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CineBH: Sessão de curtas #1

No primeiro dia de CineBH, a dimensão política do que representa o isolamento para as diferentes camadas sociais da população brasileira fora o foco de boa parte das sessões – nos curtas-metragem, principalmente, pela sua natureza ágil de produção e que melhor comporta as reações aos problemas urgentes que acometem o país, e que nesse ano se manifesta nas formas na qual a pandemia mundial do coronavírus afeta o cotidiano. Dessa premissa de voz aos prejudicados pelo isolamento partem os curtas Presa, Vem vindo alguém, será?, Vigília, e Submundo – e é curioso como os quatro curtas tanto se assemelham no trato estético imediato sendo suprimido pela importância social de seus relatos, o que acaba um tanto contraditório, uma vez que as vozes soam distantes justamente pela falta de risco da forma.

Presa parte da poética das paisagens para demonstrar a insatisfação de uma mulher diante de se ver presa tanto no sentido de prisão quanto de vítima do predador, algo que a narração – reiterativa, mesmo que tão breve – explicita no seu revide ao machismo estrutural que também demonstra seus tentáculos no isolamento do lar. Vigília usa de uma câmera íntima, de cinema direto, para seguir a vida de um morador de rua que precisa continuar sua rotina de catador mesmo com a pandemia acontecendo – situação aliás que o diretor encontra um paralelo com os entregadores de aplicativos, também obrigados (e cada vez mais cobrados) ao trabalho em condições ameaçadoras.

Submundo é um conto de apenas um minuto que também fala sobre um homem em situação de rua, que teve problemas familiares que coincidiram com a eclosão da pandemia, mas que usa de imagens abstratas do trânsito noturno em Belo Horizonte para servir de pano de fundo para a voz desse homem. Vem vindo alguém, será? também usa de um único minuto, mas para contar sobre uma deficiente visual idosa que precisa lidar com a rua durante a quarentena. O plano único de drone é dividido por um corte em ampliação do quadro, mas que mantém a perspectiva de cima, distante, panorâmica e quase encarando a rua como uma miniatura misteriosa, cujo relato se fixa em legendas e na trilha um tanto intrusiva.

Esses quatro curtas representam uma vontade de articular com urgência essas imagens que são emanadas dessas pessoas em situação de algum desamparo, seja do estado, seja dos companheiros familiares, seja do capitalismo em uma de suas facetas mais utilitaristas – e portanto desumanas. No entanto, esbarram em estéticas de antemão, de calor do momento, sem o soco necessário para despertar um comprometimento emocional maior por parte do espectador. Parece que a temática se sobrepõe às formas de investir na narrativa dessas imagens, e fica parecendo que a força do relato é a que basta – o que nem sempre acontece. É uma tendência bem visível na produção do cinema brasileiro contemporâneo dos anos 2010, e soa um tanto natural visto o enorme desmonte que nossos pilares institucionais sofreram com tamanha velocidade.

Quando esses temas mais explícitos de desamparo e descaso social são colocados em um local seguro da mensagem a ser digerida, não me soa tão diferente de verdades expostas em outras mídias, sem usar o potencial da encenação para revelar aquilo que um relato de rede social não o faria. São diagnósticos que revelam sobretudo uma atenção ao afeto por parte de realizadores e entrevistados que buscam estar à par do que acontece num momento explosivo de crise e desafios múltiplos, com promessas de destruição, e talvez só por isso já valham à visita. Ao teste do tempo acredito que o caminho tenha mais obstáculos, e nessas estéticas que pouco desafiam é difícil que a linha tênue entre o específico e o universal seja mantida com harmonia.

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Mostra Internacional de Cinema de São Paulo: City Hall

Por Bernardo Moraes Chacur

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A premissa de City Hall, 43º documentário de Frederick Wiseman, soa familiar, considerando a filmografia do diretor: a imersão em um determinado local ou instituição (desta vez a prefeitura de Boston em 2018), a partir da observação de vários aspectos de sua rotina, sem narração, sem entrevistas, sem legendas de identificação ou contextualização. Há, no entanto, um elemento inesperado: a frequência com a qual o prefeito, o democrata Martin J. Walsh, aparece em cena.

Todo esse espaço dedicado ao discurso oficial sugere uma primeira hipótese: Wiseman estaria em busca de contradições entre retórica e práticas, transpassando a imagem institucional a partir do registro paciente. Não vemos, contudo, momentos claramente desabonadores para o prefeito e gabinete. Walsh, que em 2018 acabava de se reeleger, é um político oriundo do movimento sindical (fato não mencionado no filme) e alinhado a causas socialmente progressistas: defesa da diversidade racial, dos imigrantes e da população LBGTQI+, combate à fome e à disparidade de renda. Nem por isso o prefeito deixa de enaltecer a importância do exército em um encontro de veteranos de guerra, ou de se apresentar como um bostoniano da gema, filho de imigrantes irlandeses e com sotaque evidente. É, portanto, um exemplar da esquerda considerada eleitoralmente viável dentro do bipartidarismo norte-americano.

A carga crítica mais evidente em City Hall é o contraste entre um governo municipal progressista e uma esfera federal agressivamente reacionária. Se alguns dos avanços democratas parecem tímidos e paliativos, há uma diferença clara entre essa insuficiência e a desumanidade ativa encarnada pelo presidente Trump, com resultados concretos para as vidas de uma população. E Wiseman, como de costume, não trata essas pessoas como abstrações, mas como casos concretos, com problemas urgentes e específicos.

Para além disso, o documentário suscita uma ideia mais ampla e menos óbvia. Em múltiplas instâncias, testemunhamos os limites de atuação de um governo local – aparentemente bem-intencionado – em meio a uma organização econômica que inevitavelmente perpetua e intensifica a miséria. Durante a inauguração de um banco de alimentos, o prefeito cita os indicadores de prosperidade econômica da cidade, acrescentando um contraponto sombrio: mesmo em situação de pleno emprego, um em cada seis bostonianos vive em situação de insegurança alimentar. Há um dilema constante em City Hall: devemos nos tranquilizar com a intervenção humanitária da prefeitura ou refletir sobre o estado de emergência permanente que essas políticas moderadas podem apenas mitigar?

Um outro padrão inquietante também se evidencia. Em determinada cena, um empreiteiro de origem latina relata como sua empresa se enquadra consistentemente em programas de cotas, mas é sempre barrada dos grandes projetos. Em outro momento, presenciamos uma reunião de vizinhança, cuja realização era pré-requisito legal para abertura de uma loja de cannabis. Ao longo da conversa, fica claro que não há garantias de que o empreendimento gerará empregos para a comunidade e que, apesar da obrigatoriedade da reunião, os moradores não possuem poder de decisão. Logo, o bairro em questão, assolado pelo tráfico ilegal de drogas e com altíssimas taxas de encarceramento, dificilmente lucrará com a legalização do comércio da maconha, uma das bandeiras progressivas clássicas das últimas décadas. Essas e outras ocasiões indicam que já existem políticas de ação afirmativa e consulta popular ativas em Boston há algum tempo, mas com alcance e efetividade limitados. Tais problemas certamente ultrapassam a esfera municipal e antecedem a administração de Walsh, mas em que medida a boa-vontade demonstrada pelos agentes da prefeitura, prontos a reconhecer os desequilíbrios, será capaz de reverter essa inércia?

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Mesmo com essas ressalvas, é difícil assistir City Hall sem a impressão de que o diretor (nascido em Boston e residente em Cambridge, cidade vizinha) demonstra algum grau de simpatia pelo prefeito e sua linha de governo, violando a imagem de distanciamento cultivada por toda uma tradição documentária, um decoro que admite a oposição política, mas que se constrange com a adesão clara. Mas vale lembrar que Wiseman sempre rejeitou a suposta neutralidade do cinema documental, apesar do aparente laconismo de seu estilo. Pelo contraste, City Hall nos lembra que a abstenção é uma posição política especialmente irresponsável durante tempos de ascensão da extrema direita.

Agradecimentos a Gabriela de Sousa Nunes.

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Mostra Internacional de Cinema de São Paulo: Sibéria

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Por Gabriel Papaléo

“- My soul is within me.
- No, brother. Your soul is outside of you – and you must claim it.”

Como distinguir os círculos do pós-vida religioso da sua jornada, ainda dos vivos, de auto-análise e aceitação do fim? Talvez por ser um homem que passou a vida tratando através da sua obra com o forte iconográfico cristão, mas que há pouco mais de dez anos se converteu ao Budismo, Abel Ferrara tente assimilar signos que convergem dessas ricas organizações de fé numa estrada espiritual de acerto de contas. Sibéria parte do metafísico, do arquétipo (um homem solitário serve álcool no seu bar do fim do mundo), para desencadear momentos e pulsões de anos tão distantes na vida de Clint, seu protagonista, como se fossem todos parte de um fluxo, de um presente que ignora o específico do espaço. É o enfrentamento do simbólico que deflagra o trauma através do isolamento social, como Teshigahara fez em A Mulher da Areia.

A diferença para Teshigahara, e também para Béla Tarr e Agnès Hranitzky em O Cavalo de Turim – filme que também começa com uma voz em off contando uma memória que amaldiçoará o protagonista -, que guarda suas semelhanças na atmosfera de inevitabilidade e na opressiva ausência de deidades, é que a certeza do fim para Ferrara é testemunhar a indiferença do espaço quando fica curioso pelo contato, pelas respostas. Ao passar pelos oásis de memória infantil nas matas e expurgo religioso no deserto, ficam expostas as fraturas do homem que se isolou porque não suportava o peso de repetir seu pai, de alienar seu filho, de omitir sua esposa do processo de vida, até mesmo da aspiração profissional médica que encontra demônios em pacientes perdidos. Isso exige um fluxo de imagem proposto por Ferrara que nem sempre é devolvido pela steadicam do fotógrafo, mas que é disciplinado o suficiente para o rosto de Willem Dafoe (um estrondo, como sempre) devolver a potência do testemunho. É o coração das trevas particular, motivado pelo rebuliço interior, onde a ausência de deuses está ali palpável – e não há nem os ventos do apocalipse para alentarem os olhos desesperados de Dafoe.

O homem parece interessado pela magia do mundo, através do personagem do mágico, através do caminhante misterioso, mas não consegue assimilar o que a magia pode lhe devolver além das memórias. Quando criamos uma memória visual com um lugar, é um campo de concentração, local de morte da Historia, e que mais tarde terá seus espíritos conjurados inconscientemente por jovens ouvindo metal e descontando sua fúria. Os lugares contam segredos que atravessam o corpo sem sentirmos, e de alguma forma a alma de Clint só se conecta com a sensação, com os óculos do menino que faz todos sumirem. A ele resta a dança, como algum lastro de diálogo de sombras.

Como reclamar sua alma no mundo quando tudo passou, tudo ficou para trás, e a culpa suga o seu trânsito a ponto de destruir o pouco que tem no presente? Ferrara constrói aqui um filme que parece não ter ideia das respostas – e é daí que tira sua força.

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Mostra Internacional de Cinema de São Paulo: Notas breves sobre alguns filmes – Parte 1

Por Camila Vieira

Mate-o e Saia desta Cidade

Mate-o e Saia desta Cidade (Zabij To I Wyjedz Z Tego Miasta, 2019)

O diretor polonês Mariusz Wilczyński posiciona o imaginário caótico e sombrio de seu protagonista, um homem que teve muitas perdas e agora tenta recuperar na memória as imagens de quem morreu. Os traços dos desenhos são sujos no papel. As figuras humanas transformam-se em formas de animais. Cenas surreais são pontuadas com tinta vermelha como se fosse sangue jorrando. A animação cria um ensaio sombrio sobre o medo do envelhecimento e da morte.

Welcome to Chechnya

Welcome to Chechnya (2020)

A produção estadunidense da HBO carrega todos os vícios da maioria dos documentários protocolares feitos para a televisão. Os depoimentos são filmados como talking heads. Alguns personagens servem de guia para legitimar as informações. O recorte temático é investido de tom de denúncia jornalística. As imagens de arquivos são jogadas para reiterar a violência e chocar o espectador. Se por um lado, o que há de mais envolvente no documentário de David France é a forma como acompanha os personagens em fuga, outras estratégias enfraquecem o gesto de denunciar os abusos e as ameaças sofridas por LGBTQIA+ na Chechênia.

Kubrick por Kubrick

Kubrick por Kubrick (Kubrick by Kubrick, 2020)

Com uma estrutura protocolar em que a grande novidade parece ser a entrevista que Stanley Kubrick concedeu ao crítico Michel Ciment, o documentário de Gregory Monro não apresenta nada de diferente do que já se sabe sobre o cineasta estadunidense. Lá estão informações sobre o perfeccionismo de Kubrick, seu desgaste com os atores que repetiam inúmeros takes, sua forma inventiva de filmar, os trechos de seus principais filmes. Não escapa do tom celebratório da maioria dos documentários que revisitam a vida e a obra de grandes cineastas.

Limiar

Limiar (Threshold, 2010)

Da dupla de diretores e roteiristas Rouzbeh Akhbari e Felix Kalmenson, Limiar é um filme de paisagens e derivas. A narrativa em torno de um cineasta que busca locações para seu novo filme é um pretexto para visitar galpões abandonados, monumentos em ruínas, territórios desérticos. Os planos sequências exploram a espacialidade pelo movimento suave dos travellings. Em meio à neve e à paisagem acinzentada, ele pega carona com moradores locais e encontra celebrações nas comunidades.

Mosquito

Mosquito (2020)

O grande problema de Mosquito (2020), do moçambicano-português João Nuno Pinto, é tomar uma história pessoal – inspirada na vida do avô do diretor – como instrumento para a construção de uma grande narrativa sobre a decepção com o sonho em defender uma nação e menos como questionamento sobre as consequências do colonialismo português. O delírio do personagem em planos desfocados e distorcidos é só uma engenharia para reforçar estereótipos de imagens dos nativos de Moçambique. Não ter nem mesmo legendas para as falas do outro representado já é sinal bem contundente de como a cena se coloca pela perpetuação do olhar colonizador. E mesmo que a trajetória do personagem principal seja cheia de obstáculos, a raiva final tá longe de provocar qualquer desestabilização.

Vistos durante a 44a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo – 2020

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Mostra Internacional de Cinema de São Paulo: Panquiaco

Por Camila Vieira

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Ao escolher retratar o drama de um personagem de ancestralidade indígena que migrou para Portugal, a diretora panamenha Ana Elena Tejera precisou driblar o realismo de seu documentário Panquiaco (2020) com o mistério encantatório das narrativas míticas pré-coloniais da aldeia Guna Yala, na costa leste do Panamá. Em território português há muitos anos, Cebaldo trabalha em um mercado de peixes, mas suas noites parecem solitárias em um bar onde toca um jukebox.

Um homem misterioso se senta ao lado de Cebaldo no bar e conta uma história que começa com um “era uma vez…” Fala de um marinheiro que naufragou em uma ilha deserta e, para sobreviver, começou a criar paisagens, ruas, pessoas, que lembravam o lugar onde nasceu. Aquele novo espaço imaginário tornou-se uma imagem de sua terra de infância e essa pequena história alude à sensação de deslocamento do protagonista, que sonha em voltar para sua aldeia.

O filme intercala o cotidiano de trabalho de Cebaldo com cenas de indígenas em tarefas laborais artesanais. A proporção de tela maior dos planos do cais do porto, da pesca em alto-mar, do movimento de lançar as redes alterna-se aos enquadramentos em 4:3 de mulheres e crianças indígenas no dia a dia da aldeia. O paralelismo ao longo de Panquiaco embaralha as memórias de Cebaldo, que precisa retornar ao seu lugar de origem para lidar com o aniversário da morte do pai.

Durante o retorno de Cebaldo ao território de origem, o filme também narra a história mítica de Panquiaco, um indígena cujo espírito vaga entre dois mares. É como se Cebaldo também estivesse a vagar entre dois mundos: seu árduo cotidiano de sobrevivência na Europa e seu legado espiritual na América Latina. “Sinto que tudo o que me pertencia desapareceu”, diz o personagem. A casa de infância está com as paredes desgastadas pela ação do mar. As frestas das portas e das janelas deixam entrar pequenas incidências de luz que iluminam os interiores escuros. No filme de Ana Elena Tejera, o regresso pode ser um caminho doloroso, mas também é uma forma de cura.

Visto durante a 44a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo – 2020

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Mostra Internacional de Cinema de São Paulo: Miss Marx

Por Camila Vieira

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Como a maioria das cinebiografias inspiradas na vida e na obra de personalidades históricas, Miss Marx não deixa de seguir algumas características: as cartelas situam os anos de cada acontecimento; a narrativa é linear e procura abarcar eventos importantes; a caracterização de figurinos e cenários aproximam-se do contexto da época. Dentro dessa estrutura mais tradicional do subgênero, a diretora e roteirista Susanna Nicchiarelli também insere uma roupagem pop e contemporânea ao filme: os letreiros floridos, as músicas de rock do grupo Downtown Boys e a insistência em levar a personagem a quebrar a quarta parede e falar diretamente para a câmera.

Há quem imediatamente possa associar o que Miss Marx elabora com o mesmo gesto de encenação proposto por Sofia Coppola com Maria Antonieta (2006). Mas a direção de Nicchiarelli é bem mais sisuda, menos fluida e mais propensa à seriedade ao retratar um período da vida de Eleonor, a filha mais nova de Karl Marx. É curioso como a fluidez sensorial que caracteriza boa parte do trabalho de direção de fotografia de Crystel Fournier (principalmente em parceria com Céline Sciamma, em Lírios d’Água, Tomboy e Garotas) parece se apagar em meio à composição de planos frontais em que a centralidade da personagem no quadro é colocada como primeira opção na maioria das sequências.

Ao abordar uma personagem que se colocou à frente das lutas trabalhistas, dos direitos das mulheres e na defesa do pensamento do próprio pai, o filme não se permite ser disruptivo à altura da força da própria personagem que retrata. O máximo que consegue escapar de sua própria estrutura convencional é criar uma sequência em que a personagem dança um rock, com seus longos cabelos soltos e roupas soltas esvoaçantes. No restante da trama, tudo parece convergir em um grande retrato de resignação e passividade da personagem, com uma ou outra mudança aqui e ali que não altera em nada a ordem dos fatores.

Em boa parte das cenas, o que se vê é uma personagem conformada às situações que surgem: ela prefere preservar a boa imagem deixada pelo pai; mal consegue verbalizar o que incomoda na relação a dois com Aveling; e até mesmo mantém uma jovem como criada, sem questionar sua ação em casa como contraditória em relação ao seu discurso público contra a precarização do trabalho de mulheres. Quando finalmente tenta explicitar algum incômodo maior da personagem – sobretudo em relação à sua posição como mulher –, Miss Marx ora engana com a encenação de um trecho de Casa de Bonecas, de Ibsen, ora transforma o apelo em um solilóquio que pode até funcionar como discurso, mas que se dilui fácil em posição aos atos da personagem.

Visto durante a 44a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo – 2020

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Mostra Internacional de Cinema de São Paulo: Apenas Mortais

Por Camila Vieira

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Os momentos mais extraordinários de Apenas Mortais (Being Mortal, 2020) elaboram uma permanente indistinção entre a visualidade do presente e as memórias que os lugares evocam para seus personagens. Para dimensionar as alterações da relação da protagonista com o pai que, aos poucos, vai se definhando por causa do Alzheimer, a direção do chinês Liu Ze embaralha diferentes temporalidades que acontecem simultaneamente em um só espaço.

Com tal estratégia de encenação que permite criar presenças e ausências, o filme não se limita a ser apenas um melodrama familiar. Existe também o interesse em preencher os lugares afetivos com imagens do passado. O cruzamento de tempos distintos extrapola a relação com um presente em que as coisas, as pessoas e as relações estão ameaçadas de desaparecer.

Se o olhar do pai de Xia Tian é conduzido à renovação constante daquilo que é visível, algo parece desaparecer nessa relação que foi construída entre os dois durante tanto tempo de convivência. Outras situações de perda são vivenciadas pela protagonista: ela abandona seu emprego estável e rompe com seu amante para voltar à cidade onde os pais moram e ajudar a mãe nos cuidados com o pai. Os lapsos recorrentes de memória distanciam cada vez mais o pai da filha.

Em determinada cena, o pai é levado a sair de casa em direção à aldeia de sua infância, após ser atraído pela presença de um menino que brincava com uma bola no corredor (seria esta presença um vislumbre dele mesmo como criança?). Aquele mesmo garotinho reaparece já na aldeia procurada pelo pai, mas é a filha que é levada a olhar. O filme produz exercícios de encantamento com as pequenas lembranças que se misturam à narrativa, que nunca recorre ao didatismo dos flashbacks para pontuar sobre o passado dos personagens.

É claro que há sempre o peso de lidar diretamente com as consequências da doença. Com o avanço do Alzheimer no patriarca, o cotidiano vai se tornando cada vez mais árduo para todos: a mãe fica esgotada com as tarefas diárias, a irmã insiste em levar o pai para uma casa de repouso e Xia Tian vai aos poucos deixando em segundo plano tanto seu novo trabalho quanto seu novo namorado. No entanto, é justamente a aproximação da morte do pai que desencadeia uma abertura ao mistério pelo acionamento dos vestígios da memória.

Visto durante a 44a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo – 2020

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Tenet (Christopher Nolan, 2020)

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Mijar ao Vento

Por Pedro Tavares

No conceito de autoria, a reiteração de métodos e a noção de um lugar comum na obra geral ou se justifica ou se ostenta. É de fato curioso como Tenet é uma espécie de incessante busca e confirmação de certo fetichismo por parte de Christopher Nolan na suposição de uma possível transição de um diretor de blockbusters pomposos para o autor de cinema com sua própria grife. Neste raciocínio é possível desfiar o filme de maneira muito simplória para termos logo uma resposta sobre as intenções do filme e vemos como as alegorias estão em função da ilusão e são nulas para a narrativa, transparecendo intenções, que, perfiladas, mostram interesses perniciosos ao filme.

O enredo, per si, antes da intromissão deste fetiche-justificativa por parte de Christopher Nolan, é muito próximo a qualquer lançamento de ação B e que isto não seja visto com maus olhos, incluindo a maneira que Nolan orquestra suas sequências de ação e como o filme é montado, a partir de um épico que coloca o seu 007 no divã para questionar a mortalidade. A partir daí, um encontro com a metodologia do realizador que se aproximou desta ideia da metafísica a partir de espaço-tempo em filmes como Amnésia (2000), A Origem (2009) e Interstellar (2014) retorna à mesma abordagem como a possibilidade de reconhecimento de um tema-chave em sua filmografia.

A máxima “mijar ao vento” vem do “protagonista”, um homem-carcaça, sem demais apresentações e ser da CIA é o suficiente para que sua missão seja permeada pelo senso de equidade. E por mais que esteja sempre em devaneios sobre os reais efeitos de encarar o ciclo, a função da máquina é de partir para a intervenção.

Nesta função de monte e desmonte do enredo a partir das possibilidades que a distorção do tempo permite, as brechas são preenchidas por um moralismo barato. Tenet se arrisca demais ao caminhar sempre em extremos – o perigo do filme é o do fim do mundo, o retorno do tempo é para um senso de justiça coletivo – e seu protagonista sempre a serviço desta moral entre idas e vindas, uma representação do alvo que Nolan almeja e não um personagem passível de mutações.

Confiando neste efeito devastador que o filme levaria como um panfleto ideal e pronto para as mãos de seu público, Tenet é um passeio previsível no campo da ética e funcional como um filme de coreografias. Elas, que justamente salvam o filme da ideia da elasticidade do tempo em certos momentos e que se resumem ao movimento de rewind (a clássica rebobinada nas fitas VHS)  e em um sentido de carga dramática tão profunda quanto, de fato, mijar ao vento.

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Mostra Internacional de Cinema de São Paulo: Mamãe, Mamãe, Mamãe

Por Camila Vieira

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Apesar de ser um filme que toma a morte como ponto de partida para o desenvolvimento de sua própria dramaturgia, não há qualquer desconforto nas imagens de Mamãe, Mamãe, Mamãe (Mamá, Mamá, Mamá, 2020), da argentina Sol Berruezo Pichon-Rivière. Os planos são todos muito bem controlados. O uso da paleta de cores fica restrito à instrumentalidade tautológica: são frias quando remetem à melancolia da perda e são quentes quando mostram o passado feliz das irmãs. Nem mesmo o fora de campo produz algum mistério, já que ele só é usado como mera ilustração da ausência que já acontece desde o início da narrativa.

A encenação da perda parece ser um subterfúgio para abordar uma história que só é possível ser narrada com mulheres: a mãe solo e sua filha Cleo; a tia e as três primas; a vizinha; a cuidadora da avó e sua filha. Mas as representações das mulheres aqui são reduzidas às imagens mais genéricas e cristalizadas de uma idealização do feminino: as crianças estão sempre calmas, dóceis e bem educadas; a mãe chorosa e reclusa no quarto; a fantasmagoria da irmã se manifesta como presença angelical; a tia é a protetora sempre preocupada com o bem-estar da sobrinha e de suas filhas. Tem até uma coelha fofinha entre as meninas que vai gerar filhotes – qualquer metonímia simplória da relação mãe e filha é bem-vinda nesse filme.

Não é de se estranhar que todas as mulheres – crianças, adultas e idosas – estão aqui restritas ao espaço da casa e, mesmo quando há um breve momento de fuga, elas sempre retornam ao lar. Nada vai perturbar esse espaço apaziguado, nem mesmo a necessidade de inserir na trama a menina Aylin, que vem do Paraguai, pelo simples exotismo de que ela está ali apenas para narrar histórias de sequestros e desaparecimentos. A jornada das crianças pelo desconhecido em um caminho fora do espaço doméstico nem chega a ser ameaçadora – um contrassenso com a própria ideia de morte que o filme quer aludir. Desta maneira, Mamãe, Mamãe, Mamãe limita-se a ser um filme fofinho, palatável, que não desconcerta, nem foge das expectativas do conforto da audiência.

Visto durante a 44a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo – 2020

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Mostra Internacional de Cinema de São Paulo: Al Shafaq – Quando o Céu Se Divide

 Por Camila Vieira

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Um pai à procura do filho é o leitmotiv de Al-Shafaq – Quando o Céu se Divide (Al-Shafaq – When Heaven Divides, 2019), da diretora e roteirista turca Esen Isik. Morando na Suíça há anos, o turco Abdullah mantém em casa os costumes de sua cultura de origem, ao mesmo tempo em que se adapta à rotina em território ocidental. Sua esposa e filhos seguem os mesmos preceitos, com exceção de Burak, o caçula, que é o grande pivô de insatisfação do patriarca da família.

Talvez o grande problema do filme seja a construção unidimensional do personagem de Burak. Se de início, o jovem não demonstra interesse em rezar o Alcorão, quer se divertir com colegas ocidentais da mesma idade e não suporta a violência centralizadora do pai, a suposta mudança forçada dele deverá ser como o fundamentalista recrutado a serviço da Guerra Santa na Síria. De uma forma ou de outra, a aparente transformação de Burak não altera absolutamente nada dentro de sua função familiar: ele parece ser apenas uma peça jogada no roteiro para motivar a decepção do pai.

A história de Abdullah em busca de seu filho – que inevitavelmente é encontrado morto – é colocada em paralelo ao drama do menino sírio Malik, que também perdeu o irmão em um campo de refugiados na Síria. Apesar de ser breve, a trama de Malik é desenvolvida de forma mais complexa: sua família é obrigada a migrar de sua residência, mas não consegue escapar da ameaça de soldados bandeiras negras do Estado Islâmico do Iraque e da Síria (ISIS). Ele consegue sobreviver junto com o irmão, que logo depois também morre em outro ataque.

A narrativa aproxima Abdullah e Malik não só pelo vínculo que existe entre eles e parentes mortos. Enquanto a trama intercala o presente com acontecimentos do passado dos dois personagens, sabe-se que Burak foi recrutado para as ações do ISIS que afetaram diretamente a vida da família de Malik. A amarração esquemática de roteiro que conecta a história dos dois personagens apenas serve a uma agenda humanista forçada que não contribui e nem traz olhares diferenciados para os conflitos no Oriente Médio.

Visto durante a 44a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo – 2020

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Mostra Internacional de Cinema de São Paulo: 17 Quadras

Por Camila Vieira

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Há algo nas imagens de 17 Quadras (17 Blocks, 2019) que altera a relação de poder de quem filma em relação a quem está sendo filmado. Em um primeiro momento, o documentarista estadunidense Davy Rothbart se sentiu interessado em registrar com sua câmera o cotidiano da família dos irmãos ainda pequenos Emmanuel e Smurf que ele conheceu a partir de um jogo de basquete, em 1999. Com o pacto de aproximação estabelecido, todos os integrantes da família passam também a filmar a si mesmos, construindo e materializando suas próprias encenações. Não se trata mais apenas do olhar de alguém de fora, mas de quem vive intensamente aquela realidade por dentro daquela casa em Washington a 17 quadras do Capitólio.

Registradas ao longo de 20 anos, boa parte das imagens do documentário se colocam sob o risco do real, tal como pensa Jean-Louis Comolli, em que a auto mise-en-scène permite implodir qualquer gesto programado de representação de si. Há algo de espontâneo no modo como a câmera se movimenta, na forma como cada um fala e interage com os outros em cena, que deixa escorrer uma dinâmica de desejo muito particular de quem está sendo filmado por conta própria. Por mais que as escolhas da montadora Jennifer Tiexiera sejam marcadores externos que optam pela contiguidade narrativa das temporalidades distintas dos acontecimentos, ainda assim as imagens por si só produzem fissuras a romper com uma ordenação cristalizada da cena, já que a própria alteridade também se impõe como co-criadora.

Por acompanhar um longo período de tempo, os vínculos afetivos entre a mãe solo Cheryl e seus três filhos, Emmanuel, Denice e Smurf, são dimensionados em suas complexidades. O bairro é cercado por violência, que não é explicitada, mas situada em extracampo: ouvimos o barulho das sirenes dos carros de polícia; Smurf é traficante de drogas, mas não vemos ele negociar diretamente; e mesmo o evento mais trágico só é possível de ser reconstituído pelas memórias dos outros. “Você tem que usar seus punhos como armas”, diz Emmanuel, em um trecho em que relata quantas vezes seu irmão levou tiros nas ruas.

Se o ponto frágil de 17 Quadras é o uso persistente dos acordes indies melancólicos da trilha musical de Nick Urata com supervisão de Dan Wilcox, a força do filme pode ser resgatada com as próprias falas dos personagens, em especial Cheryl, que diz ser necessário se curar e ter esperança. O documentário poderia ser mais um de tantos que são seduzidos pela espetacularização midiática de famílias com vidas precarizadas, mas ele está mais interessado em respeitar essas pessoas e acompanhar como elas sobrevivem apesar da violência.

Visto durante a 44a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo – 2020

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Mostra Internacional de Cinema de São Paulo: Lua Vermelha

Por Camila Vieira

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Com olhares cabisbaixos, corpos estáticos ocupam paisagens em um vilarejo na costa da Galícia, na Espanha. Um homem encontra-se sentado em uma pedra na beira do mar. Um casal permanece na margem da estrada. Outro homem está em pé próximo à parede de uma barragem. Uma senhora idosa continua levantada na sala de estar da sua casa. O ambiente sombrio do lar é invadido pelo ruído de passos de alguém que já não está mais ali. Quem desapareceu foi Rubio, um marinheiro que se aventurou pelo mar em um barco naufragado como tantos outros da comunidade.

Para dimensionar a ausência de um morador importante para a vila, Lua Vermelha (Lúa Vermella, 2020), do espanhol Lois Patiño, constrói uma atmosfera em que o tempo parece ficar em suspensão. Os personagens não se movem, mas falam por meio de voz over. O que eles contam são histórias fantásticas que envolvem a viagem de Rubio, o possível encontro com um monstro, o aparecimento misterioso de uma rocha em formato de uma onda na praia, a presença da lua vermelha. As sequências se alternam a cartelas com trechos dessa narrativa. Enquanto os peixes boiam mortos na beira do mar, cavalos e até mesmo uma cabra são os poucos animais a se movimentarem pelos espaços.

Quando aconteceu o desaparecimento de Rubio? Há mil anos? Não se sabe ao certo há quanto tempo os moradores estão assim. “Nós somos o sonho de alguém. O sonho de um mar adormecido”, diz um deles. As poucas mulheres que aparecem são a mãe de Rubio e as três bruxas convocadas por ela para trazer o marinheiro de volta. Elas são as únicas mulheres com o poder de caminhar pelos ambientes, cobrir os corpos com lençóis – algo que permite uma visibilidade iconográfica dos moradores como fantasmas da vila – e vasculhar os vestígios deixados nos barcos naufragados.

A dilatação da duração dos planos, a localização dos corpos como figuras diminutas na paisagem, a cor rubra intensa a invadir as imagens, o som de mar e de vento ruidoso, os lentos travellings a revelar a monumentalidade dos espaços vão compondo a atmosfera de Lua Vermelha. Os habitantes da vila figuram existências sideradas pela mitologia da vila, em que as imagens e os sons são orquestrados em uma espécie de ritual próprio.

Visto durante a 44a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo – 2020

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Mostra Internacional de Cinema de São Paulo: O Tremor

Por Camila Vieira

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É curioso como o longa-metragem O Tremor (Nilanadukkam, 2020), do indiano Balaji Vembu Chelli, propõe uma reflexão crítica em torno do apetite da mídia em se alimentar da tragédia humana. O interesse reside menos em desvelar a máquina de espetacularização dos meios de comunicação como tantos outros filmes já fizeram, mas compreender que comunidades continuam abandonadas à própria sorte em áreas de risco, sem provocar qualquer mobilização permanente de governantes e da opinião pública. Não há noticiário capaz de evitar o histórico sucessivo de catástrofes e abandonos.

Na trama, um fotojornalista é convocado para viajar até a vila de Kookal para registrar imagens de uma comunidade destruída pela ação de um terremoto. De início, o longo percurso cheio de ruas estreitas e sinuosas parece ser mais difícil do que ele imaginava. O contato com a paisagem montanhosa é permeada por imagens de outros incidentes de tremor que atingiram a vila. Um breve plano com a tela de teste com barras coloridas da TV indica que provavelmente são cenas já capturadas por emissoras locais.

Em meio a uma névoa branca densa que cobre a região, o fotojornalista pergunta aos moradores onde aconteceu o terremoto. Alguns dizem que foi em no vilarejo próximo. Muitas casas parecem estar abandonadas. Quanto mais o protagonista adentra no lugar, ele é levado a entrar em contato com fantasmagorias que cruzam seu caminho e que o fazem se perder em outros caminhos.

Enquanto o olhar do fotojornalista procura a racionalidade do registro imediato visível dos fatos, a paisagem oferece a ele indícios de desaparecimentos: moradores apontam para vilas arrasadas que ele não consegue ver. Os planos do filme vão se compondo com brumas esbranquiçadas, presenças que se esvaem, ruas vazias. A força de O Tremor como cinema reside justamente na construção da paisagem como um acúmulo de repetições trágicas no curso da história que se tornam invisíveis ao olhar de quem só quer capturar o momento imediato.

Visto durante a 44a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo – 2020

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Mostra Internacional de Cinema de São Paulo: Nova Ordem

Por Camila Vieira

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Depois de vários planos fragmentados que aludem ao que irá acontecer ao longo da narrativa, as primeiras cenas de Nova Ordem (New Order, 2020), do mexicano Michel Franco, apresentam uma aglomeração de pessoas brancas, ricas, bebendo, dançando e se divertindo na confortável e intocável mansão da abastada família Novelo. O local recebe convidados para a cerimônia de casamento da jovem Marianne com um “jovem e promissor arquiteto”, segundo as palavras de Victor, amigo influente que mantém vínculos corruptos de trabalho com o pai da moça. Do lado de dentro da casa, organizam a cozinha os empregados não-brancos de ascendência ameríndia.

Aos poucos, acontecimentos estranhos começam a desestabilizar a teatralização da elite na mansão: a juíza ainda não chegou para realizar a cerimônia, as torneiras jorram tinta verde, uma convidada aparece com o pescoço esverdeado. Até que chega Rolando, antigo empregado da família, para conversar com sua ex-patroa, mãe de Marianne, e pedir dinheiro para a cirurgia de Elisa, sua esposa que está doente. Ela foi expulsa da enfermaria de um hospital público, que evacuou as vagas para acolher manifestantes feridos. Aqui já conectamos as pequenas irrupções já vistas com um grande fora de campo: vários protestos invadem as ruas, enquanto a elite permanece alheia ao que acontece lá fora.

É óbvio que a ex-patroa coloca dificuldade para dar o dinheiro e, a partir daí, explicita-se de forma gritante a desigualdade entre as classes. O filho mais velho quer logo expulsar Rolando. Marianne enfrenta os homens da família para ajudar o antigo empregado (curioso notar como há sempre uma jovem branca, loira, bela, que se coloca como a alma caridosa dos pobres oprimidos pelo sistema). E claro que o enfrentamento dela não será suficiente para romper a estrutura de poder hierárquica mantida pelos homens da família. Mas ela será a mocinha capaz de sair do conforto de sua casa para “fazer alguma coisa”, enquanto sua mansão acaba sendo logo depois invadida pelos manifestantes.

A primeira meia hora até chegar o momento da invasão e do saqueamento da casa dá a impressão de que Nova Ordem quer lançar alguma possibilidade de inversão de poderes dentro das cristalizações sócio-econômicas ordenadas pela máquina capitalista neoliberal. Mas é só um jogo de aparências: Michel Franco orquestra as cenas de forma pomposa e grandiloquente, como se o chamado para a luta armada contra o opressor devesse ser filmado como um espetáculo. Quando a cidade passa a ser sitiada pelo exército, a mesma lógica espetacular é exigida para explicitar a violência tanto em opressores quanto em oprimidos. A direção não se compromete com absolutamente nada que encena e se esvazia tanto em sua indiferença que só entulha cenas pretensiosamente chocantes para sua audiência internacional.

Visto durante a 44a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo – 2020

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Mostra Internacional de Cinema de São Paulo: O Problema de Nascer

Por Camila Vieira

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Nos ambientes escuros de suas casas, dois personagens alimentam dificuldades em superar a ausência de alguém querido em suas vidas, no longa-metragem O Problema de Nascer (The Trouble With Being Born, 2020), da cineasta austríaca Sandra Wollner. O primeiro é um homem que perdeu a pequena Elisabeth, desaparecida há 10 anos ao fugir da casa da mãe. O segundo é uma senhora já idosa que se recorda todos os dias do irmão Emil, morto em um acidente há 60 anos. A forma dos dois driblarem as ausências em um presente fraturado se dá pela convivência com um androide, que encarna memórias implantadas – e por que não alteradas? – daqueles que se foram.

Como Elli, a ginoide recorda-se do cheiro da terra molhada, dos cigarros, do protetor solar, das inúmeras horas que viveu ao lado do pai, das músicas que ambos ouviam. Ela é a personificação idealizada da criança doce, gentil, inocente, com presença disposta o tempo inteiro diante do homem que ela chama de pai. Mas a figura paterna transparece algo no mínimo estranho nesta relação: ele olha para ela com desejo ao comprar um vestido; ela posa nua e sensual diante dele; e após uma dança incessante, dorme com ela. A cena de sexo não precisa ser mostrada, mas já se sabe que aquele corpo robótico foi avariado. “Mamãe nunca teria deixado, mas ela não precisa saber de tudo”, diz a voz off de Elli.

O que significa o não saber de tudo nesta relação pai e filha que envolve pedofilia? É certo que a ginoide foi programada para satisfazer o desejo do dono, mas sua rostidade remete à criança que desapareceu. Será que a menina fugiu de casa justamente com o intuito de se livrar de um histórico de abusos com este homem que nem sabemos ao certo ser o pai? A pergunta fica em suspensão, até o momento em que a ginoide escapa do aprisionamento da casa, é resgatada por um terceiro e volta a um novo enclausuramento doméstico, desta vez na casa de Anna.

Como Emil, muda-se o gênero para androide. A voz agora é de um garoto, que brigava muito com sua irmã no passado. Na nova casa, não há tempo suficiente para elaboração de outra vivência em meio ao trauma. As diferentes memórias de Elli e Emil implantadas no mesmo ser robótico acabam por se confundir e se misturar. O estrago na estrutura familiar permanece. Apesar do interessante ponto de partida, O Problema de Nascer limita-se à abordagem unidimensional das relações humanas pelo que há de pior nelas, sem se permitir alcançar outras experiências.

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