Arquivo

O céu é uma massa horrenda de videocassetes rodopiantes e videogames Magnavox

Por Natália Reis

And those who expected lightning and thunder
Are disappointed.
And those who expected signs and archangels’ trumps
Do not believe it is happening now.
As long as the sun and the moon are above,
As long as the bumblebee visits a rose,
As long as rosy infants are born
No one believes it is happening now.
(A Song on the End of the World, CZESLAW MILOSZ)

 

img 1

Phillipe Dubois, teórico que, entre outras coisas, percorreu as possibilidades do vídeo enquanto imagem e dispositivo, fala de um “lugar dilacerado na história” ocupado pelo formato, condicionador de uma imagem transitória, que pende entre o cinema e o digital: é como “um banco de areia, entre dois rios, que correntes contrárias vêm apagar progressiva e rapidamente”, “um parêntese”, “um interstício ou um intervalo”, “uma ilha destinada a submergir”. Nesse não-lugar da analogia de Dubois, uma figura antes difusa entra em foco: num motel de beira de estrada, um homem branco de meia-idade espreita através das cortinas o céu escurecer e ser preenchido por nuvens carregadas, tv e rádio ligados anunciando a tempestade iminente, dias de espera. Em Weather Diary 1 (1986), primeiro filme da extensa série de “diários climáticos” de George Kuchar, a imagem ilhada é a esperança nunca concretizada de testemunhar um fenômeno meteorológico de magnitude e captá-lo na câmera de vídeo.

Por quase trinta anos, Kuchar manteve as idas periódicas ao estado de Oklahoma, coração da região conhecida como Tornado Alley (“alameda dos tornados”), no intuito de observar o clima e suas reverberações. Primeiramente instalou-se numa YMCA, associação para jovens cristãos na cidade de Oklahoma, e posteriormente no pequeno município de El Reno, onde realizou em 1977, Wild Night in El Reno, curta de pouco mais de 5 minutos de duração e de certa forma gênese dos Weather Diaries. O interesse por meteorologia nutrido desde a juventude – para além de um fascínio pela “tapeçaria colorida do céu que pairava sobre os cortiços de onde morava” como descreveria mais tarde, o diretor também já havia trabalhado fazendo mapas climáticos para o noticiário local – vem ao encontro de um potencial criador igualmente prematuro: desde os 12 anos de idade, George e o irmão gêmeo Mike produziam filmes em super-8 que replicavam, à sua maneira, os melodramas comerciais hollywoodianos e filmes B de terror consumidos por sua família de classe trabalhadora do Bronx. Com a naturalização das câmeras de vídeo nos anos 80, o fluxo (sempre considerável) das produções é amplificado, a comodidade e o baixo custo somados a uma estética por vezes considerada de filmes caseiros e/ou pouco artísticos, se tornam material basilar para os trabalhos posteriores de George Kuchar, incluindo seus diários.

img 2img 3

O filme-catástrofe como gênero, na sua essência, conclama pelo esforço coletivo em prol de um bem maior, seja o cumprimento de uma missão (Twister, 1996) ou a própria salvação (O dia depois de amanhã, 2004; 2012, 2009). A fuga e o deslocamento também figuram como forças motoras do gesto de sobrevivência, uma vez que a imobilidade significaria o fim (afinal um fenômeno natural só se torna catastrófico no momento que irrompe no cenário urbano, humanizado). O que Kuchar faz nos seus Weather Diaries, e sobretudo no primeiro filme, é justamente subverter essas abordagens partindo da calamidade como rotina solitária, uma espera permeada pelas previsões e notícias que chegam do mundo externo através do rádio e da tv, e mediada pela paisagem desgastada na janela do quarto no Motel Reno. Uma forma de existência no porvir.

img 4

Em Gummo (1997), de Harmony Korine, crianças e adolescentes perambulam entre as ruínas de uma cidade devastada após a passagem de um furacão. Se o filme é por vezes tratado como apocalíptico, é possível que seja menos pela destruição causada pelo tornado e mais pelo que ela escancara: uma classe de pessoas fragilizadas, subnutridas e semialfabetizadas, cuja condição de vida precária numa área de risco a coloca sempre perto do fim. Numa mesma chave em determinado momento de Weather Diary 1, Kuchar conversa com uma mulher de traços indígenas sobre um alerta de tempestade. A mulher é filmada de costas olhando para o céu com preocupação, e é questionada se teria algum lugar onde se abrigar. A resposta – ela mora em um trailer estacionado perto dali – vem com palavras apaziguadoras (e no fundo temerosas) de ambos interlocutores de que, afinal, o evento não deve ser tão avassalador assim. Mais tarde, enquanto o céu parece desabar, o diretor se lembra da breve companhia

O medo e o desejo estão ali, mas o que transborda em Weather Diary 1 é o tempo e as transformações suscitadas na natureza (nos elementos humanos e não-humanos) e no corpo do diretor. Com o decorrer dos dias, poças e insetos se acumulam, quedas de energia se tornam frequentes, aparelhos eletrodomésticos começam a ranger, a pia entope e brotoejas se espalham sobre a pele de Kuchar. Lá fora, rostos conhecidos dizem adeus, algumas crianças brincam em um córrego poluído e os cães rondam animais mortos. A montagem, realizada na própria câmera, é quase toda composta por inserts, por meio de um método que consiste em retomar cenas antes gravadas e criar e simultaneamente preencher fissuras com novas cenas, novos comentários. Nesse processo, o que se experiencia é uma cronologia que obedece apenas à própria ordenação, como o fluxo da programação da tv que Kuchar goteja pelo filme inteiro, ou o vortex que escapa da descarga do vaso sanitário, no ralo da pia e no café mexido, sucedendo um ciclo de deterioração do universo pessoal do diretor.

img 5

Nos últimos filmes da série, o motel habitualmente ocupado por Kuchar é transformado em casa de repouso – o que não o impede de continuar frequentando e muito menos de se tornar o único hóspede posto em um quarto inalterado enquanto reformam tudo ao redor. Essa imagem talvez seja a sumarização do lugar do realizador nos seus diários: um “storm squatter”[1] (se dizia) em oposição aos storm chasers, um ponto fixo num estado das coisas retido na incerteza. Se a câmera, como afirmava, era o que o protegia no vislumbre do mundo que parecia ruir sob a ameaça de tempestade, ela também é ancoragem da sua presença, uma alternativa preciosa para tempos nos quais só é possível olhar pelas telas e janelas.

Referências

Dubois, P. (2014). Cinema, vídeo, godard. Editora Cosac Naify.

MacDonald, S., & Kuchar, G. (1985). George Kuchar: An Interview. Film Quarterly, 2-15.

Ziemons, U. (2014). Aufzeichnungen eines Storm Squatters: George Kuchars Weather Diaries (Vol. 15). transcript Verlag.

[1] Algo como “sedentário de tempestades”

FacebookTwitter

CINEMA E APOCALIPSE

godzilla4

Nós (Us, Jordan Peele, 2019): apocalipse subterrâneo
Kênia Freitas

Shyamalan e a iminência
Bernardo Oliveira

O apocalipse filmo eu: Sogobi, de James Benning
Pedro Tavares

O céu é uma massa horrenda de videocassetes rodopiantes e videogames Magnavox
Natália Reis

À beira do abismo: Miracle Mile, de Steve De Jarnatt
João Pedro Faro

A nostalgia e pulsão sexual em Estranhos Prazeres de Kathryn Bigelow
Gabriel Papaléo

Saindo de férias durante o apocalipse: Mad Max e o negacionismo
Bernardo Moraes Chacur

O Sertão como meio e o Sertão como fim
João Lucas Pedrosa

Entre templos e ruínas: fim do mundo e continuidade do cosmos
Luís Flores

Alegoria e corpo em Medo do Escuro
Camila Vieira

Godzilla ontem e hoje
Flavio C. von Sperling

Há um olho que me observa
Felipe Leal

Circuitos ao vento: a solidão no fim do mundo de Kairo (2001), de Kiyoshi Kurosawa
Diogo Serafim

Pode até que isto seja um grito
Lucas Saturnino

Um outro destino para o tempo em O Sacrifício, de Tarkovski
Chico Torres

*

FacebookTwitter

O apocalipse filmo eu: Sogobi, de James Benning

Por Pedro Tavares

Narrador não-epistolar do cinema experimental e dos filmes-ensaio, James Benning é o que Walter Benjamin chama de flâneur, um autor que armazena o tempo como uma bateria armazena energia[1]. A carreira de Benning segue abordagens minimalistas e que discutem a força da intervenção do autor. De One Way Boogie Oogie (1977), filme no qual Benning “permite” a intromissão de pedras batendo nos tapumes da cidade ou a simples presença de pessoas que não autorizam a ciência se elas sobem ou descem as ladeiras até o recente L. Cohen (2018). Quatro décadas depois, o filme fortalece o conjunto de imagem e som através de artifícios. Na observação de Benning, há sempre um deslocamento da coerência na diegese, da lógica narrativa dos planos.

Sogobi, filmado em 16mm no ano 2000, antes da partida do autor para os dispositivos digitais, é uma espécie de retorno à natureza e filmado no Central Valley de Los Angeles. É a última parte da “trilogia da Califórnia” que se complementa com Los (2001) e El Valley Centro (1999), o primeiro concentrado na zona urbana da cidade e o segundo na área desértica. Na experiência de Sogobi, estruturalista como sempre, Benning analisa não só a intervenção do homem em “tempo real” com presença de helicópteros, caminhões e trens na área selvagem de Los Angeles.

A degradação da natureza nas imagens de Benning é oblíqua; o timing de fixação dessas imagens aos poucos se embaralha, e a ideia de uma narrativa de degradação da natureza por atitudes antropocêntricas oferece diferentes perspectivas. Uma delas está nas diversas sinopses encontradas pela internet que afirmam que Sogobi filme, em 35 planos, a natureza intocada. Outra é uma afirmação do próprio realizador que sugere o olhar para “puras imagens” e também o vislumbre de uma experiência arqueológica do cinema pela estrutura utilizada pelo diretor para contemplar o movimento e a falta deste – mais precisamente, o diálogo entre cinema e pintura.

ED3ubMdXkAMvrop

Em primeiro plano, há uma ideia de deslocamento de Benning a respeito do cenário apocalíptico nos Estados Unidos construído após os ataques de 11 de setembro de 2001, já que Sogobi foi lançado em 2002. Uma insinuação ao que o dromologista e pensador francês Paul Virilio chama de “não-lugar”[2]. Se não existe identidade, pois não há um “lugar”, ou seja, um reconhecimento imediato da imagem, as paisagens – e degradações – registradas violam a noção de cidade em favor de um sentido, o da angústia e a certeza do fim.

Ainda sob as palavras de Virilio em The Vision Machine (1989), a rapidez serve como a velocidade central da experiência contemporânea. Vale a lembrança da mudança tecnológica que o mundo passava no momento de filmagem de Sogobi com a chegada da internet em banda-larga. A percepção do mundo e velocidade mudaria mais uma vez em rápido curso de tempo.

O que o autor faz é não se concentrar na simples descontinuidade da diegese de ação e reação de seus planos estáticos. Afastar-se da coerência dos signos estipulados por suas imagens é, neste caso, uma “desnaturalização da experiência do tempo”, a usar as palavras de Timothy Corrigan (2011).

O apocalipse de Benning é intrínseco à subjetividade pública, longe dos grandes centros e que espelha ações que está a milhares de quilômetros dali, seja nas ações do capital de destruição da natureza como na própria guerra estipulada por George W. Bush em 2001. Se máquinas, armas e câmeras fazem parte do arsenal bélico americano com diferentes funções, o autor, em seu retrato particular de uma área delineada pelo pensamento estrutural, eleva o conceito dramático de destruição geral, seja por incêndios, outdoors, maquinários que tomam as paisagens ou a coreografia do funcionamento dessas máquinas.

7haJnZD

Pela temporalidade de registro dessas ações, James Benning incita um tipo de lamento na observação. A destruição como caminho irreparável de um modelo social que se espelha em outros extremos, incluindo a guerra. A angústia do ato de contemplar o extermínio é possível em Sogobi, afinal não há gritos ou explosões. Existe um enganoso sentido de trégua entre homem e natureza que o autor contrasta. As intervenções de Benning levam esta representação para o espaço público, onde não há escapatória para o olhar e a ciência do caminho de autodestruição. Toda coerência supostamente funcional é orquestrada para o fim da utopia de um espaço ainda não explorado, de uma reserva natural e moral disponível para deteriorações humanas.

As imagens de Sogobi invocam um organismo que reflete ações como escoadouro inevitável. A pureza do ambiente e das próprias imagens, aqui ora adulteradas e ora intactas, comenta a irreversibilidade do trauma – antes inócuo, agora (de)formado e com funções de interesses exclusivamente humanos. A questão que cerca todo o filme é se os interesses são de fato genuínos para o funcionamento de um espaço público que está no contraplano ou se toda mutação aqui registrada serve como uma via facilitadora de motivações financeiras ou bélicas. Benning, contrariando formas de pensamento a respeito do tempo, consegue “pegar a mosca com a mão”. O tempo está capturado com a certeza que para a ganância o tempo corre lentamente.

sogobi-jamesbenning

[1] Walter Benjamin descreveu o flâneur como a figura essencial do espectador urbano moderno, um detetive amador e investigador da cidade. Mais do que isso, seu flâneur era um sinal da alienação da cidade e do capitalismo. Para Benjamin, o flâneur , conheceu o seu fim com o triunfo do capitalismo de consumo.

[2] Como um enunciado filosófico Virilio insinuava o fim da geografia onde emergem os não-lugares e a identidade dá lugar à rastreabilidade: “Eu não posso ser sem ter um lugar, torno-me um estranho.”

FacebookTwitter

Artifício apocalíptico: alegoria e corpo em Medo do escuro

Por Camila Vieira

Foto 1

O primeiro plano de Medo do escuro (2015), de Ivo Lopes Araújo, apresenta em contra plongée dois prédios abandonados. Entre eles, é possível avistar o céu ser invadido por imensas nuvens brancas que estão a passar e que ocupam completamente o azul com uma grande e densa névoa. É uma atmosfera de um lamento fúnebre, uma figura ameaçadora como uma luz gigantesca e destruidora. Um holofote de um tempo de aniquilação das vidas. Aqui me amparo em Sobrevivência dos Vagalumes (2011), de Georges Didi-Huberman (2011), quando alerta para a luz feroz dos projetores que levarão ao desaparecimento dos vagalumes. Por meio do ofuscamento dessa luz branca, reina o fascismo triunfante.

Como seria possível para um corpo resistir ao fascismo que vai se disseminando pela paisagem de Medo do escuro? Antes de arriscar uma resposta, será preciso entender como o filme articula duas vontades singulares. O primeiro gesto é do levante, convocado pelas próprias palavras de Ivo Lopes Araújo sobre o filme. Um levante que se desdobra na própria feitura do filme. É toda uma cena artística de Fortaleza que é convocada como força coletiva dentro do filme: poetas, performers, músicos. O ator principal é Jonnata Doll, cantor e performer. A trilha musical do filme era executada ao vivo por um quarteto de músicos – Ivo Lopes Araújo, Vitor Colares, Uirá dos Reis e Thaís de Campos. Exibir o filme era uma aventura de viajar junto com um grupo. Cada exibição tinha o caráter de uma experiência única. Medo do escuro é um filme em processo, um work in progress. É até difícil exibir em uma sala de aula, porque sua experiência parece ser da ordem do provisório.

O provisório leva ao segundo gesto. Um filme rodado em 16mm, com película vencida, em que se tinha três horas de material bruto para resultar em um filme de 55 minutos. Cada take filmado era um take único. Seria preciso confiar na performance dos atores para que o filme acontecesse. Confiar na potencialidade do fragmento como estratégia para uma dramaturgia possível. Performance e fragmento compõem diferentes modos de articulação do que se encena, em uma vontade de instaurar um cenário pós-apocalíptico. Medo do escuro aposta no artifício como experimentação estética a partir da construção de imagens alegóricas, na tentativa de estremecer as relações contíguas com um real previamente conhecido.

Abrir caminhos para sentidos múltiplos e provisórios é fazer também uso da alegoria como contraponto ao simbólico. Enquanto as metáforas e os símbolos apontam para unívocas interpretações de mundo, a alegoria possibilita uma proliferação de sentidos, que sempre mudam a cada olhar e criam momentos de interrupção no solo petrificado da significação. Tomo aqui o conceito de alegoria em Walter Benjamin (1984) para quem a alegoria configura-se como resistência ao símbolo. Diz Benjamin na Origem do Drama Barroco (1984): “alegoria não é frívola técnica de ilustração por imagens”. Nada na alegoria é definitivo.

O pesquisador Rainer Rochlitz dedica um trecho de seu livro O desencantamento da arte (2003) para compreender de que maneira a alegoria é elemento importante para construção de uma teoria da arte para Benjamin: “A alegoria não é aqui simplesmente um tropo, uma figura de estilo substituindo uma ideia por outra que lhe é análoga (…) a alegoria é não somente o princípio formal de um certo tipo de arte – desse ponto de vista, ela se opõe ao ‘símbolo’ ou a uma arte definida como ‘simbólica’ – mas ainda, mais que um conceito retórico ou mesmo poético, um conceito estético que remete à coerência de uma visão de mundo”.

Não se trata de compreender a alegoria como “uma técnica lúdica de figuração metaforizada”, como explica Rochlitz, mas como expressão, um conceito estético. Na alegoria, a face hipocrática da história se oferece ao olhar do espectador como paisagem primitiva petrificada. É “a história, naquilo que ela tem de intempestivo, de doloroso, de malogrado”, afirma Benjamin. A alegoria benjaminiana é uma recusa radical de qualquer reconciliação simbólica. Está mais próxima de uma experiência da história com um olhar profundo que, segundo Benjamin, “transforma, de um só golpe, as coisas e as obras”.

Se preferirmos enfrentar a força da alegoria nas imagens de Medo do escuro, parece ser preciso sempre retornar ao filme e, a cada nova exibição, pensar de forma diferente em relação ao que está sendo colocado em jogo. Ainda segundo Rochlitz, “a alegoria faz aparecer a fragilidade do símbolo, sua vitória sempre provisória e momentânea sobre a ‘arbitrariedade do signo’. A escritura expressiva da alegoria é destrutiva”. Ao lançar mão de imagens alegóricas, Medo do escuro provoca determinadas rupturas no olhar. Penso não apenas naquilo que conseguimos ver dentro de um campo limitado de uma tautologia das imagens, mas como o filme opera buracos, rachaduras, ausências em uma certa platitude da visibilidade, que a nós parece já estar acomodada e domesticada. Em outras palavras, seria possível pensar junto com Didi-Huberman que aquilo que vemos também nos olha.

Considero gestos de operações de figuras cinematográficas em que a imagem acaba por rachar, cindir, ser perturbada por rastros, marcada por vestígios que colocam em questão ou em suspensão regimes de visibilidade do contemporâneo que podem conduzir às tiranias de uma mirada realista naturalista ou de uma interpretação simbólica. Na alegoria, uma imagem não está a serviço de um modo de ilustração ou simbologia de algo dado no mundo, mas como potencial dialético que intercepta o símbolo ao convocar o provisório, o fragmento, o vestígio. De acordo com o pensamento benjaminiano, “na esfera da intenção alegórica, a imagem é fragmento, ruína. Sua beleza simbólica se evapora. O falso brilho da totalidade se extingue”. A imagem como fragmento e ruína dentro do cinema abre uma conexão com o artifício.

Ângela Prysthon (2015) argumenta que o realismo preponderante da década de 2000 vai cedendo lugar a ambiguidade do que ela chama de “realismo sob rasura” em que o artifício dilacera o real. “Choque deliberado entre o realismo e o artifício excessivo que desarticula e desestabiliza os efeitos de real pressupostos em plots mais banais”. Para a pesquisadora, a transfiguração ou desfiguração do real em filmes que apostam no elogio do artifício acabam por inventar mundos alternativos com o cinema. “Os filmes propõem potentes heterotopias fílmicas, exercícios de resistência ao real ou premonições sombrias, e se revelam extremamente pertinentes para pensar o contemporâneo”.

A alegoria pode ser pensada como conceito estético que, no cinema, vincula-se a uma estratégia do artifício. Para Benjamin, a alegoria é “um objeto de saber, aninhado em ruínas artificiais, cuidadosamente premeditadas”. Em Medo do escuro, tais ruínas artificiais engendram volumes de corpos e superfícies de paisagens entregues ao esvaziamento, às forças sensíveis dos vestígios em que o ver nada mais é que uma experiência dos rastros. Figurar a história como catástrofe, como acúmulo de ruínas, é o que mobiliza Medo do escuro. Um jovem sobe os andaimes de um prédio abandonado e cata papeis em meio a escombros para fazer uma fogueira e se aquecer. Ele deambula por uma cidade desolada, tomada por entulhos, em ruínas.

Foto 2

As ruínas em Medo do Escuro não são apenas a constituição aparente da paisagem. Elas são imagens do provisório e do fragmento que a alegoria evoca e, de algum modo, roçam a fragilidade e o desamparo de uma cidade como Fortaleza, povoada por edifícios e ruas abandonadas. Lugares de memória, destruídos ou largados à própria sorte, pairam em meio à dinâmica predatória de ocupação dos espaços da cidade. Como ainda é possível habitar uma cidade em ruínas? Como criar bolsões de resistência neste cenário pós-apocalíptico? Contentar-se com o pouco, com o frágil, construindo diferenças com os resquícios que ficam, pode ser uma estratégia. O gesto é o mesmo do protagonista que constantemente arrisca voltar às ruas para coletar restos.

Medo do escuro projeta cenários de paisagens em ruínas em que personagens encontram novas formas de sobrevivência. O filme é entulhado por escombros de prédios, em ruas esfumaçadas, com personagens em meio a fragmentos de espelhos e lixo. Prysthon compreende que “essas imagens de ruínas e de desolação parecem desfigurações ou transfigurações da Fortaleza real”. Mas é justamente a transfiguração que está em jogo nas imagens de Medo do escuro que faz com que a paisagem possa reverberar a sensação de ocupar qualquer grande centro urbano, que privilegia a construção de grandes empreendimentos e ordena remoções constantes da população. A ruptura se dá neste lugar em que já não é possível reconhecer imediatamente a cidade de Fortaleza como lugar de representação, mas a construção de um espaço alegórico em que tudo parece ruir.

Se o levante se dá na práxis do filme, há um gesto iconoclasta em relação à imagem simbólica já desgastada do levante: jogar o coquetel molotov com o rosto coberto por uma máscara. Não há em quem atirar a garrafa incendiária – a cidade está vazia – e a máscara não é uma forma de esconder a identidade de um rosto – o ar está tóxico. É uma ação para o nada, que termina com a sensação de cansaço, muito comum ao que parte de nós vive no corpo. Um trio de agressores observa e ataca. Os corpos dos poucos sobreviventes entram em convulsão ou desencanto. São constantemente agredidos e abatidos. Há o gesto de acolhimento de uma garota em abrigar o corpo do jovem para um intervalo de cura. É preciso acolher em momento de necessidade de ajuda.

Foto 3

Os lampejos intermitentes de Medo do escuro – espelhos reluzentes, reflexos do sol e o brilho nos corpos dos personagens – parecem vislumbres de um possível que permitem aos corpos continuar, a dar mais um passo, a não ceder diante das ameaças. Nos momentos mais críticos, há sempre a queda, mas algo impulsiona os personagens a recomeçar. Em uma morada hostil, talvez não haja força suficiente para combater os poderes. Quem sabe tais instâncias de soberania sejam apenas imagens a impor o medo, a tentar nos imobilizar e arrefecer nossos ânimos? O que esse filme pode convocar em meio a uma nova barbárie?

Foto 4

A imagem narcísica do agressor irá se desfazer como um espelho quebrado e o céu voltará a ficar azul. O impulso de resistência parece estar guardado no corpo: ele extravasa em um movimento de dança, como os vagalumes que dançam na alegoria lançada por Didi-Huberman. “Nós podemos experimentá-la a cada dia – a dança dos vagalumes, esse momento de graça que resiste ao mundo do terror, é o momento mais fugaz, de mais frágil”. Enquanto houver força para se tornar vagalume, o corpo resistirá como ser luminescente, dançante, errático, intocável. Eis que a questão em jogo é política e histórica.

Referências

BENJAMIN, Walter. Origem do drama barroco alemão. São Paulo: Brasiliense, 1984.

________________. As passagens. Belo Horizonte: UFMG, 2006.

DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Ed. 34, 1998.

______________________. Sobrevivência dos vagalumes. Belo Horizonte: UFMG, 2011.

PRYSTHON, Ângela. “Furiosas frivolidades: artifício, heterotopias e temporalidades estranhas no cinema brasileiro contemporâneo”. Revista Eco-Pós, Rio de Janeiro, v. 18, n. 3, p. 66-74, 2015.

ROCHLITZ, Rainer. O desencantamento da arte. Bauru: Edusc, 2003.

FacebookTwitter

Shyamalan e a iminência

Por Bernardo Oliveira

shyamalan

I. (tomorrow is the question)

Os alienígenas em Twin Peaks — The Return estão bolados: demonstram preocupação extrema com o destino aparentemente inevitável da Terra. Com o advento dos testes nucleares, isto é, através de sua própria atividade, o “tipo Homem” atravessou um perigoso limiar, tornando concreta a possibilidade de sua própria extinção. Na antessala onde ocorre o bizarro parlamento, projetam-se imagens do acontecimento que pode determinar a destruição do planetinha vagabundo e da corja desalmada que o habita. As imagens incidem sobre uma tela instalada no hall, cuja aparência lembra a de uma sala de cinema, mas sem as poltronas. Seres antropomórficos assistem ao espetáculo da destruição como quem vê a realidade cósmica através da tela de cinema. Como no processo aterrador do Apocalipse bíblico, o Cinema também encontra sua potência em tramas de afetos e afecções, em articulações fantasmáticas entre imagem, som e palavra. A nós, espectadores terrenos e mortais, resta embarcar em um dos mais intensos fluxos audiovisuais da cinematografia recente. Invenção e escatologia se imbricam no imaginário apocalíptico criado por David Lynch.

Apocalipse, do verbo grego clássico apokálupsis (ἀποκάλυψις) — que é a junção do prefixo de negativo ápó (ἀπό) com o verbo kalúptô (καλύπτω, esconder), dando forma ao sentido de algo que se descobre, se revela, se torna público. O sentido mais literal do termo não se relacionaria somente à destruição, mas à ideia de algo que se descobre ao fim de um processo. Apocalipse, isto é, uma “revelação”. Em termos literários, o Apocalipse canônico teria, como uma de suas características, a proliferação de acontecimentos terríveis, carregados em imagens absurdas, que embaralham as dimensões da linguagem e das sensações. Redigido pelo profeta  João de Patmos, o Apocalipse descreve um cortejo de criaturas extravagantes revirando o Planeta de alto a baixo. Um espetáculo carnavalesco, trágica representação do acerto de contas divino com a humanidade vacilona. Bodes degolados com sete olhos e sete chifres, sete anjos que nos lançam sete pragas, “miríades de miríades e milhares e milhares” de anciãos, taças douradas, incensos, raios de fogo e lava, choros e gemidos suplicantes, mares de vidro e fogo. A colheita maldita separa os puros e os impuros, os sagrados e os degradados, “morte, miséria e fome”. Imagens de um filme-catástrofe que tira proveito do esgotamento para fazer transbordar um sentimento delirante de vingança divina.

shyamalan

A catástrofe apocalíptica teria por função varrer do mapa o mundo tal como o conhecemos, expondo a todos — a todos, mesmo! — o conteúdo derradeiro do processo, isto é, o valor e o poder verdadeiros. O poder revelador da catástrofe é, portanto, um poder que evoca o sentimento generalizado de pavor diante da finitude humana, pavor que é produzido pela sensação de que o fim do mundo, tal como o conhecemos, é inescapável. O fim do mundo corresponde ao desmascaramento de todas as ilusões de sobrevivência, particularmente da raça humana. E, no intervalo entre a destruição e a revelação, pode-se flagrar a oscilação apocalíptica, as múltiplas forças da dúvida e do movimento, que incidem sobre os viventes e que rebatem o pavor, redistribuindo as cartas.

Shyamalan tematiza diretamente o fim do mundo em Fim dos Tempos e Sinais, operando também a tensão revelatória em praticamente todos os seus filmes. O conteúdo derradeiro, porém, nunca é exposto ou resolvido em sua totalidade, ficando espaço-tempo e personagens à mercê de uma realidade descontinuada. O Apocalipse shyamalânico não se concretiza, mas funciona como pressuposto para a manipulação das atmosferas que envolvem seus personagens. Seu ponto de vista se vê oscilando entre a descoberta e a destruição, sempre sob a perspectiva da Iminência — “pois o tempo está próximo…” (Apocalipse, 1). O foco não reside no fim, na destruição de toda a ordem, tampouco na revelação da nova ordem, mas nas variações particulares provocadas pela situação de suspensão. O conteúdo revelado — místico, misterioso ou escatológico — corresponde à suspensão da ordem universal, natural ou restrita, sem que sejam substituídas imediatamente por outras ordens. Se há um registro apocalíptico na obra de Shyamalan, não se trata nem de um apocalipse derradeiro ou terminal, nem do anúncio de uma verdade; mas desse espaço de suspensão entre a destruição e a renovação.

Lemos no escrito canônico do Apocalipse, que integra o Novo Testamento, algo que nos remete diretamente à potência revelatória que o Cinema manifesta em Twin Peaks. Após uma primeira anunciação divina, o profeta assiste a uma cena inusitada: “eis que se mostrou uma porta aberta no céu; e a voz […] falando comigo, dizendo: ‘Sobe até aqui e eu te mostrarei as coisas que é preciso que aconteçam depois dessas’.” O céu se abre como a tela de cinema alienígena e, através dela, recebemos, a um só tempo, um comando decisivo, um testemunho do devir e uma convocação para a ação. Na situação revelatória, deserdados pelo destino dos ingênuos, somos forçados a traçar uma linha de fuga e agir a todo custo.

shyamalan

Assistimos aos nossos próprios traumas se dissolverem ante ao espetáculo da destruição. O horizonte de expectativas é borrado pela dúvida: o que virá? Como em praticamente todos os seus filmes, trata-se também de um elogio e de uma operação sobre a hesitação: duvidar daquilo que se vê e crê; paulatinamente tomar consciência da enrascada em que nos metemos. A dúvida — que fazer? — empurra a trama adiante e mantém o processo irresoluto entre a realidade deste e a de outros mundos possíveis. Em meio à iminência, ocorre também a intermitência da catástrofe, os fragmentos do conflito que se espalham e se depositam pelo seu entorno. O terror, como subproduto da dúvida, advém de uma realidade envolta nas consequências imprevistas da suspensão revelatória: o mito comunitário e opressor descortinado em A Vila; a trama invisível que incide sobre os humanos em Fim dos Tempos (melhor seria tomarmos pelo seu título original: “O Acontecimento”…); a ameaça alienígena como escravização do humano em Sinais; a esperança de reconduzir a “Dama da Água” de volta ao seu mundo. Manter a dúvida é fundamental. Assim, o autor não dissolve, mas torna fluido o limite entre a luz e a escuridão. Seu cinema é apocalíptico, porque se autodetermina no limiar entre finito e infinito, ciência e subjetividade, magia e realidade, mantendo em aberto o espaço da iminência. Entre a iminência e o interdito, há mais do que uma diferença de grau, mas a emergência de uma nova ordem, que permanecerá desconhecida. Shyamalan não pretende iluminar a escuridão, mas posicionar seus personagens em uma fronteira cinzenta, de modo que eles testemunhem e reajam à catástrofe inevitável.

II. (broken shadows)

“Cresci hindu”, afirma Shyamalan em uma entrevista. Naturalizado norte-americano aos 18 anos, substituiu o Nelliyattu pelo Night e abreviou Manoj.: M. Night Shyamalan. Nasceu em Mahé, pequena cidade em Pondicherry, Distrito Nacional da Índia, migrando para a Pensilvânia com seis anos de idade e naturalizando-se norte-americano durante a Faculdade. Ainda jovem, realizou dezenas de filmes em Super-8, sob a influência de Steven Spielberg, o cineasta judeu responsável por um dos filmes mais ofensivos de que se tem notícia contra a religião Hindu: Indiana Jones e o Templo da Perdição (1984). Isso não impediu Shyamalan de tomar Spielberg como referência, mas, também, de forma inequívoca, de subverter a máquina spielberguiana, sabotando-a por dentro. Digo isso, pois, não tendo a competência para uma análise breve da diferença entre Protestantismo e Hinduísmo, assim como das relações de aproximação entre Judaísmo e Protestantismo, gostaria apenas de observar que o Protestantismo opera por redução, ao máximo, dos caminhos que conduzem à divindade, tendo as restrições prescritas pelas “Cinco Solas”, critérios de estreitamento simbólico. Só há um caminho e a disputa é o termo exclusivo. Sobre esse aspecto, o Hinduísmo é duplamente contrário ao Protestantismo e ao Judaísmo: não há apenas um só caminho a percorrer ou uma divindade a adorar, tampouco uma divisão tão rígida entre a imanência e a transcendência.

shyamalan

O preconceito norte-americano é o subproduto direto da ganância nacional: a ética protestante preside o espírito do Capitalismo. A ética da competição, a educação para o sucesso e para o fracasso, o peso de ser um loser… Mas é também uma resposta formulada pelo medo do futuro. Shyamalan nos oferece uma cartografia ambígua do medo norte-americano, cultivado inclusive por uma cinematografia milionária. Em seus filmes industriais, as ameaças surgem sob a forma de alienígenas, do fim do mundo, da morte e do além-morte, dos mutantes, dos superpoderes e da tecnologia que não dominamos. Os imigrantes são sempre representados como subalternos ou ameaça. Shyamalan reverte o esquema: a ameaça serve como meio de exposição dos preconceitos — e não seria a sociedade representada em A Vila, eventualmente terraplanista e antivacina, a mais forte caracterização do olhar crítico que Shyamalan lança sobre a sociedade norte-americana?

Inverte-se a lógica triunfalista do drama hollywoodiano e desdobram-se possibilidades intensivas, outros tipos de relação com o clichê e o gênero, ambos expositivos e marcados por um estilo preciso no enquadramento e nos movimentos de câmera: de um lado, “o universo em desencanto cósmico”; de outro, “a natureza em suspensão mística”.

Quando o Universo se encontra em desencanto cósmico, o processo de desmoronamento definitivo ou provisório é o grande tema. Como em A Vila, Fragmentado, Sinais, Fim dos Tempos, Olhos Abertos, o presente é deformado por forças do passado, atualizadas por acontecimentos misteriosos e traumas insuperáveis. Marcado por seu sofrimento particular, os personagens se veem na necessidade de suspender provisoriamente o trauma e superar a personalidade, por força da necessidade urgente de ação e mudança. Em Fragmentado, a besta perdoa somente os cindidos, os quebrados, os que sofrem e superam. O sofrimento é o que sublima as potências próprias de Crumb e Elijah. O indivíduo é impelido à desfragmentação, perde sua individualidade e busca reconstruir-se a partir das forças atemporais do Cosmos. Em A Vila, por exemplo, abre-se a caixa do passado no exato momento em que a menina, através de um esforço descomunal, atravessa a fronteira em direção ao “fora”, independente da catástrofe que este “fora” determinará na vida daquela comunidade. Em Sinais, o inesperado ocorre justamente em uma fazenda isolada do mundo, onde o luto e o desencanto plantaram raízes e se instalaram definitivamente. O acontecimento misterioso, que impele os humanos a cometerem suicídio inconsciente, obriga o professor do high school a usar seus conhecimentos científicos para salvar a si e aos seus. A revelação reside na instalação de uma simultaneidade, onde presente e passado incidem misteriosamente, um sobre o outro, se iluminam mutuamente e exigem mudança e superação.

shyamalan

A Natureza em suspensão mística corresponde à suspensão do tempo-espaço convencional, abrindo a realidade para o além e o aquém do humano; e, em alguns casos, para as volatilidades das formas orgânicas e inorgânicas. Futuro, presente e passado coincidem, tornam-se simultâneos, ainda que assimétricos, em seus graus de manifestação intensiva. Os poderes especiais dos personagens, seus mundos específicos, suas características divergentes, tudo conduz ao alargamento do horizonte de atividades: a trilogia dos heróis opera diretamente essa desnaturalização da potência, em força cega interiorizada. O mesmo ocorre também com o menino-médium em Sexto Sentido, o menino desafiado por uma natureza alienígena em Depois da Terra, o surgimento de uma ninfa intraterrena em A Dama da Água, os poderes de outro menino extraordinário em O Último Mestre do Ar (aliás, remeto a presença forte das crianças às “Três Metamorfoses” de Zaratustra: de camelo a leão e, por fim, à criança, ou seja, a inocência do devir, o Amor Fati…) Em Sexto Sentido, a intuição mediúnica tem o poder de reparar o passado, pois, conversando com os mortos, o menino remedia e atualiza suas dores. A força e a fraqueza de Elijah Price e David Dunn nunca se colocam como absolutas; parecem obedecer a graus de atualização por interdependência, fornecendo a base dialética para a ampliação da individualidade — para cada herói, um duplo: a mãe, a amiga e o filho. A revelação reside na descoberta do transindividual, expondo tanto a condição provisória do humano, como também as potências ocultas e os poderes impróprios.

shyamalan

Vale notar que muitos dos filmes reúnem os dois registros. Sinais, por exemplo: universo em desencanto cósmico, oscilando brutalmente entre o trauma e a dúvida; mas também a Natureza em suspensão mística, revelando seres extraterrenos e, com eles, um desdobramento da impotência humana diante do que virá, não importa se o caos ou o destino. Fim dos Tempos também comporta a volatilização da Natureza e a superação do humano. Em A Vila, esse limiar entre humano e inumano é motivo de oscilação; assim como em Corpo Fechado e Fragmentado — em Vidro, essa dúvida torna-se o epicentro da questão, servindo como base ao extraordinário diálogo entre a psiquiatra e os heróis. A Visita constituiria o caso divergente, pois não sendo nem cósmico, nem místico, mantém-se no domínio da hesitação privada.

III. (skies of america)

Não há personagem nos filmes de Shyamalan capaz de provocar o mesmo grau de desencantamento do que o planejado pela psiquiatra Ellie Staple e seu poder científico, institucional e policial. Olhar penetrante como uma dose de Pentobarbital, enquadra os pacientes enquanto distúrbios clínicos, reações naturais — e não sobrenaturais — aos traumas que atravessaram. A psiquiatra não esconde um afeto perverso por seus casos, comunicando-se com eles através de seu rosto calmo e voz segura. Dra. Staple representa a responsabilidade fria do Capital, o poder policial da Ciência, mais voltado para a estabilização do status quo — representado por um restaurante metido a besta — do que por sua transformação. Usando métodos semelhantes aos da terapia familiar e, eventualmente, aos da tortura, Dra. Staple encara suas preciosas anomalias com firmeza de propósito e autocontrole. Como toda psiquiatra, ela cobra dos casos a prova do desencanto, a confissão voluntária e o voto pela normalidade. Dra. Staples representa a força do establishment, a força da violência normalizadora, incomparável à violência perpetrada pelo vigilante, pelo gênio do mal e pelo assassino fragmentado.

A resposta dos heróis fortalece a aliança anômala e, sustentando a dúvida, permanece tão ambígua quando evidente. Apesar do projeto de normalização, sempre persiste um master plan, nem que seja um plano suicida. Apesar da realidade vigente que constrange os superpoderes, apesar de se autodestruírem, apesar de vulneráveis às armas policiais, o trio insiste: “nós existimos”. A interrupção da proliferação anômala pode ser compreendida tanto como uma vitória parcial do poder despótico, como um lamento diante da morte da diversidade. O que suscita o pavor não são os superpoderes, mas a descrença radical nas potências pré-individuais, potências de renovação do presente. Em suma, a descrença no presente enquanto portador de élan vital, devido ao baixo grau de diversidade humana, vegetal e animal — como adverte Pascal Picq em seu livro A Diversidade em Perigo, chamando a atenção para “os desenraizados pelos avanços da civilização são cada vez mais numerosos”.

(from left) Samuel L. Jackson as Elijah Price/Mr. Glass, James McAvoy as Kevin Wendell Crumb/The Horde, Bruce Willis as David Dunn/The Overseer, and Sarah Paulson as Dr. Ellie Staple in "Glass," written and directed by M. Night Shyamalan.

Escrevendo sobre o conteúdo apocalíptico e o Milenialismo do cinema norte-americano na virada do século, Kirsten Moana Thompson mostra que a atmosfera apocalíptica é engendrada por ansiedades, provocadas pela instabilidade da opressão presente:

“Repetidamente, quando o desastre ocorreu, o pensamento escatológico entendeu a ruptura política, social ou física como presságios do começo do fim do mundo; a enorme devastação causada pela praga bubônica nos Séculos XIV e XV e a ameaça de invasão islâmica no Século XVI, provocaram o retorno dessas ansiedades”.

Thompson complementa o que escreve Eva Horn em The Future As Catastrophe:

“O valor político das profecias bíblicas, portanto, estava diretamente nas imagens da queda dos impérios, da destruição dos emblemas do poder terrestre e da punição dos poderosos. Essa destruição é uma promessa de que o poder mundano terminará e que o mundo atual estará sujeito a um final”.

shyamalan

A força motriz desse acontecimento é o presente indefensável. Assim como as narrativas proféticas, que acorrem a um diagnóstico implacável do presente, Shyamalan problematiza seu próprio tempo através de uma crítica velada, às vezes imperceptível, a conceitos e valores caros ao léxico político da Modernidade — nação, território, fronteiras, defesa, soberania. Convém, então, dizer com todas as letras: os filmes de Shyamalan operam a partir do fluxo de imagens extraídos da décadence americana, a decadência dos Estados Unidos da América. Hackeando os mecanismos redutores de representação da alteridade do Cinema norte-americano, seus filmes parecem sugerir que a hegemonia dos Estados Unidos se encontra em processo de dissolução.

Como consequência, seu cinema também capta a decadência de um certo modelo épico, racista e autossuficiente. Edward Walker não corresponde, necessariamente, a sua aparência superficial, o pai dedicado e líder responsável. Antes, eu o percebo como um alt-right bizarro que dispõe abusivamente dos destinos da comunidade. Da mesma forma, estamos acostumados a encarar o vigilante no cinema como um herói inequívoco, tal como personificado por David Dunn. Mas podemos considerar igualmente que a descrença do justiceiro na política e no Direito é tão nociva quanto os abusos conduzidos pela instabilidade do “fragmentado” e o genocídio que a hiperinteligência do Sr. Vidro pode provocar.  São narrativas que nos situam justamente no limiar entre o mundo competitivo vendido pelo American Way of Life — AKA Capetalismo — e a abertura que ele propicia para reações catastróficas, geradas pela fé-cega no “mercado”, no indivíduo e no fim da política.

Referências:

BÍBLIA: Novo Testamento: os quatro Evangelhos. Tradução do grego, apresentação e notas por Frederico Lourenço. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.

HORN, Eva. The Future as Catastrophe. Imagining disaster in the modern age. Translated by Valentine Pakis. New York: Columbia University Press, 2018.

PICQ, Pascal. A diversidade em perigo : de Darwin a Lévi-Strauss. Rio de Janeiro : Valentina, 2016.

THOMPSON, Kirsten M. Apocalyptic Dread: American Film at the Turn of the Millennium. Albany, N.Y.: State University of New York Press, 2007.

FacebookTwitter

O mundo é o culpado: O oficial e o espião (Roman Polanski, 2019)

Por João Pedro Faro

unnamed

Não há mediações possíveis na cena que abre O oficial e o espião (2019, Roman Polanski). Um letreiro avisa que todos os personagens que veremos foram pessoas reais, seguindo para uma sequência de enquadramentos rígidos da condenação e humilhação pública do jovem militar franco-judeu Dreyfus (Louis Garrel). A praça em que ocorre a situação está dominada por fardados em formação perfeita e cercada por um cenário de CGI da Paris de 1895. Direciona-se, portanto, sem qualquer termo inacabado, o conto de desconforto, injustiça, perseguição e  realidade fabricada dirigido pelo criminoso convicto vencedor do César 2020 de melhor direção.

Através da narrativa envolta nos esforços do investigador Picquart (Jean Dujardin) para provar a inocência de Dreyfus em sua injusta condenação por espionagem, Polanski cria um “thriller de rotina” mais interessado nas implicações visuais do ambiente em que se insere e nos personagens que o formam. Grande parte da duração do filme é construída por transições entre cabines, quartos, escritórios e quartéis frequentados por Picquart, com o suspense da investigação surgindo sempre pela exploração desses locais tão marcados por acessos difíceis, gavetas trancadas, arquivos perdidos e dominações hierárquicas militaristas que impedem penetrações mais incisivas por seus segredos. Predomina a agonia do impossível, a distância entre um homem e um sistema estruturado, colossal, que permite apenas brechas do que esconde de mais tenebroso.

unnamed

unnamed

Espaços em que a sordidez é controlada por convenções ou imposições sociais e políticas sempre estiveram presentes no cinema de Polanski. Em O Oficial e o Espião, esse controle é assumido como mote temático e visual de toda a sua ambientação. Polanski filma grandes salas escuras em planos que não passam do enquadramento médio dos personagens, valorizando imagens aproximadas que potencializam o efeito de intransigência do ambiente militar. Assim, não importa quantos segredos sejam descobertos ou quantas polêmicas sejam provocadas entorno do caso Dreyfus, o que permanece é um pessimismo vigente em desacreditar na possibilidade de sucesso no enfrentamento entre o indivíduo e o sistema. Um estado de vigia também é constante, a partir do momento em que a instituição é questionada, todos os arredores parecem ir se fechando ainda mais. Estamos acompanhando uma construção de universo baseada em regras muito próprias de postura e comunicação, desconjuntada em sair de qualquer eixo pré-formulado. A construção da rigidez do espaço serve como fonte de um “medo do autoritário”, instaurado quando a rotina é quebrada pelo incomum questionamento.

Picquart é um personagem em revolta, porém interrompido em seu ultraje pela manutenção da formalidade militar e pelas posturas obrigatórias do cargo que exerce no espaço em que ocupa. Já os algozes, o grupo da alta cúpula do exército que condena um inocente, são caracterizados pela vilania de suas ações frontalmente impostas e inquestionáveis, fortalezas humanas que protegem princípios tortos carregados por noções de patriotismo que Polanski rejeita. São, em sua maioria, figuras caquéticas, decompondo-se por trás de uniformes intocados, fisicamente rejeitáveis, enquadradas pelo contraponto vívido do rosto de Picquart. Nada é tão claro quanto a cena em que o protagonista visita um antigo superior, enfermo e apodrecido em sua cama, que ainda reverbera com dificuldade um discurso contra estrangeiros: “Não reconheço mais a França”, diz.

O poder vigente é tratado como detentor de tradições rejeitáveis, injustas pela própria natureza, propensas a condenar qualquer um que esteja beirando os limites que impõe politicamente. A grande virada rítmica do longa ocorre após Picquart declarar-se totalmente contra as decisões de seus superiores, desfazendo-se da própria honra que existia enquanto aceitava as barreiras de seu cargo. Polanski permite a idealização de um possível herói justo, de um personagem disposto a desacreditar completamente da instituição a qual dedicou sua vida por perceber algo que desmonta suas crenças. O ideal do francês tipicamente moderno, o anti-idealista nato. Porém, ao mesmo tempo, não permite que as forças da tradição sejam facilmente instabilizadas. O artigo que Èmile Zola escreve sobre o caso Dreyfus, “J´accuse!”, entra como o motor subversivo mais explosivo da narrativa. Uma possibilidade de acusação e enfrentamento direto, porém reprimido e insuficiente em níveis mais gerais. O oficial e o Espião abraça o fatalismo da realidade que propõe, enxerga um poder inalcançável com rancor, busca imaginá-lo em sua sordidez institucionalizada e apontar a revolta, mas nunca acredita que seja passível de uma queda total movimentada pela exposição de suas tripas.

Parte dessa exposição contida, que vai formando-se de documento revelado em documento revelado, apoia o tom do filme que varia do escárnio ao temor. Os superiores de Picquart aparecem, em um primeiro momento, como clara ameaça, vestidos em uniformes impenetráveis e posturas estáveis. No decorrer das tribulações que abrem portas nunca antes abertas, nos aproximamos de humanos mais reconhecíveis e inevitavelmente mais passíveis de exporem pontos de fraqueza. Outra cena que explora a fisicalidade dessas figuras: Picquart é desafiado para um duelo de espadas contra um superior que ajudou a condenar Dreyfus. Estão sem uniforme. Depois de poucos minutos, Picquart fere o adversário no braço. Ferido, ele tenta buscar a espada do chão com o braço perfurado, tornando-se despido de qualquer honra, sendo apenas uma figura tosca tentando se apoiar em um poder armado que não consegue mais empunhar. O poder pode não ser derrubado, mas não quer dizer que esteja a salvo da humilhação proporcionada pela verdade, voltada contra todos os mentirosos.

As noções de verdade e mentira estão apoiadas, dentro da obra, em sua noção de uma sociedade em decadência moral. Não há golpe concretizado, mas há a aparição de uma noção de que alguns traços costumeiramente aceitos não passam de absurdos. O fator mais central, o ódio declarado contra os judeus, em um primeiro momento tratado como costume, sofre um tratamento quase anacrônico no miolo do filme. Picquart, antes dotado de um antissemitismo prosaico, deixa de falar qualquer palavra contra os judeus em dado momento de sua imersão no caso Dreyfus. O que é opressor, o que é falso e é dado como verdadeiro pelo interesse de comandantes caquéticos, torna-se cada vez mais um terror esclarecido e as verdades absolutas são a justificativa de qualquer perseguição que possa ocorrer. A insurreição torna-se obrigatória a favor da justiça.

unnamed

unnamed

Polanski fomenta um ideal de culpa generalizada em todos os cercamentos que condenam Dreyfus. Filma uma França antissemita, tradicionalista, de um nacionalismo autoritário, contra qualquer fator externo. Portanto, a partir de um grupo que defende Dreyfus sempre tratado como uma minoria quase milagrosa, fortalece-se a concepção de que a injustiça contra um oprimido não é somente inevitável como também incentivada pelo poder. A instituição militar é retratada quase como comandante de toda a nação, O oficial e o Espião é tão firme em representar o alcance íntimo de órgãos de inteligência do exército e seus mais poderosos membros que surgem como o contorno oficial do universo retratado. Os rumos do mundo pertencem aos fardados, suas armas e bigodes, e Polanski é incansável em retratar todo o terror e todo o ridículo dessa realidade.

 

FacebookTwitter

Eu ainda acredito em seus olhos: Joias Brutas

Por João Pedro Faro

84049748_182139376379951_7561796447281086464_n

(…) que apagaram em imensos cinemas sórdidos, foram

transportados em sonhos, acordaram numa Manhattan

inesperada e se resgataram de ressacas em porões

de Tokays impiedosos e terrores de sonhos cruéis da

Terceira Avenida & cambalearam até

agências de emprego

– Allen Ginsberg, “Uivo” (trecho)

Compreender cinematograficamente a estética de determinado momento histórico é um trabalho ingrato. Ao mesmo tempo que é possível se render a caricaturas reconhecíveis e trejeitos visuais passados, também é possível complexificar os motores, personagens, consequências e atributos da estética histórica, caso bem trabalhada. Não à toa, Joias Brutas (2019, Josh e Benny Safdie) é um grande exemplo de filme histórico: passado em 2012, criando cinema entorno da enervante temporada dos Celtics com Kevin Garnett, o filme compreende cultura, consumo e história como possibilitadores diretos da formação de uma imagem.

Howie Bling (Adam Sandler), uma espécie de “agente do caos de si mesmo”, funciona como centro de capacitação dos fluxos sonoros e estéticos que cercam qualquer enquadramento de Joias Brutas. Em outras palavras, Howie é um protagonista completo, sendo todo o filme moldado entorno de sua presença e de suas necessidades. Em seu percurso por apostas arriscadas que afundam o personagem em um caos incontrolável pela cidade de Nova York, o que fica marcado pelos Safdie é a acumulação de informações que formam o cosmo do personagem.

86349129_630306514432623_1996008835893952512_n

Existem dois fatores principais na grandeza do personagem Howie. O primeiro está diretamente ligado ao que Joias Brutas compreende como “cultura”: um balanço entre a tradição e a tendência. Howie e seu mundo de venda de joias, apostas e barganhas é apresentado como parte da comunidade judaica novaiorquina. Nesse contexto, carrega inevitavelmente o histórico milenar do judaísmo e de seu povo, além de seu espaço dentro da própria América, seu passado de imigração e sua conquista de poder financeiro e político dentro desse ambiente junto com a atualização de seus conflitos sociais e econômicos. O protagonista de Joias Brutas se veste com brilhantes e se afunda em seu próprio excesso de possibilidades financeiras, sua má relação com a própria história pelo sincretismo impossível entre a religião do espírito e a do capital (expostos no desconforto da cena do jantar e o desastre de sua jornada com a joia que importa de outros judeus). Portanto, a cultura do consumo está em colisão com as antigas organizações sociais de uma comunidade, e Howie é uma síntese desse conflito que desestabiliza todo o espaço em que pertence. Nada é o bastante, sua nova regência cultural é pela exploração dos limites de seu consumo.

Um segundo fator que potencializa o protagonista parte do seu intérprete. Nada diz mais sobre Adam Sandler do que seu papel “oscar baiting” ser nada mais do que uma repetição de seu típico personagem manchild recontextualizado para uma história que foca nas consequências de seu comportamento. Sandler é o mesmo paizão de Esposa de Mentirinha (2011) ou de Gente Grande (2012), o homem que se entrega aos desejos juvenis voltados ao próprio egocentrismo. E seu tom é o mesmo durante todo o filme: não há grandes explosões emocionais ou momentos que só serviriam para demonstrar uma “capacidade escondida” do ator. Sandler é o que é, é um comediante que compreende um certo tipo de interpretação e só precisa de justificativas para fazer valer o esforço de sua presença. Joias Brutas enquadra Sandler até o limite de sua persona, testa todas as possibilidades que esse tipo de interpretação pode oferecer ao cinema de inquietação que os Safdie buscam. Para isso lhe foi entregue um personagem como Howie, e certamente faz justiça ao ator que pertence.

Sandler constrói, em sua postura de imaturidade, um personagem que acredita no que faz o tempo inteiro. É isso torna sua persona genuína. Ele aposta em negócios arriscados pelo vício e pela grandiloquência, mas nunca deixa de crer que seus caminhos são os melhores possíveis para seu destino. Isso está diretamente ligado com o que resta de sua tradição espiritual, do senso da fé por um futuro melhor para si mesmo. Isso é base de sua vivência e também de sua danação, é um humano feito para colapsar entregue em uma performance que mantém isso no rosto durante toda a projeção.

85174786_500801997288493_741882036184154112_n

O cinema de inquietação dos Safdie é o produto final das imagens que criam. Howie é enquadrado dentre o brilho dos ambientes que transita, de flares das joias até telinhas de celular, e as pessoas que o cercam, de agiotas violentos até ex-esposas. Um acúmulo de figurações visuais, energizando um sentimento de excesso que nunca deixa de cansar e testar suas bordas. Um exemplo é a sequência da boate: após uma briga com sua amante Julia (Julia Fox), decupada em planos fechadíssimos e escuros, Howie abandona a garota, que sai andando sozinha. Em um dos poucos momentos do filme sem o protagonista, Julia caminha pela fila da boate, troca xingamentos com uma outra mulher que permanece no extracampo e segue a rua olhando para o chão, em silêncio. Poderia parecer um breve momento de descanso dentro da narrativa intrincada pela correria, mas é apenas um acúmulo de amargura que acompanha a personagem, mesmo que longe de Howie, o centro dos conflitos.

 Joias Brutas está sempre cercado de problemas a serem resolvidos e pendências amontoadas, ninguém que está sendo filmado está livre desse cercamento asfixiante. Diversas vezes, os Safdie aproveitam o tamanho de seu scope  para colocar o desfoque da imagem no centro da ação de um quadro, gerando a instabilidade necessária para seus interesses de desestabilização. Se não estão à beira do desfoque, os personagens estão enquadrados por trás de vidros, entre lentes de óculos ou por reflexos, gerando sempre a sensação de que cada pessoa em cada plano está a beira de se desfazer por meio da multiplicação, distorção ou má-resolução de suas próprias imagens. Os olhos sempre estão guiados, o eixo entre os cortes está constantemente sendo quebrado, nada parece juntar em uma narrativa impulsionada pela fuga.

85249698_813358719181451_4046526334397054976_n

Parte dessa inquietação gerada em Joias Brutas surge também da percepção de seus personagens como frações de algo maior. Howie é apenas uma peça de uma movimentação em cadeia do sistema de consumo, começando do nível mais baixo de exploração com os mineiros etiópes e atingindo o consumidor e astro mundial na figura de Kevin Garnett. Nesse contexto, Howie existe como um rosto esquecido que esbarra com consequências maiores. Ele não é uma celebridade, mas circunda seus meios, ajuda a criar suas imagens de riqueza, revende seus brilhantes. No caso da narrativa de Joias Brutas, Garnett precisa de uma joia cedida por Howie que lhe oferece capacidades especiais místicas que ajudarão no resultado de uma partida aguardada. É a partir desse momento que a realidade do anônimo e a realidade do sujeito histórico se intervém, pois o segundo passa a depender do primeiro. De alguma forma bizarra e enervante, Howie, um anônimo à história, está como parte da resolução final de um contexto maior, portanto suas ações se tornam ainda mais inconsequentes e inquietantes quando sentimos que o resultado final delas pode estar sendo, por exemplo, televisionado ao mundo inteiro em uma partida decisiva da NBA. Howie não é uma estrela, é um anônimo que vive por trás do luxo da história, um personagem secundário dos protagonistas da vida real que, por ironia do destino, pode estar interferindo na realidade exposta oficialmente.

Na obsessão do jogador de basquete pela joia-mcguffin, também ressurge o conflito entre o consumo e sua personalização dentro da modernidade. Garnett, ao observar a joia importada por Howie de mineiradores judeus negros, encontra um universo particular que capacita tanto sua trajetória pessoal enquanto astro negro quanto um estado de exploração escravagista sofrido pelos negros que mineiraram aquela joia. Isso é mostrado através de flashes de imagens que correm por alguns segundos de tela enquanto Garnett está hipnotizado pela joia, e automaticamente após essa percepção de um produto de consumo que comunica diretamente com seu estado de existência no mundo, onde também se percebe como parte de algo ainda maior que seu próprio estrelato. Primeiramente, Howie contesta a decisão de Garnett levar a joia, sendo retrucado pelo jogador: “Por que você me mostraria algo que eu não posso ter?”. O consumo e a existência, portanto, habitam um mesmo estado de essencialidade aos personagens-chave do filme.

É muito característico a um filme como Joias Brutas poder ser intitulado como o primeiro filme de época situado nos anos 2010, afinal é o produto audiovisual de um mundo em aceleração. Atualmente, apenas ter personagens usando um modelo “antigo” de Iphone, usando o Instagram em sua interface passada e falando sobre The Weeknd como um vindouro sucesso já garantem um tom de antiguidade. Escolher criar a ficção a partir de um momento recente de nossa história, ainda mais de um causo tão específico quanto três partidas da NBA, carrega em si todo o peso de um aceleracionismo vigente.

O que existe como histórico em Joias Brutas é o reconhecimento de passagens aparentemente irrelevantes ao processo “oficial” do mundo contemporâneo como carregado de uma série de imagéticas próprias, como um clima de início de década e de correria que perpassa seus momentos de cultura popular (o esporte, as celebridades, a exposição virtual), através de uma série de personagens que habitam os bastidores de uma cultura de consumo imediato cada vez mais veloz, retroalimentada e exacerbada pela acumulação. A história dos anos 2010 já começa a partir dessa velocidade, e nada mais justo que um filme de 2019 retorne à 2012 para reaver o que já é concretizado como intrínseco à década que conhecemos. No caso, flashes de celular, excesso de informações e um sentimento de esgotamento agoniante. Só podemos parar para descansar no anonimato post-mortem, lá o universo nos aguarda. Basta acreditar.

84177575_190244628728100_7133638188404310016_n85108448_228773651481658_4575786572938477568_n

FacebookTwitter

Aves de Rapina: Arlequina e sua Emancipação Fantabulosa (Cathy Yan, 2020)

Por Pedro Tavares

birds of prey

Suprir representações de padrões sociais é um código bastante utilizado em narrativas fantásticas e, no universo particular de Gotham City – ou melhor, Nova Iorque -, há um exercício de projeção muito claro, principalmente nos vilões – que agora ganham atenção dos grandes estúdios. Pela lógica, este reflexo catapultou o Coringa de Todd Philips para o sucesso por um tipo de condecoração emocional generalizada. Para Aves de Rapina, a lógica é a mesma: a performance ideológica a seguir o fio obrigatório do produto, da obediência às normas comerciais e de um lugar seguro para estar.

No início dos anos 90 há um capítulo muito claro na ação de convergência entre ideologia e produto na cultura americana: enquanto o movimento Riot Grrl crescia na costa leste, oriundo da cena punk underground, composto basicamente por reuniões semanais entre garotas, shows, zines e convenções, a mídia rapidamente o transformou numa tendência. Se as garotas usavam códigos de reconhecimento como corações e estrelas desenhadas nas mãos, logo a revista Spin tratou de transformar em artigo de moda, por exemplo. Para encurtar a história, este empenho de releitura de um movimento feminista desembocou em estranhos elementos da cultura pop dos anos 90 como as Spice Girls e as Meninas Super Poderosas a julgar o seu ponto de partida.

Susan Marcus, que narrou os anos das Riot Grrls no livro Garotas à Frente, complementa sobre a ideia de produto: “Artistas do Top 40 não são movimentos culturais; são projeções holográficas ultra-homogeneizadas e extremamente comercializadas, aspectos de cultura que são ampliados em telões eletrônicos e levados para o ID por um cateter central. Cultura de massa sempre contém variações limpas e fotogênicas do underground, incorporando apenas o suficiente da parte “provocadora” para manter a própria relevância”.

Nesta declaração, há o lugar de habitação de Aves de Rapina. Uma variação limpa e fotogênica do underground – mesmo que ela seja a repetição ensolarada da Gotham de Christopher Nolan e de um jogo de alegorias que Arlequina por si já se encontra: uma sequência que a protagonista entra numa delegacia e dispara balas e sinalizadores coloridos, o mundo composto, o microcosmo, é tão límpido quanto um código de reconhecimento que fora transformado em elemento visual, pura e simplesmente. A destreza de subsistir num mundo sinistro e repleto de ambientes regidos por homens cede espaço para um tipo de narração infantilizada, “esperta” e pronta para subestimar a persona de Arlequina e suas asseclas em nome de algo maior e intangível. A emancipação da protagonista, à priori jogada para uma segunda camada, está mais para uma escada humorística do que um assunto a ser pautado em algum momento do filme.

Cathy Yan, em sua primeira inserção no mercado americano, opta pela provocação visual: são nas sequências de ação que toda referência à trilogia John Wick dada pela própria Yan é lembrada e sem a intensidade de Chad Stahelski. Se há alguma sugestão de sujeira e flerte com algum extremo, logo são lavados, no qual a provocação é sempre dominada por uma obrigação obscura; Se Kick-Ass – Quebrando Tudo de Matthew Vaughn, para nos atermos ao mundo dos heróis e HQ’s, já desconstruía a figura do narrador e Scott Pilgrim Contra o Mundo de Edgar Wright compôs um mundo estético capaz de unir organicidade ao postiço, o filme de Yan está mais para a aproximação mais mastigada de um discurso moldado pela a noção de produto: se nos anos 90, foram de Bikini Kill às Meninas Superpoderosas, Aves de Rapina é o ponto final desta descida.

FacebookTwitter

Entrevista: Affonso Uchôa

Por João Pedro Faro

logo_rs02-16
Affonso Uchôa

O cineasta mineiro Affonso Uchôa teve seu nome nos créditos de três produções selecionadas na 23ª Mostra de Cinema de Tiradentes. O média metragem Sete Anos em Maio (2019), em que assina como diretor e roteirista, e os longas Sequizágua (2020, Maurício Rezende) e Mascarados (2020, Henrique e Marcela Borela) como roteirista e montador, respectivamente. A entrevista foi feita após a exibição de Sete Anos em Maio. A breve conversa trouxe à tona perspectivas do atual cenário de um cinema nacional em que os filmes citados anteriormente se encaixam e se modelam, seus limites e suas expansões.

O Sete Anos em Maio, assim como outros filmes que você participa e que estão na Mostra, lidam de alguma forma com o gênero da ficção documental. Quais são os limites que você percebe, em concepção, desse tipo de cinema no Brasil?

Ainda está para a gente entender melhor, no cinema brasileiro, essas nuances entre ficção e documental, existem muitas formas de assimilar isso. Como exemplos, o Sequizágua e o Sete Anos em Maio carregam muita diferença entre as relações e as formas desse trânsito. É importante dar uma certa contextualização também desse gênero como um caminho do cinema contemporâneo. O que mais me interessa nisso, o que me estimula e o que, de certa forma, justificou meu cinema a trabalhar com isso nos meus filmes é uma potência de escrita e de criação cinematográfica.

De ficção, então?

Sim, também. Porque o trabalho com a realidade é uma energização desse fator ficcional, é uma percepção dessa realidade. Não no sentido tradicional de pesquisa e estudo de campo, não há instrumentalidade. O que acontece no cinema contemporâneo, dos anos 2000 pra cá, é que a relação entre quem filma e quem é filmado, a presença física na imagem em si, faz com que a presença da realidade na imagem seja mais ativa. Faz com que a realidade funcione menos um depositório de imagens, mas que seja parte da dialética do processo fílmico e das suas formas. É o trabalho com essa presença que difere o Pedro Costa (Cavalo Dinheiro, Vitalina Varela) do Apichatpong (Tio Boonmee, Mal dos Trópicos), como exemplos. Mas de alguma maneira ainda há algo que une dois cineastas como esses, um “estado do tempo” que perpassa o cinema contemporâneo como um novo estatuto da realidade. O estado que energiza e alimenta o ficcional. Nos meus trabalhos, prefiro pensar que a fatura final é sempre ficcional mesmo que o ponto de partida seja, superficialmente, documental. O que interessa é pensar como o cinema vai operar no contato com a realidade.Sobre os limites disso atualmente, como todo trabalho estético, a gente vive um esgotamento dessas formas. No sentido de que o cinema e a realidade demandam outras coisas que não apenas essa dicotomia conhecida. Nossa resposta, como cineasta e autores, deve ser pensar no que deve existir de novo. A ficção documental, especialmente a brasileira, está partindo de uma espécie de “academicismo do não-academicismo”. Um protótipo. O ato de jogar-se na realidade parte de inseguranças, e quando a insegurança parece muito disfarçada, como é o caso desses protótipos, o meio começa a ficar meio problemático. Há uma gama muito gigantesca de criação de imagens no cinema. Quando isso começa a ficar muito hegemônico, nós começamos a sentir falta de outras formulações.

Até por essa quantidade de imagens que temos hoje, o caminho para esse cinema, que parte de uma realidade mais direta para procurar a ficção, está próximo de uma encenação que poderíamos chamar de mais “clássica”? Como o próprio Pedro Costa, que nega o documental e se espelha em concepções por vezes clássicas de encenação. Existe um ciclo escondido nisso?

Não sei se é tão geral assim. Acho que existem formas muito diferentes de pensar nisso. O cinema do Teddy Williams (O Auge do Humano), por exemplo, já aponta outro tipo de fluxo de imagem e de encadeamento com o tempo. O que está no clássico é a forma do cinema de encontrar-se com o mundo. Não é nada surpreendente ver o Costa tendo esse tipo de posicionamento. O cinema clássico é uma escola, uma antecâmara do imaginário cinematográfico que acaba retornando em qualquer filme. Mas não diria que é algo geral quando se trata desse certo “ciclo”. Existem trabalhos indo nessa direção, mas acho que o cinema hoje é muito espalhado, muito multifacetado. E ainda existe esse cinema clássico, o clássico de ficção, ele sobrevive em poder e força enquanto arte que resiste ao tempo.

Pensando no Sete Anos em Maio, um filme de poucos planos, que conta uma história através de relato direto por boa parte de sua duração, até uma cena final que é totalmente encenada, existe um interesse da narrativa feita pelo mínimo que caminha para uma encenação mais tradicional? Isso tudo feito com o recursos igualmente mínimos?

O que penso, que dá para fazer conexão com um pensamento mais amplo, é que a economia de meios em linguagem e produção tem dois lados, o econômico e o artístico. O balanço disso é inerente ao cinema, que é uma arte industrial feita de muitos instrumentos e de muita equiparação. No caso do Sete Anos em Maio, é um filme pequeno e barato que só foi feito dessa forma porque o que é dito pelo filme pode ser feito de forma precisa, econômica.

Sete Anos em Maio
Sete Anos em Maio

Isso também parte de uma noção contemporânea imediatista? No sentido de que é feito a partir do possível, da realidade sendo o que está próximo do que pode ser realizado e que tem uma necessidade de que elas sejam realizadas

No nível do anseio, sim. O anseio de que aquelas imagens existam e sejam vistas. Não sei se imediato, mas urgente. E isso também tem a ver com esquema de produção. É possível fazer um filme como Sete Anos sem um circo de parafernálias cinematográficas. Para que aconteça, para que seja concretizado, você não precisa de um arsenal tão completo, não precisa de toda uma indústria. Acho que são duas recusas que acontecem aí, a recusa ao tradicional do cinema industrial, contra o regime de produção, e a recusa a relação com as próprias necessidades tradicionais do cinema, e a favor de um certo artesanato.

E dá para enxergar esses recursos mais diretos como uma herança dada ao ambiente que você filma? No caso, a uma periferia que está em tela, essa experiência com o artesanato, existe uma possibilidade aí?

Eu não lido com expectativas. Também não lido com a ideia de que a minha produção possa gerar outras coisas. O que fica, para mim, é que existe potencial e desejo para a instrumentalização cinematográfica, enquanto trabalho,das pessoas da periferia para que elas se equipassem para a própria produção fílmica. E saber que essas pessoas iriam para caminhos muito diferentes sem sua produção, como qualquer grupo de pessoas, vai existir a diferença. A realização parte de uma questão material mesmo, de possibilidade. Acho que meus filmes abrem algumas janelas, mostra que é fazer cinema é real, de alguma forma. Mas ainda é pouco. Para abrir como possibilidade real de uma periferia fazer seus filmes, outros filmes, o trabalho deve ser governamental. E o capital não vai trazer isso, não é um mercado que vai atrás dessa produção. São necessidades mais fortes, necessidades de atuação do poder público. O que vejo a partir de quem trabalha nos filmes é um orgulho da própria participação, eles são vistos em um lugar e podem se perceber como atores ou roteiristas, e estão presentes nisso. Eu percebo esse orgulho pelo trabalho feito e um orgulho por trabalhar. Até porque meus filmes são trabalhos em que eles não vão apenas realizar tarefas, vão vivenciar o processo fílmico e criar dentro daquilo. Sem querer tirar qualquer ilusão de que isso torne eles absolutamente ativos, não é assim, existe uma diferença de base entre meu trabalho e o deles porque continuo sendo o diretor dos filmes. Mas é possível uma criação, uma intervenção. E há gosto nesse lugar e nesse trabalho. É a minha percepção.

Não assistir a esse tipo de trabalho de quem é filmado em periferias, dentro do cinema nacional, foi o que, também, impulsionava você a querer assistir algo que ainda não existia?

Acho que os filmes que eu fiz partem de meu próprio anseio em ver uma periferia diferente. Não queria ver aqueles corpos moldados aos modelos de ficção preconcebidos, um molde conforme feito por mãos instrumentais. O trabalho poderia estar sendo tecnicamente competente, mas sem vida, um desperdícios de riquezas. Ver esse tipo de coisa, para mim, era um achatamento de experiências. Não vejo porque alguém iria querer fazer filmes que corroborassem com as opiniões que já existiam sobre determinado lugar, como o ambiente periférico. Faltava jornada por lugares ainda desconhecidos pelo cinema, uma jornada em descobrir outras potencialidades. E meus filmes respondiam, para mim, a essa falta.

E o que ainda falta ver no cinema brasileiro que, hoje, você ainda não assiste? O que você gostaria de ver?

Eu sinto que o cinema brasileiro, atualmente, está num caminho de adequação ao mercado de arte internacional. A nossa tradição era de um experimentalismo radical, e acho que sinto falta de ver esse radicalismo. Nossa história é de cineastas que experimentaram suas linguagens até o final e, hoje, não vejo os filmes que estamos fazendo muito ligados a isso. Acho que dá para romper esse deslumbre com a inserção internacional, um cinema menos hegemônico que não queira estar estreando em Cannes. Cannes já está moldada, eles sabem o que querem e o que representam, sabem o tipo de cinema que querem. Vejo muitos cineastas fazendo uns filmes que mais parecem uma tentativa de receber carimbo para festivais como esse, para a aceitação desses meios. Falta diversidade nisso. Esse cinema, de projeção, tem que ser menos majoritário. Falta o múltiplo, que venha da origem marginal e experimental do nosso cinema, e que é o nosso cinema moderno que nos deu tanta coisa.

Estaria o cinema brasileiro condenado a discutir para sempre “o problema do cinema brasileiro”?

Sim, porque o cinema brasileiro é um problema por si só. Assim como qualquer manifestação cultural no Brasil, queé um país feito para recusar o seu próprio cinema e sua própria arte em geral. A manifestação cultural é tratada como se fosse um desvio de conduta, então continuar fazendo cinema é encarado como um problema. Ainda por cima, o que é feito é colocado de lado, e isso também é um problema. E o cinema brasileiro que é feito é feito apesar disso, mesmo sendo tratado como um problema e gerando seus próprios problemas. É uma não-subserviência. Nossa questão é perceber como a insubmissão ao poder vigente pode ser mais espalhado, algo maior, que alcance mais espaços.

Então ser um problema seria também o nosso mote principal? Nosso ponto de partida?

Acho que sim… Talvez não um ponto de partida, mas uma força. A força do cinema brasileiro é ser um problema para o país, é ser algo que o Brasil não quer. E o poder está aí para dizer que o cinema brasileiro não existe, não aconteceu, não cumpriu um papel. Ou que aconteceu, mas foi uma perda de tempo. Essa subserviência a um Brasil atrasado, extrativista, arcaico, que está na cara de quem comanda o país, é a resistência do país que rejeita seu próprio cinema. Então a força do cinema brasileiro é desagradar qualquer poder, é ser um problema.

FacebookTwitter

Canto dos Ossos (Jorge Polo e Petrus de Bairros, 2020)

Por João Pedro Faro

84477724_618921502176010_800208898949644288_n

Entre o vampirismo como manutenção de um poder vigente e como puro hedonismo, Canto dos Ossos (2019, Jorge Polo e Petrus de Bairros) estrutura-se na variação de possibilidades do mito. O vencedor da Mostra Aurora na 23ª Mostra de Cinema de Tiradentes é a tentativa de emular possibilidades imagéticas de um cinema de gênero com regras próprias de execução.

Localizado tanto no litoral do Rio de Janeiro quanto no do Ceará, Canto dos Ossos e seu tamanho de tela reduzido busca um conto juvenil de horror vampírico atado ao tema do abandono. As instituições públicas em crise, totalizadas na professora-vampira que guia a narrativa, e a maresia litorânea de uma rotina marcada pelo ócio da adolescência, vivida pelo casal de amigas que acabaram de se formar, formam o mosaico de ideias prontas para serem experimentadas pela derivação.

Dos clássicos de monstro da Universal e do cinema de terror descolado oitentista, especialmente de referências como Os Garotos Perdidos (1986, Joel Schumacher), os autores integram o desejo de seus personagens pela transformação pulsante de um estado atual, independente das consequências dessa transformação. Dois rapazes se conhecem por acaso em uma noite e transam no dia seguinte, com a descoberta de que um deles é um vampiro sendo apenas a pulsação pela mudança do marasmo rotineiro que cansa em existir. Mesmo como monstros, os personagens jovens de Canto dos Ossos reconhecem a necessidade da mutação do corpo, da imagem e do espírito como essenciais à sobrevivência, são vampiros que devoram em tela seu próprio desejo de não sepultar-se ao tédio.

Outros vampiros, que surgem como a única ameaça real de uma trama que não se importa muito com o próprio desenvolvimento, estão em putrefação, definhando com seu poder dominante que sabota as possibilidades de prazer da juventude. O único momento de invenção que essa classe dominante pode viver é em sua destruição, sendo a morte do patriarca-múmia-vampiro-chefe preenchido na tela por uma gosma verde e por um incêndio controlado que fura o enquadramento.

Canto dos Ossos é dosado pelas experimentações impulsionadas por seu contexto enquanto percorre uma dicotomia estranha entre pequenas tramas inacabadas e uma intensidade de ambientações. A gratuidade de ideias, com diversos personagens protagonizando diversos conceitos, por ora gera um constante investimento na experiência do filme, mas também acaba por desvalorizar uma certa pontualidade de momentos mais congratulatórios, revestidos de maior originalidade imagética e sonora. O grupo de vampiros que protagoniza as sequências no Ceará, os melhores momentos do filme, possui um encontro de invenções que estabiliza conceitos do gênero (existe uma luta de vampiros, uma obsessão pelos signos clássicos subvertida em um ambiente próprio do longa) com interseções típicas ao jogo de juvenilidades e fluxo do filme (na interessante sequência do banho no lago). Mas sua potência parece perdida dentre outras, de menor calibre imagético e de ideias menos singulares, como a trama detetivesca de um fotógrafo e as longas incursões pela narrativa de um texto gótico. Uma mania constante a um cinema de gênero mais contido: a fixação por pequenos amuletos, de passagens antigas empurradas em qualquer canto da obra até a brevidade de objetos fora-de-lugar que parecem querer puxar a todo custo algum significado místico por si só. Por vezes, do muito surge pouco.

Inevitavelmente expressivo em concepção, Canto dos Ossos não parece querer ser um trabalho finalizado, em termos tradicionais e superficiais do termo. Porém, mesmo na incompletude, seus coitos interrompidos e seu apreço narrativo pelo mínimo oscilam entre resultados genuinamente desestabilizadores e projeções mornas do gênero derivativo. Aí está o abandono consentido, presente tanto na relação de seus personagens com o mundo quanto em seu próprio ideal de cinema. É como a promessa de uma eternidade melhor que o presente, ou sobre a confusão entre esses dois conceitos que torna instável um projeto mais concretizado de invenções.

FacebookTwitter

Cabeça de Nêgo (Déo Cardoso, 2020)

Por João Pedro Faro

73260277_2457992051153268_7825578538144104448_o

Uma alternativa para o cinema jovem brasileiro está em Cabeça de Nêgo, de Déo Cardoso. É quase como se as temporadas recentes de Malhação, da TV Globo, tivessem um senso político menos raso e liberal. O longa de Déo, ainda que didático e por vezes ingênuo, combina uma competência formal com um senso interessante de cinema popular.

A história de Saulo (Lucas Limeira), jovem negro que decide ocupar sozinho a escola pública em que estuda, preza pela objetividade. Os personagens são estabelecidos em diálogos rápidos e o ambiente onde instaura-se a revolta é naturalmente propenso à indignação, sendo um espaço totalizador de uma geração de periferia marcada pela continuidade do abandono estatal e pelos meios modernos de disseminação de ideias. Esses dois fatores se chocam em Cabeça de Nêgo e acendem a pólvora de um trabalho que busca as últimas consequências de sua premissa, ainda que empatadas por decisões narrativas.

A ingenuidade ocasional parece perdoável pela apropriação de Cabeça de Nêgo dos moldes do cinema adolescente. Porém, mesmo que atrás de um meio mais massificador de representação, nem sempre sua proposta é bem conversada com os tons mais aprofundados do longa. Saulo é um personagem-modelo, sem erros, sem conflitos que não estejam externalizados, e sofre ao tornar-se uma figura totalizadora da revolta que não permite momentos mais reconhecidamente humanos. O filme sofre de uma clara euforia de querer falar de tudo ao mesmo tempo e ser absoluto sobre todos os seus temas, e isso custa alguma parcela de humanidade aos personagens, por mais que os minutos finais tenham uma potência inevitável de luta. Fica a sensação dúbia: essa potência é natural ao contexto, não ocorre necessariamente pela construção de um mundo de pessoas reconhecíveis e complexificadas, que merecem esse tratamento mesmo dentro de um filme mais juvenil. Perde-se um grupo de atores que parece ter muito mais potencial do que conseguem demonstrar durante a projeção.

A integração do meio digital gera algumas das sequências mais interessantes. Saulo registra sua ocupação em vlogs verticais, em uma transferência muito orgânica entre linguagens que se afasta de tentativas caquéticas de outros trabalhos recentes em representar a vida virtual da juventude. Posteriormente, outros registros feitos no digital de celulares também integram a montagem e movimentam a narrativa, com a pixelização das imagens aproximando o longa de uma realidade mais reconhecível e mais desestabilizadora, distanciando-se de um filme teen mais típico. A presença policial, um assombro crescente durante o filme e uma ameaça sempre presente nos entornos da existência periférica, fica ainda mais reconhecível e brutal quando filmada pelas lentes de um celular, quando o digital se desintegra diante da violência. O filme busca uma linguagem própria dentro do gênero adolescente, ainda que carregado de derivações assumidas. A sequência final, especialmente, que compila e entrecorta diversas filmagens amadoras de enfrentamentos entre policiais e estudantes, claramente se inspira no que Spike Lee buscou nos minutos finais de seu recente Infiltrado na Klan (2018).

Déo Cardoso oferece uma construção justa de um gênero que nunca se importou pelo grupo que o cineasta quer retratar. Essa tentativa de reparação gera certos meios totalizadores que não servem bem ao filme, que confunde cinema jovem com condução juvenil. Ainda que preso pela euforia da proposta, Cabeça de Nêgo é um ponto de partida para um tipo específico de filme feito para adolescentes que quase ninguém parece interessado em produzir de maneiras menos óbvias, ainda mais para um público geralmente marginalizado por esse cinema.

Visto na 23a Mostra de Cinema de Tiradentes

FacebookTwitter

Mascarados (Henrique e Marcela Borela, 2020)

Por João Pedro Faro

73260277_2457992051153268_7825578538144104448_o

Uma primeira diferenciação possível entre Mascarados, nova longa de Henrique e Marcela Borela, e outros trabalhos similares do cinema latino-americano contemporâneo, é a desritualização do trabalho. Diferente de filmes como La Libertad (2001, Lisandro Alonso), não há interesse em ritualizar o gesto do trabalhador braçal. A percepção desse fator é essencial a Mascarados: para os autores, a tradição, o rito do trabalho, não exalta o trabalhador, ela apenas valida a exploração.

O tradicional trabalho das pedreiras, típico da cidade de Pirenópolis que serve de cenário ao longa, não gera nada além de exaustão ao trabalhador explorado. Mascarados é um filme curto, mas de muitas imagens, de planos breves e estáticos que ressaltam o sentimento de apatia e marasmo vivido pelos membros da pedreira. Nesse contexto, surge a festa do Divino e seus mascarados. Os trabalhadores que querem participar da festa usando máscara continuam cerceados, sofrem a imposição de um fichamento individual, fica marcado como eles se tornam uma ameaça ao poder vigente a partir do momento em que não estão mais de uniforme. Não há festa, não há cultura que comporte um espaço para quem é condenado ao ambiente subalterno. A máscara esconde o rosto que precisa sempre ser vigiado, encarado.

O som de Mascarados também potencializa o abismo entre os planos. Uma música de Milionário e José Rico começa a tocar na rádio em um enquadramento e continua no próximo, indo do espaço caseiro para o espaço da pedreira. Uma explosão interrompe a canção, com milhares de pedregulhos caindo da montanha, marcando a chegada de mais trabalho para os pedreiros. As marretadas nas pedras são a única sintonia possibilitada. Assim, a mudança de sequências, mesmo entre cortes que fazem o tempo passar, parece contaminada por um sentimento conjunto de dominação.

É do trânsito entre esses espaços, da pedreira à casa, da casa ao festejo, que começa a emergir uma atmosfera de desconstrução das estruturas tão marcadas por uma montagem tão rígida. As máscaras usadas na festa são uma liberdade temporária, falsa, encerrada de um corte para outro que já coloca os trabalhadores novamente no ambiente de exploração. A câmera, dentro da festa, circula livremente pelos pedreiros que finalmente são vistos como algo além da força usada para aumentar as riquezas de quem os explora. E isso se encerra de um plano para o outro. O trabalho é contra a cultura, e a cultura é do domínio de quem impõe o trabalho, portanto não há como perdoar cultura alguma. Ela atrasa a revolta.

A demissão encerra a mudança de espaços, e dela surge um ultimato. Não há mais escape pelo festejo, a máscara é trocada por uma espingarda e ela movimenta todo o plano final. Entre um plano e outro reside uma sensação amplificada pela sequência das imagens, de uma certeza e uma precisão para o encaminhamento final do longa. O homem, não mais o trabalhador, atinge um estado de liberdade com a arma na mão. Atravessa um cercado, em uma imagem final sísmica de fuga. O plano se alonga pela floresta, em uma correria que vai contra todo o marasmo das imagens criadas anteriormente na obra. Não há apatia possível quando se está livre do domínio, sem as máscaras, sem as tradições, sem qualquer rito que seja. Apenas um último momento de intensidade onde o sujeito se reconhece como possibilitador da própria liberdade.

FacebookTwitter

Cadê Edson? (Dácia Ibiapina, 2020)

Por João Pedro Faro

os escravos de jo rosemberg cariry

Em dado momento da cerimônia de abertura da 23ª Mostra de Cinema de Tiradentes, quando convocavam ao palco os apoiadores do evento, um representante da Polícia Militar foi chamado para integrar o grupo. Recebido com aplausos, o comandante fardado foi bem recebido pelo evento, sendo a PM Mineira listada como “parceira cultural” da mostra. Nos próximos dias, o que ocupou uma grande parcela das telas foram longas e curtas denunciando a ação policial, especialmente da PM. Cadê Edson?, de Dácia Ibiapina, é talvez dos exemplos mais claros e diretos que expõe o terrorismo de Estado imposto pela polícia.

Sendo dos mais “tradicionais” documentários vistos na Mostra, com cabeças falantes e legendas que localizam o espectador no tempo-espaço, o longa busca centrar-se em um protagonista. Edson Francisco da Silva, figura de liderança do Movimento de Resistência Popular, é filmado entre 2012 e 2018 em suas ocupações e discursos, passando pelo golpe de 2016 até a eleição do atual presidente. De início, sua forte presença parece ser o guia narrativo do documentário, junto com o caso da remoção do grupo que ocupava o hotel Torre Palace, promovida brutalmente pela PM brasiliense em 2016. Quando o filme progride, Edson perde o lugar que havia construído no longa, com uma condução desfocada que perde-se em imagens que a cercam.

A quantidade de trabalhos documentais recentes sobre os caminhos tortuosos vividos na política dos últimos 4 anos exige que novos lançamentos criem cada vez mais personalidade. Cadê Edson?, ao mesmo tempo, carrega ideias muito próprias (estudo de protagonista, uso de imagens não registradas pela equipe) e rende-se ao “lugar comum” encontrado nesse tipo de longa. Quando se afasta do seu personagem-título, a sensação é a de que estamos vendo as mesmas imagens que vimos em todos os outros filmes que circulam pelo mesmo momento político. A divisão do verde-amarelo e do vermelho, os personagens que encaram o planalto central e as falas absurdas dos trio-elétricos direitistas são alguns exemplos que tomam tempo de tela em um filme que parecia buscar enquadrar momentos e pessoas pouco vistos em outros projetos similares.

O título acaba sofrendo da ironia da direção, pois Edson desaparece dos registros à certa altura do longa. A falta de um foco tão claro acaba com a firmeza inicial da diretora, que parece querer totalizar uma narrativa que era tão forte justamente por estar focada em um ambiente menor e mais concreto. O que há de poderoso nas imagens ao fim do longa, razoavelmente entrecortadas pela presença do protagonista, é o uso dos registros em drone feitos pela polícia em sua ação de violência contra os membros do MPR que ocupavam o Torre Palace.

Dácia parte da reapropriação das imagens policiais: o drone busca tornar heroico o ato da polícia covarde, mas suas intenções iniciais são completamente subvertidas pelo contexto apresentado. Os helicópteros, lotados de policiais armados, sobrevoam um grupo de ocupantes do MPR desarmados, tratados como criminosos de alta periculosidade. É gratificante em ser impiedoso na exposição do antagonismo policial, um maniqueísmo justo e condizente com a premissa da obra de Dácia.

Mesmo bagunçado e desfocado, Cadê Edson? é mais bruto e enervante do que a maioria dos trabalhos que circundam um atual momento político. Não há relativização possível da presença policial, registrada como assombro, como terrorismo declarado pelas próprias imagens feitas por agentes policiais em operações, apropriadas de seu discurso de origem e expostas sem o filtro tenebroso do bom-mocismo. Um trabalho de erros e acertos mas que nunca dá o pé atrás no que acredita, nunca higieniza uma realidade tão sórdida.

Visto na 23a Mostra de Cinema de Tiradentes

FacebookTwitter

Ontem Havia Coisas Estranhas no Céu (Bruno Risas, 2019)

Por João Pedro Faro

18404033_1640875242611907_8017276790604635530_o

Desde o princípio de sua imagem, o disco voador surge como interrupção de um estado de normalidade da sociedade moderna. Mesmo em uma cidade global como São Paulo, primeiro mundo do terceiro mundo, não há arquitetura mal projetada ou viaduto erguido que esteja no mesmo nível de um OVNI. Parte do que torna Ontem Havia Coisas Estranhas no Céu (2019) um diferencial dentro do desgaste atual do filme-rotina ou do filme-caseiro é sua relação com o objeto voador não identificado: sua presença reafirma o ordinário.

Filmado entre 2010 e 2017, de um experimento comum de registro e encenação que se complexifica ao longo da projeção, o primeiro longa de Bruno Risas coloca sua própria família como protagonista. Não há qualquer novidade na premissa de buscar (ou melhor, observar) mise-en-scène na rotina do próprio lar, nem na inserção de elementos fantasiosos em um contexto social, é a execução que cria sua personalidade. Sendo todo o processo de filmagem, seus conflitos, distâncias e erros expostos em veia aberta, com a iminência da fantasia construída no extracampo sonoro, Ontem Havia Coisas Estranhas no Céu sugere renegar os próprios meios. A construção de sua dramaturgia, mostrada em tempo real por Risas, transforma a suspensão de descrença em pura descrença. Ao mostrar a briga com sua mãe por errar um dos planos, a diretora de fotografia repetindo os takes sem corte e a conversa sobre o ato de filmar como parte constante do filme, cria um estranhamento através da desimportância de uma divisão entre o registro do espontâneo e do ensaiado.

Enquanto isso, vem chegando o disco voador. O som do tremor espacial é reconhecível desde a primeira vez que surge, mas parece tão comum ao espaço caseiro paulista, entrelaçado por brigas de família e marasmo do desemprego, que a comunhão entre o elemento de ficção científica e do cinema observacional tornam-se inseparáveis. Risas filma seus parentes como a típica classe média em crise, dentre idas e vindas de dinheiro ao longo dos anos e um senso de inquietação por uma falsa estabilidade, sempre à beira de desmoronar. O espaço da casa é um ambiente alienígena por si só, e aí não se encaixa metáfora qualquer, apenas um senso de alienação por parte de um grupo de pessoas que flutuam sobre a instabilidade do espaço em que habitam, tanto em termos de classe quanto de interpessoalidade.

As conversas corriqueiras são montadas por sequências paralelas e hipnóticas, quando sons intergalácticos parecem interferir no comportamento de pessoas brutalmente comuns. Ou talvez elas estejam agindo normalmente, e talvez a normalidade seja mesmo uma inconstância de gestos que variam entre o comum e o bizarro sem que possamos perceber. A não ser que tenha alguma câmera posicionada em nossa sala de estar, uma presença ao mesmo tempo consentida e invisível, que transparece a quem assiste seus registros nossa incapacidade de permanecer comum o tempo todo. Encenações ou espontaneidades? Provavelmente temos menos controle sobre isso do que imaginamos.

Ontem Havia Coisas Estranhas no Céu extrai uma potência quase magnética dessa ambiguidade. Dá até para dizer que o filme atinge um entretenimento muito direto na curiosidade pelo mínimo e pelo máximo, pelo mínimo em situações como uma risada estridente e esquisita no meio de um diálogo ou pelo máximo em aparições iminentes de figuras de outros planetas. Como em outros trabalhos construídos por encenações caseiras e planos, ao mesmo tempo, genuínos e calculados, esses momentos são capazes de tornar uma imagem corriqueira em uma construção até o enervante. Sendo exemplo 11×14 , de James Benning, em que um longo take de cozinha torna-se emocionante pela rápida passagem de um vulto no fundo do quadro, o filme de Risas tem total confiança no poder de ações menores transformadas em ações máximas pelo enquadramento. O contrário também acontece: situações máximas tornam-se mínimas diante de um dia a dia tão cheio de mistérios intrínsecos a sua natureza. Passar o dia inteiro esperando pelo dinheiro na conta ou pela hora do café, sem perceber as entranhezas naturais de uma rotina ensaiada. Resta aguardar por visitas interplanetárias que provem a nossa incapacidade de sair do lugar.

Visto na 23a Mostra de Cinema de Tiradentes.

FacebookTwitter

Sequizágua (Maurício Rezende, 2020)

Por João Pedro Faro

os escravos de jo rosemberg cariry

A distância entre a encenação e o registro documental  sempre foi muito pequena. O modelo de ficção documental, provavelmente a maior tendência dos festivais nas últimas duas décadas, nem sempre percebe que a divisão entre esses dois termos é praticamente inexistente. Com algumas imagens poderosas, Sequizágua, de Maurício Rezende, erra justamente na fragmentação típica do gênero que pertence.

Em um plano inicial preciso, um morador de uma cidade no norte de Minas Gerais explica a tragédia vivida pela intrusão do agronegócio em suas terras. O resto do longa acompanha alguns outros personagens da cidade em sua tentativa cotidiana de desviar das consequências desse terror. É possível compreender o filme em duas metades: a primeira, interessada pelo registro de imagens rotineiras, a segunda, construída em cima de encenações mais claras em que os protagonistas interagem. O desenvolvimento acontece sem que elas conversem diretamente, a divisão não mescla o potencial que cada metade apresenta. A construção de imagens fortes fica perdida nessa primeira metade (a caminhada sobre a terra seca, as crianças e os facões, a procissão) e a narrativa mais clássica da segunda metade não alcança mesmos potenciais imagéticos.

Na objetividade da estrutura, Rezende acaba passando por manias desgastadas da ficção documental. Um exemplo, que acontece lá pela metade, é a sequência de “montagem de rostos”: o filme para afim de que alguns locais, que não estão inseridos na narrativa, façam um plano estático e austero encarando a câmera diretamente. É uma mania contemporânea que perde seu potencial por desgaste, quase como se tivesse que estar lá simplesmente para cumprir uma tabela de requisitos que o gênero insiste. Estão em Sequizágua também há o plano das roupas no varal, o plano do pôr do sol e o plano close dos alunos na escola que geram a sensação de que estamos assistindo um compilado do que é mais comum de encontrar em um filme desses.

Ainda que não seja tão próprio, Sequizágua ainda alcança trechos interessantes. A sequência em que duas adolescentes buscam os irmãos caçulas, perdidos em um rio que secou, e a cena do “amigo oculto” na escola conseguem apresentar uma construção visual vista no início do longa trabalhando coletivamente com ideias próprias de relação narrativa moldadas na montagem. Débora Anjos dos Santos, protagonista desses momentos, atinge um potencial de performance que gratifica algumas passagens mais singulares à Sequizágua.

Maurício Rezende é ocasionalmente inventivo e registra um respeito louvável aos residentes do espaço em que seu filme reside. O que distancia Sequizágua de trabalhos similares mais memoráveis acaba sendo esse excesso de segurança em provocar pouquíssima novidade, dotado de uma cartilha de traços reconhecíveis a esse tipo de cinema sem trabalhar muito em cima deles. Um experimento de personagens poderosos e condução distante.

Visto na 23a Mostra de Cinema de Tiradentes

FacebookTwitter