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Ou voa, ou volta: por uma sociopoesia do alto

Por Felipe Leal

 

Temporalidades e reflexões empasteladas em cantigas sobre uma certa Valparaíso chilena? Há dezenas; e, como de costume, trançando seus “hurras” com versos de nostalgia, divinação ou espera pela terra de águas que vibram em dourado, como aparentemente nos vibram as harpas. Ora, é neste aparentemente que nos delongaremos, nisso que insiste em dizer e desdizer o regime de sua própria vizinhança. Mas, por enquanto, se se trata de remontar um repertório-Valparaíso, repertório de uma cidade à altura do cinematográfico, notemos que ele cerzirá essa cidade de imagens (ou imagens-cidade?) despreocupado em elitizar, em montagem, as mais ou menos artísticas criações em cima de um paraíso já deveras remendado. Pois também há pinturas populares com suas deusas lânguidas e instrumentistas favorecendo navegantes, há retratos de instantes marítimos curvilíneos e dramáticos à medida turva dos pincéis, e ainda charges cuja implicância com as desmedidas imperialistas o cinema sublinha enfaticamente ao imantar não tão-somente um lance de olhares entre o arco simples ‘dominadores/dominados’, mas ao dizer que ver é: dizer como se deve ver o que (já) se está vendo. “Mostrar o quanto é invisível a invisibilidade do que é visível”, como colocara Foucault em se tratando da ficção. À sua maneira, tudo já está montado. Cabe a um holandês voador montar ainda outra vez.

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Talvez seja por isso que este A Valparaíso (1963), curta-metragem do falecido e quase centenário Joris Ivens, ainda nos ressoe como um postulado de montagem a ser inquestionavelmente aproximado, fichado e esmiuçado sob o tom da poesia – não para dizer o que ela é, nem muito menos repartir a quimera nomeada ‘cinema de poesia’ em mesas de conceituação; antes, para lançar breves apostas sobre quanto do poético pode caber numa técnica que nasce e se revira na fratura para rearticular a impossibilidade óptica, científica e sensível de que as coisas se encerrem em si mesmas, estáticas, e de que particularidades uma carreira com no mínimo 20 filmes embriagados de iconografias entre o civil e o citadino pode se lançar mão ao filmar e reproduzir, lendo veloz e sistematicamente, uma cidade que contém ainda outras cidades dentro de si, todas interconectadas e interceptadas pela via socioeconômica que parte do porto, arranca alturas com elevadores e escadas lotadas de casas inclinadas, e vai parar somente para assistir aos cortiços nos montes “invisíveis a olho nu”. Mas não só lendo: relendo, negando o lido e dizendo o que há e não há para ser lido nas gramáticas do arco imagem-significação – como, sabemos, o faz a poesia.

“É uma cidade”, a voz narra, para logo em seguida adicionar: “não uma cidade, um conjunto de cidades” – e é como se certo regime de contradições, a partir de uma ética montada em jogo, abrisse um espaço para si, também ele montado, artificial e escritutário, e sustentasse as duas assertivas juntas nessa mesma porção quase impossível de terras, uma cidade cuja geografia consiste em ser várias (uma-múltipla), sendo ao mesmo tempo, empiricamente, efetivamente, várias dentro de uma, espécie de boneca-russa das províncias que cabem em províncias. A câmera desconhece o alto e o baixo senão para fazê-los indecifráveis. Influências asiáticas nas fachadas de hotéis, pinceladas afrancesadas nos costumes de língua, regimentos britânicos de funcionamento monetário… tudo articulado entre o apolíneo e o dionisíaco para duvidar e reafirmar uma espécie de ilhota de luxos dentro do terceiro mundo, micro ou macroscopicamente, ou seja, de si para si mesma e de si para com as nomenclaturas do fora.

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A paleta de imposições físicas diante do social, não bastando Valparaíso estar espraiada em direções incontáveis à rosa dos ventos, toma do absurdo sua literalidade e a durabilidade impressionante daquilo que lhe é frágil por estar em pé. As centenas de escadas guardam o mistério dessa socio-tipificação, algumas indo mais acima do que sua continuidade parecia sugerir, outras se encerrando como que espontaneamente no ar: trata-se de subir ou de voar, ou de subir o suficiente para que voar ressurja como possibilidade peculiar na grande roda da fortuna dos sujeitos sobre e sob deuses. Mas estas escadas são também o complexo de incalculabilidade entre o disciplinar e o acidente flutuante, elas forçam os fantasmas de proto-vidas ao mesmo jogo métrico que resulta em índices imateriais do vivido. Sombras em marcha, desfiladeiros de duras optativas, futuros esquecidos pelos pés, tudo de fato parece reconstituído por Ivens como a narratividade de García Marquez; o fantástico não está diametralmente oposto ao real, ele é apenas uma furtiva licença óptico-escrivã para se reunir com certa contrariedade ao destino: a história escrita de sangue. Então, rente às escadas, se dança, se afoga a altura das autoimposições pisoteando-a no mesmo nível daquilo que não é meio nem início, mas fim. Fim suado, alugado.

“Não é o mais rico [dos portos], mas vive-se, vive-se bem”, intercepta uma voz flutuando dentro dos elevadores e tecendo junto ao movimento de ascensão essa primeira contra-dição (tomar a fala para falar contra; dizer o outro lado estando do outro lado). Aqui, onde é preciso labutar o viver para só em seguida impor à vida uma crença de bonança, de vida vivida, aqui é preciso se separar das coisas para vê-las melhor. Todavia, particularmente por esse artifício de montagem que perturba nosso próprio emprego de metáforas da leitura e da literatura como algo inerentemente nascido com o cinema para melhor decifrá-lo e com ele se acostumar por imperativo de um centro (sou eu quem o lê, afinal), separar-se das coisas nos parecerá mais complicado, posto que significaria também separar-se do todo de vida em que tais ‘coisas’ assim o foram junto com todas as outras que não são elas, e que só necessitariam ser o que são se com elas desejássemos estabelecer proximidades.

O que pode Ivens querer, então, com Valparaíso? Com essas mulheres em roupas de grife passeando com pinguins de estimação sob a carnificina do meio-dia, e que, no entanto, não são mais, ali, por um instante suspenso porém durável, o retrato finito e reconhecível de uma burguesia que advoga por seus louros exibindo o que há de sofrível nas correspondências de classe, mas quem sabe lúdicas e desastradas vítimas dos próprios saltos e de uma vida que, concebida sob os parâmetros da altura, chega a praticar o ‘enobrecimento’ emprestando o colo a uma ave irascível e escorregadia como habitus de passeio, resquício quiçá das promenades afrancesadas em que o sujeito, ao contrário, era aquele a ser avistado pelo mundo.

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Esta motivação, na medida transparente de nunca que nos caberá dizê-la ao certo, ao menos supõe-se na própria malha retalhada e reinvestida de posições de olhares com que a montagem dança como que disjuntando um pas de deux, encantando o velocímetro de encadeamentos dos quadros com uma espacialidade especial possivelmente só encontrada no incessante movimento de fundação daquilo que se chama uma cidade: sendo impossível em qualquer momento de sua história, propriamente concebê-la, visualizá-la ou domá-la como um todo funcional a certos olhos, lança-se essa parte a um todo que está sempre aquém e além de si mesmo (a conceituação do plano é tomada aqui, então, numa acepção extrema de porvir, para além daquilo que se esquadrinha e em direção a um plano-planejamento, a uma elaboração medida para ser outra coisa que não ela).

A cidade é todo-fictício. Ela é totalmente, mas também impossivelmente, toda, e não é por menos que por esse aliciamento compartido que Joris ora opta por conduzir séries de inícios de planos costeiros intitulando-os e intercalando-os com elementos da cidade (os panos das donas de casa são frutos da poesia comunitária das ventanias, as rápidas incursões nos bailes festivos são a veia explosiva do traço sanguíneo estourando para dizer que ali o proveito se faz ao lado da labuta), ora por induzir as narrações a comentar um pitoresco arquitetural sem que, no entanto, cheguemos a visualizar seus interiores, seja para deixá-los ao imaginário, seja para simular uma reticência sem atropelá-la com uma melancolia já implícita. São espécies de socio-sentimentos cuja fagulha de indefinibilidade toma emprestado da montagem seu elemento mais simples – o choque de duas proposições subsequentes –, afetações que implicam o particular a partir de uma categoria social, mas que também sugerem ser o gesto sociológico alguma coisa permeável a propostas de individuação.

Como na poesia, essas imagens em estado de vibração despencam de um segmento de palavras (sentido) para então recair numa posição outra, verso/lugar seguinte mas estranhamente pertencente à lógica sequencial do todo, sendo a ruptura que evidencia tal distanciamento aquilo que faz ver essas mesmas coisas como in-familiares. O risco ético de colocar assertivas simultaneamente sociológicas, sentimentais e da ordem da verificação e da visibilidade do tangível é levado a um extremo minimamente inóspito, pois que nada é terrível, alegre, curioso, insustentável ou revigorante que não possa acolá ser todas as coisas ao mesmo tempo. É mais por levar as subjetivações encarnadas nos enunciados para o ponto em que elas se rompem e ganham substâncias liminares, do que para afirmar do real que este precisa ser des-normatizado e re-exposto, que qualquer estado de elevação poética não será simplesmente acessório e dissidente, inofensivo e retórico. Poéticas como estas, vistas em formas-cinema tão frequentemente próximas ao elemento civilizatório, se necessitam da linguagem de um empréstimo de transubstanciação, é para religar todo o bojo “domesticante” das formas de ver e ler ao seu avesso: aquilo que, inexplicavelmente até certo ponto, dota a si mesmo de sua ser-c(i)ência, guardando às escondidas as ferramentas de sua própria fabricação: habitus.

É clara, a máquina de que estamos falando?

Pois a velocidade equilibrista do encadeamento não seria suficiente para nos dissuadir de que essa voz narrativa, antes de esquivar-se elegantemente da propriedade divina dos primeiros textos dos documentários observacionais, tampouco precisa lhe refutar ou ser dela uma superação: o gesto de passagem de um quadro a outro, polissêmico por excelência e por disputa, assume também um tom cuja peculiaridade retoma traços desses supostos dispêndios e lassidões discursivas orientadas em rebater as propriedades determinadas dos significados.

Não é que se viva bem, ali, de fato e de acordo com uma média delimitada pelo conceito de humanidade, mas que “bem”, sendo não só palavra como pronunciamento de uma ocupação de significantes enrodilhados num presente, e sendo este presente o cruzamento entre texto e imagem, precisa tornar-se língua em movimento poético, uma distensão a partir da qual o vento, o calor sanguíneo e a presença do mar podem escrever uma história fictícia, temporária e estática de alguma “boa” vida àquelas imagens solitárias de crianças penduradas em balanços, às imagens de mulheres estendendo roupas ou dialogando rente à passagem dos vagões, esmagadas pela cidade, ou mesmo às imagens operísticas da população lançando sombras musicadas aos esqueleto de escadarias de Valparaíso. É que o fictício, alguns cinemas, não se opõe ao real, nem chama de “reais” as temporalidades feitas à parte daquilo que é captado. Não se trata, aliás, de reformular, dialogar ou “problematizar” com qualquer enunciado de realidade vindo de qualquer campo de saber.

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Como quando retiram-se de um texto todas as presenças da palavra “homem” para visualizar, ainda que ludicamente, os sentidos atribuídos ao masculino como forma de homogeneização das práticas letradas, experimentar a extração, em À Valparaíso, de qualquer interpretação ou lente de vistas pelo regime da realidade também retiraria do texto recitado por Roger Pigaut qualquer necessidade de aderir ao diretor o endereçamento ou a responsabilidade autoral como antecedente das possibilidades visuais e letradas de romper com a linguagem. Experimento visual como qualquer outro.

Não interessa, afinal, quando se trata de tecer essas “poematicidades” como dispositivos de intra-nomeação espacial, se quem coreografa é a câmera, o povo ou a imposição da presença de câmera ao corpo; não interessa se as flores debaixo dos trilhos são obviedades semânticas do mesmo modo como se revelarão as ironias das pinturas de cavalos nos bares da cidade, sendo aqueles corredores os mesmos que findarão, cansados, mortos, como carne nos pratos; e não nos interessando, enfim, identificar ser aquele que diz, quem diz, o resultado narrativo equivale, ele também, ao vidro estilhaçado e às cartas de baralho manchadas de sangue que dão à tela a inesperada colorização: necessita-se unicamente de uma partícula que diga: (passagem). Será algum espectador capaz de dizer que, ali onde repentinamente há cor, há também a inauguração do poético na obra, arriscando simultaneamente inferir que ele não existia antes, e que tudo não passava de uma farsa sentimentalista maldosa? Ou se estaria diante de um momento privilegiado, momento no qual e para o qual uma passagem de sentido não é uma passagem de todo, ou ainda que algumas passagens devem conter também uma não-passagem? Nada se verifica. Tudo acontece quando uma passagem se lhe pede.

Falar, não é ver. As palavras estão em suspenso, como está a disputa pelas cidades na cidade. Liberado da exigência ótica, a seletividade improvável disto em suspensão nas palavras se choca, no cinema de Ivens, com o que há de disforme na constituição do visível que, sendo metaforizado pela consciência, só pode nos chegar como dádiva de materialidade singular, enxuta do todo. Esse narrador é ninguém, mas só se ausenta ao colocar dois postulados num golpe de tempo só: atravessar a rua é também atravessar a morte.

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As cidades de nossas juventudes: A Cidade Onde Envelheço

“Tu queres envelhecer aqui?”

Por Geo Abreu

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Nos parágrafos da carta-poema de Paulo Mendes Campos a Otto Lara Resende[1], um mineiro exilado conta a outro sobre a apreensão necessária para “distinguir cada céu, conseguir de cada um a intimidade singular’, abaixo do céu implacavelmente azul do Rio de Janeiro da década de 1940. A melancolia daquelas palavras, que buscam conforto na novidade e encontram desolo na certeza da humanidade excessiva que não nos abandona nunca,  Paulo Mendes Campos parece até um poeta português inventando lonjuras: “Ninguém me chama / Ninguém me espera / Ninguém me denuncia”.

No filme de Marília Rocha, A cidade onde envelheço (2016), encontramos as experiências de lonjuras de Francisca e Teresa, duas portuguesas que escolhem Belo Horizonte para viver por um tempo da vida (ou para sempre?). Logo de cara, o primeiro dispositivo é reconhecível: o estranhamento do que parecia conhecido. De Belo Horizonte, essa cidade que, na última década tem sido cenário de tantos filmes que circularam pelo país e fora dele, se transformando em referência de Brasil e de cinema brasileiro. A presença de Neguinho (Wederson Patrício) nos remete àquela periferia de Contagem apresentada em A Vizinhança do Tigre, que nos aproximou de tantas periferias e garotos como aqueles. A pesquisa das amigas portuguesas sobre a vida naquela cidade nos leva a estranhá-la bem quando se pensava saber muito sobre ela.

Falando ainda de estranhar o conhecido, identificamos também uma inversão no uso de outro dispositivo comum, já que é o cinema quem costuma aproximar lugares desconhecidos de pessoas que muitas vezes não iriam até eles de outra forma que não pelos filmes. Aqui, ao contrário, visitamos o lugar conhecido pelas lentes de duas mulheres que possuem outro sonho feliz de cidade, Lisboa. A comparação é inevitável e esbarra justo em um dos elementos que produz o mistério do mineiro: a falta de mar! Que provação é essa das portuguesas que escolhem uma cidade sem mar para viver alguns anos da sua juventude? Que estado melancólico elas gostariam de experimentar, afinal? O tigre que se avizinha mostra as garras e lambe o sal do próprio corpo.

Se lançar a conquistar mundos, como não usar essa expressão recorrente a respeito da gente portuguesa? E quando essa gente que atravessa o Atlântico pela primeira vez são mulheres? Vale dizer que o olhar que lançamos sobre as duas moças lisboetas não nos devolve clichês. Alguém diz que Marília Rocha evita trabalhar os conflitos, que poderiam encaminhar a história para outros rumos e, a bem da verdade, ainda que as amigas sejam tão diferentes e se espantem com as atitudes uma da outra, o que vemos é apenas acolhimento, ainda que entre-dentes.

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Além dos conflitos que poderiam surgir do próprio universo do filme, existem outros a serem evitados, como o fato das moças estarem num país que já lhes serviu de colônia e serem brancas e ouvirem músicas angolanas ou ritmos eletrônicos misturados a outros de origem africana. Nada de fado ou de poetas portugueses e suas cartas e poemas coloniais sobre o encontro com o Brasil.  Nisso tudo se esbarra com amizade, a leveza de um balé íntimo a que temos acesso e a ideia de um cosmopolitismo que transcende as fronteiras entre o que foi colônia e o que ainda possa ser colonialismo.

Eu escolhi enxergar a história de Francisca e Teresa como um espelho do que foi ter sido jovem, mulher e migrante em outras cidades que nunca me devolviam imagens de mim mesma e às quais tentei me adaptar diversas vezes, a buscar intimidades singulares com cada um que me cruzasse o caminho. Onde pude experimentar novidades excitantes e luminosas como as que vemos Teresa curtir para, com o passar do tempo, chegar à mesma conclusão que Francisca – processo nada fácil – e embarcar de volta para casa num avião da TAM.

O que retenho desse filme é a importância dos pequenos gestos cotidianos: tomar chá com as amigas em chávenas sem par; chegar bêbada em casa e acordar todo mundo para um café da manhã diferente ou para continuar dormindo todos juntos naquele sofá-cama que já recebeu tanta gente; descobrir um disco “novo” do Jards Macalé num sebo perdido do centro de mais uma cidade antiga que fará parte das nossas vidas e que marcará a seu modo um tempo em nós.

[1] Trechos desta carta são lidos em off pela personagem Teresa a certa altura do filme. Aqui o link para um texto completo: https://www.correioims.com.br/carta/carta-a-otto-ou-um-coracao-em-agosto/

 

 

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CineBH: Rodson (ou onde o Sol não tem dó)

Por Gabriel Papaléo

O céu sobre o Ceará tinha cor de televisão num canal fora do ar

on the rocks

Na volta da quarentena, no mundo pós-vacina, é para essa festa frita de eletrônico que eu quero ir. Um filme que se anuncia “Fritado e montado por” já demonstra estar num lugar especial, e a concatenação louca entre os diversos dispositivos digitais parece ser a regra e o grande esforço das realizadoras e realizadores de Rodson – ou onde o Sol não tem dó. As dissonâncias espaciais abrem o filme para então nos levar para um panorama quase em livre associação do mundo distópico vivido pelo protagonista do título, uma criança interpretada por um jovem adulto que lida com a violência dos pais diante da sua amizade com um robô fudido que ele achou no lixo – e é condenada a vagar por esse mundo estranho de conflitos identitários onde vivemos.

Os anos 3000 serão feitos de lixo, o curta anterior de Cleyton Xavier, Clara Chroma e Orlok Sombra que serve como uma forma de sequência/derivado desse, já parte dessa crônica dos anos 3000 imaginados pelo trio, com os dejetos digitais utilizados pelas marginalizadas para formar uma resistência terrorista – e aqui a explosão dos formatos é mais variada, e por que não mais lisérgica. Acessamos a um arquivo pirata de uma sitcom da família tradicional brasileira disfuncional viciada em pó, a uma religião que prega pela cocaína contra os “cheiradores de cu”, e as mais diversas transformações que Rodson sofre por onde passa, ao desbravar a distopia futurista palco da luta entre as autoridades fascistas do governo anarcocrente e o grupo musical que se apresenta para o futuro.

Nesse retrato quase a mão livre da localização desse mundo, fica evidente que o caos político no qual vivemos é também, quem sabe sobretudo, uma guerra estética das mais ferrenhas. Como você pinta a sua resistência é central ao conflito, e Rodson vai de Lobo Solitário com seu Daigoro cyberpunk a morador de rua cuja imagem é sequestrada por uma blogueira que usa da miséria para ficar famosa nos festivais gringos, seja Rotterdam, Cannes, Berlim – todos aparecem num powerpoint maluco, fruto dessa liberdade estética marginal tão alucinante e que infelizmente é tão pouco vista em longas-metragem brasileiros contemporâneos.

Que no arremate ainda sobre para a imagem do mar como utopia final da liberdade, filmado num 480p vagabundo lindíssimo, parece sinalizar numa contramão de um filme como Corpo Elétrico de que a elevação espiritual solitária do personagem em comunhão com as águas não é um alívio nem um privilégio, mas um duro e surpreendente retrato do preço pago pelos excluídos e marginalizados. O mar não é a recompensa mas a fuga.

Tudo isso é sob a via do absurdo, espalhafatosa e gritante, num filme engraçadíssimo quando quer, e esse tempero desse afrontamento estético é o coração de Rodson – o que torna tudo francamente muito mais prazeroso de acompanhar. É uma experiência difícil e desafiadora que sonha texturas digitais grotescas para destituir o tecido da realidade escrota que acompanhamos para quem sabe restaurar alguma harmonia e paz na cabeça de quem precisa delas.

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Quatro filmes de mistério – CineBH – sessão curtas 3

Por Gabriel Papaléo

on the rocks

Coisas Úteis e Agradáveis adapta o texto de Voltaire para um contexto de isolamento, tal qual o República de Grace Passô, e retrata a estrada perdida do protagonista indiano pela sugestão minimalista – de alguns objetos de cena importantes para a dramaturgia ao opressivo cenário caseiro que investiga sombras e prisões. Depois de Vaga Carne, novamente o diretor Ricardo Alves Jr. aproxima a tradição teatral do monólogo para estabelecer uma fina linha dramatúrgica da forma que a luz ecoa a voz do ator em close, de como o gestual do ator e diretor Germano Melo (aqui também responsável por adaptar o texto) incorpora o dilema em primeira pessoa do indiano violentado com o distanciamento brechtiano do relato político. O arsenal de recursos de Alves Jr. na hora de retratar esse universo não é vasto como no filme com Grace Passô, nem é dotado da afronta formal proposta pela artista – o caminho aqui é mais seguro, até mesmo mais desequilibrado. A cenografia acaba um tanto reiterativa volta e meia ao eleger os mesmos objetos do texto, soando ilustrações literais demais da adaptação, mas perto do final Melo e Alves Jr. encontram num retrato fantasmagórico uma âncora misteriosa interessante ao personagem. É um conto que oscila na modulação dramática, por vezes toma caminhos mais óbvios, mas demonstra seu revide político quando precisa e sabe orquestrar uma imagem de impacto com pouco – o que parece se tornar a especialidade de Alves Jr.

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Corre quem pode, dança quem aguenta fez parte da retrospectiva do cineasta Welket Bungué durante essa edição, e torna visual uma crônica sobre as escolhas da vida do artista diante da dança, da performance. O silêncio incomum do Rio de Janeiro, da vista de Santa Teresa, contrasta diretamente com a violência descrita no relato de Bungué, nas formas de opressão veladas ou mais diretas, nos agouros enfrentados pelo performer diante das adversidades sociais tão palpáveis e explícitas numa cidade cosmopolita como o Rio. A forma estética, modesta à princípio, investe nos espaços e em localiza-los como instrumentos de eco da voz do relato; é quando o rosto e corpo de Bungué se tornam mais constantes nos quadros que a dimensão desses espaços ganha um mistério especial, quase como uma confissão íntima diante de locais tão públicos – vazios e silenciosos como quase nunca acontece no Rio -, e cuja luz incide estilizada mesmo em externas naturais, as sombras e o claro-escuro surgindo inesperados. As fusões transformam o dançarino em uma aparição, alguém que flutua pela cidade, e daí temos o lastro visual do que significa esse aguentar do título.

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Do pó ao pó, curta de Beatriz Saldanha, parte da banalidade do cotidiano para transformar a rotina numa prisão, através da repetição das ações e de um eventual e crescente surrealismo nas imagens que organiza. O impacto dessas imagens oscila bastante, e parece mais à vontade nas investidas gráficas com sangue, texturas e viscosidades, e menos interessante quando busca articular pulsões de livre associação (a máscara, a punheta). A montagem em volta da bagunça dos dias da semana também soa bem básica, como um símbolo de primeira mão do que seria o tempo esgarçado em quarentena, e o curta acaba como mais uma curiosidade diante do isolamento que como o pesadelo doente que parece almejar.

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Misterioso como o filme de Bungué, mas através de outros dispositivos formais, de texturas, é o curta Extratos, uma viagem de Sinai Sganzerla ao passado de seus pais, Helena Ignez e Rogério Sganzerla. A voz narradora atual de Helena, das vozes mais poderosas do cinema brasileiros, conta também com a intimidade e a magia do curta de Bungué, mas sob a estética documental das imagens em super 8 e 16mm registradas pelo casal no exílio, de 1970 a 1972. Helena nos conta da sensação de pertencimento roubada pela ditadura brasileira, da errância pelo mundo a procura de verões, de paisagens familiares, das incertezas de dois jovens acossados que voltam escondidos para terem sua filha no Brasil que lhes escapou. Ver duas figuras tão icônicas quanto Helena e Rogério trajando suas roupas jovens, em movimentos cotidianos e de acolhimento, parece sobretudo um exercício de humanização, mas de alguma forma aumenta a mística a sua volta. Entende-se as cores nômades, os sorrisos ocasionais e a melancolia do olhar do plano aqui escolhido, um momento de impacto no arremate do filme. Uma breve história de esperança de quem aproveitou como pode a experiência ao redor do mundo pra investigar formas de enganar a morte, para um presente incerto mas sobretudo à procura de utopias.

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Dois projetos de demolição – CineBH: Sessão Curtas #2

Por Gabriel Papaléo

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Mesmo com uma estética mais afiliada ao cinema experimental, o curta Eu sou a destruição acaba soando também seguro nas suas intenções ao construir apenas através de imagens encontradas – em filmes, em programas de televisão, em vídeos “amadores” – um sentido catártico diante da fala do então ministro da cultura Roberto Alvim no pronunciamento oficial no qual se afinou explicitamente com uma estética nazista para relatar seus planos para o futuro. Iniciando em beijos vários do cinema para então prosseguir em diversas formas de corrupção e perda de contato com o humano, as imagens desafiadoras do filme acabam atreladas demais a uma tendência da cinefilia criadora artística em repousar seus sentidos narrativos de interpretação em obras que melhor articular e desarmam o espectador de certezas – e não é a primeira nem a segunda vez que vejo a proclamação incendiária do personagem em O Diabo, Provavelmente virar força motriz (e até mesmo o título) de um curta de imagens encontradas.

Às vezes parece que o mero assistir e organizar dessas ideias e imagens basta para a construção de novos sentidos, e novamente nem sempre é o caso. As possibilidades que o digital proporcionou ao expandir o acesso às imagens já existentes para novos usos e linhas de pensamento são fenomenais e diante de olhos atentos pode criar filmografias inteiras de percepções novas sobre imagens antigas – como no caso de Harun Farocki, ele mesmo com um filme passando em retrospectiva no CineBH desse ano -, mas também aumenta a quantidade de filmes que parecem existir apenas na base da referência. (ou reverência, o que acaba pior, se pensarmos que a coisa mais violenta que uma imagem pode sofrer é sua sacralização.)

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Quando essa disposição ao confronto se vê enervada pelo mistério de uma organização quase profética de ideias em imagens, o revide político que se almeja vem na figura do espanto, e é nesse lugar que Grace Passô opera seu República. O setting simples do filme de apartamento, muito em razão pela quarentena em decorrência da pandemia, traz a dramaturgia minimalista de Passô para se concentrar apenas em seu rosto, nas percepções das mudanças sutis diante da recepção de uma notícia chocante sobre a realidade. Nesse sentido o filme dialoga com Vaga Carne, o experimento tanto teatral quanto audiovisual de Passô – e filmado por Ricardo Alves Jr. -, que usava do arsenal de sua voz para evocar o pesadelo de explorações corporais abstratas contadas com violência. República é mais contido, mas não abre mão das surpresas na encenação, especialmente ao tocar numa metalinguagem que poderia desarmar as intenções diretas da fábula contada apenas no diálogo ao telefone, mas que escapa de um comentário reducionista para alçar a ficção a voos mais desafiadores e combativos.

A única imagem externa do filme, a vista distante de uma personagem a praguejar feroz na rua noturna, é bem forte no seu intuito de construir uma São Paulo de madrugada, fantasma, habitada pelas condenadas. Esse diálogo se expande com a revelação final do sonho brasileiro, desse alívio momentâneo que vira uma raiva incontida, cujo mistério da imagem inicial dirigida ao colonizador que assiste encara o duro paralelo da imagem final, na qual a testemunha da violência dos colonos grita frustrada que “o meu país nunca existiu”. Passô se propõe um difícil enigma, de encarar o espaço doméstico banal e o localizando com uma unidade dramática apenas, mas como já visto em Vaga Carne é com essas limitações que seu texto esgarça possibilidades, e o telefonema amargurado vira um estudado relatório do emocional instável do ano perdido, refém do desarranjo das autoridades, carente das profecias.

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CineBH: Sessão de curtas #1

No primeiro dia de CineBH, a dimensão política do que representa o isolamento para as diferentes camadas sociais da população brasileira fora o foco de boa parte das sessões – nos curtas-metragem, principalmente, pela sua natureza ágil de produção e que melhor comporta as reações aos problemas urgentes que acometem o país, e que nesse ano se manifesta nas formas na qual a pandemia mundial do coronavírus afeta o cotidiano. Dessa premissa de voz aos prejudicados pelo isolamento partem os curtas Presa, Vem vindo alguém, será?, Vigília, e Submundo – e é curioso como os quatro curtas tanto se assemelham no trato estético imediato sendo suprimido pela importância social de seus relatos, o que acaba um tanto contraditório, uma vez que as vozes soam distantes justamente pela falta de risco da forma.

Presa parte da poética das paisagens para demonstrar a insatisfação de uma mulher diante de se ver presa tanto no sentido de prisão quanto de vítima do predador, algo que a narração – reiterativa, mesmo que tão breve – explicita no seu revide ao machismo estrutural que também demonstra seus tentáculos no isolamento do lar. Vigília usa de uma câmera íntima, de cinema direto, para seguir a vida de um morador de rua que precisa continuar sua rotina de catador mesmo com a pandemia acontecendo – situação aliás que o diretor encontra um paralelo com os entregadores de aplicativos, também obrigados (e cada vez mais cobrados) ao trabalho em condições ameaçadoras.

Submundo é um conto de apenas um minuto que também fala sobre um homem em situação de rua, que teve problemas familiares que coincidiram com a eclosão da pandemia, mas que usa de imagens abstratas do trânsito noturno em Belo Horizonte para servir de pano de fundo para a voz desse homem. Vem vindo alguém, será? também usa de um único minuto, mas para contar sobre uma deficiente visual idosa que precisa lidar com a rua durante a quarentena. O plano único de drone é dividido por um corte em ampliação do quadro, mas que mantém a perspectiva de cima, distante, panorâmica e quase encarando a rua como uma miniatura misteriosa, cujo relato se fixa em legendas e na trilha um tanto intrusiva.

Esses quatro curtas representam uma vontade de articular com urgência essas imagens que são emanadas dessas pessoas em situação de algum desamparo, seja do estado, seja dos companheiros familiares, seja do capitalismo em uma de suas facetas mais utilitaristas – e portanto desumanas. No entanto, esbarram em estéticas de antemão, de calor do momento, sem o soco necessário para despertar um comprometimento emocional maior por parte do espectador. Parece que a temática se sobrepõe às formas de investir na narrativa dessas imagens, e fica parecendo que a força do relato é a que basta – o que nem sempre acontece. É uma tendência bem visível na produção do cinema brasileiro contemporâneo dos anos 2010, e soa um tanto natural visto o enorme desmonte que nossos pilares institucionais sofreram com tamanha velocidade.

Quando esses temas mais explícitos de desamparo e descaso social são colocados em um local seguro da mensagem a ser digerida, não me soa tão diferente de verdades expostas em outras mídias, sem usar o potencial da encenação para revelar aquilo que um relato de rede social não o faria. São diagnósticos que revelam sobretudo uma atenção ao afeto por parte de realizadores e entrevistados que buscam estar à par do que acontece num momento explosivo de crise e desafios múltiplos, com promessas de destruição, e talvez só por isso já valham à visita. Ao teste do tempo acredito que o caminho tenha mais obstáculos, e nessas estéticas que pouco desafiam é difícil que a linha tênue entre o específico e o universal seja mantida com harmonia.

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Mostra Internacional de Cinema de São Paulo: City Hall

Por Bernardo Moraes Chacur

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A premissa de City Hall, 43º documentário de Frederick Wiseman, soa familiar, considerando a filmografia do diretor: a imersão em um determinado local ou instituição (desta vez a prefeitura de Boston em 2018), a partir da observação de vários aspectos de sua rotina, sem narração, sem entrevistas, sem legendas de identificação ou contextualização. Há, no entanto, um elemento inesperado: a frequência com a qual o prefeito, o democrata Martin J. Walsh, aparece em cena.

Todo esse espaço dedicado ao discurso oficial sugere uma primeira hipótese: Wiseman estaria em busca de contradições entre retórica e práticas, transpassando a imagem institucional a partir do registro paciente. Não vemos, contudo, momentos claramente desabonadores para o prefeito e gabinete. Walsh, que em 2018 acabava de se reeleger, é um político oriundo do movimento sindical (fato não mencionado no filme) e alinhado a causas socialmente progressistas: defesa da diversidade racial, dos imigrantes e da população LBGTQI+, combate à fome e à disparidade de renda. Nem por isso o prefeito deixa de enaltecer a importância do exército em um encontro de veteranos de guerra, ou de se apresentar como um bostoniano da gema, filho de imigrantes irlandeses e com sotaque evidente. É, portanto, um exemplar da esquerda considerada eleitoralmente viável dentro do bipartidarismo norte-americano.

A carga crítica mais evidente em City Hall é o contraste entre um governo municipal progressista e uma esfera federal agressivamente reacionária. Se alguns dos avanços democratas parecem tímidos e paliativos, há uma diferença clara entre essa insuficiência e a desumanidade ativa encarnada pelo presidente Trump, com resultados concretos para as vidas de uma população. E Wiseman, como de costume, não trata essas pessoas como abstrações, mas como casos concretos, com problemas urgentes e específicos.

Para além disso, o documentário suscita uma ideia mais ampla e menos óbvia. Em múltiplas instâncias, testemunhamos os limites de atuação de um governo local – aparentemente bem-intencionado – em meio a uma organização econômica que inevitavelmente perpetua e intensifica a miséria. Durante a inauguração de um banco de alimentos, o prefeito cita os indicadores de prosperidade econômica da cidade, acrescentando um contraponto sombrio: mesmo em situação de pleno emprego, um em cada seis bostonianos vive em situação de insegurança alimentar. Há um dilema constante em City Hall: devemos nos tranquilizar com a intervenção humanitária da prefeitura ou refletir sobre o estado de emergência permanente que essas políticas moderadas podem apenas mitigar?

Um outro padrão inquietante também se evidencia. Em determinada cena, um empreiteiro de origem latina relata como sua empresa se enquadra consistentemente em programas de cotas, mas é sempre barrada dos grandes projetos. Em outro momento, presenciamos uma reunião de vizinhança, cuja realização era pré-requisito legal para abertura de uma loja de cannabis. Ao longo da conversa, fica claro que não há garantias de que o empreendimento gerará empregos para a comunidade e que, apesar da obrigatoriedade da reunião, os moradores não possuem poder de decisão. Logo, o bairro em questão, assolado pelo tráfico ilegal de drogas e com altíssimas taxas de encarceramento, dificilmente lucrará com a legalização do comércio da maconha, uma das bandeiras progressivas clássicas das últimas décadas. Essas e outras ocasiões indicam que já existem políticas de ação afirmativa e consulta popular ativas em Boston há algum tempo, mas com alcance e efetividade limitados. Tais problemas certamente ultrapassam a esfera municipal e antecedem a administração de Walsh, mas em que medida a boa-vontade demonstrada pelos agentes da prefeitura, prontos a reconhecer os desequilíbrios, será capaz de reverter essa inércia?

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Mesmo com essas ressalvas, é difícil assistir City Hall sem a impressão de que o diretor (nascido em Boston e residente em Cambridge, cidade vizinha) demonstra algum grau de simpatia pelo prefeito e sua linha de governo, violando a imagem de distanciamento cultivada por toda uma tradição documentária, um decoro que admite a oposição política, mas que se constrange com a adesão clara. Mas vale lembrar que Wiseman sempre rejeitou a suposta neutralidade do cinema documental, apesar do aparente laconismo de seu estilo. Pelo contraste, City Hall nos lembra que a abstenção é uma posição política especialmente irresponsável durante tempos de ascensão da extrema direita.

Agradecimentos a Gabriela de Sousa Nunes.

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Mostra Internacional de Cinema de São Paulo: Sibéria

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Por Gabriel Papaléo

“- My soul is within me.
- No, brother. Your soul is outside of you – and you must claim it.”

Como distinguir os círculos do pós-vida religioso da sua jornada, ainda dos vivos, de auto-análise e aceitação do fim? Talvez por ser um homem que passou a vida tratando através da sua obra com o forte iconográfico cristão, mas que há pouco mais de dez anos se converteu ao Budismo, Abel Ferrara tente assimilar signos que convergem dessas ricas organizações de fé numa estrada espiritual de acerto de contas. Sibéria parte do metafísico, do arquétipo (um homem solitário serve álcool no seu bar do fim do mundo), para desencadear momentos e pulsões de anos tão distantes na vida de Clint, seu protagonista, como se fossem todos parte de um fluxo, de um presente que ignora o específico do espaço. É o enfrentamento do simbólico que deflagra o trauma através do isolamento social, como Teshigahara fez em A Mulher da Areia.

A diferença para Teshigahara, e também para Béla Tarr e Agnès Hranitzky em O Cavalo de Turim – filme que também começa com uma voz em off contando uma memória que amaldiçoará o protagonista -, que guarda suas semelhanças na atmosfera de inevitabilidade e na opressiva ausência de deidades, é que a certeza do fim para Ferrara é testemunhar a indiferença do espaço quando fica curioso pelo contato, pelas respostas. Ao passar pelos oásis de memória infantil nas matas e expurgo religioso no deserto, ficam expostas as fraturas do homem que se isolou porque não suportava o peso de repetir seu pai, de alienar seu filho, de omitir sua esposa do processo de vida, até mesmo da aspiração profissional médica que encontra demônios em pacientes perdidos. Isso exige um fluxo de imagem proposto por Ferrara que nem sempre é devolvido pela steadicam do fotógrafo, mas que é disciplinado o suficiente para o rosto de Willem Dafoe (um estrondo, como sempre) devolver a potência do testemunho. É o coração das trevas particular, motivado pelo rebuliço interior, onde a ausência de deuses está ali palpável – e não há nem os ventos do apocalipse para alentarem os olhos desesperados de Dafoe.

O homem parece interessado pela magia do mundo, através do personagem do mágico, através do caminhante misterioso, mas não consegue assimilar o que a magia pode lhe devolver além das memórias. Quando criamos uma memória visual com um lugar, é um campo de concentração, local de morte da Historia, e que mais tarde terá seus espíritos conjurados inconscientemente por jovens ouvindo metal e descontando sua fúria. Os lugares contam segredos que atravessam o corpo sem sentirmos, e de alguma forma a alma de Clint só se conecta com a sensação, com os óculos do menino que faz todos sumirem. A ele resta a dança, como algum lastro de diálogo de sombras.

Como reclamar sua alma no mundo quando tudo passou, tudo ficou para trás, e a culpa suga o seu trânsito a ponto de destruir o pouco que tem no presente? Ferrara constrói aqui um filme que parece não ter ideia das respostas – e é daí que tira sua força.

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Mostra Internacional de Cinema de São Paulo: Notas breves sobre alguns filmes – Parte 1

Por Camila Vieira

Mate-o e Saia desta Cidade

Mate-o e Saia desta Cidade (Zabij To I Wyjedz Z Tego Miasta, 2019)

O diretor polonês Mariusz Wilczyński posiciona o imaginário caótico e sombrio de seu protagonista, um homem que teve muitas perdas e agora tenta recuperar na memória as imagens de quem morreu. Os traços dos desenhos são sujos no papel. As figuras humanas transformam-se em formas de animais. Cenas surreais são pontuadas com tinta vermelha como se fosse sangue jorrando. A animação cria um ensaio sombrio sobre o medo do envelhecimento e da morte.

Welcome to Chechnya

Welcome to Chechnya (2020)

A produção estadunidense da HBO carrega todos os vícios da maioria dos documentários protocolares feitos para a televisão. Os depoimentos são filmados como talking heads. Alguns personagens servem de guia para legitimar as informações. O recorte temático é investido de tom de denúncia jornalística. As imagens de arquivos são jogadas para reiterar a violência e chocar o espectador. Se por um lado, o que há de mais envolvente no documentário de David France é a forma como acompanha os personagens em fuga, outras estratégias enfraquecem o gesto de denunciar os abusos e as ameaças sofridas por LGBTQIA+ na Chechênia.

Kubrick por Kubrick

Kubrick por Kubrick (Kubrick by Kubrick, 2020)

Com uma estrutura protocolar em que a grande novidade parece ser a entrevista que Stanley Kubrick concedeu ao crítico Michel Ciment, o documentário de Gregory Monro não apresenta nada de diferente do que já se sabe sobre o cineasta estadunidense. Lá estão informações sobre o perfeccionismo de Kubrick, seu desgaste com os atores que repetiam inúmeros takes, sua forma inventiva de filmar, os trechos de seus principais filmes. Não escapa do tom celebratório da maioria dos documentários que revisitam a vida e a obra de grandes cineastas.

Limiar

Limiar (Threshold, 2010)

Da dupla de diretores e roteiristas Rouzbeh Akhbari e Felix Kalmenson, Limiar é um filme de paisagens e derivas. A narrativa em torno de um cineasta que busca locações para seu novo filme é um pretexto para visitar galpões abandonados, monumentos em ruínas, territórios desérticos. Os planos sequências exploram a espacialidade pelo movimento suave dos travellings. Em meio à neve e à paisagem acinzentada, ele pega carona com moradores locais e encontra celebrações nas comunidades.

Mosquito

Mosquito (2020)

O grande problema de Mosquito (2020), do moçambicano-português João Nuno Pinto, é tomar uma história pessoal – inspirada na vida do avô do diretor – como instrumento para a construção de uma grande narrativa sobre a decepção com o sonho em defender uma nação e menos como questionamento sobre as consequências do colonialismo português. O delírio do personagem em planos desfocados e distorcidos é só uma engenharia para reforçar estereótipos de imagens dos nativos de Moçambique. Não ter nem mesmo legendas para as falas do outro representado já é sinal bem contundente de como a cena se coloca pela perpetuação do olhar colonizador. E mesmo que a trajetória do personagem principal seja cheia de obstáculos, a raiva final tá longe de provocar qualquer desestabilização.

Vistos durante a 44a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo – 2020

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Mostra Internacional de Cinema de São Paulo: Panquiaco

Por Camila Vieira

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Ao escolher retratar o drama de um personagem de ancestralidade indígena que migrou para Portugal, a diretora panamenha Ana Elena Tejera precisou driblar o realismo de seu documentário Panquiaco (2020) com o mistério encantatório das narrativas míticas pré-coloniais da aldeia Guna Yala, na costa leste do Panamá. Em território português há muitos anos, Cebaldo trabalha em um mercado de peixes, mas suas noites parecem solitárias em um bar onde toca um jukebox.

Um homem misterioso se senta ao lado de Cebaldo no bar e conta uma história que começa com um “era uma vez…” Fala de um marinheiro que naufragou em uma ilha deserta e, para sobreviver, começou a criar paisagens, ruas, pessoas, que lembravam o lugar onde nasceu. Aquele novo espaço imaginário tornou-se uma imagem de sua terra de infância e essa pequena história alude à sensação de deslocamento do protagonista, que sonha em voltar para sua aldeia.

O filme intercala o cotidiano de trabalho de Cebaldo com cenas de indígenas em tarefas laborais artesanais. A proporção de tela maior dos planos do cais do porto, da pesca em alto-mar, do movimento de lançar as redes alterna-se aos enquadramentos em 4:3 de mulheres e crianças indígenas no dia a dia da aldeia. O paralelismo ao longo de Panquiaco embaralha as memórias de Cebaldo, que precisa retornar ao seu lugar de origem para lidar com o aniversário da morte do pai.

Durante o retorno de Cebaldo ao território de origem, o filme também narra a história mítica de Panquiaco, um indígena cujo espírito vaga entre dois mares. É como se Cebaldo também estivesse a vagar entre dois mundos: seu árduo cotidiano de sobrevivência na Europa e seu legado espiritual na América Latina. “Sinto que tudo o que me pertencia desapareceu”, diz o personagem. A casa de infância está com as paredes desgastadas pela ação do mar. As frestas das portas e das janelas deixam entrar pequenas incidências de luz que iluminam os interiores escuros. No filme de Ana Elena Tejera, o regresso pode ser um caminho doloroso, mas também é uma forma de cura.

Visto durante a 44a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo – 2020

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Mostra Internacional de Cinema de São Paulo: Miss Marx

Por Camila Vieira

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Como a maioria das cinebiografias inspiradas na vida e na obra de personalidades históricas, Miss Marx não deixa de seguir algumas características: as cartelas situam os anos de cada acontecimento; a narrativa é linear e procura abarcar eventos importantes; a caracterização de figurinos e cenários aproximam-se do contexto da época. Dentro dessa estrutura mais tradicional do subgênero, a diretora e roteirista Susanna Nicchiarelli também insere uma roupagem pop e contemporânea ao filme: os letreiros floridos, as músicas de rock do grupo Downtown Boys e a insistência em levar a personagem a quebrar a quarta parede e falar diretamente para a câmera.

Há quem imediatamente possa associar o que Miss Marx elabora com o mesmo gesto de encenação proposto por Sofia Coppola com Maria Antonieta (2006). Mas a direção de Nicchiarelli é bem mais sisuda, menos fluida e mais propensa à seriedade ao retratar um período da vida de Eleonor, a filha mais nova de Karl Marx. É curioso como a fluidez sensorial que caracteriza boa parte do trabalho de direção de fotografia de Crystel Fournier (principalmente em parceria com Céline Sciamma, em Lírios d’Água, Tomboy e Garotas) parece se apagar em meio à composição de planos frontais em que a centralidade da personagem no quadro é colocada como primeira opção na maioria das sequências.

Ao abordar uma personagem que se colocou à frente das lutas trabalhistas, dos direitos das mulheres e na defesa do pensamento do próprio pai, o filme não se permite ser disruptivo à altura da força da própria personagem que retrata. O máximo que consegue escapar de sua própria estrutura convencional é criar uma sequência em que a personagem dança um rock, com seus longos cabelos soltos e roupas soltas esvoaçantes. No restante da trama, tudo parece convergir em um grande retrato de resignação e passividade da personagem, com uma ou outra mudança aqui e ali que não altera em nada a ordem dos fatores.

Em boa parte das cenas, o que se vê é uma personagem conformada às situações que surgem: ela prefere preservar a boa imagem deixada pelo pai; mal consegue verbalizar o que incomoda na relação a dois com Aveling; e até mesmo mantém uma jovem como criada, sem questionar sua ação em casa como contraditória em relação ao seu discurso público contra a precarização do trabalho de mulheres. Quando finalmente tenta explicitar algum incômodo maior da personagem – sobretudo em relação à sua posição como mulher –, Miss Marx ora engana com a encenação de um trecho de Casa de Bonecas, de Ibsen, ora transforma o apelo em um solilóquio que pode até funcionar como discurso, mas que se dilui fácil em posição aos atos da personagem.

Visto durante a 44a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo – 2020

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Mostra Internacional de Cinema de São Paulo: Apenas Mortais

Por Camila Vieira

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Os momentos mais extraordinários de Apenas Mortais (Being Mortal, 2020) elaboram uma permanente indistinção entre a visualidade do presente e as memórias que os lugares evocam para seus personagens. Para dimensionar as alterações da relação da protagonista com o pai que, aos poucos, vai se definhando por causa do Alzheimer, a direção do chinês Liu Ze embaralha diferentes temporalidades que acontecem simultaneamente em um só espaço.

Com tal estratégia de encenação que permite criar presenças e ausências, o filme não se limita a ser apenas um melodrama familiar. Existe também o interesse em preencher os lugares afetivos com imagens do passado. O cruzamento de tempos distintos extrapola a relação com um presente em que as coisas, as pessoas e as relações estão ameaçadas de desaparecer.

Se o olhar do pai de Xia Tian é conduzido à renovação constante daquilo que é visível, algo parece desaparecer nessa relação que foi construída entre os dois durante tanto tempo de convivência. Outras situações de perda são vivenciadas pela protagonista: ela abandona seu emprego estável e rompe com seu amante para voltar à cidade onde os pais moram e ajudar a mãe nos cuidados com o pai. Os lapsos recorrentes de memória distanciam cada vez mais o pai da filha.

Em determinada cena, o pai é levado a sair de casa em direção à aldeia de sua infância, após ser atraído pela presença de um menino que brincava com uma bola no corredor (seria esta presença um vislumbre dele mesmo como criança?). Aquele mesmo garotinho reaparece já na aldeia procurada pelo pai, mas é a filha que é levada a olhar. O filme produz exercícios de encantamento com as pequenas lembranças que se misturam à narrativa, que nunca recorre ao didatismo dos flashbacks para pontuar sobre o passado dos personagens.

É claro que há sempre o peso de lidar diretamente com as consequências da doença. Com o avanço do Alzheimer no patriarca, o cotidiano vai se tornando cada vez mais árduo para todos: a mãe fica esgotada com as tarefas diárias, a irmã insiste em levar o pai para uma casa de repouso e Xia Tian vai aos poucos deixando em segundo plano tanto seu novo trabalho quanto seu novo namorado. No entanto, é justamente a aproximação da morte do pai que desencadeia uma abertura ao mistério pelo acionamento dos vestígios da memória.

Visto durante a 44a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo – 2020

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Tenet (Christopher Nolan, 2020)

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Mijar ao Vento

Por Pedro Tavares

No conceito de autoria, a reiteração de métodos e a noção de um lugar comum na obra geral ou se justifica ou se ostenta. É de fato curioso como Tenet é uma espécie de incessante busca e confirmação de certo fetichismo por parte de Christopher Nolan na suposição de uma possível transição de um diretor de blockbusters pomposos para o autor de cinema com sua própria grife. Neste raciocínio é possível desfiar o filme de maneira muito simplória para termos logo uma resposta sobre as intenções do filme e vemos como as alegorias estão em função da ilusão e são nulas para a narrativa, transparecendo intenções, que, perfiladas, mostram interesses perniciosos ao filme.

O enredo, per si, antes da intromissão deste fetiche-justificativa por parte de Christopher Nolan, é muito próximo a qualquer lançamento de ação B e que isto não seja visto com maus olhos, incluindo a maneira que Nolan orquestra suas sequências de ação e como o filme é montado, a partir de um épico que coloca o seu 007 no divã para questionar a mortalidade. A partir daí, um encontro com a metodologia do realizador que se aproximou desta ideia da metafísica a partir de espaço-tempo em filmes como Amnésia (2000), A Origem (2009) e Interstellar (2014) retorna à mesma abordagem como a possibilidade de reconhecimento de um tema-chave em sua filmografia.

A máxima “mijar ao vento” vem do “protagonista”, um homem-carcaça, sem demais apresentações e ser da CIA é o suficiente para que sua missão seja permeada pelo senso de equidade. E por mais que esteja sempre em devaneios sobre os reais efeitos de encarar o ciclo, a função da máquina é de partir para a intervenção.

Nesta função de monte e desmonte do enredo a partir das possibilidades que a distorção do tempo permite, as brechas são preenchidas por um moralismo barato. Tenet se arrisca demais ao caminhar sempre em extremos – o perigo do filme é o do fim do mundo, o retorno do tempo é para um senso de justiça coletivo – e seu protagonista sempre a serviço desta moral entre idas e vindas, uma representação do alvo que Nolan almeja e não um personagem passível de mutações.

Confiando neste efeito devastador que o filme levaria como um panfleto ideal e pronto para as mãos de seu público, Tenet é um passeio previsível no campo da ética e funcional como um filme de coreografias. Elas, que justamente salvam o filme da ideia da elasticidade do tempo em certos momentos e que se resumem ao movimento de rewind (a clássica rebobinada nas fitas VHS)  e em um sentido de carga dramática tão profunda quanto, de fato, mijar ao vento.

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Mostra Internacional de Cinema de São Paulo: Mamãe, Mamãe, Mamãe

Por Camila Vieira

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Apesar de ser um filme que toma a morte como ponto de partida para o desenvolvimento de sua própria dramaturgia, não há qualquer desconforto nas imagens de Mamãe, Mamãe, Mamãe (Mamá, Mamá, Mamá, 2020), da argentina Sol Berruezo Pichon-Rivière. Os planos são todos muito bem controlados. O uso da paleta de cores fica restrito à instrumentalidade tautológica: são frias quando remetem à melancolia da perda e são quentes quando mostram o passado feliz das irmãs. Nem mesmo o fora de campo produz algum mistério, já que ele só é usado como mera ilustração da ausência que já acontece desde o início da narrativa.

A encenação da perda parece ser um subterfúgio para abordar uma história que só é possível ser narrada com mulheres: a mãe solo e sua filha Cleo; a tia e as três primas; a vizinha; a cuidadora da avó e sua filha. Mas as representações das mulheres aqui são reduzidas às imagens mais genéricas e cristalizadas de uma idealização do feminino: as crianças estão sempre calmas, dóceis e bem educadas; a mãe chorosa e reclusa no quarto; a fantasmagoria da irmã se manifesta como presença angelical; a tia é a protetora sempre preocupada com o bem-estar da sobrinha e de suas filhas. Tem até uma coelha fofinha entre as meninas que vai gerar filhotes – qualquer metonímia simplória da relação mãe e filha é bem-vinda nesse filme.

Não é de se estranhar que todas as mulheres – crianças, adultas e idosas – estão aqui restritas ao espaço da casa e, mesmo quando há um breve momento de fuga, elas sempre retornam ao lar. Nada vai perturbar esse espaço apaziguado, nem mesmo a necessidade de inserir na trama a menina Aylin, que vem do Paraguai, pelo simples exotismo de que ela está ali apenas para narrar histórias de sequestros e desaparecimentos. A jornada das crianças pelo desconhecido em um caminho fora do espaço doméstico nem chega a ser ameaçadora – um contrassenso com a própria ideia de morte que o filme quer aludir. Desta maneira, Mamãe, Mamãe, Mamãe limita-se a ser um filme fofinho, palatável, que não desconcerta, nem foge das expectativas do conforto da audiência.

Visto durante a 44a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo – 2020

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