita de uma perspectiva surrealista. Os surrealistas há muito amam certos tipos de jornadas míticas e aventuras: a jornada de Alice pelo País das Maravilhas, O Progresso do Peregrino, A Odisseia, As Estações da Cruz. Mais recentemente, o gosto surrealista surgiu em coisas como Fantastic Voyage (Richard Fleischer, 1966), no qual se registra viagem pelo interior de um corpo humano; ou as muitas prestações através da mídia do épico Star Trek (1966-), com suas constantes rupturas e deformações do contínuo tempo-espaço, e aquele dispositivo chamado Holodeck que simula mundos alternativos e às vezes os solta em um selvagem, imparável contágio. (A série Star Wars, por outro lado, é muito parecida com um manual triste de como escrever um roteiro).
Os surrealistas amam as viagens porque estas implicam transformação, metamorfose; bem como a experiência de ser movido, transportado, levado para algum lugar dentro do passeio emocional e imaginário criado por um filme. Mesmo os “arcos de caráter” amados de Hollywood podem ser bem aproveitados, uma vez que quanto mais um personagem muda, mais distante ele ou ela pode se afastar de si mesmo e de seu papel social sancionado. Algo desse gosto por mudanças radicais era evidente, por exemplo, na consideração intoxicada de Ado Kyrou pelos papéis constantemente mudados por Marlene Dietrich nos exóticos melodramas de Josef von Sternberg no início da década de 1930: “Nunca consegui enumerar os figurinos de Marlene em Shanghai Express (1932)”.
Belle de jour (1967) oferece um papel magnífico. É preciso uma dona de casa de classe média reprimida (Catherine Deneuve como Séverine), sexualmente alienada e frígida em casa, impulsionada para o meio de um bordel de alta classe. Assim, ela é uma cidadã modelo à noite e uma beleza sem lei durante o dia – já uma inversão intrigante da polaridade dia/noite tipicamente carregada. O estilo caracteristicamente calmo, discreto, sutil e manhoso de Buñuel nunca dramatiza mudanças de caráter dentro de uma determinada cena. A jornada pessoal de Séverine em e entre vários níveis de vida consciente, pré-consciente e inconsciente descreve um itinerário que se imprime em seu ser apenas da maneira mais ilusória, fantasiosa e inverificável.
O que mais importa, para nós, como espectadores, são as súbitas progressões e saltos de uma cena para a outra. Cada cena é concebida e construída como um quadro ou estação (exatamente como aquelas Estações da Cruz, que atraíram a sagacidade blasfema do diretor em A Via Láctea, 1969) – e quando passamos para cada uma delas, há uma colisão hiperlogical, uma elipse. Séverine passou de um nível para outro, um planalto mais estranho, mais complicado e mais perverso – mas, no tempo que passou, aquele personagem teve tempo de se acostumar com esse novo mundo e se aclimatar a ele, porque agora o trata como vida cotidiana normal. Nós, por outro lado, assistindo ao filme, demoramos um pouco mais para entender realmente o que está acontecendo e onde estamos agora; corremos para acompanhar, conceitualmente, essas mudanças sem fôlego. É uma forma ostensivamente excitante de ficção que Cronenberg também usa.
Assim, podemos ver por que as aparências são tão importantes no cinema surrealista: mudanças súbitas em figurino, penteado, maquiagem são tão importantes em Belle de jour, Xangai ou Rivette em Céline e Julie Go Boating (1974) porque marcam esses saltos praticamente inexplicáveis. e metamorfoses. Mudanças na aparência marcam mudanças ainda maiores no caráter, na identidade e na psicologia: as pessoas raramente acabam sendo iniciadas como na ficção surrealista. De fato, eles podem acabar se contemplando literalmente do lado de fora, na forma de um clone duplo ou dopplegänger: como a criança que uma vez foi, e poderia facilmente ser novamente, com outro lançamento no espaço-tempo do universo.
Considere o segundo dia de Séverine no trabalho em Belle de jour. Em primeiro lugar, o elemento de surpresa ou revelação no final desta cena: seu rosto varrido de êxtase erguendo-se dos lençóis, dizendo casualmente a linha mundana: “O que você sabe?” Segundo, os dispositivos poéticos simples, mas muito eficazes. Multiplicado e espalhado pelo filme em muitas variações e ecos: o sino que o homem toca, e as muitas maravilhas misteriosas fora da tela, invisíveis, o invisível dentro do visível, como o que o cliente tem em sua caixa, ou (em outra cena), o que Séverine e um cara estão fazendo debaixo de uma mesa de restaurante com uma garrafa quebrada. Terceiro, e acima de tudo, o sentido de uma jornada, uma progressão que nos leva muito além dos polos extremos da moralidade ou amoralidade, além do bem e do mal, noções passadas de alienação e repressão e em um mundo sem peso do sexo, desejo, boa aparência e comportamento ritual hiper-refinado. Buñuel teria concordado com Ruiz, que certa vez sugeriu que as duas grandes forças que estruturam o universo são a vontade de mistério e a vontade de ministrar – tudo o que é, por um lado, mágico, maravilhoso e surpreendente; e depois, por outro lado, tudo ordenado, racional e burocrático. Mas com esta condição dinâmica: temos que estar conscientes de que o mistério pode facilmente tornar-se ministério, chato, não surpreendente e estereotipado; enquanto o ministério, em seu excesso de racionalidade e rotina, pode se tornar misterioso e completamente louco. Belle de jour nos mostra um mundo bem preparado, posicionado neste desafio entre o mistério e o ministério.
Uma vez, tentando formular a filosofia particular ou visão de mundo do surrealismo, eu ponderei as opções usuais. Por um lado, o surrealismo definitivamente não é religioso ou metafísico. Sempre foi orgulhosa e ferozmente mantida no credo de 1880 de Louis Auguste Blanqui de “nem Deus, nem mestre”. Em algum sentido fundamental, o surrealismo está fundamentado na realidade do mundo. E é de natureza política, frequentemente esquerdista em sua orientação e afiliações. Então, poderíamos chamar o surrealismo de materialismo? Bem, sim, mas isso não parece muito divertido – e muito severo.
O surrealismo é, ao mesmo tempo, sobre o invisível, “outro” mundo, o invisível no interior do visível, carregando o visível. Mas há uma via de mão dupla de comunicação entre os domínios do imaginário e do real que Gilles Deleuze descreveu melhor. “Por quê”, pergunta ele, “podemos distinguir entre sonhos como fantasia e caminhar na rua como reais? Vemos claramente por que o real e o imaginário foram levados a exceder-se, ou mesmo a intercambiar-se um com o outro: um devir não é imaginário, mais do que uma viagem é real. Está se tornando a mais desprezível das trajetórias, ou mesmo uma imobilidade fixa, em uma viagem; e é a trajetória que transforma o imaginário em um devir. Cada um dos dois tipos de mapas, os de trajetórias e dos afetos, refere-se ao outro”. E acrescenta: “E assim como as trajetórias não são mais reais do que os devires são imaginários, há algo único em sua união que pertence apenas à arte”.
Porque o surrealismo é sobre uma força animadora de sentimento, desejo e investimento emocional, também precisamos afirmar que é, também, uma filosofia estática. Não uma espiritualidade religiosa, mas transes e transportes, sonhos e visões, o inconsciente. Se existe um misticismo no surrealismo – e muitos surrealistas têm sido atraídos, teoricamente ou praticamente, para funções que incluem o uso de drogas, o vodu e o ritual mágico – então é um misticismo mundano secular ou terreno. E se há materialismo no surrealismo, certamente tem que ser um materialismo estático. E é por isso que, sempre que me perguntam hoje em dia qual é a fé que possuo, ou em que ideologia acredito, essa é sempre a minha resposta preferida: sou um materialista em êxtase. E essa é a minha maneira de tentar participar, como cinéfilo, da eterna e contínua aventura e experiência do surrealismo no cinema.
A cor enquadrada nos vãos da imagem – em busca do rosto da morte
Por Diogo Serafim
With Blue – uncertain – stumbling Buzz –
Between the light – and me –
And then the Windows failed – and then
I could not see to see –
Emily Dickinson
Saturno devora o seu filho, atira flechas contra a quimera de Frida, cobre de flores o corpo de Mendieta. O esvanecimento do laranja de Rothko para o vermelho que o contorna, a aura flava que apossa o entorno da cabeça inclinada do Cristo de Velásquez, o abraço da seda preta com a vermelha no lençol branco de Schiele – nada disso trata de uma transição brusca, mas sim de uma dinâmica constantemente equilibrada pela confrontação direta da ideia de morte, ontologicamente limitada, com a sua inevitabilidade espontaneamente sentida. Trata-se de uma cinesia que se dá no tempo, e não na suspensão deste, apreender a cor que sustenta cada predicado constituinte da morte, pesar cada contato interrompido ou arroubo descontinuado que contorna o seu evento e unir todas essas previsões, subjetividades e parâmetros em uma base estrutural, alicerçada na certeza de que o único momento em que a vida não me inclina para a ideia de morte é quando esta já se faz presente no meu corpo. Só penso em viver quando tenho em mim que, inevitavelmente, vou morrer.
A morte e a vida do corpo é sempre transcendida na obra de Brakhage – na luz pasteurizada que sai da janela para incidir no ventre habitado de Jane, com seu corpo submerso em água, em Window Water Baby Moving (1959) para o corpo inerte violado em autópsias de pessoas inominadas em The Act Of Seeing With One’s Own Eyes (1971), a forma deste se altera conforme a necessidade, seja na concepção ou na morte, na deformação ou na desfiguração, na mariposa destrinchada entre os rompantes de cor e abstração de Mothlight (1963) ou no mito ressurgente de Eye Myth (1967). Toda a obsessão parece encontrar em seu filme Dog Star Man (1961-1964) uma resposta definitiva – é um filme-chave, filme-síntese, filme-testamento, filme que apresenta não apenas um leque de técnicas e preferências estéticas do autor mas também de uma ambição deste mais primária enquanto artista, parecendo encontrar uma resposta para até onde o cinema pode chegar enquanto arte, onde os limites não apenas estruturais mas também sensíveis da matéria aparentam ser constantemente expandidos, ressignificados, em uma liberdade muito possibilitadora e particular.
Se Dog Star Man é um filme-filosofia, The Act Of Seeing With One’s Own Eyes é um filme-procedimento, um filme assombrado exatamente pela sua aparente secularidade. Reside na carne exposta – distendido nos músculos, nos órgãos escavados, fendido na gordura lacerada e no sangue asfixiado, furtivo nos interstícios da vida dissipada – um ideal transcendental espontaneamente caracterizado analiticamente, seja por uma valoração ontológica prática ou por uma negação técnica, em um caso deslocando e no outro reforçando uma tese que é alheia ao material em questão, isto é, aberto para uma concepção teológica de uma alma, uma continuidade extra-sensível que não é exposta na tela, ou para um princípio entrópico de esvaziamento de forma e conteúdo, a morte como tal, propriamente destrutiva no seu ato de reorganização material. Mais que um tratado investigativo é um tratado fundamentalmente expositivo, o momento presente de morte e o pragmatismo de um procedimento constituindo uma espécie de aporia vigente, o instante é encapsulado e reproduzido com uma frieza irremediavelmente vinculada ao presente enquanto matéria mas que em última instância nos afeta para além desta, uma aporia de difusão não apenas empática mas também niilista, fundada em um paradoxo multifacetado, o que resta em matéria do que era e do que será do corpo, do que pode constituir ou destituir algo de conteúdo, um trabalho de campo e extracampo fundamentalmente procedimental mas com possíveis desdobramentos metafísicos.
Brakhage se associa e simultaneamente se distancia do acionismo vienense. Associa-se enquanto existe uma recusa imediata à reflexão e à hermenêutica em prol de uma crueza frontal, escancarada, consignada na tela conforme os cortes desvendam a unidade corporal sendo violada. Associa-se também enquanto transparece uma transcendência espontânea, declarada na inércia do corpo, aceitando resignada a violação lúgubre, uma vulnerabilidade encontrada em algum grau na sinfonia ‘Island’ de Hermann Nitsch, a cacofonia e os ruídos iterativos compondo uma apoplexia sonora que trabalha em uma lógica de esvaziamento do eu, nos submetendo a uma dimensão que se perde em um niilismo holístico ao mesmo tempo que o reconstitui em prol da espiritualidade desvirtuada. Distancia-se do movimento na mesma medida que também se distancia da sinfonia de Nitsch – o filme é intuído por uma lógica que também é de esvaziamento, mas para por aí. Enquanto o indivíduo na sinfonia se permite ser absorvido por uma dimensão que parte da corporalidade para constituir algo muito maior que ele, algo governado por forças misteriosas pouco definidas apesar de manifestas nos seus desdobramentos, o filme não se desmembra para alcançar uma totalidade cósmica particular, mas tem no seu próprio procedimento a sua teleologia constituinte. Logo, foge naturalmente dos desdobramentos políticos do acionismo ou pelo menos os modula de uma forma claramente distinta. Em uma segunda instância, é particular também na pergunta fundamental que aparenta propor: onde reside a alma? Resta, naquela corporalidade fundamentalmente material, claramente desprovida de força vital, algum resquício do espírito?
A busca pelo holismo existencial, por uma possível espiritualidade moldadora investigando a ligação entre a natureza e o indivíduo, é o tema central em um de seus projetos mais ambiciosos: Dog Star Man é um filme maior que o mundo, do tamanho do universo que reside dentro de um homem. O filme tem tudo. Constituído de uma cosmologia de afetos, é uma epopeia sensorial com uma narrativa perdida nas entranhas da sua avalanche de texturas e colagens, rasgaduras estruturais e saltos temporais. Nascer, trabalhar, amar, pôr-se em fuga mas continuar no mesmo lugar, imagens que retornam, imagens que persistem, instantes que resistem. É a versão expandida da sua obra-prima For Marilyn (1992), onde inicialmente toda a angústia e todo o sentido se reduz a uma busca mais fundamental e incisiva, apenas aqui ela sendo abrangida para uma matriz ampla, orgânica, de sentimentos e objetos, lembranças e desejos, ausências e contatos.
For Marilyn é um dos maiores filmes da história do cinema exatamente por evidenciar uma das maiores obsessões de sua história em matéria esculpida: o ato de buscar o rosto de alguém nos interstícios da imagem, nos espaços vazios que podem ser ocupados por corpos, memórias, vontades e espíritos, no ritmo desencadeado do estímulo – um trabalho de cor, linguagem e, acima de tudo, de paixão.
Entre a brutalidade da carne, o desvelo dos cortes, a aspereza das texturas, a intrusão das imagens, a polidez da iluminação e as teleologias dos procedimentos, resta a pergunta: onde cabe o amor? A resposta não está no que é visto e sim em quem vê. O amor para além do racional, que se precipita, não questiona nem incide, apenas se apodera e se engrandece. Por que só no Outro eu posso finalmente me ver, e eu só vejo o Outro em você. Compreender a vida para além desta, não na dicotomia com a morte e muito menos na teologia de uma possível continuidade da mesma, mas finalmente na aniquilação da pergunta, porque ela se reduz a nada quando toda a sua sustentação se evidencia. É só luz incidindo objetos, é só o sol se inclinando sobre mim, é só a sua cor que vejo quando respiro, é só eu sabendo que te amo e saber que isso basta.
Bush Mama (Haile Gerima, 1979): assimetrias da carne e do corpo
Por Kênia Freitas
I
No enquadramento o olhar de Dorothy. Olhar frontal para a câmera, mas não endereçado ao espectador. Dorothy olha com intensidade para além da câmera, que o contraplano logo nos revela como os detalhes de um pôster. Na imagem observada a mulher angolana que segura o filho em um braço e a arma com o outro. Indo de um lado para o outro do cômodo e colocando-se na frente da imagem, Dorothy parece querer desvendá-la – e, pela frontalidade do olhar da guerrilheira, ser simultaneamente desvendada.
Na montagem do filme de Haile Gerima plano e contraplano, no entanto, não se equivalem. Dorothy não quer ser fixada. A agência do transe e da identificação é sua. Depois do plano fechado no olhar fixo, a câmera se afasta para o plano americano que situa Dorothy em sua casa e na sua possibilidade de questionar a imagem andando de um lado para o outro. Mais do que um contraplano, a câmera torna-se uma subjetiva da personagem. A imagem colada na parede é então mais uma vez recortada pela investigação de Dorothy: da lágrima nos olhos para a arma e de volta aos olhos.
Close nos olhos fixos de Dorothy. Ao lado, detalhes do pôster.
A investigação da imagem é interrompida por sons que vem de fora do apartamento. Dorothy corre então para observar pela janela o que se passa na rua. A câmera assume mais uma vez o olhar subjetivo de Dorothy para a cena: um homem negro algemado é conduzido por um policial branco que o empurra. O homem grita para que o policial pare, enquanto tenta afastar-se do policial. Sem hesitação, o policial atira e mata o homem algemado. Dorothy fecha os olhos em desespero e chora.
A montagem mais uma vez joga com uma falsa equivalência entre Dorothy, que observa, e a cena observada. Mas dessa vez, Dorothy quem não terá agência diante do testemunho da violência policial.
II
Além da mãe guerrilheira angolana (a Bush Mama que intitula o filme), outro pôster está colado na parede do apartamento. As imagens foram levadas por Angi, a adolescente que frequenta as manifestações do movimento negro e amiga de Luann (filha de Dorothy). O outro cartaz é de um homem negro morto pela polícia de Los Angeles alvejado com 25 tiros. Ao mostrar o pôster para Luann, Angi conta as marcas de tiro no cadáver. A contagem, o pôster e a violência sofrida pela comunidade negra e pobre de Los Angeles oscilam entre o insuportável e o natural no tratamento do filme.
Pôster do homem assassinado com 25 tiros pela polícia de Los Angeles.
Não há gratuidade na violência representada e construída por Gerima. Da não linearidade da narrativa ao papel fundamental do som sobre as imagens (reiterando essa não linearidade pela repetição e sobreposição de vozes, ruídos urbanos e a trilha sonora), passando pelas elipses entre os acontecimentos, o filme não se esquiva da representação da violência sistêmica sobre a carne negra.
II.A
Frank B. Wilderson III defende uma diferença entre carne (flesh) e corpo (body) ao falar do tratamento da violência em Bush Mama. O corpo diz respeito apenas aos policiais brancos, a carne às pessoas negras. O primeiro ocupa uma posição de sujeito e o segundo de objeto. Considerando a experiência negra diaspórica pós-escravização a partir do prisma de uma morte social (Orlando Patterson), a posicionalidade negra em sociedades de supremacia branca e de racismo estrutural é a da não humanidade – a de objeto.
Isso não significa que a carne (os personagens negros) não possam ter eventualmente agência da violência no filme. A sequência final de Dorothy assassinando o policial branco após encontrá-lo estuprando Luann, representaria uma ação da carne sobre o corpo. O que a diferença dos termos coloca é uma assimetria irreparável (dentro e fora da representação) entre carne e corpo no domínio da violência.
O filme de Gerima aponta para essa impossibilidade de simetria ao inverter a sequência dos acontecimentos finais. Vemos primeiro Dorothy presa, apanhando brutalmente ao não assinar a confissão deturpada do assassinato do policial. O sangue no chão denuncia que o aborto tão reivindicado pelo estado via assistência social, foi concretizado pela violência policial. E, só depois, veremos o momento em que Dorothy chega no apartamento para encontrar Luann sendo atacada, reagindo furiosa contra o policial e o matando no local. A desordem importa.
III
Além da não linearidade entre as sequências, opera na montagem do filme as elipses entre os acontecimentos. Isso reforça a assimetria e também quebra o efeito imediato entre causa e consequência da ações das carnes e dos corpos.
O momento mais emblemático dessa descontinuidade acontece quando TC, o companheiro de Dorothy, arranja um emprego. Em uma cena acompanhamos Dorothy e Luann orgulhosas na janela o observando partir para o trabalho. Na próxima, vemos TC sendo conduzido por um guarda dentro de uma penitenciária até a sua cela.
Dorothy e Luann observam TC pela janela. TC é conduzido pelo guarda na penitenciária.
Neste momento não trata-se mais de uma assimetria de agência entre Dorothy e o que ela vê (como na sequência do pôster da Bush Mama). Mas de uma inequivalência entre o que ela teria visto e a continuidade do filme. E em um filme que não se esquiva das imagens traumáticas, essa elipse desmonta uma expectativa na narratividade e na representação como reorganizadoras das assimetrias (dos olhares, da carne e dos corpos, da distribuição da violência).
IV
Essa estratégia de montagem (não linear e fragmentada) alinha-se com uma recusa de Gerima de construir o filme como espetáculo ou como uma narratividade ilusionista. O filme pode então falar diretamente para a câmera e interpelar os espectadores.
Um desses momentos é a leitura da carta enviada por TC para Dorothy de dentro do presídio. A carta começa a ser lida em voz alta por Angi dentro do apartamento de Dorothy. Logo o filme se desloca da casa para a penitenciária, da voz de Angi para a do próprio TC, que fala encarando a câmera. A câmera no entanto logo inicia um travelling lateral percorrendo as selas de outros homens negros presos ao lado dele, enquanto continuamos a ouvir a sua voz em off falando pela carta.
TC atrás das grades fala pela carta com Dorothy. Ao lado, os vizinhos de cela.
Nessa cena a centralidade da violência do encarceramento sobre a carne de TC é reconfigurada. O seu discurso militante sobre a tomada de consciência sublinha uma ideia de coletividade imageticamente construída pelo travelling entre as celas.
Essa coletividade atravessa o filme como um todo. Assim, se violência estrutural sobre todos os aspectos da vida e da carne de Dorothy (moradia, filhos nascidos e não nascidos, cabelo, emprego, relacionamento amoroso, amizades…) é um ponto focal de Bush Mama, a personagem é situada continuamente em uma coletividade não individualizante (de vizinhas, amigas, pessoas ao seu redor na fila dos atendimentos públicos).
O plano final do filme de Dorothy, não mais investigando o cartaz da mãe guerrilheira mas enquadrada ao seu lado, desfaz a assimetria construída anteriormente de plano (Dorothy) e contraplano (pôster). O que essa escolha de posicionamentos e deslocamentos da câmera constrói é uma possibilidade de aliança dos personagens negros como carne. O que não desfaz as assimetrias dadas entre carne e corpo na sociedade (fora ou dentro do filme), mas aposta em um realinhamento subversivo dos elementos.
Bush Mama e Dorothy alinhadas.
Corpos que colidem, corpos que se atraem
Por Camila Vieira
Uma sensação de letargia sobrevoa a atmosfera azulada de Crash – Estranhos Prazeres (Crash, 1996), de David Cronenberg. Personagens com olhares vagos e vozes sussurrantes habitam a cidade, à espreita de algo que lhes arranque do estado de suspensão. A primeira sequência do filme é uma panorâmica aérea de um hangar de aviões particulares. No hospital, a esposa de Ballard constata que “não há muita ação” naquele lugar. As demais camas da enfermaria estão vazias. Uma espécie de vagueza paira sobre os ambientes, mas o que reposiciona tais personagens face à inércia é o contato físico com outras superfícies (a pele, o couro sintético, o ferro) e o choque com a máquina (os acidentes).
James Ballard (James Spader) está distraído quando acontecem os primeiros acidentes automobilísticos. Há o olhar para objetos: o script de um filme, a luva da dra. Helen Remington (Helen Hunt). O impacto da colisão no trânsito amplifica o despertar do prazer no produtor de cinema, que lida com a criação de imagens. Crash é também um filme em torno da atração por imagens do espetáculo, pelos grandes acidentes fatais com celebridades do cinema (James Dean, Jayne Mansfield). A reconstituição destes acidentes por Vaughan (Elias Koteas) produz uma vizinhança com o que Hal Foster chama de realismo traumático, em “O retorno do real”, ao tratar do interesse da pop art de Andy Warhol pela reprodução de imagens de acidente e de mortes trágicas de ícones do cinema.
Subjetividades em choque se produzem na repetição dos eventos traumáticos, seja pela reconstituição do acidente – Vaughan também é seduzido pela fidelidade aos detalhes noticiados – seja pela reprodução técnica da televisão (os vídeos de simulação de colisões de automóveis) e da máquina fotográfica (as imagens de carros destroçados e corpos suturados). Foster entende que a obsessão pela imagem do trauma não reivindica controle sobre ele, mas sua explicação psicanalítica de base lacaniana acaba sendo limitadora, pois coloca a repetição do traumático sob uma sombra protetora. Não há tentativas de proteção aos corpos de Crash. Eles se permitem ao risco do acidente – basta lembrar a sequência em que Ballard tira o cinto de segurança, como se estivesse sufocado pelo dispositivo; ou quando Vaughan enfatiza para a plateia que não vai usar capacete, nem cinto, nem qualquer artefato de segurança no momento em que tenta reviver o acidente de James Dean.
Vaughan é o personagem que mais provoca as colisões, por enxergar nelas a produção de acontecimentos que não são destrutivos, mas catalisadores de novas formas de prazer. Ele é o profeta do acidente e do momento. Sua intencionalidade é permeada pela proliferação de metanarrativas, que mudam a cada encontro. Seu projeto é um work in progress que vislumbra o futuro: de início, fala do interesse pela reformulação do corpo humano pela tecnologia moderna; em seguida, da busca de potenciais parceiros em psicopatologia dispostos a experimentar diferentes intensidades. Vaughan é o corpo que se infiltra nos lugares, multiplicando funções: ele entra no hospital vestido de médico para fotografar corpos necrosados, forja ser especialista em sistemas internacionais de tráfego, torna-se o apresentador das reconstituições dos acidentes.
Os demais personagens orbitam em torno de Vaughan, como um companheiro de jornada, sem ter a certeza do que virá, mas apostando na força da colisão. Suas peles são marcadas por cicatrizes. Alguns corpos são acoplados a próteses. A cicatriz é o vestígio da lesão, do corte e da recomposição da carne. A junção com a prótese opera outra configuração do corpo humano, ainda que, na narrativa do filme, o acoplamento com a máquina seja no limite do externo e do visível – a simbiose entre o orgânico e o maquínico ganha contornos mais complexos no contemporâneo, com integrações internas e quase imperceptíveis, como as nanotecnologias, que multiplicam as capacidades expressivas e de afecção do corpo.
Há um paralelo entre o aumento do fluxo de carros nas avenidas e as zonas de intensidade dos encontros que se sucedem. Ao mesmo tempo em que a colisão e o toque excitam, é incessante o jogo com a escopofilia: em alguns momentos, o olhar para o prazer do outro; em outros, o olhar para o desfigurado e para a morte (os carros com aço retorcido e vidros estilhaçados; as imagens dos cadáveres nos acidentes históricos). Diferentes gozos colocam em movimento subjetividades heterogêneas, que se permitem viver em rotas que se cruzam e se chocam.
O Corpo Como Sentido
Por Chico Torres
“Apesar da noite” (Malgré la nuit), de Philippe Grandrieux, pode ser comparado à quadrilha de Drummond: “João amava Teresa que amava Raimundo / que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili, / que não amava ninguém.” Se, por um lado, é essa estrutura narrativa simples que permite que o filme avance em suas duas horas e meia de duração, há em seu desenvolvimento diversos elementos disruptivos e metafóricos que fazem com que o filme cresça e ganhe várias camadas de interpretação. No tocante à sua linguagem, a grande questão de “Apesar da noite” é o modo como se desenvolve a narrativa, praticamente através da hipersensorialidade dos corpos. O corpo é o lugar do encontro, é causa e efeito da ação de todos os personagens que transitam fantasmagoricamente por uma Paris quase invisível.
O tom sensório-experimental e pictórico do filme já está presente em seu início: uma mulher, como que em delírio, dança diante da câmera. Em meio à dança frenética, ela lança os olhos febris para o alto, exibindo uma estranha expressão de êxtase (figura 1). A cena está acelerada e, em contraste ao fundo preto, há uma luz branca e perturbadora que vem de cima e ofusca a estranha dança. Como que parido, Lenz, o protagonista, surge nesse lugar escuro e esfumaçado. O ambiente, ainda que irreconhecível, exala algo como vício e promiscuidade, ao mesmo tempo que possui uma aura pictórica, como se fosse a reprodução de um quadro renascentista que retrata a errante vida moderna. (figura 2).
O diálogo sussurrante entre Lenz e Louis ganha expressividade através do toque entre as mãos (recurso excessivamente utilizado no filme), do beijo e do abraço, da quase obsessiva demonstração de afeto. O elemento sensorial é reforçado pelo enquadramento fechado, o que transmite a sensação da existência de um microcosmo onde residem apenas corpos que se conectam vibracionalmente.
Ainda nesse diálogo entre Lenz e Louis, onde se descobre que Lenz está em busca de uma mulher chamada Madeleine, há uma série de jogos, de charadas. Jogo linguístico através da aliteração dos nomes das próprias personagens que vão surgindo: Lola, Lenz, Louis, Madeleine, Hélène e Lena; jogo literário através da memória proustiana presente indiretamente na fala de Louis; e um jogo através da analogia entre personagens fictícios e históricos, também expressado inicialmente por Louis: Madeleine é prostituta, como foi a Madalena de Cristo. Esses jogos terão seus desdobramentos, alguns aparentemente menos importantes (como o da aliteração, que talvez indique um mesmo propósito ou uma mesma personalidade para todos as personagens); outros mais reveladores, como a figura arquetípica de Maria Madalena presente nas personagens femininas do filme, sobretudo em Hélène.
Ainda que “Apesar da noite” estimule algumas reflexões através de suas diversas e frágeis associações (religião, pecado, memória, arte etc.), é difícil encontrar ali elaborações dialógicas sobre qualquer coisa. Os temas se apresentam sorrateiramente através de imagens que exploram aspectos sensoriais: o toque, o contraste da textura dos corpos que se entrelaçam, as expressões faciais e corporais, e o prazer através do sexo e do uso de drogas. O filme se detém tanto ao corpo que torna-se irrelevante compreender qual o tempo-espaço da narrativa. A presença do amor, do tom melodramático, da obsessão pelo outro, da traição, dos conflitos pessoais, tudo parece existir apenas para que os corpos se satisfaçam em relações que possuem uma profundidade visceral e que não vão mais longe do que isso.
O filme revela, ainda que de maneira fugidia, uma relação entre prazer e sofrimento, questão que mais uma vez remente ao religioso, desenvolvido através do entrelaçamento entre Madeleine/Madalena e Hélène. A priori pensamos que Hélène é a Madeleine procurada por Lenz; e mesmo quando descobrimos que Madeleine se trata de outra personagem (que irá permanecer até o final do filme como um ideal a se buscar, como um objeto de desejo nunca encontrado), só se reforça a sensação de que Hélène carrega, simbolicamente, as tensões mais significativas do filme e que fazem parte da imagem paradoxal que se construiu de Madalena.
Ao longo da história ocidental, a imagem de Maria Madalena ficou ligada a alguns estereótipos. O mais conhecido é de Madalena como prostituta que passa a seguir Jesus depois que este expulsa sete demônios que habitavam seu corpo. Ainda que nenhum dado biográfico concreto ligue Madalena à prostituição, o fato é que sua imagem ficou gravada na memória coletiva e na história da arte sob esse estigma. Parece-me que Hélène se aproxima de Maria Madalena por sua posição ambígua da mulher devota e cuidadora (Hélène é enfermeira, ou seja, cuida do corpo do outro), mas que ao mesmo tempo se perverte e se entrega sem freios ao desejo carnal, vivenciando experiências limítrofes. A construção de Hélène como Madalena não se desenvolve de modo satisfatório, porque o que prevalece é a exploração da sensorialidade e não da reflexão, mas a relação entre ambas é evidente no filme.
Quando Hèléne participa de uma orgia na floresta, cena que se realiza sob uma crua e terrível luz branca, seu encontro com o Homem da Voz Metálica revela-se extremamente violento, ainda que tudo pareça acontecer sob o consentimento de Hélène. Ao ser violentada, ela olha para o alto em êxtase (figura 3), olhar recorrente em pinturas renascentistas ligadas ao universo religioso; inclusive há diversas pinturas que retratam Madalena nessa postura (figura 4). Esse olhar, em síntese, pode ser interpretado como a união complexa entre o sagrado e o profano, entre o desejo carnal e a devoção religiosa, mas nada disso é indicado por Hélène, essas relações se dão apenas por sua expressão corporal e facial.
Se por um lado a fotografia transita entre diversas camadas de uma luz branca que expõe os corpos de modo violento, além das sobreposições que dão ao filme um teor experimental, há também em muitas cenas a presença de um claro-escuro pictórico no qual prevalecem um preto e vermelho aveludados, semelhante à luz de velas. Ainda que esses elementos não estejam distribuídos de modo equacional no filme, interpreto essas camadas como a presença do conflito entre o profano (representado pelo branco frio e cru) e o sagrado (representado pelo claro-escuro, quente e pictórico), que se entrelaçam e coexistem durante o filme.
Em “Apesar da noite” quase tudo é perturbador: Lenz é obcecado por Madeleine; Lena e seu pai são figuras malignas, invejosas e vingativas; Louis é viciado e trai Lenz e Hélène por causa de Lena. Uma quadrilha muito mais maligna do que a de Drummond. Enquanto isso, Hélène, que concentra todos esses embates humanos em si, desafia Deus ao se entregar deploravelmente ao prazer da carne, como se sua religião fosse cumprir o desafio de se deixar levar por aquilo que é mais latente no corpo. Prazer e dor. Em “Apesar da noite” tudo aquilo que pode produzir sentido é absorvido pelas veias, pelos poros, pelo gozo.
21 Reflexões Sobre Criatividade e Cinema no Século XXI
Por Daniel Fawcett & Clara Pais
1_As ferramentas para a criação de filmes foram inventadas há menos de 130 anos, esta arte é ainda muito jovem. Ainda que muitos territórios tenham sido já explorados, alguns mesmo inteiramente ocupados, existem ainda muitas terras a explorar, inúmeras ilhas secretas, florestas escondidas e mares incógnitos. Artistas cineastas têm de ser como exploradores, partindo para o desconhecido com apenas a sua intuição como guia.
2_A história do cinema começa nas cavernas dos nossos antepassados, a linguagem das imagens em movimento está conosco desde o início dos tempos. Ao longo da história humana houveram várias tentativas para criar ferramentas que pudessem articular esta linguagem, mas foi apenas com a invenção do cinematógrafo e da película de celuloide que a gramática díspar das imagens em movimento se fundiu finalmente numa só arte.
3_A história do cinema está profundamente entrelaçada com a película celuloide, mas o cinema é mais do que película. Por mais bela e magnífica que seja, também foi ela responsável por escravizar o cinema ao poder financeiro e restringi-lo à dominação de uma elite econômica, industrial e intelectual. Felizmente o reino do cinema de celuloide foi curto e agora com a invenção do vídeo digital o cinema é livre.
4_A libertação do cinema graças à invenção de ferramentas digitais é também a libertação da película, livre de nunca mais carregar às costas o peso de todo o cinema possível. A película é material e os seus mistérios são revelados no impacto da luz na matéria; o digital é imaterial e os seus segredos materializam-se através da misteriosa linguagem de Um e Zero. Zero, o grande potencial, e Um, a centelha da criação.
5_O propósito de uma forma de arte é ser livre, as suas ferramentas têm de ser acessíveis a qualquer pessoa, de qualquer parte, que sinta a vocação de criar e esteja pronta a segui-la. O cinema está finalmente numa situação em que é livre e acessível a qualquer um, a despeito da sua situação econômica, do seu nível de educação ou da sua habilidade técnica; agora podemos começar a ver a realização do potencial do cinema como forma de arte.
6_Há quem acredite que todas as histórias já foram contadas, todas as invenções e avanços tecnológicos concretizados, e todas as ideias já esgotadas – estas pessoas estão apenas a expressar os limites da sua própria imaginação, dizer que “tudo já foi feito” só revela que aquele que fala não consegue ver nada mais do que aquilo que já existe. Esses não falam por todos. A criatividade continuará sempre a abrir portas para o desconhecido.
7_Embora seja crença comum de que filme e vídeo são meios de documentação, a criação de filmes não é um processo suficientemente objectivo para que seja uma ferramenta verdadeiramente científica – o seu verdadeiro propósito é dar forma a sonhos e visões. Ser ao mesmo tempo apresentação de uma fantasia e ativação da imaginação. Nenhum documento filmado consegue escapar ao processo de transmutação da realidade em fantasia, numa fração de segundo a captura de imagens dá à luz uma nova realidade, uma realidade visionária da imagem filmada.
8_O trabalho diário de um artista é desenvolver a sua arte. Procure ter o maior número possível de ferramentas criativas à sua disposição para melhor servir as imagens que procuram materializar-se através de si. Trabalhe o seu cinema e deixe o cinema trabalhar em si; talento e habilidade são formas de existir.
9_Siga o seu instinto criativo e todos os filmes que fizer serão um sucesso. Como pode um filme falhar quando o seu único propósito é materializar a sua própria existência?
10_É necessário uma nova linguagem para falar de narrativa, a divisão simplista de narrativa/não-narrativa não é suficiente – todo o cinema é narrativo: tem um início, um fim e entre os dois existe movimento. É necessário um maior leque de descrições para as várias abordagens às formas narrativas.
11_É hora de vermos o cinema a partir de uma perspectiva não-hierárquica, todos os filmes nascem iguais, sejam industriais, artesanais, pessoais e tudo o mais. Por exemplo, num sentido geral não há qualquer diferença de valor entre um filme de Jonas Mekas e um filme de Steven Spielberg, ambos existem, é claro, como extremos opostos de um sistema industrial, mas fundamentalmente ambos são apenas uma série de imagens estáticas que criam a ilusão de movimento. Ambos são ingeridos pela consciência de cada espectador e cada um terá um significado diferente para cada pessoa.
12_Cinema é uma experiência em primeira pessoa, o seu valor vem do impacto que cada filme tem em cada indivíduo. Não podemos saber nem antecipar como um filme será recebido por cada espectador, devemos confiar em cada um para encontrar o seu próprio caminho e encorajar todos a dar valor à sua experiência pessoal.
13_O que devemos defender é a liberdade de existir de todo e qualquer filme, mesmo os filmes de que não gostemos pessoalmente, não deve existir um monopólio na cultura. Como artistas e amantes da criatividade humana devemos trabalhar para iluminar e dar valor aos cantos do cinema que são esquecidos e ignorados.
14_A produção de filmes é agora mais fácil do que nunca, a grande luta do momento é exibição. O contexto em que um filme é exibido é integral à experiência e significado do filme, devemos refletir seriamente sobre o contexto apropriado para a exibição de cada filme. Alguns filmes funcionam bem na internet ou em ecrãs domésticos, outros necessitam de uma grande tela e uma sala escura, outros adequam-se ao formato de loop na parede de uma galeria – não existe uma regra única, mas para cada filme existe a forma correta de exibição.
15_Para onde quer que olhemos existem imagens em movimento, muitos de nós trazemos conosco um ecrã para toda a parte. O impacto que isto terá na consciência humana é ainda incerto, mas o que é certo é que temos fome de imagens com significado, imagens vivas que falem diretamente às profundezas do nosso ser. O nosso trabalho como artistas é criar com fervor aquilo que sentimos urgentemente, não se atraiçoe a si nem a outros com truques fáceis e expressões baratas. Faça apenas o filme que lhe diz algo profundamente, o filme que tem de existir e que só você pode materializar.
16_Se realmente se importa com o público, comece por fazer arte para si. Pensar que sabemos o que o público quer ou precisa é um crime contra a liberdade. Não procure manipular e não caia no erro de pensar que sabe o que é melhor para outra pessoa.
17_O sistema industrial do cinema impôs uma classificação de identidade nacional a cada filme mas como artistas devemos cultivar uma atitude internacional. Todos nascemos e vivemos em determinado sítio que terá impacto em nós e no trabalho que fazemos, mas o nosso verdadeiro país é a criatividade, a nossa língua comum é a linguagem das imagens em movimento e temos de rejeitar ser ferramenta de nacionalismos. Em vez de construir muros à volta dos nossos filmes, devemos procurar expandir através deles os limites da nossa identidade pessoal.
18_Tomemos consciência de que todos nós contribuímos continuamente para a história da humanidade, não temos de rejeitar o passado, não temos de derrotar o que se passou antes de nós, mas sim participar na mutação constante e gradual da consciência humana. O papel de todo o artista é trazer à consciência, através da condição de si mesmo, imagens que são expressões do eterno nos trajes do presente.
19_Como artistas temos de trabalhar com as condições do nosso tempo e temos de encontrar maneira de sobreviver na sociedade e época em que vivemos. Não há nunca uma resposta feita para este problema mas perante todas as opções – no calor da luta – seja forte e se sente que algo não é certo para si então procure outra solução, há sempre outro caminho à espera, feito à sua medida. Se algo de que precisa não existe, então tem de criar você mesmo.
20_Um artista não é um político ou um jornalista, arte não é sobre comentário social ou propaganda. Siga outro caminho, ofereça algo mais valioso do que declarações políticas, partilhe com o espectador o seu coração e alma, dê-lhe os mais ricos dons do seu espírito. Cada ser humano é único, cada um de nós é uma manifestação totalmente única de matéria e energia, nunca antes houve ninguém como você e nunca mais haverá. Celebre isto, inspire cada espectador a ir em busca de si mesmo e dê o exemplo.
21_Se não conseguir decidir, avance. Se sentir medo, aceite-o. Se bloquear, renda-se. Se se perder, continue. Se se cansar, descanse. Se sentir energia, actue. Se se inspirar, regozije-se. Se estiver criando, escute bem. Se o desastre bater à porta, recomece. Se receber críticas, diga sim e continue o trabalho. Se receber aplausos, diga sim e continue o trabalho. Se tiver necessidade, ofereça. Se estiver em dúvida, receba. E em todos os momentos, faça aquilo que só você pode fazer, procure realizar o potencial da sua singularidade, e celebre-a também em todos os outros.
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Daniel Fawcett & Clara Pais criam imagens em movimento para cinema e galeria, longas-metragens, performance e publicações. Descubra mais: www.daniel-clara.co.uk
Stuart Gordon: Fetiche, Caos e Metamorfose
Por João Pedro Faro
Parece existir um abismo entre a natureza celibatária da obra de H.P Lovecraft e a desmoralização de qualquer fantasia sexual perversa na filmografia de Stuart Gordon. Sendo Gordon o mais notório cineasta a centrar sua carreira na obra do autor, a relação entre os dois surge quase como uma contradição. Como alguém que possui em sua ficha prisões por obscenidade e um histórico teatral polêmico poderia ter qualquer interesse na figura puritana de Lovecraft?
Uma literatura de horror essencialmente baseada em uma pesada abordagem científica e um distanciamento de qualquer banalidade não seria imediatamente atrelada a filmes em que uma cabeça decepada com vida própria induz o sexo oral à uma jovem indefesa. Por mais que a erotização de qualquer obra nunca seja novidade para um mundo que movimenta um mercado pornográfico cada vez mais expansivo (incluindo aqui a contribuição de Lovecraft a muitos tentacle porn), os filmes de Gordon não merecem ser colocados nesses mesmos interesses. Partindo de um culto entorno dos espectros do trabalho de Lovecraft e os caminhos que o cinema de terror tomava nos anos 80, o diretor aproveitou toda a tendência do gênero para fazer alguns dos grandes filmes acerca da dominação e da destrutividade erótica e suas consequências físicas que apenas o horror consegue compreender. Longe do moralismo virgem Lovecraftiano, Gordon está muito mais próximo de autores como Sade na tentativa de transparecer os alcances do prazer na destruição carnal.
O clássico Re-Animator: A hora dos mortos vivos (1985), primeiro filme de Gordon, já surge com a firme intenção de simplesmente perverter tudo e todos que estão em tela. Progredindo de personagens comuns no ambiente de uma faculdade de medicina para um massacre de zumbis pelados e superpoderosos no ato final, é clara a vontade do autor em fazer com que o estado caótico seja completo.
Todos os problemas surgem quando o doutor Herbert West (Jeffrey Combs) inicia seu semestre na faculdade com uma experiência secreta que tem como objetivo trazer os mortos de volta à vida. É o questionamento Franksteiniano que por princípio renega as ordens tanto da vida social quanto de princípios cristãos ocidentais. Uma vez colocada nesse meio, inevitavelmente irá despir todos os bons costumes que pareciam bem ornamentados. Apenas depois de ser decepado e se transformar numa cabeça falante, reanimada pelo soro de West, que o doutor Carl Hill (David Gale) pode se sentir confortável para suprir seu tesão sórdido pela jovem filha de seu chefe (Barbara Crampton). Sentindo-se num estado tão asqueroso quanto seus desejos, o zumbi de Hill sequestra a garota afim de torna-la sua concubina. Numa analogia mais direta, é como se o monstro de Frankenstein, ao perceber-se como parte de cadáveres de vários homens, sentisse a libido de todos eles juntos, sendo a condição monstruosa de seu corpo uma metamorfose para alguém mais sexualmente poderoso.
Porém, Gordon nunca condena esse patamar dos corpos hediondos como máxima erótica, simplesmente se contenta em traduzi-los nos melhores aspectos do cinema de horror: as entregas gráficas. A potência de Re-Animator está em toda a capacidade do autor em fazer com que os corpos explodindo, se mutilando, transando e se despedaçando sejam apoiados por sua noção dramatúrgica complexa. Gordon entende que não há nada como um zumbi soltando tentáculos de suas tripas que esteja construído por dinâmicas críveis entre personagens e genuínas motivações anteriores. A mutação dos corpos e seus desejos necrófilos parecem tão grandiosas e acertadas justamente porque não há julgamento em sua existência, apenas um autor buscando fazer com que elas existam em meios competentes de encenação, montagem e narrativa que Gordon surpreendentemente parece dominar já na sua estreia. A dinamicidade e o ritmo quase de overdose que o filme assume desde os primeiros minutos é realmente engrandecedor.
Seu trabalho seguinte, Do Além (1986), considerado filme-irmão de Re-Animator, busca as elevações de fantasias diabólicas através do metafísico. Voltando a adaptar Lovecraft, dessa vez Gordon se apropria das estéticas paranormais do autor em outro conto em que a obscuridade e o desconhecimento de outras dimensões é o estopim para as mais gratificantes metamorfoses do corpo em criaturas regidas por prazeres destrutivos, sendo essa destruição essencial para a concretização do desejo. O pesquisador Edward Pretorius (Ted Scorel) é “abduzido” pelo mecanismo desenvolvido junto com o doutor Crawoford (Jeffrey Combs) que busca acesso à outras realidades. Em seus contatos interdimensionais, Edward vai assumindo a forma de um poderoso ser que transcende as vontades e as capacidades humanas, descontando isso em discursos sobre o “prazer total” de transformar-se em um monstro e em carne humana fresca que atenda às suas novas e jamais experimentadas zonas erógenas. Acontece um falocentrismo muito agressivo em Do Além que parece sempre recair sobre a doutora Katherine McMichaels (Barbara Crampton), desde as tentativas do monstro em forma de pênis de devorá-la até seu destruidor caso com Crawford, que também acaba tendo contato com esse mundo paralelo e percebe um pequeno falo com vida própria saindo de sua cabeça. A sequência em que Katherine veste uma roupa de couro e tenta fazer sexo com Crawford no meio do caos, influenciada por um tesão generalizado que a “outra dimensão” parece induzir, é o exemplo direto de como Gordon sabe aproveitar os absurdismos Lovecraftianos a favor dos interesses carnais de sua obra. Talvez se, num caso similar, o corpo de Jeff Goldblum transformado em mosca gigante incitasse qualquer atração na Geena Davis. Os fins sempre parecem ser as motivações sexuais e os fetiches mais absolutos que os vilões do cinema de horror podem atingir sendo expostos na alta dos efeitos práticos.
A compreensão do fetichismo no gênero não é exclusividade desses filmes, mas a expansão plástica e a criatividade que Gordon concretiza nos extremos da anatomia é singular: O Doutor Edward em Do Além arranca a própria pele, cresce em metros, saliva, se articula, solta suas gosmas e seus tentáculos, domina todo o espaço cênico através de seu corpo grotesco. Engole tudo (e todos) que a imagem alcança em níveis cada vez mais intensos, novamente chegando a um terceiro ato onde tudo já está convertido ao gore. Não é uma dominação puramente sexual praticada pelo monstro, ela é tão total que define os meios do próprio filme pois Gordon cria a liberdade para esses corpos bestiais não terem limites dentro do seu cinema. Quando toda decisão gira em torno de formas bizarras que os corpos assumem, sejam eles mortos vivos, monstros de mundos paralelos ou cientistas malucos com apetites sexuais canibalísticos, podemos dizer que quem assumiu controle desses filmes foi a própria expansão dos mais repugnantes fetiches.
A última grande incursão Lovecraftiana de Gordon aconteceu em 2001, em Dagon. Mesmo quase duas décadas depois de seus trabalhos mais icônicos, o diretor retorna ao caminho do prazer pela perdição em uma epopeia que envolve entidades marinhas possuindo jovens espanholas e um protagonista perturbado (Ezra Godden, emulando direitinho um Jeffrey Combs) que só encontra paz numa vida eterna de sexo acompanhado de sua meia-irmã com tentáculos no lugar das pernas.
Claro que, para que esse prazer final aconteça, meia dúzia de sacrifícios sangrentos acontecem e toda uma vila de pescadores é amaldiçoada, mas nada que não justifique a busca pela tão aguardada fantasia erótica interespécies. O melhor de Dagon é o tom de despedida que o Gordon assume, principalmente por encerrar seu filme com uma frase de Lovecraft que mais parece uma provocação: “Nós mergulharemos através de abismos negros… e naquele covil das Profundezas nós iremos morar em meio a maravilha e teremos glória para sempre”. Quase como se Gordon apontasse depois de todos aqueles anos que, no fim das contas, as brechas da obra de Lovecraft e o que sabemos sobre sua vida pessoal, que envolvia nojo da anatomia humana e um complexo de édipo mal resolvido, revelam um homem que encontrava seu prazer nas mais inimagináveis fantasias proporcionadas pelos mistérios do horror, não importa quão profundas e obscuras elas sejam. Finalmente, um prazer em que Gordon e Lovecraft podem se identificar.
Mal do Século
Por Carla Oliveira
Com a caneta suspensa para uma curta meditação, as palavras que me ocorrem ao espírito evocam a luz e o calor, com as quais habitualmente se costuma falar do amor: deslumbramento, raios, braseiro, luzes, fascinação, queimadura.
Jean Genet, Diário de um Ladrão
“Está frio aqui.” — É a primeira fala de Carol White (Julianne Moore), em Mal do Século (Safe, 1995), de Todd Haynes. A frase é dita ao marido, Greg (Xander Berkeley), à noite, ao chegarem em casa. Segue-se uma cena de sexo, a única do filme: enquadrada em plongée, vemos rubor na nuca de Greg, enquanto o rosto pálido de Carol denota desconforto. Seu corpo não sente desejo ou prazer, mas é gentil, expressa-se sempre com suavidade. Na manhã seguinte, ele lhe pergunta sobre sua sinusite, enquanto ela poda flores no jardim de sua mansão, no subúrbio da Califórnia. Em seguida, Carol recebe decoradores. Cumprindo essas tarefas de dona de casa, ela é enquadrada em planos abertos, que a evidenciam pequena e distante no ambiente de frialdade em que vive. Após aula de ginástica, onde a professora pede sorrisos às alunas durante os exercícios, suas colegas conversam sobre livro que aponta passos para se viver melhor, manejar o estresse e ter controle emocional. Há referência à necessidade de exercícios físicos e boa dieta. Observam, com espanto, que o corpo de Carol não transpira. É um pequeno sinal de que seu corpo fatigado está em descompasso com o ambiente. Em visita a sua melhor amiga, em luto pela morte do irmão — subentende-se que em decorrência da AIDS —, ela só aceita beber um copo de leite. Estamos no final dos anos 80 e muitos viram a deterioração física pela qual passará Carol a partir dessa sequência de cenas iniciais como uma metáfora dessa epidemia.
Todd Haynes, um dos nomes mais importantes do cinema independente americano, era, nesse momento, fortemente associado ao cinema queer. Seu primeiro longa-metragem — Veneno (Poison, 1991) —, premiado em Sundance, foi um dos filmes que levou a crítica B. Ruby Rich a cunhar a expressão New Queer Cinema, imortalizada como título de seu artigo, publicado na Sight and Sound 2.5 (1992). A crise da AIDS, ao levar muitos cineastas a repensar a representação dos corpos e do comportamento sexual queer nos Estados Unidos de Reagan, se tornou um importante catalisador desse movimento. Veneno foi inspirado na obra de Jean Genet e contém citações de: Nossa Senhora da Flores (1943), O Milagre da Rosa (1946) e Diário de um Ladrão (1949). Entrelaça três histórias, apresentadas em épocas distintas, cada uma com uma estética própria. A mais próxima a Genet — a que contém o lirismo das rosas —, apresenta corpos homossexuais másculos, belos, violentos e confinados em uma prisão, similares aos retratados pelo dramaturgo em seu único filme, Canção de Amor (Un Chant d’Amour, 1950), assim como aos de Querelle — Um Pacto com o Diabo (Querelle, 1982), obra de Rainer Werner Fassbinder, adaptada do romance Querelle de Brest, publicado em 1947, por Genet. O editor James Lyons, importante parceiro criativo de Haynes, atua nesse segmento. Lyons foi uma das vítimas da disseminação da AIDS: conviveu por muitos anos com a doença, trabalhando com ativismo.
Sua memória é honrada em Last Address (2010), de Ira Sachs, cineasta que também tem o seu nome vinculado ao New Queer Cinema. Uma segunda história de Veneno mostra um salto libertário, tipicamente genetiano, de um menino, vítima de vários abusos, que mata o próprio pai e sai voando pela janela. A terceira parte mostra a trágica sina de um cientista com pretensões de tratar a neurastenia e melhorar a raça humana. Ele isola e desvenda os mistérios do fluido da libido, mas o bebe por engano. A partir de então, sua pele se transforma e ele passa a transmitir sua nova condição, que se releva mortal, por aproximação sexual. A mídia, sensacionalista, o rotula de assassino leproso. Podemos ver aqui alusão e crítica à representação da AIDS pelos meios de comunicação, assim como à culpabilização de um comportamento. A reação conservadora ao pesquisador tachado de criminoso parece ser justificada pela epígrafe do filme: “The whole world is dying of panicky fright” (“o mundo inteiro está morrendo de pavor”), mas não se pode esquecer e deixar de retratar o medo e a dor dos contaminados, perseguidos pela sociedade. É interessante observar que no primeiro filme hollywoodiano sobre a AIDS, Filadélfia (Philadelphia, 1993), de Jonathan Demme, o personagem acometido pela doença (interpretado por Tom Hanks) move processo contra a empresa que o demite, alegando que as lesões de sarcoma de Kaposi (câncer comum em doentes aidéticos) presentes em seu rosto foram o motivo de seu desligamento. Em ambos os filmes, há um sinal da doença no próprio rosto, a doença “está na cara”, estigmatizando, tornando o doente ainda mais vulnerável ao preconceito e às injustiças da sociedade.
Mal do Século, que tem roteiro original de Haynes, não retrata diretamente a comunidade queer. O mal que acomete Carol, ao contrário da AIDS, não mina o seu sistema de defesa, deixando-a vulnerável. É exatamente o contrário. A síndrome que desenvolve faz com que ela se torne hiperreativa, cada vez mais sensível ao seu ambiente, principalmente aos químicos nele presentes, até que não consiga mais o habitar. Dos sintomas inespecíficos iniciais — dores de cabeça, desânimo, cansaço, inapetência, transtorno do sono —, ela evolui para um desconforto respiratório progressivo. À direção de seu carro, um acesso de tosse inicia, de forma insidiosa, quando ela se vê envolta por caminhões, e se intensifica ao entrar em um estacionamento onde precisa percorrer trajeto vertiginoso para baixo (uma metáfora da sua deterioração). Ao conseguir uma vaga, sai do carro ofegante, com a respiração pesada, arquejante. Procura um médico, que não vê nada muito alterado em seu quadro. Ao tentar uma mudança em seu aspecto — um novo corte e a aplicação de um permanente no cabelo (o que é feito com produtos químicos) —, ela tem um sangramento. Há dilaceramento, ruptura dos limites entre seus meios interno e externo. Sua pele pálida e fria passa a sofrer inúmeras erupções. Sua intolerância alimentar aumenta, passa a apresentar vômitos. Seu corpo, cada vez mais fraco e emagrecido, pouco se equilibra, e ela se sente confusa e desorientada em sua própria casa, junto à sua família.
Nessa derrocada, Carol procura novamente médicos tradicionais. Um alergista comprova que seus sintomas são desencadeados pela multiplicidade de produtos químicos com os quais tem contato em seu ambiente. Considerações sobre a dieta são feitas. Suplementações de oxigênio se tornam necessárias. Afasta-se das amigas, deixa de cumprir eficazmente a sua rotina. Em seu mal estar, é bombardeada pela publicidade e pela mídia com notícias sobre ambientalismo, tratamentos e concepções alternativas do corpo. Após uma internação em decorrência de uma crise convulsiva precipitada pelo contato com produtos para dedetização, ela se vê incapaz de se adequar às transformações do ambiente e da sociedade em que está inserida e decide partir para um centro terapêutico alternativo, dirigido por uma espécie de guia, afastado da cidade, situado em um deserto. Aqui está o principal comentário político de Haynes nesse filme.
Em entrevista a Larry Gross, publicada na Filmmaker Magazine, ele disse ter realizado Mal do Século em resposta aos terapeutas New Age que propalam serem os doentes os causadores de suas próprias enfermidades, os responsáveis por seus próprios sofrimentos. Ele fala do seu espanto ao se deparar, nos anos 80, com gays contaminados pelo HIV à procura de gurus que literalmente os culpavam por sua própria doença e diziam que eles poderiam se sentir melhor simplesmente desenvolvendo o amor-próprio. Ao se instalar no centro terapêutico, Carol é recebida em uma cerimônia de boas-vindas, onde uma política de moralidade e policiamento do desejo é expressada. Sua vida e relações pregressas ficam em suspenso. Mesmo com as práticas e os grupos de ajuda, suas solidão e alienação só aumentam. Confinada, ao final, em uma habitação semelhante a um iglu, ela repete, com o semblante sofrido, em frente ao espelho: “Eu te amo. Eu te amo muito.” Em vão.
Em Velvet Goldmine (1998), seu terceiro longa-metragem, Todd Haynes voltará a direcionar a sua atenção aos corpos queer, que se mostrarão ágeis, purpurinados, transgressores. A vulnerabilidade, o sofrimento e as lutas das minorias serão destacados em filmes subsequentes, como em Longe do Paraíso (Far from Heaven, 2002) e Carol (2015), denunciando o racismo, a intolerância e o preconceito da sociedade americana, em diferentes épocas. Mas os corpos de seus protagonistas serão mais firmes, nunca mais chegarão aos limites da vida como em Veneno e Mal do Século.
Não fui eu que transcendi, mas Deus que desceu até o inferno, ou: História do Olho
Por Felipe Leal
Tanto quanto ‘Deus’ invoca por si só, seja sob a capa de palavra, crença ou símbolo, certa Totalidade – para alguns, entendamos, Verbo, para outros cristandade, rosto esbranquiçado de cachos dourados, sangue respigando pelas dores da coroa dolorosa do mundo, etc. –, o nome Abel Ferrara, ele sozinho, carrega consigo particular ideia sobre um corpo em movimento de travessia pelo inferno, uma ideia sobre a qual, aqui também particularmente à subsistência física, seria “tortuoso” se debruçar, posto que a carne tem linguagem própria e só ao viciado é concedido olhá-Lo no rosto e não ouvir resposta, mas continuar olhando. Pois pensemos: o que é um homem que fez visita ao submundo? O que há no rosto de Keitel, dentro do lamento extravasadamente contido, em seus ombros rijos e pupilas furtivas que possa denunciar o corpo em comunhão com o avesso do paradisíaco? Não é óbvio o suficiente, algo que o pó e a agonia sexual possam denunciar sozinhos? Se a imundície é caricata, que ao menos não haja engano sobre as palpitações de seus signos: do catatônico ao estrebuchar-se em lágrimas, ninguém atende tão rapidamente à necessidade, ao presente, quanto o viciado.
A resposta, ficamos pasmos à teimosa rachadura do quebra-cabeça, está mais no detalhe do que na carreira de cocaína emprestando ao cano o instante-poder dos fracos: o que é comum à toda a obra de Ferrara, para além daquilo que de certa forma já sabemos que estará lá? A permuta cantada por Elvis Presley nos responde com candura e prontidão: “prometa-me, querida, o seu amor em retorno” (just promise me darling your love in return). Obra de usos e desusos de uns pelos outros, o corpo no limite das outras beiras. A drogada que fornece injeções à Keitel também o sussurra, como os vampiros que descreve: “os Vampiros têm sorte porque podem se alimentar de outrem; nós temos que consumir a nós mesmos, consumir nossas pernas só para encontrar a energia para andar; […] consumir a nós mesmos até que não reste nada além do apetite”. Pense, agora. De fato, escorregue do pensamento à presença carnal no espaço que o contém; suponha fisicamente um ajustar-se num corpo que vive apenas para a sensação que o presente lhe acompanha. É uma encruzilhada, e a câmera lança arestas e o papel injeta um devir que o ilustram bem: quando é preciso não estar lá para ser, chupar da presença, da delirante sucessão de sendos, uma matéria que possa fazer frente ao fato inconteste do próprio apagamento. O único sentimento a que se abre está nos dedos que erguem o depositório de cocaína, na testa espremida que aguarda o papel salpicado de crack. (Bem,) “Foda-se o passado”, ele diz, bem como para o futuro apenas aguarda as apostas do campeonato de Baseball.
Ele ascendeu ou descendeu?, diríamos, em perspectivismo nada mais ousado; de onde partiu o âmago que atiça a Natureza?, contra que saborosa fase de Cristo seria possível se contrapor com maior ironia?… as perguntas poderiam se multiplicar, não fosse Ferrara tão sério quanto ao mito que ainda recobre majoritária parte da nossa sociedade como um mosquiteiro continua assegurando a psicológica tranquilidade à criança histérica: quem é Deus, quando duas pernas e o cano de uma pistola são suficientes para recolher à miséria do silêncio suado quaisquer suspeitos, suspeitos quaisquer? Ele é Hades, precisa o tempo inteiro se travestir de Toda-Potência. Harvey Keitel, de quem se afirmou que desceu até o inferno, encontra, aos pés ensanguentados de Deus, do que vem se revelar uma alucinação, uma senhora que detém uma taça de ouro roubada à mão. Mas algo lhe antecedeu. Algo lhe é sempre prévio, a bem da verdade: ele só vive para si, para o momento de tomada de que pode ser dono, pode ser, de certa forma, Deus.
A quem quer que tenha previsto as máquinas como substitutos ou suplementos técnicos de nossa insuficiência, o que responderia Ferrara, e o curioso é que nunca lhe faltará razão, é apenas que há outra produção cíclica de necessidades mais rentável, comprimida, pulverizada, bebível, secular mucosa debaixo da língua, e também que nenhuma guerra às drogas poderá refrear o âmago oco que nos torna cristalino um fato: engolimos, deglutimos, devolvemos; ou seja: precisamos, e inevitavelmente desta adição necessária excretamos algo só para poder absorver de novo. Aquele corpo, tremendo, pergunta: é para isto, Deus? Tão pior. A carne no extremo do presente não quer nada mais que antecipar o próprio gesto que a torna músculo, movimento, motricidade previamente vital, e eis que a droga lhe acelera, prolifera e regurgita o desejo. E o que é desejar uma intensidade que não lhe aconteceu e, ao mesmo tempo, repetir a perpétua sensação total que a primeira trouxe? Absolutamente nada. Contraproducente, viver. Sísifos tristes.
Um atalho por Deus, que por aqui seria um curto-circuito deleitoso e paradoxalmente nada herege, aliás tão devoto quanto uma Simone Weil ou um Agostinho, revela não uma transcendência pelo maldito, mas uma irrupção digna de Deus na encortiçada e nebulosa redoma do crime. Ele agoniza nos cantos das escadas, salta da inércia plena ao resultado decidido do futuro dos novos mortais, que adoram e sacrificam milhares pela aposta cega no literal taco dos batedores de baseball. Estranhamente, o corpo ajoelhado ao prazer vive numa manutenção do transe. Chorar é espremer tudo, a redenção, o demônio, o gesto; fumar é revirar os globos para o inteiro do rosto tornado plácido. O membro viciado oscila sem intenção entre o extasiado e o exposto (nervo). Pelo nome da freira estuprada que, como Ele, viu o demônio no corpo de dois jovens, viu o demônio em si mesmo e aceitou o inconcebível perdão através de outro (d’Ela) – o policial, no entanto, não desatará o nó sem se adornar precisamente daquilo que repudia. A sirene do veículo é a trovoada do autonomeado Deus. O corpo trágico talvez seja mesmo hilário: “I’m a fucking catholic”, assim, só dito, é o seu amuleto.
Acorrentado no vício, diga-se o que quiser, chafurdando no crime contra o qual sangra mas sem cuja infiltração não sobreviveria uma gota de pulsão de nobreza correcional, antes de ser a presença arrogante de sua potência, Zeus é também pai: oferta aos rebaixados nada menos que a curva do Julgamento, ilumina a dobra que anuncia a conversão. Um ônibus à alhures, e o pai chora na estação dando adeus, talvez pela primeira vez descontrolado do Destino que achava possuir. Se pode cheirar, esse Deus? Hilda Hilst o chamou: uma superfície de gelo ancorada no riso. E ele escorrega, está sempre bamboleando, pedem-lhe que vá com calma. Ele vai ao extremo e chora como um menino. Antes só chorasse: lamenta, rangendo os dentes, que tenha de vestir a justiça na terra. Corpo megalômano concentrado na superfície que mais se deforma – a do rosto. Ele não só tem que chupar para sustentar a língua, o delírio do pó incendeia a absorção com o peso do longe demais. Quando se olha o Sol, o resíduo, ainda que criacional, já queimou a vista. Ele se arrepende da própria humanidade quando queria desferir o tiro mas acolhe a liberdade. Às vezes o corpo é disfuncial. Keitel é a mandíbula enlaçada que fumega incompreensão quanto tem de ceder. Deus é menino? Já cheirou pó? O corpo que O encontrou é como a canção de Natal para Abel Ferrara, para os ouvidos dos meninos: de novo, de novo, de novo.