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Olhar de Cinema: Crônica do Espaço

Por Pedro Tavares

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A ausência como disciplina do saber. Um aprendizado a fórceps criado na base das lacunas. Crônica do Espaço é um filme essencialmente contemporâneo a pensar nas palavras de Serge Margel que o contemporâneo representa uma forma traumática de reconstrução do presente comum.

O filme de Akshay Indikar narra um tempo de mudanças repentinas na vida do garoto Dhigu e como este trauma, em forma de diário (ou anotações ou crônicas, como o título entrega), constrói um ritual de sobrevivência inconsciente. Primeiro pela idade de seu protagonista, ainda incapaz de assimilar certos eventos-traumas e principalmente como o passar dos dias, a criar uma sensação incômoda, não encontra o presente. A realidade para o garoto é paralela.

Neste tipo de licença poética que Indikar encontra um caminho certeiro para todo tipo de introdução lúdica aos sentimentos do garoto, de seus desejos à relação com a família em um local inóspito para ele. Crônica do Espaço, portanto, é um filme sobre um ideal intocável. Os desejos de Dhigu, na mesma medida que se tornam imagens, viram lacunas. Espaços preenchidos por lamentos que Indikar aposta num uso geométrico, seja pela posição da natureza como dos personagens em cena – em ambos, a sensação é de ausência, da noção de um vazio nos espaços e nos corpos filmados.

Crônica do Espaço é também um filme contemporâneo por sua abordagem: dos tempos mortos, da ideia de imagens autônomas, da certeza que a medida do olhar é exata para captar sentidos e sentimentos maiores dentro do escopo apresentado. Dhigu é uma representação, milhares de lares ali colocados com certa pompa de seu êxito estritamente afetivo. Não é bem sucedido em todo o processo, ainda que suas tentativas sejam convenientes.

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Olhar de Cinema 2020

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Um Filme Dramático
Camila Vieira

Nasir
Camila Vieira

Trouble
Camila Vieira

Canto dos Ossos
Geo Abreu

Traverser (Após a Travessia)
Camila Vieira

O Ano do Descobrimento
Camila Vieira

Responsabilidade Empresarial
Camila Vieira

Quem tem medo de ideologia?
Pedro Tavares

Para Onde Voam as Feiticeiras
Pedro Tavares

Nardjes A.
Pedro Tavares

Victoria
Pedro Tavares

O que Resta / Revisitado
Pedro Tavares

Crônica do Espaço
Pedro Tavares

Los Lobos
Pedro Tavares

Sertânia
João Pedro Faro

Cabeça de Nêgo
João Pedro Faro

Canto dos Ossos
João Pedro Faro
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É Tudo Verdade: Segredos de Putumayo

Por João Pedro Faro

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Em seu novo documentário, o cineasta Aurélio Michiles percorre os caminhos da histórica expedição do irlandês Roger Casement pela floresta amazônica no início do século 20. Marcada pelo testemunho da escravidão e do genocídio indígena, cometidos por empresas extrativistas inglesas que invadiram a Amazônia, o diário de Casement é a base estrutural do longa, que remonta a história através de entrevistas, arquivos e reconstituições em locação.

Surge, desde os primeiros minutos de projeção, uma tentativa de trazer um escopo épico ao projeto. É embalado por uma trilha incessante e fortemente dramática, acompanhada por imagens que firmam o preto e branco como potencializador de sua intensidade sombria. Assim, entram os recorrentes trechos de reconstituição, feitos por um ator vestido de Casement, que não vão muito além de filmar pessoas de costas e criar ilustrações imediatas e desinteressantes para acompanhar a narração do diário. Nesse quesito, o filme remete muito às produções históricas feitas por alguns canais de TV por assinatura, e essa sensação televisiva e desconjuntada não casa com as intenções mais sóbrias do projeto. Um outro exemplo de como a reconstituição desmonta algumas cenas, em um momento mais pontual, é quando Michielis decide ilustrar um trecho de entrevista que detalha algumas atrocidades cometidas contra o povo indígena na região e cria, com próteses falsas, uma sequência de imagens de esqueletos e pedaços de corpos humanos na mata. Trabalhada de forma pobre e carente de algo que a justifique, a reconstituição não serve bem ao longa, tornando momentos de temáticas fortes em apelos dignos de televisão barata.

Em contrapartida, a reunião dos arquivos é vasta e enriquecedora. A seleção de imagens, parte delas fotografadas pelo próprio Casement em sua viagem, trazem à luz uma realidade histórica severa. São intrínsecas a esses frames uma carga de revolta e inconformismo, pois expõem de forma objetiva e estática os horrores concretizados do imperialismo em estado bruto. Nem sempre o filme consegue se debruçar sobre esses arquivos sem trata-los com certa mediocridade, sendo pontualmente rebaixados à uma exibição de slides, sem que essas incríveis e tortuosas memórias gráficas sejam exploradas em toda a sua complexidade. Muito se deve a forma como o filme enxerga suas imagens como meras ilustrações do que está sendo ouvido, sem que elas integrem um mesmo plano mais bem trabalhado. Como nas entrevistas, especialmente as dos peruanos descendentes das gerações escravizadas, que são realmente bem realizadas e trazem diversas falas relevantes, mas que nem sempre são acompanhadas por imagens que buscam um diálogo maior com o processo fílmico. A quantidade de vezes que ouvimos algo e, logo em seguida, somos expostos à uma imagem diretamente correspondente às palavras que foram ditas, não é pouca. Parece que o filme não deseja construir uma operação que seja plural em sua linguagem, e tratando-se de um tema tão rico e poderoso, esses fatores pesam na experiência.

Segredos do Putumayo é um projeto de alcance informativo e que movimenta alguns dos trechos mais absurdos e revoltantes da história da América Latina. Infelizmente, não há grande interesse em complexificar seu processo de composição fílmica, renegando o documentário a uma estética empobrecedora e pouco condizente com seus escopos épicos. Suas informações tem valor inestimável, mas não deseja apresenta-las em um arranjo que esteja à sua altura.

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É Tudo Verdade: Fico te Devendo uma Carta sobre o Brasil

Por João Pedro Faro

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A cineasta Carol Benjamin narra e organiza imageticamente a trajetória da prisão de seu pai, nos anos 70, cometida ilegalmente pelo regime militar brasileiro. Fico Te Devendo Uma Carta Sobre o Brasil agrupa uma investigação feita por Carol pelo passado do seu pai e a participação de sua avó na campanha pela anistia política.

Seguindo uma tendência contemporânea pelo documentário que coloca o histórico na perspectiva do íntimo, o longa funciona quase como um filme-ensaio intimista. Carol apresenta um material de arquivo amplo e bem integrado à uma narrativa documental concisa. O texto escrito é incluso no plano das imagens, as leituras de cartas funcionam como seguimentos articulados e pulsantes que criam ritmo às imagens estáticas e valorizam todo o arquivo reunido como uma possibilidade de criação cinematográfica. O documento existe como espaço de memória viva, especialmente na primeira metade do filme, mais focada nos desdobramentos dos primeiros anos da prisão de seu pai. Carol atinge uma louvável comunhão entre os impulsos investigativos, informativos e fílmicos, formulando o processamento de descoberta de fotos, textos e vídeos como o próprio princípio de composição imagética e sonora em seu documentário.

Enquanto resguarda um apreço e uma força ao se debruçar sobre as difíceis memórias de sua família, o filme se movimenta de forma interessante e oferece uma firme cisão entre formas de perpetuação do passado. Porém, há uma constante e desagradável intromissão verborrágica, por parte da narração do próprio filme, que diminui as energias dos arroubos iniciais. O reconhecimento de um valor íntimo à documentação histórica já se mostra presente no longa quando é criado um contexto em torno da revelação dos arquivos pessoais da família, atingida pela ação criminosa de um governo terrorista. Mas o documentário não permite que isso fale por si só, intrometendo verborragias intimistas que parecem querer explicar o que já estava claro, repetir o que já havia sido feito, tudo de forma muito verbalizada e dissonante. A sensação é de que a atenção dada ao material é renegada por um fio textual que deseja esmiuçar e tornar ainda mais tocante um grupo de documentos que, da forma como haviam sido apresentados, já falavam o que é dito, já tocavam o subjetivo pelas vias históricas. Cria-se um ciclo de repetição que, aos poucos, aproxima o filme de uma dinâmica redundante. A fala narrada em primeira pessoa surge como a única possibilidade de formulação do subjetivo, tornando o projeto menos memorável e se aproximando mais de documentários contemporâneos que tratam de questões similares (não há como ignorar a semelhança do texto de Carol com o do último longa de Petra Costa).

A partir de um conjunto de personagens brilhantes, enriquecidos pela preservação de suas memórias, Fico Te Devendo Uma Carta Sobre o Brasil consegue realizar passagens marcantes e bem compostas que geram movimento a partir da abertura de cofres do passado. Carol tem uma boa inclinação sobre o uso de arquivos e sabe remonta-los dentro de uma estética condizente com seu projeto e com suas intenções históricas mais personalistas. O que não cabe ao longa é a desvalorização de seu próprio processo e sua determinação em dizer as mesmas coisas duas vezes, não deixando com que o método engrandeça a experiência da autodescoberta pelas vias da lembrança.

 

 

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Olhar de Cinema: O Que Resta / Revisitado

Por Pedro Tavares

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No texto Imagens do (nosso) Tempo, Peter Pál Pelbart lembra como Paul Virílio analisa nossa instabilidade em habitar o agora e como ele se evapora num tempo sem espessura e sem perspectiva. Este raciocínio de Virílio aclarado por Pelbart vem em choque ao filme de Clarissa Thieme, O Que Resta / Revisitado.

Entre a ideia de resgate e sequência, Thieme constrói a crença nas imagens e o que ganha é a essência do verbo quando curiosos olham param  para analisar seus frames impressos em formato de banners e suportados pelos assistentes da diretora. O filme, que teoricamente se resume à fórmula do retorno aos mesmos locais filmados há dez anos para análise do tempo na Bósnia-Herzegovina em locais que protagonizaram crimes de guerra nos anos 90 está mais para blocos de lembranças particulares, como se Thieme colocasse uma cadeira em algum lugar público e esperasse alguém disposto à uma sessão de pura nostalgia.

Não há grandes mudanças nos últimos anos desses locais com as imagens dos banners, o que é um bom indicador comparando com o que fora visto nos anos 90 e que encerra frontalmente a navegação política de Thieme – não a expelindo por completo e são nestes resquícios que o filme tem alguma força, pois o tempo ganha outro sentido de compreensão. Se antes ele funcionara como amálgama do quadro dentro de outro, como se estes dez anos que separam o “grande quadro” do “pequeno quadro”, agora ele está salpicado, entrecortado e interrompido por essas conversas.

A pureza da revisita, como se guarda no título é abortada; Thieme tem em suas mãos o acaso do “grande quadro”, ou seja, do plano geral captado pela câmera e a certeza que seus banners criarão algum tipo de resposta ao mesmo ambiente que está ali suspenso em formato de fotografia. Dos transeuntes, sejam turistas, antigos ou jovens moradores, todos ali têm um reflexo imediato às imagens. Poucos guardam reações adversas ao que é mostrado e a principal liga entre imagem e “público” é o resgate, como se a proposta inicial de Thieme estive em pleno funcionamento, porém o que está no plano maior contradiz por completo esta ideia.

Fiel ao formalismo, Thieme mantém-se distante e dá o trabalho da proximidade ao captador de som, que corre até aqueles que se aventuram a falar. A câmera obscura é um grande caminho para que as pessoas não se curvem perante ao dispositivo e criem assim suas teorias sobre o tempo, um tempo que não criou muitas mudanças e que possibilita para Thieme um exercício sobre o passado, este sim um tempo com espessuras e perspectivas.

Visto no Olhar de Cinema

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É Tudo Verdade: Pão Amargo

Por João Pedro Faro

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O novo filme de Abbas Fahdel, Pão Amargo, realiza blocos de encenações cotidianas dentro de um campo de refugiados sírios no Líbano. Fahdel adentra o terreno ocupado pelo grupo imigrante, localizado entre um conjunto de vales e uma movimentada estrada, a partir dessa premissa de intromissão fílmica, causando ao espaço uma movimentação em torno da câmera que acaba por forjar diálogos e situações propícias aos seus interesses mais propriamente documentais.

Existe uma apresentação de conflitos íntimos de determinados personagens que discorrem através de situações claramente encenadas, possibilitando uma espécie de panorama interrogativo. Ele cria perguntas invisíveis que serão respondidas de forma indireta pela encenação dos refugiados, em diálogos expositivos que apontam situações como exploração de sua mão de obra, dificuldades em se alojar nas limitadas tendas, tédio e desesperança. Ou seja, o processo de Fahdel redireciona a conflituosa relação entre câmera e entrevistado, oferecendo uma possibilidade de criação de cena um pouco mais complexa, onde questões são respondidas sem que haja uma clara interrogação jornalística por trás das câmeras. Seu mote operacional permite ao grupo que acompanha uma ativa participação em um processo fílmico expansivo, que cria enquadramentos bem compostos e os isola no quadro, ao mesmo tempo que não deixa de investiga-los, não deixa de contribuir para a propagação de suas falas e de seus conflitos. Ao coloca-los nessa posição, onde são atores de si mesmos, Fahdel cria as imagens necessárias para que se construa um projeto documental rico na exibição do pacto entre quem filma e quem está sendo filmado. É assim que vemos momentos como um grupo de mulheres do campo trabalhando em uma plantação e reclamando de seus salários, um pai e um filho que discutem a demora para a preparação de um casamento, o dono de uma venda de produtos que reclama dos fiados com um supervisor, entre outros blocos de cena que arranjam situações ordinárias e seus protagonistas colocando a entrevista integrada à ação.

É justamente a relação entre o coletivo e o espaço que está no centro de todas as questões que compõe Pão Amargo. Entre um grupo de pessoas que tiveram suas casas destruídas pela guerra e que tentam, diariamente, construir alguma estabilidade dentro das limitações do lugar que ocupam, Fahdel registra imagens que colocam em um mesmo plano os moradores do campo, o campo e o sítio que ele se insere. Há essa constância de planos gerais que marcam desde as montanhas no fundo da paisagem, descendo para as tendas na beira de estrada e acabando nos moradores em suas tarefas diárias. O escopo sempre tenta englobar uma grande quantidade de fluxos imagéticos que se comunicam diretamente em um espaço onde a vida é construída em tamanho reduzido. Onde os elementos, sejam eles pessoas, casas, decorações ou animais, convivem em um intenso agrupamento, impossibilitado de se expandir. A câmera abre e tenta conseguir encaixar tudo isso enquanto ainda continua a captar suas falas e gestos, em conformidade com toda a gambiarra necessária para a sobrevivência de um grupo à margem.

No único momento em que permite que um personagem fale para a câmera, um refugiado que empilha repolhos em um caminhão esbraveja para a lente: “Que Deus amaldiçoe aqueles que destruíram nosso país”. Cedendo à potência de uma espontaneidade, mesmo dentro de um processo fílmico tão próprio e tão fechado, Fahdel só reafirma os esqueletos de Pão Amargo. Realizar, dentro de um grupo de pessoas em estado de desesperança, isolamento e incerteza, um encontro com um aparelho cinematográfico que não busque extrair dele uma experiência, pelo contrário, decide adicioná-los uma. Uma encenação criada e desenvolvida pelo pacto.

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Olhar de Cinema: Los Lobos

Por Pedro Tavares

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Los Lobos abre com uma interessante amálgama de cores entre as estradas que separam o México e os Estados Unidos. Nela, o azul da bandeira americana se desbota e nota-se que o tom esverdeado ganha notoriedade. Lúcia chega ao território americano e assim o filme ganha contornos novos para abordagens de filmes sobre imigração.

A mais forte delas é que o diretor Samuel Kishi opta por exibir o contracampo do que outrora fora a coluna de um melodrama social. É na rotina dos meninos Leo e Max, entre a ideia de um cativeiro e a segurança para que a mãe trabalhe, Los Lobos cria assim um parâmetro para essas vidas. O sonho americano adormece já nos primeiros minutos. Ele está há muitos quilômetros de distância, um sonho inalcançável e que por diversas vezes o diretor ilustra como ele engole estes corpos necessitados por realização.

O que o filme faz, portanto, é medir o tamanho do “sonho mexicano”. Um sonho que já nasce com limites estipulados, funções básicas e que precisa de um tipo de assistência geral. É quando Kishi muda o formalismo de um filme de cativeiro para ser um filme de comunidade, seus contornos melodramáticos são mais evidentes e transparecem necessidades mais urgentes para estes imigrantes, mesmo que exista uma política de boa vizinhança, regras constantemente são infringidas.

Mesmo com um tema denso, Kishi opta por uma abordagem lúdica, amenizando a tensão na discussão dos temas – o que lhe deu a grife de melhor filme da mostra geração do Festival de Berlim deste ano – e assim, Los Lobos ganha o caráter introdutório ao contracampo filmado. A história daqueles que saem de casa para trabalhar e diminuir-se perante a bandeira americana é conhecida; basta sabermos como é a rotina daqueles que ficam e se adaptam ao novo sem conhecer o que está ao redor e tampouco como esta nova vida funcionará.

Entre o peso do desconhecido e a imaginação da novidade Kishi orquestra um tipo de horror juvenil – o que escapa de monstros e que enfrenta a solidão e o tédio à fórceps e que aprende que nem todos são confiáveis, mesmo quando o verde se confunde com o azul.

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É Tudo Verdade: Libelu: Abaixo a Ditadura

Por João Pedro Faro

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Libelu: Abaixo a Ditadura, de Diógenes Muniz, é um documentário que extrai força de estruturas bastante tradicionais. Contando a história da tendência Liberdade e Luta, núcleo de militância de esquerda feita por estudantes paulistas em meados dos anos 70, o filme varia entre uma grande reunião de imagens de arquivo e entrevistas inéditas com os personagens da Libelu, oferecendo uma revisão dos impactos históricos do grupo pelos próprios protagonistas de sua existência.

É possível dizer que há uma qualidade quase televisiva ao longa. Sendo dinâmico e conciso na construção linear dos relatos e expansivamente informativo, Libelu se concentra em condensar os casos e ideias que pretende registrar em um modelo estético bem próximo do que se entende por “documentário jornalístico”. Há uma apresentação direta de seus personagens, seguida por incursões temáticas bem claras e divididas, resultando em um projeto de quase exatos 90 minutos preenchidos por um ininterrupto interesse em apresentar momentos-chave do movimento e os ocasionais comentários abertos do grupo de entrevistados acerca de suas implicações midiáticas, memórias de juventude e contos de suas participações dentro do movimento trotskista estudantil. Surge como sendo bastante determinado em apresentar perspectivas, tanto subjetivas quanto historicamente panorâmicas, a respeito de seu tema central, nunca se desligando de sua principal fonte de trabalho.

Parte dessa concentração é aliviada por uma transparência em seus processos de diálogo, típica ao cinema documental mais popular. As entrevistas de Diógenes são constantemente quebradas por perguntas que não querem ser respondidas, informalidades claras do ambiente em que se insere, memórias que tomam rumos cada vez mais pessoais e intervenções diretas através da entrega de fotos e revistas da época a serem comentadas pelo grupo de personagens. Consegue ser explicitamente formulaico sem que soe dissimulado, justamente porque alcança uma proximidade com o grupo que registra que é suficiente para deixá-los em primeiro plano. Especialmente em seu terço final, quando trata dos destinos dos militantes de Libelu posteriores a saída de cada um da vida militante, o documentário consegue traçar fortes relatos e, em alguns casos, fortes imagens que traduzem severamente questões como a desilusão política e a abismal diferença entre os primeiros anos da vida adulta e seus dias tardios. O depoimento do ex-ministro da fazenda (e ex-Libelu) Antônio Pallocci, gravado em sua prisão domiciliar, é particularmente melancólico e honesto, expondo um tema paralelo, mas crucial, ao documentário, que é a perda de um sentido enérgico e vigoroso impulsionado pelo engajamento político em difíceis tempos passados.

A conclusão, em um projeto bem acabado e que serve muito bem às próprias intenções, é uma informativa coleção de presenças que constroem uma unidade documental de memórias. Libelu pode acabar não sendo um documentário muito inventivo em forma ou apresentação, mas suas pulsões mais básicas acabam por realizar uma experiência muito funcional de recontos e resgates históricos dentro de um procedimento fechado e, abertamente, careta. Poucas coisas poderiam funcionar mais para acompanhar um grupo de pessoas desligadas de seu próprio passado.

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É Tudo Verdade: Não Nasci Para Deixar Meus Olhos Perderem Tempo

Por João Pedro Faro

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O documentário de Claudio Moraes sobre as memórias do fotojornalista Orlando Brito é moldado em torno de uma extensa e inédita entrevista. Enquanto percorre, de forma não-cronológica, contos de sua carreira e das personalidades que fotografou, o filme varia entre expor fotografias de Brito (algumas em melhor resolução do que outras) e filmar sua cabeça-falante que relata diversas passagens marcantes da história do Brasil a partir do golpe militar.

É objetivo como o filme se apoia inteiramente na potência intrínseca nas falas de Brito. Isso gera, portanto, uma constante de erros e acertos no longa: enquanto as memórias do fotógrafo perpassam momentos fortíssimos, não há nada que, cinematograficamente, acompanhe essas passagens. As fotografias de Brito acabam exploradas de um jeito muito óbvio, pouco interessado em investigá-las ou até mesmo exibi-las de formas mais fílmicas. Passam como slides, em transições animadas pouco inventivas, à procura de algo que faça jus às narrações que lhes acompanham. Parece sempre apressado em passar de um relato para outro, deixando vários momentos quase que feitos pela metade. Há uma grande sensação de um trabalho inacabado, tanto pela inconstância da qualidade das imagens e do áudio quanto pela unidade mal formulada do projeto.

Ainda que a realização seja insuficiente, há ocasionais trechos de algo mais finalizado. A passagem de Brito por um templo religioso cósmico, em Brasília, é um momento que não parece apressado em acabar. É assim, também, em sua recordação sobre a foto que tirou do General Geisel de sunga, ou em seu último e emocionante encontro com Zé Keti. São momentos que, apesar de perdidos em uma narrativa fílmica mal construída, mesclam de forma funcional a exibição de imagens estáticas junto com a narração de Brito. São operações simples de imagem e som que fazem falta durante o resto do longa, confuso no jeito que arranja seu protagonista e seu material de arquivo. O resultado, em grande parte, são momentos interessantes e espaçados, preenchidos por outros que não se resolvem, não se concretizam, acabam por onde começam.

Não Nasci Para Deixar Meus Olhos Perderem Tempo pode ser descrito como uma coleção de memórias brilhantes desperdiçadas por uma execução pouco interessada em um aprofundamento cinematográfico. Resta, ao produto documental, sobreviver do que não lhe pertence,  do que não consegue puxar para si, que são grandes histórias sem qualquer tipo de condução fílmica que engrandeça o projeto. Acaba diminuído pelo próprio desinteresse com o cinema.

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É Tudo Verdade: 1982

Por João Pedro Faro

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O filme de arquivo do cineasta Lucas Gallo remonta 3 meses de imagens televisivas de um programa local, acerca dos eventos bélicos de retomada das Ilhas Malvinas em 1982. Gallo assume as imagens como pura propaganda do regime militar e, através de precisas sobreposições imagéticas e paralelos imediatos entre diversos registros, cria uma contranarrativa fílmica aos absurdos promovidos e televisionados à época pelo governo argentino.

Tendo como centro formal a intromissão da montagem a partir de imagens que, por si só, já falam bastante, 1982 não dispersa de seu método em nenhum momento. Enquanto assistimos uma narrativa ser montada e vendida ao povo argentino, criando uma enorme comoção popular pelas tropas nas Malvinas, acompanhamos, paralelamente, os eventos tenebrosos que discorrem nas ilhas. A primeira metade do filme funciona como filme de guerra, com jovens soldados no aguardo da chegada das tropas britânicas inimigas, enquanto toda uma mobilização nacional desmedida e insana é direcionada a jovens rapazes que esperam pela morte. Por mais propagandístico que o material do programa 60 minutos, fonte de todos os arquivos que Gallo retoma, a iminência do desastre nunca deixa de rondar os cantos dos registros. Quanto mais absurda e mais esquizofrênica se torna a expectativa criada por um movimento armado condenado ao fracasso, mais nos afastamos das imagens das Malvinas e nos fechamos aos auditórios argentinos onde, de alguma forma, a guerra ainda parece caminhar para a vitória.

Se torna, portanto, um exercício de contrastes imagéticos diretos, que expõe o terror da propaganda deixando com que a realidade fale por si só. Não temos alternativas às imagens propagandísticas, porém, elas mesmas passam a se contradizer e, aos poucos, a ruir, declaradamente omitindo o que não lhe interessa e tentando segurar um regime em clara decadência. Criam-se programas de doação com moças bem vestidas ao lado de soldados armados, televisionando um show de arrecadações financeiras para um governo responsável pelos próprios gastos em uma guerra imprestável. Nesse sentido, a figura do General Galtieri e da primeira ministra Margaret Tatcher funcionam como a oposição entre dois carrascos que aparecem de formas opostas nas imagens de propaganda.Tatcher é um fantasma o filme inteiro, representante física do colonialismo europeu, uma entidade maligna que só dá as caras quando já derrotou o país latino-americano. Mas, sem nenhuma surpresa, parece estar ideologicamente ao lado de Galtieri, que sonha com um colonialismo próprio.  Galtieri, exaltado, surge como uma força de salvação que apoia ações completamente fantasiosas, mentindo constantemente, mas sem deixar com que seu rosto pare de olhar para a câmera. A propaganda de guerra, caso esteja do lado do vencedor, serve para marcar o responsável pela vitória, o líder supremo. Caso acabe em derrota, marca eternamente o mentor dos crimes contra a humanidade. E o rosto de Galtieri, sobreposto por Gallo às imagens da destruição, representa uma fraqueza existencial digna do pior dos líderes.

O material reunido por Gallo, todo gravado em vídeo, apresenta ocasionais interferências  na imagem que deformam ainda mais os registros já naturalmente deformes. Juntando isso à sua montagem, marcada por transições entre imagens que surgem por cima de outras, temos um processo certeiro que faz as imagens quase ininterruptas, desesperadas em formular uma realidade alternativa, triunfante. Podemos dizer, então, que 1982 compreende cinematograficamente as origens e as implicações de um discurso patriótico dissimulado, criminoso e desmoralizante, pois seu objetivo é expor toda a sujeira comercial de uma nação comandada pelo militarismo em acordo com o capitalismo. O resultado, em um dos trechos mais marcantes do filme, é o que diz uma voz ao pendurar um pôster do Maradona em uma das paredes de um bar nas Malvinas: vemos, aqui, o perfeito exemplo de um rapaz argentino, patriótico, um símbolo do futuro. Só dá pra tentar se agarrar às imagens que restam, nos sonhos latinos por um imperialismo que possa chamar de seu.

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É Tudo Verdade: Atravessa a Vida

Por João Pedro Faro

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O novo documentário de João Jardim parte de uma ideia mais do que sedimentada no cinema documental das últimas décadas. Atravessa A Vida coloca uma câmera dentro de uma escola pública do interior de Sergipe, a fim de acompanhar os derradeiros dias pré-Enem dos alunos do terceiro ano. Desde High School (1986) de Frederick Wiseman até Últimas Conversas (2015), de Eduardo Coutinho, não faltam exemplos memoráveis (e, também, esquecíveis) de autores documentais que exploraram tanto o ambiente quanto os personagens do ensino médio público. Se há qualquer diferencial no filme de Jardim, ele está firmado em suas passagens mais propriamente intimistas.

A cidade pequena que dá palco à sua encenação é vislumbrada em segundo plano. Há, durante todos os diálogos, uma sombra da distância da capital e dos cursos que os alunos desejam prestar. Há uma sensação de isolamento, que percorre todo o filme, e que aponta para projetos de marginalização impostos à essas figuras adolescentes, mais do que conscientes de todo o processo por trás de sua sonhada incursão no ensino superior. Quando decide dar atenção direcionada a determinados personagens, Atravessa A Vida revela jovens em estado de elucidação e inquietação.

O que o filme não consegue carregar é, justamente, a complexidade dos sentimentos de seus personagens sendo resguardada pelo ambiente em que se encontram. Nada pode ser mais objetivo em demonstrar essa dicotomia do que alunos prestes a se formar, em correrias de estudos integrais impulsionadas por inseguranças e crises. Em seus momentos mais fortes, especialmente na primeira meia hora, integra um processo melancólico imersivo de desesperança e angústia, filmando livremente trechos de aulas, discussões e interações ordinárias carregadas de timidez e volatilidade. Já no terço final, o filme renega seus princípios e busca um encerramento mais comum e palatável, dando um nó de forca em sua integridade.

Atravessa A Vida é um caso curioso. De início, reconhece seu processo fílmico e produz imagens interessantes e ativamente relacionáveis em torno da experiência secundarista. Quando deixa de ser sobre a articulação entre a presença física da câmera e a reação desses adolescentes em crise à lente, busca os espaços mais confortáveis, conhecidos e desinteressantes. A forma como se encerra, em longos créditos que colocam o nome dos personagens ao lado do curso em que passaram ou pretendem passar, é um grande desrespeito à confiante aproximação que, inicialmente, parecia criar entre aquele grupo de pessoas. A partir do momento em que um filme age como um professor agiria, deixa de ter qualquer interesse pelos humanos em tela. Uma pena que ele não permita que esses alunos deixem de ser, por algum momento, algo além de alunos.

 

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É Tudo Verdade: Forman VS Forman

Por João Pedro Faro

birds of prey

Forman VS Forman parte de uma extensa reunião de arquivos que remontam a vida do diretor tcheco. O centro do longa de Helena Třěštíková e Jakub Hejna é a colagem, que liga diversas entrevistas de Milos Forman às imagens resgatadas. Nesse sentido, funciona mais como um filme-ensaio do que como um documentário em si, tendo em vista que a única voz presente é a do protagonista. Seus relatos entregam ao filme um corpo semântico que garante uma concisa condução das imagens.

A montagem é a grande força aqui. Ao recusarem típicas estéticas ultrapassadas dos documentários narrativos, como fotos em slideshow e abuso de planos de “cabeças falantes”, os diretores extraem uma experiência que nunca deixa de ser, ao mesmo tempo, informativa e cinematográfica. Até pela curta duração de 70 minutos, que resumem quase 90 anos de vida, não há sobras de tempo que não estejam devidamente recortadas e processadas. Třěštíková, veterana do ensaio documental, realiza um trabalho sucinto e direto sem que nada pareça apressado ou resumido.

Em certos aspectos, Forman VS Forman remete aos últimos trabalhos de Agnès Varda, especialmente As Praias de Agnes (2008). Claro que se trata de um trabalho bem menos grandioso (e com um personagem central muito menos carismático), mas há sim uma liberdade incondicional gerada pela revisão de toda uma carreira nas palavras de seu principal autor. Tanto no filme de Varda quanto no de Třěštíková, a aproximação entre espectador e filme só é possibilitada pela forma como concentramos a jornada na voz do centro das criações, acompanhando, na distância da lente, um artista que reconta seus passos.

O mais surpreendente é perceber como Milos Forman reconta sua trajetória como a história viva do sonho americano. De sua saída da Praga comunista pro cenário caótico dos Estados Unidos setentista, culminando em seu vergonhoso discurso em Washingnton em 89, Forman é um personagem único que guarda todos os ideais de uma geração de artistas da Europa oriental que sonharam com a “liberdade de expressão” de uma América perfeita.

O filme de Třěštíková e Hejna é feliz em respeitar a distância que Forman tinha de si mesmo e de suas próprias desilusões, com sua terra natal, sua carreira e seu novo país. Como o cineasta explica, na primeira linha do filme: “não gosto muito de pensar sobre mim”. Está aí todo o espírito do projeto. O que resta, então, para desvendar esse personagem, é revelar todos os seus passos e todas as imagens que lhe marcaram, na esperança de que exprimam alguma existência, em um confronto entre suas palavras e suas realidades. Realmente, é Forman contra Forman.

 

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É Tudo Verdade: Meu Querido Supermercado

Por João Pedro Faro

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O longa de Tali Yankelevich tem jeito de reportagem. Com a duração de um episódio de Globo Repórter, Meu Querido Supermercado é um registro objetivo e costumeiramente simples de um grupo de funcionários durante um dia de trabalho. Contado em pequenas narrativas de seus personagens, o filme não parece confiar o bastante na capacidade individual de cada um de seus núcleos e tenta puxar uma visão unificada de um mosaico desconjuntado.

Não é surpreendente que os funcionários do mercado sejam, em geral, pessoas bastante interessantes. Os momentos de maior criação surgem em gratas presenças, como a supervisora das câmeras de segurança que passa o dia inteiro vigiando sua filha que trabalha no caixa do mercado. Ou, também, no núcleo do romance hawksiano entre dois padeiros, figuras com carisma suficiente pra carregar grande parte das sequências do filme.

O cansaço visual de Meu Querido Supermercado está justamente no contraponto dessas figuras: Tali sempre parece justificar seu projeto com ambições “superiores” ao registro do trabalho, forçando aos seus personagens banalidades cósmicas com perguntas como “Você acredita em vida após a morte?” e “O que é fé para você?”. Essas respostas, limitadas a uma fração do grupo que retrata, surgem acompanhadas de analogias visuais bastante óbvias, como a sequência em que um dos funcionários descreve o “além vida” como um “desaparecimento da forma física”, apoiado por imagens de pães velhos sendo triturados. Não há nada nesses momentos que se integre à rica e inexplorada existência dos personagens que encenam a obra de Tali.

A necessidade que Meu Querido Supermercado parece ter em querer integrar seu microcosmo aos próprios cosmos não alcança suas ambições, em um documentário que parece planejado pela metade. O que prevalece, no contato dessa presença fílmica com os indivíduos que retrata, é um breve e agradável vislumbre de vidas que transbordam os horários de descanso do trabalho.

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Olhar de Cinema: Victoria

birds of prey

Por Pedro Tavares

Na rapidez que a cobertura de um festival de cinema exige até mesmo na produção de textos, um pensamento recorrente vinha ao pensar em Victoria: o cinema como vínculo entre distâncias. Um pensamento a partir do que Rancière escrevera em As distâncias do cinema a partir do prisma do que é inalcançável e a partir disso criar um diferente estado do real.

O que o filme de Sofie Benoot, Isabelle Tollenaere  e Liesbeth De Ceulaer faz, de certa maneira, é construir um western para os anos 2010. A ideia do progresso feito com asfalto e crescimento vertical encontra a ruína quando um projeto retorna ao seu princípio. Para California City ser um deserto de um homem só, antes houvera um deslocamento de diversas camadas – do leste para o oeste, de planos, perspectivas, afim de um recomeço.

Recomeçar parece uma palavra-chave na composição de um filme para os anos 2010 a julgar pelo momento de apogeu desta necessidade que passamos em 2020. A ideia de recomposição sucumbe à rotina de tratar supostamente o que é intratável. Curiosamente não há um tipo de desespero como reflexo. Contemplar e seguir segue como melhor caminho, na mesma maneira que sinalizar ruas inexistentes para que ninguém as atravesse. O único eixo concreto de Victoria está na sugestão de que houvera um caminho percorrido e certo alinhamento com a nostalgia que é brilhantemente nivelada com dispositivos modernos como o Google Maps.

Em Victoria, o cavaleiro solitário não está só, tampouco necessita de meios de transporte ou de assertividade social. Estas bordas nascem definidas fantasgoricamente. Sua luta é com o espaço e com sua memória que podem ser engolidos a qualquer momento, seja por um novo projeto de cidade ou pelo esquecimento.

Visto no Olhar de Cinema

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