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Constelações: O cinema de Helga Fanderl

Por Gabriel Linhares Falcão

Pata por pata, um leopardo realiza seu desfile chegando bem perto da objetiva, e a objetiva chegando bem perto dele. Vai da direita para esquerda do quadro e retorna para o ponto de partida, realizando novamente o movimento repetidas vezes. Seu andar é sensual, sereno, quase flutuante, e seu corpo camufla-se no breu do espaço parcialmente iluminado. A luz forte revela também a terra com pedras que ele pisa, as plantas que o cercam, e nas sombras, barras de ferro de uma jaula que nunca entra em quadro. A câmera de Fanderl é segura, firme, também serena e sensual, e não demonstra nenhum sinal de amedrontamento com o predador diante da câmera.

O leopardo se revela cada vez mais concentrado. Anda em círculos e sempre olha para frente, sugerindo uma atormentação, possivelmente pela situação do encarceramento. O animal não mira sequer um instante para Fanderl e sua câmera. Apesar da inquietação, as eventualidades além da jaula parecem não o afetar. Tanto quanto o ambiente extra imagem não desestabiliza Fanderl, nem implica na unidade do filme; não há um mundo para além do pictórico na película, nem se quer a jaula importa. A concentração é total; existe apenas a diretora e o leopardo.

Leopard (Helga Fanderl, 2012)
Leopard (Helga Fanderl, 2012)

As cores escapam. Um amarelado que parece extrapolar a forma do animal, como pintado à mão, e o verde forte das poucas plantas reflete no pelo branco da parte inferior do leopardo. A cor de seus olhos parece uma mistura em aquarela de todos os tons que passam pelo quadro; em constante mutação a cada volta.

O animal com toda sua elegância parece aos poucos cansar. Suas piscadas vão pesando. O olhar concentrado está cada vez mais perdido, sem direção, apesar da retidão. A câmera de Fanderl gradativamente altera seu comportamento: há mais cortes e as imagens se fecham em diferentes partes do bicho. A alteração é sensitiva. Pouco a pouco a maneira de filmar se ajusta às intuições perceptivas do instante; uma comunhão cada vez mais íntima entre sujeito e objeto, regida pelo olhar de Fanderl. A única ordem imutável presente em todos os seus filmes é a montagem na câmera Super 8, que permite, nas palavras da diretora: “concentrar e mergulhar no fluxo do tempo, filmando, por assim dizer, tempos e eventos que acontecem no tempo, buscando o “gesto” que pudesse integrar a complexidade de tudo o que acontece no “aqui e agora” quando filmei e pela expressão da reciprocidade entre o que está acontecendo em mim e fora de mim.[1]

A maioria de seus filmes consiste em apenas um rolo de Super 8, com cerca de 3 minutos cada, e são exibidos publicamente em grupos organizados pela própria diretora, compondo uma obra maior. Seus filmes são registros diretos do presente e dos infinitos tempos contíguos nele. Um olhar atento que captura manifestações do instante explicitando as peculiaridades, como desenhos muito bem definidos, e por um acúmulo de gestos e tempos, elabora filmes densos em que todo contraste é evidente pela clareza das especificidades. O leopardo faz sempre o mesmo movimento no mesmo espaço, mas nos é revelado uma infinidade de detalhes que divergem, seja pela alteração do objetivo ou do subjetivo. A reciprocidade entre estes aumenta no decorrer do rolo, e as mais leves imprevisibilidades vão sendo impressas por Fanderl na película. Todo registro objetivo é também um registro da experiência sensível da diretora no mundo – este que parece desaparecer durante seus filmes.

Estamos sempre vendo pela primeira vez; tanto na unidade, neste processo de investigação minucioso do presente pela montagem na câmera, quanto nos filmes compostos, em que a organização das obras curtas sublinha ainda mais as especificidades de cada uma destas, criando um drama formal intenso por meio das discrepâncias. Em Konstellationen (2013)[2], por exemplo, são necessários seis filmes curtos em preto e branco para finalmente conhecermos as cores em Leopard (2012), sendo que estas, como já descritas, parecem escapar do domínio das formas esparramando-se pelas rápidas imagens; como uma evidência do processo físico natural em que a luz rebate nos objetos que toca antes de encontrar a lente da câmera. A cor também está nascendo diante de nossos olhos ainda inocentes.

Vemos o vegetal pela primeira vez em uma árvore seca e sombria, para em um fragmento posterior sermos apresentados às folhas coloridas já no chão.[3]

Vemos grandes estruturas metálicas, pela primeira vez artefatos feitos pelo humano, por meio do reflexo da água, para no mesmo fragmento a chuva dar fim a solidez imaginada.[4]

É comum a ocorrência de variações internas nos filmes de Fanderl, pequenas mudanças de configuração/comportamento decorrentes da intuição, do acaso e da experimentação de diferentes velocidades da Super 8. Em Bläter fliegen (2001), a diretora captura pássaros que se alimentam em uma árvore. O foco de captura são os animais, a câmera se movimenta preferencialmente pelo eixo e abusa do zoom para alcançar os ligeiros pássaros. Quando as aves vão embora e o foco se torna a árvore, a diretora começa a se movimentar ao redor para capturar diferentes ângulos. O tronco, que antes parecia firme ao chão assim como Fanderl, agora desliza levemente pela imagem como se flutuasse. Não só diferentes “tempos e eventos que acontecem no tempo”, mas também diferentes materialidades são descobertas nessa progressiva soma; o cinema de Fanderl não é regido pelas leis materialistas, pelo contrário, encontra suas próprias ordens cosmológicas pela principal evidência imaterial que nos é permitida: a experiência sensível.

Mesmo que sempre evite comparações[5], Helga Fanderl aproxima sua maneira de filmar (montagem na câmera, estruturação formal e rítmica no ato de filmagem, reciprocidade entre sujeito e objeto e risco elevado de erro por conta dos procedimentos adotados) à caligrafia zen:

Esse estado de espírito é muito intenso e excitante. É como se todas as condições mentais, emocionais e técnicas tivessem que ser percorridas e coincidirem na ideia de fazer um bom filme. Às vezes, esse tipo de filmagem é um gesto que me lembra a caligrafia zen. Não há possibilidade de corrigir e alterar. A obra revela o estado de espírito no momento de sua criação.” Helga Fanderl[6]

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Strom (2010)

 Impossível não cair no clichê de que é possível ouvir sons nos densos filmes silenciosos de Fanderl. Os demarcados contrastes que se ampliam de fragmento em fragmento, nos apresentam diferentes intensidades sensíveis e imaginativas, acumulando memórias de primeiros contatos neste mundo que começou no início da projeção. Em Konstellationen (2013), como não perceber o estrondo das cataratas do fragmento Strom (2010)? O contato é ainda mais chocante pois havíamos sido apresentados primeiramente ao silencioso nado da tartaruga em águas invisíveis aos nossos olhos em Aquarium (2009). O único indicativo pictórico de um registro aquático, além dos animais presentes, são algumas bolhas e características ondulações luminosas. Luz esta que se torna um privilégio do aquário comparado aos pássaros que se alimentam em uma árvore seca completamente negra contra o céu nublado no chapado Blätter fliegen (2001), de um preto e branco quase binário. Os fogos de artifício de uma Torre Eiffel vulcânica, em Feuerturm (2009), deixam rastros nos grãos da película que nenhuma luz natural vista até então ousaria rabiscar. Gradualmente conhecemos a luz a partir de polivalentes luzes; uma infinidade de haikus luminosos se formam nestes micromundos abertos. No fragmento final, encontramos em cataratas que habitam os céus, um milagre: em meio ao vapor que sobe da queda d’água, surge um arco-íris. Toda ação filmada retorna à luz.

[1] Em HAMLYN, Nick. Layers and Lattices: Films of Helga Fanderl, in Sequence, issue number 1,No.w.here Publications ISSN 2048-2167, 2010.

[2] Konstellationen é um projeto contínuo realizado pela diretora de 1992 até 2016, em que novos curtas eram adicionados. Este texto se baseia na versão de 2013 exibida no Festival Internacional de Cinema de Toronto 2013, que segue a seguinte ordem de curtas: Blätter fliegen (2001), Gasometer I (2010), New Hope I (1992), Aquarium (2009), Geburtstagsfeier (2004), Feuerturm (2009), Leopard (2012), Laub (2010), Rost (2010), Container (2011), Gläser (2011), Gelbe Blätter (2011), Strom (2010).

[3] Respectivamente, Bläter fliegen (2001) e Laub (2010)

[4] Gasometer I (2010)

[5] Fanderl, ex-aluna de Peter Kubelka e Robert Breer, revelou nos Extras do DVD Fragil(e), que “influências existem, mas não no sentido direto, mais indiretamente”. Continuando, cita Dziga Vertov (em especial Um Homem com uma Câmera), Jean Vigo (em especial À propos de Nice e L’Atalante), Gregory J. Markopoulos (em especial Ming Green, também montado inteiramente na câmera), Robert Beavers (em especial Work Done) e também Jonas Mekas.

[6] Entrevista com Helga Fanderl por Andrea Piccard, em Cinemascope nº 55

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Karioka – Takumã Kuikuro, 2014

Por Geo Abreu

“Takumã Kuikuro leaves his village in Alto-Xingu, Mato Grosso, with his wife and children, to live in Rio de Janeiro for a while”.[1]

Ta

Ku

Ti

Ü

Ka

Kagihutü / aʒiutˈ

Carioca / kaɾjˈɔkɐ /[2]

Imagens do Rio de Janeiro visto de Niterói, Praia de Icaraí, Museu de Arte Contemporânea, aeronave, Oscar Niemeyer. Das imagens conhecidas passamos a uma voz que preenche fortemente o vazio na tela, tomando a atenção.

A língua Kuikuro, do ramo Karib, vibra em materialidade e se impõe trilhando uma linha condutora entre nós e as imagens. A legenda que acompanha parece acessória a certa altura. Poderíamos prescindir dela? Na paisagem sonora do filme, além do barulho do mar e da música de Carlos Malta e da banda Pife Muderno, somos levados por uma cadência cuja mecânica necessita estalar a língua no céu da boca e compor fonemas em T e K, gerando palavras que ganham presença e se aproximam de nós como uma antiga canção de ninar, distante na memória, salva em algum lugar do corpo como arquivo.

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Tomada por esse dispositivo que crio na relação com o filme (e que me mantem alerta), sigo observando a cidade conhecida sendo descrita por um homem de sunga vermelha, sentado em algo muito baixo, em conversa com uma mulher, que é mãe e avó. Sorrio quando ela diz ter entendido o que significa kagihutü (G com som de R; T+U+trema soa como T+A+~; sílaba final forte; pegada gutural): pessoa que nasce na cidade do Rio de Janeiro.

Naquela conversa algo se revela sobre o termo que nomeia o filme e que eles apreendem como revelação dupla sobre a natureza mesma do lugar e de quem nasce lá. Será que a palavra carrega algo de força ou segredo compartilhado, encapsulado nesses fonemas, e por isso fascina tanto o cineasta e seus interlocutores? Entrevemos alguma relação com o movimento das águas doces, até porque Carioca Era um Rio[3] cuja nascente está esquecida em meio a esgoto e entulhos.

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No episódio sobre a estranheza da água salgada – que não lava e serve apenas para brincar -, um primo entra na conversa e traz para jogo a definição mais simbólica e distante do meu quadro de referências que já vi sobre a cidade: o Rio de Janeiro como cidade “colar de miçangas.”  Banhos de mar nos permitem acumular miçangas o suficiente e levá-las para casa. Essa ideia de acúmulo aponta o que exatamente? Memórias? Beleza? Algo conhecido que se aproxima como fricção entre a água arenosa e o sensorial das miçangas sobre a pele? Nenhuma das alternativas anteriores ou talvez todas elas: miçangas são feitas de diversos materiais como pedra, ossos, conchas, vidro[4]. Tentar a aproximação desse sistema cognitivo via conhecimento branco me leva a usar ferramentas ligadas à transcendência e me fazem cair sentada de bunda na areia.

Um tanto derrotada, desisto de acompanhar o relato audiovisual da viagem da família Kuikuro via banda sonora e retorno à prática das imagens em busca de algum sucesso em me aproximar de Takumã e sua câmera.

//Desplugo a cabeça oca do aparelho sonoro e ajusto as lentes.//

Ainda na conversa que nos conduz pelo filme, vemos mãe e filho falando sobre o ruído que existe na produção de imagens do Rio de Janeiro.  Uma defasagem produzida no confronto entre discurso jornalístico, via TV, e jogos de ficção. Entre noticiários e novelas, favelas, violência e tragédias se contrapõem às praias do Leblon e Ipanema, que parecem bonitas – e são mesmo, alguém sublinha, enquanto vemos crianças brincando na areia com o mar ao fundo. Mais uma vez os cariocas enquadrados entre as figuras de mar e morro.

A necessidade de produção de sentidos através de imagens, do entendimento dessa engenharia, leva Takumã ao Rio de Janeiro em companhia da esposa e dos filhos. Este curta é um trabalho seu de conclusão do curso de Montagem na Escola de Cinema Darcy Ribeiro.

Num dos momentos mais poéticos do filme, nos afastamos da posição de importância de Takumã como cineasta Kuikuro e seguimos, via montagem, os pensamentos de sua filha, a menininha de rosto absorto e cabelos ao vento que, retornando à sua aldeia, mantém em lembrança os momentos de brincadeiras com adultos e crianças da cidade, o episódio com a música de Anitta, o banho de mar com os irmãos. E assim nos encontramos frente a um cineasta apenas, em exercício livre, treinando esta outra gramática que quer manejar. Selamos um pacto sem palavras.

A mediação que Takumã exerce abre frentes e lança no tabuleiro do jogo cinema outras chaves de interpretação do mundo via imagens e sons, trazendo para o cenário da encenação frente às câmeras sua mãe e irmãos, pai, avô, além da língua Kuikuro. Nesse exercício as forças parecem seguir duas linhas diferentes: numa, o cineasta que deve representar sua aldeia em circuitos de legitimação artística; noutra o simples aprendiz de ofício, aquele do olhar em formação, passível de erros e acertos, e sobretudo, livre para experimentar e criar formatos. No choque entre essas duas possibilidades alguns limites de ação se impõem a ele e sua câmera? Como produzir os desvios ou respiros?

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As escolhas estão com ele. De alguma forma, embalada pelo ritmo metálico e robusto das palavras em Kuikuro me vem a vontade de acompanhar sua trajetória e pensar sobre ela, elaborar estratégias de aproximação e distância em gestos bem conhecidos e naturais, como numa brincadeira, a que tentei produzir no começo do texto, quando o reconheci via audição como alguém tão próximo quanto um primo que eu não (ou)via há tempos.

[1] Sinopse do filme na plataforma Mubi.

[2] Transcrições fonéticas feitas via plataforma online. A biblioteca da ferramenta não possui a opção “kuikuro” como idioma.

[3] Carioca Era Um Rio, Filme de Simplício Neto. Rio de Janeiro, 2013. Teaser: https://www.youtube.com/watch?v=Uzj-9m4ZYW

[4] Trecho retirado do verbete Miçanga na Wikipedia

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Atlantique (Mati Diop, 2019): paixões (des)possuídas

“Essa febre é um invasor noturno que atinge o paciente durante o sono profundo.
Ele pula da cama e corre para a ponte.
Lá, ele acredita ver além das ondas,
árvores, florestas, prados floridos.
Sua alegria explode em mil exclamações.
Ele sente o desejo mais ardente de fluir para dentro do oceano”

(Atlantiques, Mati Diop, 2009)

 

I – Despossessão

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As cenas iniciais de Atlantique (Mati Diop, 2019) nos jogam em uma briga dentro de um canteiro de obras. Souleiman e seus companheiros de trabalho exigem dos encarregados o pagamento atrasado há três meses, e os encarregados argumentam que o patrão viajou e não deixou o dinheiro. Para os jovens trabalhadores, não há o que fazer, apenas pegar o transporte de volta à cidade e abandonar a obra. Da caçamba do carro, as torres imensas em construção são o símbolo de uma derrota anunciada, de uma negociação impossível, de distâncias intransponíveis. Indiferente, explorando outros trabalhadores, as torres continuarão a crescer.

A montagem por oposição dos rostos derrotados dos jovens trabalhadores e da torre futurista inacabada é uma apresentação quase direta demais do conceito de acumulação por despossessão, proposto por David Harvey para descrever o funcionamento do novo imperialismo neoliberal. Se a expropriação das terras e do direito sobre os próprios corpos das pessoas originárias de África e de América pelos colonizadores europeus foi o sustentáculo inicial do capitalismo, o neocolonialismo contemporâneo mantém e expande a despossessão fundadora. Contratos de trabalho, direitos trabalhistas, bem estar social são promessas ilusórias, enquanto a torre é concreta (e cada vez maior). Mas estamos no quase, pois entre os rapazes e as torres, a montagem nos mostra o mar de Dakar. E o desânimo vira cantoria e excitação entre os jovens.

Essa é a primeira faceta das múltiplas do mar em Atlantique: entre os despossuídos (de terras, de direitos, de dinheiro, de perspectiva…), o mar é também uma fuga. O sonho do emprego melhor na Espanha, de uma vida a recomeçar – além das ondas. O Atlântico evocado pelo título é então uma presença constante no filme: dessa incerta esperança, ao temido pesadelo do naufrágio, passando pelo enigma do retorno assombroso. Mais do que uma paisagem, o mar funciona no filme de Diop como um recorrente contraponto, descontinuando a especialidade do filme para uma imagem de imensidão simbólica – um portal do tempo-espaço de África e da afro-diáspora.

Atlantics: A Ghost Love Story - Image Courtesy of Netflix

Com Souleiman encontramos Ada. Entre Ada e Suleiman, a paixão.

Mas… “Você só fica olhando para o mar”.

Ada está às vésperas de um casamento arranjado com outro homem. Pressionada pelos pais, a negociação parece ser simples: esquecer a paixão adolescente, manter-se virgem até o casamento e submeter-se a uma união sem amor e/ou afetos com Omar. Ainda mais despossuída na cena do capitalismo global, o desejo de Ada está fora da transação comercial, assim como qualquer vislumbre no contrato econômico, social e familiar da possibilidade de possessão dela de seu próprio futuro e corpo. Como o quarto nupcial branco cenograficamente decorado para ostentar uma negociação fria e calculada do matrimônio de Ada e Omar, não há lugar para a vida e suas pulsões nesse arranjo – no máximo para algumas selfies posadas.

Se a paixão de Ada está fora dos cálculos de risco, os contratos sociais, econômicos e familiares se dissolvem quando esta arde: queimando a cama não usada na transação jamais consumada. A partir de então algo se conjura na narrativa do filme, no momento que esse intenso desejo não pode mais ser contido. E ainda que uma parte do enredo dedique-se a uma investigação policial do que não pode ser explicado (com a sordidez de exames médicos para aferir virgindade e interrogatórios abusivos), Atlantique é um filme devotado a atmosferas e sensações – a febre como invasora noturna e devaneio (e não como sintoma). Ao fim, diante do inverificável, o investigador não pode mais do que apenas (e já) encontrar a si mesmo.

II – Possessão

“Alguns pescadores voltaram do mar com a rede tão cheia que todos correram para ver o que eles tinham pescado. As pessoas gritavam que haviam pescado um peixe enorme. As crianças e toda vizinhança foram ver. Mas, quando se aproximaram da rede, não viram um peixe, mas o corpo sem vida de Souleiman”.

No momento de virada do filme, os jovens despossuídos (agora também da própria vida) retornam para enfim obterem as suas possessões – de vinganças e de paixão.

Sem mais promessas, o mar é então apenas um perigo no contracampo de cada sonho, cuspindo de volta o espírito dos despossuídos. Conclamados por aquilo que na expropriação capitalista não se pode conter – a raiva pela exploração e humilhação cotidiana, a paixão não consumada – os jovens retornam como assombrações febris.

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E então, algo se complica na ficção especulativa proposta por Mati Diop, pois as fronteiras de morte em vida e da vida na morte são borradas. Afinal, como podem em morte possuir aqueles que em vida não possuíam nada? Um corpo, uma vingança, a consumação da paixão: quais os limites da possessão despossuída?… Essas assombrações não são zumbis ou fantasmas tradicionais desse gênero narrativo. Com exceção de Souleiman, os jovens rapazes tomam posse dos corpos das suas amigas, irmãs e namoradas. É assim que esse corpo feminino possuído pelos espíritos dos rapazes pode enfim reverter (ainda que temporariamente) o sentido da expropriação – e fazer o patrão cavar a cova para seus corpos perdidos no fundo do oceano. O topo da torre é também o fundo do mar.

Em Atlantique, a possessão é assim, ao mesmo tempo, assombro e triste reencontro, acerto de contas com o patrão explorador e reparação financeira para as que ficaram. O sobrenatural que o filme mobiliza não é então marcado pelo terror ou pelo medo, mas por paixões incontroláveis que não se podem evitar: irão queimar.

III – Exorcismo e Renascimento

“(…) o corpo da mulher negra conserva a possibilidade de um Outro desejo. Um desejo que não pode alimentar a maquinaria do capitalismo global ou as críticas ao mesmo tempo porque o texto político fundamental aos dois campos não a contempla. Fora do Patriarcado e fora da História (as narrativas do sujeito transparente [a coisa da interioridade e da liberdade]), o desejo prometido pelo corpo sexual feminino continua como um guia ainda por ser delineado para uma práxis radical (…)” (Denise Ferreira da Silva, A Dívida Impagável, p. 77)

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O reencontro de Ada e Souleiman marca por fim a última possessão do filme: a do sexo. Temos uma comunhão que é a entrega e a despedida de duas trajetórias: o espírito que pode enfim partir e da adolescente que assume sua autonomia na vida adulta. Uma posse de si para Ada que constrói-se lenta, mas continuamente: na recusa de entrar no carro de Omar, na negociação persistente da venda do iphone, na atenção às instruções do novo trabalho no bar. Não é irrelevante que esses reposicionamentos digam respeito ao seu (não lugar) na acumulação por despossessão capitalista – ocupando as fendas de informalidade e da precariedade do trabalho, mas também da amizade, do amor e dos experimentos de beleza (para lembrarmos da expressão da Saidiya Hartman).

Ada: a quem o futuro pertence, olha enfim para a câmera. Afinal, possuir a si é possuir sua própria imagem. Um olhar desconcertante para exorcizar também o filme como possessão.

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O mar é também renascimento.

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A doutrina dos afetos

Por Chico Torres 

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O artista está sempre em conflito com a sociedade e, portanto, em conflito consigo mesmo. Um conflito que, no âmbito pessoal, não se resume a “sonho versus realidade”, mas diz respeito a algo mais substancial em relação à constituição do próprio sujeito. Em certo sentido, o artista é um excluído não apenas por exercer o seu ofício, mas por ser aquilo que é, por se apresentar como um diferente: ele é a diferença em meio à repetição, e justamente por isso fascina e incomoda.

Em A ponte das artes (2004), filme de Eugène Green, vemos esse tipo de conflito que se liga mais especificamente à natureza do artista e o modo como o seu ser está unido irreversivelmente à sua paixão. O filme apresenta a evolução de duas almas que, por conseguirem viver apenas sob o influxo de seus afetos, servem como uma alegoria do Barroco, mais especificamente sobre a relação entre vida e morte, porque ao mesmo tempo que emancipa – revelando novas possibilidades para a existência – também se realiza em uma dimensão devastadora e trágica.

Temos a história de dois casais como a espinha dorsal do filme: Pascal e Christine, Manuel e Sarah. Christine e Manuel, os coadjuvantes, servem como ilustrações não apenas do lado mais pragmático da vida, mas também do fascínio e negação que essa dimensão barroca e artística exerce em um mundo marcado pela praticidade. Christine, uma estudante de filosofia, é extremamente racional e objetiva. Já de imediato, a sua personalidade centrada tenta se impor à melancólica e displicente postura de Pascal, jovem insatisfeito com suas obrigações acadêmicas, e que se vê arrebatado pela poesia de Michelangelo. Christine exige que Pascal amadureça, que busque concluir seus objetivos, mas Pascal não consegue se encontrar naquele universo acadêmico no qual a arte está encarcerada em representações falsas e pedantes.

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Já Manuel, um simples programador, sem ligação alguma com o universo intelectual e artístico, é fascinado por Sarah, uma cantora lírica que está debruçada sobre a obra de Monteverdi, mas que se vê em um crescente estado depressivo por causa da postura tirânica do maestro com o qual trabalha. Manuel tenta resgatá-la, explicitando o seu amor e o seu desejo de constituir família, mas Sarah está perdida por não se sentir devidamente reconhecida em seu ofício. Por outro lado, independentemente desse fato, há em Sarah o estigma barroco da ruína, da catástrofe. Esse aspecto é reforçado quando ela, em uma festa de final de ano onde jovens dançam rock’n’roll em um salão, percebe cair a sua máscara social, que é como se tivesse caído todo o escopo de sua existência, fazendo com que ela se perceba um ser completamente vazio.

Sarah e Pascal, afinal, possuem almas barrocas. Mesmo que queiram viver as coisas desse tempo, algo os leva a uma suspensão e esvaziamento da vida por precisarem ceder às pressões sociais, por não poderem ser exatamente o que são. Nesse sentido, as instituições e os lugares de poder são colocados de modo extremamente caricatural e perverso, para reforçar, através da presença desabusada do grotesco, a ideia de que para ser artista não é suficiente dominar a técnica, mas também possuir dignidade para viver aquilo que a arte procura despertar na alma. O maestro, chamado por Sarah de “o inominável”, e outros poderosos do universo da música, são seres que conseguem falar e tocar o Barroco com grande virtuosismo, mas são incapazes de senti-lo de modo genuíno e, portanto, incapazes de expressá-lo verdadeiramente. Já Sarah, em seu silêncio e dedicação, sente tanto em sua alma essa dignidade artística que na mesma intensidade que transborda toda verdade barroca através de sua voz, sofre por ser incapaz de suportar as injustiças cometidas pelo maestro nos momentos de ensaio, que percebe o poder artístico da cantora e imediatamente trata de apagá-lo. O suicídio de Sarah, aos olhos de Manuel (que representa o olhar normativo), é uma atitude drástica e inesperada, mas ganha um maior significado se for pensado como alegoria do aspecto trágico do Barroco que pouco a pouco se revela no espírito da cantora.

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Pascal é também tocado pelo suicídio e por motivos semelhantes, mas a voz de Sarah, ouvida através de um disco com a música de Monteverdi, o faz declinar. Todo o verdadeiro transbordamento de Sarah revela a Pascal uma nova chance para a sua vida, ainda que seja sob uma perspectiva de busca, uma recherche. E mais uma vez se desenrola essa dimensão barroca, agora como promessa de redenção, como procura constante por um sentido superior da existência, ainda que tal sentido seja um ideal inalcançável. Esse encantamento da vida surge através da música e do silêncio, que se dão como uma presença ancestral e poderosa da arte, em seu sentido mágico. Seja com o teatro japonês, ou quando Pascal vagueia por Paris e cruza com um acordeonista que toca música tradicional francesa, ou quando em seguida dialoga com uma cantora curda que, como uma aparição, canta em uma rua vazia alguma canção do seu povo, o que se tem é uma dimensão da arte vivida através de tradições profundas, contrastando com a arte institucionalizada ensinada nas universidades e nos conservatórios, representada no filme através do bizarro.

A doutrina dos afetos, técnica desenvolvida no Barroco que tinha como objetivo expressar emoções precisas através da música, tocou a alma de Pascal ao ouvir Monteverdi e o canto de Sarah, o transportando para uma dimensão existencial ligada ao mistério e à beleza. O encontro entre os dois, sobre a ponte das artes, constrói, em uma única cena, as alegorias que são trabalhadas ao longo de todo o filme: relação entre vida e morte e o papel da arte como essa ponte que transita afetos, sejam eles destrutivos ou redentores. Mostra, fundamentalmente, que o artista é maior do que o seu ofício e que a dimensão espiritual da arte ultrapassa as convenções estabelecidas socialmente.

 

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Enclausuramentos sentimentais, físicos e fílmicos e a paixão fantasma em “Manji” (1964)

Por Anita Gonçalves

“E, quando enfim comecei a temer que os nossos corações explodissem, senti-me de súbito firmemente apertada nos braços dele.

Gota a gota, gota a gota… que dizem eles? Gota a gota, gota a gota… Ah, já sei, Mitsuko, Mitsuko, Mitsuko…, chamam a pessoa que me é tão querida. Tokumitsu, Tokumitsu… Mitsuko, Mitsuko… Sem ao menos me dar conta disso, eu já tinha apanhado a caneta e escrito nos dedos da mão esquerda incontáveis Mitsukos, um a um, desde o polegar até o mindinho.”

(Voragem, Junichiro Tanizaki)

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Em Manji (1964) de Yasuzo Masumura – adaptação do romance de mesmo título (1931) de Junichiro Tanizaki (em português, traduzido como “Voragem”) – temos, como premissa, uma história de amor proibido entre duas mulheres. No centro de tudo, Sonoko, a narradora que conta sua história a sensei (um suposto escritor), e Mitsuko, por quem Sonoko se mostra devota e perdidamente apaixonada, não havendo palavras que de antemão a descrevam, apenas seus olhos e sua beleza hipnótica. Juntas, elas vivem um relacionamento íntimo e intenso que se torna cada vez mais enclausurado, complexo e tempestuoso devido a um emaranhado de fatores externos e, sobretudo, internos (e fílmicos) que influenciam, amplificam, acometem a relação e os sentimentos que a constituem. A partir do contexto claustrofóbico que ambienta o filme e reitera seu caráter trágico, estamos diante de uma situação progressiva de desconfiança incessante e ausência de discernimento, marcada pela prevalência e comando dos sentimentos, do espectro da paixão revelado nas imagens, nos corpos, gestos e expressões emocionados.

Tudo se inicia na escola de pintura para mulheres onde Sonoko estuda – mulher da elite, parece que a arte lhe serve mais como um passatempo, livramento do tédio e do seu próprio casamento, com o qual se mostra muito insatisfeita. É nesse contexto que o filme apresenta uma aula durante a qual as alunas desenham a Deusa Kannon (Deusa da Misericórdia) a partir de uma modelo-viva. Nessa circunstância, o corpo da modelo – do qual não se espera ser mais do que uma base à perscrutação, ao estudo – ao ser filmado por Masumura, consagrado nos planos, anuncia a dimensão do desejo e da reverência que paira sobre todo o filme e conduz a experiência da narradora. Nesse contexto, uma infidelidade estética no desenho de Sonoko cativa a atenção do professor, que nota nele um semblante distinto daquele que possui a modelo. Sonoko justifica-se ao professor: “Eu concebi meu rosto ideal (…) Era para mostrar a espiritualidade da Deusa da Misericórdia”. Ela havia desenhado, inconscientemente, quase como uma sina, Mitsuko Tokumitsu, também aluna da escola. Assim, o que marca esse prelúdio emocionado do encontro das duas personagens e determina, dali em diante, a dinâmica conturbada e intensa do relacionamento e a própria narrativa e experiência de Sonoko, são a primazia – desde o princípio – dos desejos, imaginários, ideais e sentimentos (da subjetividade) da narradora e a ambivalência das personagens. No caso de Mitsuko, mistificada por um lado e submetida à condição de “criação” por outro. No caso de Sonoko, detentora da linguagem falada, uma vez que é a narradora da história, mas também subjugada aos próprios sentimentos, uma vez que sua experiência é fundada e inteiramente movida por eles.

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Por outro lado, existe a influência externa e a obrigação social: a partir do ocorrido na aula de desenho, boatos sobre um suposto romance secreto entre Sonoko e Mitsuko começam a se alastrar na escola, induzindo um primeiro encontro das duas e contribuindo, ao que parece, à concretização do relacionamento apaixonado. No entanto, essa influência externa não surge apenas como pretexto da união, mas, pelo contrário, também como um empecilho ao relacionamento, na forma das obrigações e convenções sociais. Diante de um Japão cada vez mais ocidentalizado, além da obrigação matrimonial de Sonoko, ela e Mitsuko estão inseridas em uma sociedade que julga como imoral o amor entre mulheres e que se torna refém tanto da noção de separação entre vida pública e vida privada como também da ótica judaico-cristã acerca do tópico sexual. Isso implica na privação do desejo, no constante medo acerca do julgamento moral e, apesar de uma primeira idealização do âmbito privado das relações por parte das personagens (cultivam no dia a dia costumes e condutas ocidentais), em um relacionamento enclausurado que só existe entre as limitações das quatro paredes, distante dos olhares e julgamentos da sociedade.

Essa questão encontra a própria câmera observadora de Masumura, que compreende e circunscreve muito bem o suposto espaço privado e a vida secreta, ao mesmo tempo que questiona essa condição pelo simples fato de filmar (ou buscar filmar) a relação, de retratar o que não deveria ser contemplado, o que deveria ser omisso e velado. Nesse sentido, as cenas de sexo do filme são apenas sugestivas; o erotismo, na forma do desejo, está sempre implícito nas imagens. Frequentemente, é uma câmera que espia os corpos através daquilo que pauta, sutilmente no plano, a noção de aposento como aquilo que limita e retém: através de cortinas, de mobílias desfocadas não identificáveis, biombos, do shoji e fusuma – que ganham aqui uma dimensão de parede/barreira muito forte (diferente da sua função de fundir espaços privados distintos e torná-los unos e públicos, reforçando a dinâmica coletiva da vizinhança, em “Bom Dia” de Yasujiro Ozu, por exemplo).

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 Mesmo possuindo um caráter de câmera espiã em algum grau, o que lhe pressupõe uma relação intrínseca com o mundo externo (alguém que espia, a própria concepção e condição do realizador), a câmera aqui não representa uma determinada “sobriedade” em relação à dinâmica tempestuosa que domina o quadro, não possui um senso de convicção e de estabilidade sobre a atmosfera de incerteza e de instabilidade. A câmera é tragada para o universo das paixões sobre e a partir do qual Sonoko – com sua condição poética inicial de “criadora” – narra. Masumura pactua com ela e busca criar imagens em primeira pessoa; imagens que imprimem sua paixão, seus sentimentos, suas impressões e sua narrativa pessoal/sentimental – como se tudo isso, por sua vez, determinasse o quadro.

Ao mesmo tempo que Sonoko possui um aparente controle sobre o que consta nas imagens, sobre a linguagem falada que é transmutada e recriada em linguagem cinematográfica, ela é uma personagem regida pelos próprios sentimentos e submissa a eles. O enquadramento de Masumura, aliado à passionalidade de Sonoko, dá ao enclausuramento pela paixão e sentimentos uma dimensão arquitetônica e física (a partir da ausência de espaço), intensificando a sensação claustrofóbica e reiterando a ausência de contexto através dos enquadramentos fechados, do plano-sentimental-espacial: apesar de o contexto histórico, cultural e social do Japão ser como um subtexto motivador à questão do enclausuramento, ele se vê praticamente aniquilado no plano, o qual corpos, expressões e gestos emocionados ocupam quase que totalmente; ou como se os sentimentos, por serem tão intensos e excessivos, fossem demasiadamente volumosos para o pequeno espaço fílmico (marcado pela limitação das quatro paredes/do plano), tomando o oxigênio e espremendo as personagens, deixando-as imensas e sozinhas no quadro e no quarto, asfixiadas, insanas.

Em um dos momentos iniciais do filme, quando Sonoko mostra a sensei uma fotografia das duas juntas, o rosto de Mitsuko ganha um plano só seu, como se ela estivesse não só encarando a câmera que a fotografou em determinado momento, mas encarando, sobretudo, a câmera espiã de Masumura. Mitsuko se revela através dos olhos e da beleza de Ayako Wakao, atriz por quem Masumura é aficcionado e que, através do que ela concede de si às imagens (sua beleza, seus gestos, suas expressões), define em absoluto a personagem que interpreta: hipnotiza a câmera (Masumura) como hipnotiza Sonoko; sabota a ordem fílmica e supera sua mera condição de personagem diegética através da atriz. Assim, Mitsuko estabelece um contato com o que há através da câmera, com o externo/extraplano, com o que não sofre do enclausuramento pelo plano-espacial-sentimental.

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Como seu olhar (e a própria Sonoko) em sua narrativa sugerem, já se pode presumir o suposto feitio manipulador de Mitsuko, enquanto Sonoko exprime uma certa ingenuidade e vulnerabilidade. Nesse contexto, o que justifica a subversão da ideia de “criação submissa à criadora” é, paradoxalmente, o fato de Mitsuko só existir no filme enquanto criação idealizada de Sonoko (o rosto ideal da pintura), reflexo de seus desejos e, principalmente, por se tornar sua própria paixão: assim como os sentimentos de Sonoko a aprisionam, Mitsuko – a nível deles – também possui um domínio definitivo sobre sua amante. Isso é o que vai pautar toda a experiência e maneira com a qual Sonoko encara o relacionamento, no sentido de sua devoção (deusificação) e submissão à amada.

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Assim, pode-se discorrer também sobre a atmosfera desatinada do filme. Quanto menos noção de espaço, de ambiente, de contexto – ou seja, quanto maior a claustrofobia, a asfixia, a supremacia dos corpos emocionados e do âmbito privado sobre o âmbito público – menor é a capacidade dos personagens de discernir sobre o caráter e as intenções uns dos outros. Sonoko, a única voz que podemos realmente ouvir (enquanto narradora), atinge um estado tormentoso de receio e angústia, constantemente questionando a índole de Mitsuko. Tudo se acentua com a entrada de outros dois personagens no relacionamento (Watanuki – pretendente de Mitsuko – e Kotaro – marido de Sonoko -, formando um quadrado amoroso), o que deixa todos cada vez mais espremidos no quadro lotado de sentimentos que se entrecruzam e se mesclam com intenções secretas (das mais amáveis às mais perversas), complexificando o relacionamento e encaminhando-o ao seu fim trágico. Nesse sentido, o exagero melodramático que aqui existe pode tanto marcar a intensidade do amor, do desejo e da paixão – dos sentimentos no geral -, como tornar uma mentira ainda mais mentirosa, encenada.

O clima constante de dúvida e desconfiança não se limita ao universo enclausurado do filme, excede e atinge a experiência do próprio espectador: nem em Sonoko – por narrar movida e possuída pelos sentimentos, inseguranças e ideias próprias sobre cada uma das figuras – devemos confiar. Sonoko é realmente ingênua e Mitsuko manipuladora? Como podemos garantir que, enquanto narra, Sonoko, que também se mostra perversa em vários momentos do filme, não deturpa ou omite fatos? Devemos confiar nas imagens e no que é exibido nelas?

Masumura, pactuado com Sonoko e, portanto, movido e movendo o filme pela paixão e por tudo que ela magnetiza, não nos dá respostas. Ao real detentor da linguagem aqui vigente não interessa o valor crível da imagem e sim seu potencial expressivo: amplifica a narrativa à expressão fílmica dos sentimentos, desejos, ideias, paixões. Temos aqui a estética que emerge da vazão que tem a dúvida não-elucidada, da claustrofobia estimulante à propagação indomável dos sentimentos: a expressividade e a beleza dos corpos, gestos e rostos emocionados; até mesmo a poesia plástica nas cores, na caligrafia e nas estampas das correspondências trocadas pelas amantes.

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O final trágico conjecturado: em determinado momento, quando o relacionamento está configurado em um triângulo amoroso entre Sonoko, Mitsuko e Kotaro – emocionados e totalmente alheios à realidade -, todos os fatores externos (e internos) fazem do suicídio passional a única saída. Esperançosa de que enfim encontraria na morte um estado puro e eterno ao amor, Sonoko é surpreendida pela desilusão: a única que continua viva e cativa; a união das amantes não sublima. (Teria Mitsuko a enganado?)

Prenunciando o desfecho desde o início, Sonoko narra sua experiência, sobrecarregando no coração inquieto e no corpo cansado todo o acúmulo sentimental do filme; apaixonada por uma aparição profetizada por sua narração. Criadora do que ali alguma vez existiu ou não existiu, ela permanece tomada pelas incertezas e, sobretudo, enclausurada à sua paixão – Mitsuko, Mitsuko, Mitsuko… -, que agora é mais do que memória ou saudade: um fantasma sagrado que a assombra, quimérico e imenso nas imagens.

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A paixão segundo a morte

 

Por João Lucas Pedrosa

“As mãos são como feitas para a eloquência,
como se quisessem expressar nossos sentimentos.
Mas os pés não falam como as mãos, porque eles ancoram a vida”

Kazuo Ohno, Treino e(m) poema

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Por três vezes, a cantora-compositora Mitski e a diretora Zia Anger se uniram na feitura de videoclipes. Em abril de 2016, lançaram Your Best American Girl, o primeiro hit da nipo-estadunidense, com seus ecos simbólicos de retumbante ocupação feminina e asiática num nicho musical até então quase exclusivamente branco e masculino: o indie rock. Em 2019, se unem para os singles Geyser e Washing Machine Heart, de seu mais recente álbum “Be the Cowboy”. A conexão mais explícita entre os três é a presença das mãos da artista como canal sublimatório – em duas delas, de frustração romântico-sexual -, que acaba por ser o epicentro de uma intrincada articulação entre desencaixe sociocultural, construção psicosexual e vigor artístico. Pela similaridade temático-estética entre o primeiro e o último videoclipe da parceria – mas mais pelo bem da concisão textual -, vou me ater aos dois primeiros.

Your Best American Girl começa como uma publicidade antes do “ação”: Mitski olha para baixo usando o celular, vestida elegantemente em frente a um fundo infinito branco, varrido por um homem branco. Uma mulher branca entra para espirrar laquê em seu cabelo e retirá-la de sua introversão, e uma figurinista vem arrumar seu terno. Vem o contraplano: um rapaz branco, biótipo modelo, usando regata. Ele olha para a câmera e seu olhar é o “ação” para o plano de Mitski. Ela olha de volta, sorrindo, e um foco de luz se acende sobre seu rosto. A sua imagem é o resultado de uma manufatura, de camadas de produção que escondem sua forma bruta; a do rapaz é uma imagem dada, já pronta o bastante em seu despojamento. Os dois planos são frontais e se espelham ao mesmo tempo que embatem. Entre eles não se cria intimidade – não se faz proximidade, sequer contiguidade espacial, apenas oposição. Nesta “publicidade” o que os liga é o olhar do público, os verdadeiros olhares de volta. É uma simples abordagem de flerte, mas com uma barreira de olhar público entre as duas partes.

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A linguagem do clipe ganha, assim, uma abordagem sociológica que muito lembra o documentário de Shirley Clarke, Retrato de Jason (1967). Integralmente formado por planos frontais singulares (variando entre close/médio/americano) do malandro e performer de boate Jason Holliday, o filme observa-o contar suas histórias de vida, piadas e mentiras sob efeito crescente do álcool e de seu baseado. Clarke sabe do poder de envolvimento sociopático de Jason, e como ele aprendeu a encantar para distrair o coletivo do ódio que sente dele – e nele desferir uns golpes no processo -, e passa o filme tensionando sua capacidade de perniciosamente envolver o extracampo (novamente nós, o público). Por meios e motivações diferentes, mas assim como Jason, Mitski tenta vender-se. Ele se vende para sobreviver e se aproveitar do que/de quem fornece. Ela se vende pela simples validação aos olhos do homem do imaginário comum – os que ocupam a tela sem esforço, os que se impõem como norte das demais imagens.

Mas ela fracassa: um travelling out revela a entrada em plano de uma mulher branca, biótipo modelo e traje hippie no enquadramento do rapaz. Ela envolve seu pescoço com o braço e eles continuam olhando para Mitski, cujo movimento de câmera revela mais espaço branco, ressaltando seu alheamento. O contraplano não é mais uma promessa, mas um imperativo: veja, não seja parte. Veja, você não é parte. É uma imagem fora de alcance, sua entrada é proibida. O casal começa a se olhar e se acariciar, e a cantora olha para a mão com que acenava. O refrão quebra com o par branco se beijando ardentemente e a cantora o reproduzindo em sua própria mão, enquanto acaricia seu queixo e cabelo com a outra. Eis a primeira presença das mãos como projeção do outro: o braço se estende para fora e a palma da mão para dentro, numa falsa alteridade. Aqui, ela é medida paliativa de uma desesperadora carência. Não é a última vez que veremos este gesto.

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O beijo dos amantes brancos fica cada vez mais lascivo (língua na língua, língua no peito) e mais estilizado (surgem luzes coloridas, bolhas, um pirulito que alterna entre as duas bocas, um vento pelos cabelos da mulher, uma bandeira dos Estados Unidos). Um corte para o sorriso de Mitski e um tilt down mostra que está agora com um vestido dourado, tocando um solo de guitarra (a mão operando de outra forma o mesmo fim: a sublimação). Os movimentos paralelos (Mitski cantando/o casal se pegando) continuam e, enfim, um plano conjunto com a cantora, concretiza o movimento que a montagem prenunciava: Mitski no centro, olhando para nós enquanto canta, e os amantes ao fundo, como satélites e como fantasmas, assombrando sua performance e impedindo seu protagonismo livre. O carisma da guitarrista-vocalista se esvai, e um chicote sai do beijo publicitário para a guitarrista entregando seu instrumento a um membro da equipe e se retirando do estúdio (ocupado por uma equipe inteiramente branca) no decorrer da última nota da música.

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O desvelar metalinguístico é relativamente frequente – e um tanto hiper utilizado, apesar das variantes a cada vez – nos clipes de Mitski; o que não surpreende, pois a própria imagem é fonte de neuroses e obsessões nas letras de suas canções. Existe o muso romântico idealizado, inalcançavelmente superior – “Você é o único/Você é tudo que eu sempre quis”- e a sua existência falha, indesejada pela raiz – “A sua mãe não aprovaria o jeito que a minha mãe me criou”. O clipe de Zia Anger articula essa visão como sintoma de um centro vertiginosamente branco (equipe, elenco, fundo) de produção de imagens – um sintoma da branquitude. Mitski se retira, estabelecendo um primeiro gesto visual positivo em meio à sua poesia masoquista e auto-humilhante. Your Best American Girl é, afinal, uma canção de término: hesitante e auto-depreciativo, o eu-lírico da música escolhe a defesa insegura da forma como sua mãe a criou (“mas eu sim/eu acho que sim”), com o risco de ser também a justificativa para se odiar demais para ficar com aquele rapaz. Mitski surpreendeu-se quando o clipe ganhou interpretações políticas acerca de sua ocupação no nicho indie pop, mas é tanto involuntária quanto inevitável a política que jorra de sua trova suicida.

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A canção Geyser foi lançada com o videoclipe de Zia Anger em maio de 2018. Foi o primeiro single liberado do álbum “Be the Cowboy”, de pegada visivelmente mais pop que os álbuns anteriores. O desespero das repetições e circularidades típicas em Mitski combinam perfeitamente com as mesmas repetições dos hits pop chiclete, e agora misturam-se com sintetizadores e algumas melodias que parecem otimistas. Mas às repetições obsessivas, a compositora alia oscilações tonais (e talvez semitonais, mas não ousaria dizê-lo por ignorância das terminologias musicais) que fazem de suas canções não círculos, mas espirais – daí a vertigem de sua musicalidade. Nobody é provavelmente o mais notório exemplo do procedimento.

Na época de concepção da tour, a cantora se interessou pela dança japonesa butô, originada do pós-guerra. Apesar das inúmeras vertentes decorrentes de sua gênese, o estilo se inspirava na fraqueza do ser, e de seus efeitos potencializadores quando o corpo é tomado como significante opaco (e, portanto, de significado oculto, expandido) no ato de dançar. Nascia, assim, uma arte corporal da loucura, da senilidade, da dor, da doença (os corpos atrofiados dos envenenados pelo mercúrio nas águas japonesas influenciaram poses e movimentos nos anos 1960). O que nela teria interessado a Mitski foi o desenho de emoções caóticas retratadas por gestos precisos e repetitivos – princípios similares aos de sua composição -, e uma rígida coreografia inspirada no estilo foi incorporada a seus shows. Mas voltemos a Geyser.

Um caso extremo, a canção levou dez anos para ser lançada – ainda que se possa encontrá-la no YouTube cantada ao vivo em 2014, quatro anos antes do lançamento. É também uma canção de devoção: “Você é meu número um/você é quem eu quero/e eu recusei toda mão/que me acenou para vir.”. A estrofe é repetida mais duas vezes (com sutis mudanças lexicais), como uma oração. Segundo a artista, porém, a música não é dedicada a uma pessoa, mas à música, seu maior amor.

O clipe abre de um fade in do vermelho. Poderíamos limitar a cor ao simbólico (paixão, sangue, sedução, etc), mas perderíamos de vista a potência de sua vibração. Um impulso de vivacidade que, gradualmente, dá lugar a uma imagem dessaturada: Mitski sozinha num declive de terra, sob um céu nublado. Uma fusão destoante, estranha aos olhos. Ela está de cabelo preso e usa um traje monástico aberto sobre sua roupa. A atmosfera é despojada, quase sacra. O plano geral se aproxima da cantora angulando levemente para a direita, para então contorná-la pelo outro lado. Enquanto ela canta olhando para a câmera, quebrando a quarta parede, o mundo gira ao seu redor. Num gritante oposto a Your Best American Girl, Geyser é feito num dinâmico plano-sequência em amplo espaço aberto. Não mais uma zona psicosexual, mas um movimento existencial. Mitski está sozinha, mas jogada no mundo, na natureza não convidativa pelo bom tempo ou pelo verdejante, e a câmera dialoga com ela, com o redor e com o espaço entre os dois.

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Quando a câmera dá uma volta de 180º em seu entorno, vemos escombros no mar, algo similar às vigas de um píer (seriam as ruínas do estúdio? O declive de terra é curvo embaixo, como o fundo infinito, mas, por sua vez, tem um limite visível, palpável). Mitski vira uma mão para o céu e então para si – a falsa alteridade novamente – e segura-a com a outra para lhe cantar seu devoto louvor: You’re my number one/You’re the one I want. Para a mão a qual compõe, com a qual pratica sua religião. Sai de plano, deixando os escombros protagonizarem alguns segundos. Uma panorâmica para a esquerda revela uma extensa fileira das vigas e um proeminente aprofundamento do plano em camadas de presença, que são jogadas para fora de vista quando a câmera volta a centralizar Mitski e a terra úmida no fundo. Ela é cercada de vazio novamente. No primeiro capítulo de Transcendental Style in Cinema, Paul Schrader investiga as confluências da tradição zen na contenção estética de Yasujirô Ozu. O primeiro traço marcante é o princípio mu, referente à negação, ao vácuo. “A folha branca de papel é percebida apenas como papel, e papel permanece. Apenas preenchendo-o ele se torna vazio”. A ausência passa a operar como elemento positivo, pois é um qualitativo enfatizador da presença que ela cerca. Igualmente opera Geyser, e o vazio em volta da cantora reforça sua solidão, e acima de tudo sua existência.

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Mas Mitski é uma artista do Sagrado pelo fracasso no Profano, e sua arte depende também dos gritos de seu corpo. Ela olha para a câmera, sedutora, descobre o traje monástico do ombro, contrai o corpo em dor e sai correndo. O traje monástico cai sobre a terra, e mais à frente ela também. A câmera se torna lenta enquanto ela rola na lama, engatinha, para e respira. A câmera se afasta, volta a se aproximar e dá uma volta em seu eixo enquanto Mitski desesperadamente usa as mãos para cavar o chão, e grita enfiando a cabeça na terra. Travelling out com ela abaixada. Corte seco para o vermelho. O clipe termina.

Susan Sontag em “O artista como sofredor exemplar” discorre sobre o escritor como quem “descobre o uso do sofrimento na economia da arte”. Ela parte dos diários de Cesare Pavese, e da proeminência de suas frustrações amorosas na construção de um projeto estético ascético, encerrado com o suicídio do autor. O clipe de Mitski mostra um movimento similar. Já constituído e estabelecido o vigor artístico, as pulsões não se esvaem. Há uma contradição suicida em que a positividade de sua expressão depende da extrema negatividade. Um enfiar os dedos ferida adentro, infeccionando-a para que a dor ative os ápices metafísicos do corpo. A autodepreciação e a carência tornam-se veículos de expressão de uma inquebrantável vontade: a expressão da pulsão de morte vira o motivo de vida. Mitski torna-se o veículo de uma paixão ao mesmo tempo transitiva e intransitiva, moldada mas inata e, dentro de sua privação de pertencimento, um vórtice incontrolável de conexão com o público. Poderíamos chamar de Sagrado o infinito atingido pela vertigem do si? “Esses garotos todos parecem que estão na porra duma igreja”, disse uma vez o músico John Doe, atônito com a concentração do público da cantora. Eles estavam mesmo.

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“A atriz foi criada enfim”: Esther Kahn (2000) de Arnaud Desplechin

Por Natália Reis

 

“Porque o amador é tudo, e a coisa amada
é uma cortina
onde o vento do amador bate no alto da janela
aberta. O amador entra
por todas as janelas abertas. Ele bate, bate, bate.
O amador é um martelo que esmaga.
Que transforma a coisa amada.”

Herberto Helder

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Monstre sacré é uma dessas expressões francesas misteriosamente forjadas que exercem um tipo de fascínio curioso em quem as escuta pela primeira vez. Numa pesquisa rápida, o google nos oferece um relance do que pode vir a ser: “Uma figura pública marcante, excêntrica ou controversa.”, “alguém cujos talentos são muito superiores aos do homem comum.” ou ainda: “uma figura venerável ou popular que é considerada acima de críticas ou ataques apesar de excentricidade, controvérsia, etc.”, “um gigante naquilo que faz”.

Se existiu alguém cujas obra e vida poderiam ser lidas como o despertar de uma “monstruosidade sagrada” em todas as suas nuances, essa pessoa foi Sarah Bernhardt. Atriz de teatro francesa e ascendência judia, Bernhardt (nascida Marie Henriette Bernardt em 1844) conseguiu se manter até o fim dos seus dias sob o olhar atento de uma legião de fãs e admiradores. Entre a figura pública de destaque internacional e uma vida pessoal incandescente, a “Divina Sarah” da “voz dourada” transcendia as noções de atuação e de celebridade numa reinvenção constante da própria persona. Brilhou em papéis masculinos (Hamlet) e como personagens mais jovens (Joana d’Arc, aos 46 anos) ou trágicos (A dama das camélias), usava joias extravagantes, possuía uma relação entusiasmada com pistolas e mancebos, e dizem que dormia em um caixão apenas para se sentir mais próxima da morte iminente. Susan Sontag vai elencar o charme decadentista dos filmes de Sarah Bernhardt realizados no fim de sua carreira como manifestações legítimas do Camp e o crítico e poeta simbolista Arthur Symons dirá que a modernidade poderia ser tipificada por sua presença no palco.

Dentre as muitas citações atribuídas à atriz francesa, uma merece ser destacada aqui por servir bem como introdução a Esther Kahn, personagem inegavelmente moderna (e provavelmente de reverberações bernhardtianas)  do conto de Symons de mesmo nome publicado em 1905 e adaptado para o cinema por Arnaud Desplechin: “A arte dramática é essencialmente feminina. Pintar o rosto, esconder os verdadeiros sentimentos, tentar agradar e se esforçar para atrair a atenção – todos estes são defeitos pelos quais culpamos as mulheres e pelos quais se mostra grande indulgência.”. Longe de levantar qualquer tipo de bandeira feminista, Esther Kahn é uma parábola sobre a libertação de um desejo avassalador – por vezes tido como sintoma de um egoísmo feminino interior –  que age na transformação de um corpo desprovido de afetações em mulher e da mulher em atriz.

“ESTHER KAHN nasceu em uma dessas ruas escuras, mal cheirosas com estranhas esquinas que se encontram sobre as docas.”

Palavra por palavra, a introdução de Arthur Symons é repetida pelo narrador do filme de Desplechin ao passo em que nos é apresentada uma visão geral da infância e do universo primordial da protagonista. Esther é uma criança incomum, judia, filha de alfaiates pobres e residente de uma região obscura da Londres do século XIX. Tem medo de sair de casa porque a paisagem exterior é assustadoramente tomada por casas decrépitas, chaminés e janelas lacradas. Observa a família, mas não se sente parte dela. Enquanto as duas irmãs e o irmão se misturam naturalmente aos demais – pai (László Szabó), mãe (Frances Barber), avó (Hilary Sesta) –, durante o jantar Esther, exibindo um semblante quase estúpido, observa à distância os gestos que lhe parecem tão deslocados da realidade que merecem ser imitados. “Não repare nela”, diz a mãe em determinado momento; “ela não é uma criança humana, ela é um macaco; ela está se agarrando atrás de uma alma, como eles fazem. Parecem pequenos homens, mas sabem que não são homens, e tentam ser; é por isso que nos imitam”.

No desenvolvimento do longa, o diretor francês afirma ter se guiado unicamente por L’Enfant sauvage de François Truffaut, filme que narra a trajetória de uma criança encontrada na selva, incapaz de estabelecer uma forma de comunicação com a civilização. Diferente do garoto selvagem de Truffaut, Esther Kahn não foi destituída de contato humano, nem abandonada, mas não possui qualquer tipo de vínculo com os indivíduos que a cercam diariamente, muito menos com a vida que parece passar por ela sem deixar marcas. O único sentimento que a acompanha até a juventude –  quando passa a ser interpretada por Summer Phoenix (irmã de River e Joaquin) – é uma raiva imanente que se manifesta a cada rompante. Quando questionada pelas irmãs sobre suas expectativas para o futuro, não consegue pensar em nada além de: “ser vingada”. Phoenix encarna com vigor a passividade e letargia de Kahn de modo a tornar visivelmente incômoda a maneira como se esforça e se debate com as palavras (num tipo de performance truncada que se confunde entre os esforços da atriz e da personagem), tudo isso resvalando o furor e a confusão de quem não compreende seu lugar no mundo e se recusa a aceitar o que lhe é oferecido. Essa configuração só poderá ser revertida diante de um maravilhamento legítimo, que tomará de assalto todas as suas convicções: o teatro.

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A primeira vez que Esther Kahn demonstra excitação é justamente quando vai assistir a uma peça com seus irmãos (Claudia Solti, Berna Raif e Akbar Kurtha) e um pretendente pelo qual não possui nenhum apreço (Paul Regan): avança desmedidamente pela multidão para alcançar o guichê, os olhos sempre vidrados no palco e um discurso inflamado sobre o que acredita se tratar de uma boa atuação na volta para casa. A partir daí, presenciamos uma fagulha de desejo queimar na protagonista até então imobilizada por uma vida familiar – e proletária –   insatisfatória, e é essa a direção da arte indicada pelo filme: algo muito próximo de um labor, naturalmente capaz de provocar mudanças e suscitar um sentido de pertencimento até então inalcançável, inerte. Esther resolve se arriscar como atriz e comunica aos pais a decisão, sob protestos de que dessa forma não poderá ajudar financeiramente em casa. Retomando a distância que os envolve como o grupo de estranhos que sempre foram, um contrato é firmado e a jovem promete reembolsá-los pela mão de obra perdida nos trabalhos de alfaiataria e pelos gastos em sua criação até o momento. Os laços já escassos são desfeitos e, por fim, ao quitar sua dívida, Esther Kahn deixa o lar – que nunca de fato fora um lar – para se dedicar ao teatro.

É importante ressaltar que Desplechin preferiu de certa forma mascarar todos os momentos de interpretação de Esther sobre o palco. Fora as aulas que toma com o novo amigo, o ator – também judeu – Nathan Quellen (interpretado por Iam Holm), as demais cenas em que ela atua diante de uma plateia não possuem som além da narração que constata e descreve seu estado de espírito, os movimentos são acelerados, combinados com uma mecanicidade de Esther/Phoenix que só vêm a confirmar a própria crença da protagonista de que a atuação é um trabalho que deve ser executado como o prolongamento de um gesto resguardado nas estruturas ocultas do corpo.

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Apesar de ascender cada vez mais entre papéis importantes e o reconhecimento do público, em algum ponto do percurso as coisas passam a não bastar mais para Kahn. Novamente o vazio conhecido roça seu pescoço e sussurra “e agora?”.  A resposta ao aborrecimento vem de seu mentor, Nathan, que num tom paternal explica que o que lhe falta é amor. Ou sofrer por amor. “Você nunca sentiu algo pior do que um corte no dedo”, diz. Como há de compreender a vastidão dos sentimentos que mimetiza? A jovem atriz decide então eleger um pretendente à altura de uma investida que deve antes de tudo agir como energia renovadora. Nesse momento somos apresentados a Philip Haygarth (Fabrice Desplechin), crítico de teatro e autor de algumas peças. Esther o espia por trás da cortina e passa a dedicar-lhe um amor sorrateiro.

Hedda Gabler, personagem da peça de 1890 de Ibsen, é uma mulher intrigante que se vê de repente presa num casamento tedioso e tentada por uma antiga paixão. O fim trágico que a aguarda é resultado da busca desesperada pelo calor que já a consumiu uma vez, mas que agora só é capaz de anunciar sua presença abrandada nas intrigas e jogos cruéis que promove para se distrair. Há quem consiga dizer, inescrupulosamente, que teria sido “traída pelo próprio desejo”, entre outros clichês que não alcançam em nada a magnitude de seus atos finais, mas é possível ainda compreendê-la dentro de um longo histórico de mulheres que preferem a morte à não-existência. Hedda Gabler se avizinhará de Esther Kahn em dois momentos: primeiro, quando o casal Haygarth-Kahn passa por uma fase cálida –  Ele se faz seu tutor, fala das artes e de coisas maiores da vida; ela, um tipo de aprendiz fiel, corta o cabelo como sugerido pelo parceiro e lhe presenteia com um livro contendo a peça de Ibsen (uma cópia em norueguês, incompreensível para ambos infelizmente). A segunda vez que Gabler dá as caras é na forma da oferta para o papel principal que Esther receberá.

Noite de estreia, a jovem atriz descobre há pouco que o homem amado está vivendo um romance com uma italiana vulgar (e incomunicável, pois não fala outra língua além de um “dialeto provinciano”) de nome Sylvia (Emmanuelle Devos). Da coxia, observa os consortes chegarem para o espetáculo enquanto é arrebatada por um sentimento desconhecido até aquele instante. O que se sucede nos próximos minutos é a colisão das forças que nos foram negadas em todo o filme por um ritmo comedido, que se destinou a preservar a apatia da protagonista e o modo oblíquo com que observava o mundo. Mas aqui as coisas se agitam e se tornam violentamente vivas: Esther se recusa a entrar em cena, sofre com feridas de automutilação enquanto os demais atores e trabalhadores do teatro orbitam a atriz como um astro irresistível e destruidor. Cacos de vidro mastigados, cortes na língua, sangue, gritos e mais choro, ninguém consegue convencê-la a desempenhar seu papel. A volatilidade chega à superfície enfim, e dá lugar a uma nova estrela nascida do caos. Seu corpo é empurrado para o palco e, na luminosidade amarelada das lâmpadas de gás, faz aquilo que lhe cabe tão bem: atua brilhantemente. No intervalo, um bilhete elogioso do traidor: “Me devolva mil vezes o que te dei” e um pedido para encontrá-la. Mas já estava feito:

“A nota tinha sido tocada, ela tinha respondido a ela, como respondia a cada sugestão, sem falhas; ela sabia que poderia repetir a nota, sempre que quisesse, agora que a havia encontrado… Ela poderia retomar seu amante, ou nunca mais vê-lo, isso não faria diferença.”

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Mostra de Tiradentes: Eu, Empresa

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Por Chico Torres

Em Eu, Empresa temos a exposição da uberização da vida, dentro do contexto brasileiro, através de uma abordagem irônica e tragicômica de uma busca de sucesso através do empreendedorismo dentro do mercado dos youtubers. Realizado como ficção, mas repleto de aspectos documentais, o filme possui, ainda que de maneira tímida, uma força denunciadora desse novo sistema de trabalho onde se estabelece a ideia de estrelato e riqueza pela simples exposição do eu, de um eu que se apresenta como conteúdo e viraliza. Uma abordagem atual e que também toca, de modo pertinente, em questões de saúde mental e alienação.

Joder surge como uma caricatura desses indivíduos de classe média que, diante do esvaziamento crescente das possibilidades de perspectivas, mergulha em uma busca alienada de autorrealização através da internet. Uma busca imediatista e que, para o personagem, se justifica em um tipo de exposição do seu fracasso. O conteúdo, portanto, é justamente a sua não realização, o seu não sucesso, uma autoindulgência que denota já de imediato um tom irônico e que vai se obscurecendo ao longo do filme, com diversas cenas que provocam o nosso riso constrangido.

 Como todos que estão ao seu redor, enquanto o sucesso não vem, Joder passa a improvisar para sobreviver. É nesse sentido que o filme ganha aspectos documentais e esboça uma nova potência narrativa, mas são momentos muito pontuais e logo abandonados, como a sua conversa com os entregadores do ifood. Todo o processo de busca do personagem orbita entre uma ideia de fracasso e um desejo irrefreável de sucesso, desejo que pode ser lido como sintomatização de um tipo de cultura que recusa os modos tradicionais de emprego e se deslumbra pelo coaching e empreendedorismo pessoal como soluções instantâneas de seus problemas. Esse processo de alienação é evidenciado na exagerada e justificável personalidade ingênua e depressiva de Joder. Ele realmente acredita naquele sistema e sofre por não ter êxito, mas todo o seu esforço parece surgir de modo sintomático porque se dá na repetição de um ciclo psíquico em que o fracasso o persegue implacavelmente e, justamente por isso, o seu desespero pelo sucesso.

A estética de Eu, empresa é interessante à medida que empobrece, com sua fotografia opaca e visualmente amadora, esse ambiente que está entorpecido pela imagem. A fotografia do filme responde àquilo que quer criticar e se sustenta de modo pertinente dentro dessas imagens empobrecidas e despretensiosas. A atuação de Marcus Curvelo impressiona não só por seu carisma, mas também por seus momentos infantis e bizarros. Um personagem complexo que representa um tipo de personalidade cada vez mais presente em um país imbecilizado pela ilusão de que o sucesso e a riqueza dependem pura e simplesmente de uma vida transformada em conteúdo.

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Mostra de Tiradentes: O Cerco

o cerco

Por Chico Torres

Um filme que é concebido durante o processo de sua feitura precisa saber dos riscos que corre e da natureza diversa desses riscos. Ao ver o debate com os realizadores de O cerco, fiquei com a impressão de que o filme possui uma ótima justificativa, mas que funciona apenas de maneira intelectual e extra-fílmica. Como acontece com boa parte da arte contemporânea que depende da legenda e que por isso mesmo se apresenta articulado com um conceito prévio, fui levado a esse lugar de que o filme não possui em si a força daquelas argumentações apresentadas durante o debate, ou que pelo menos não foi construído de uma maneira que me convencesse particularmente.

A ideia de um “tempo quântico”, como foi indicado por um dos realizadores, é bastante promissora. O que se tem é passado, presente e futuro interagindo dentro de um edifício em ruína, centrado em uma personagem feminina que convive com todas essas camadas materializadas através de outros personagens. Alegoricamente, a casa serve como uma espécie de núcleo de tensão para tratar de uma questão política recorrente no Brasil: a ditadura militar e suas implicações no presente e no futuro.

A partir disso, identifico dois problemas que me parecem fundamentais sobre a diferença entre aquilo que foi conceituado pelo filme e a sua realização. O primeiro problema é que todo o arcabouço conceitual da obra parece funcionar de modo circular, o que faz com que aquele discurso se esgote muito rapidamente. Ou seja, não nos são apresentadas camadas, desdobramentos.  Pelo contrário, parece que tudo flutua dentro dessa ideia primária e que nada se desenvolve através dela. O segundo problema relaciono com o modo improvisado e documental no qual o filme foi realizado. Essa intenção, ainda que nos aproxime da protagonista e dos adolescentes do filme, acaba, por outro lado, esvaziando o pretenso valor simbólico atribuído a eles e que tenta ser transmitido através da estranheza do filme (sua montagem, seus planos e sua fotografia se esforçam nesse sentido). A construção dos planos, com a maioria das cenas construídas fragmentariamente e dentro de ambientes fechados, criam um tipo de contraste estranho entre personagens quase sempre simples e reais, com uma ambientação fantasmagórica e imprecisa.

A sensação que se fica é que o filme procura fugir daquilo que quer dizer, que é o seu discurso político que articula acontecimentos passados com os vividos na atualidade. Mas essa fuga, ainda que tenha seus méritos formais, parece, sobretudo, um artifício para esconder ainda mais o modo improvisado e dispersivo de sua construção. Desse modo, penso que O cerco não consegue se realizar sob as ideias que foram “achadas” por seus realizadores no processo do filme, nos restando a sua bela fotografia e bons momentos de atuação de todos os personagens, em uma entrega sincera e livre em um filme que parece estar perdido tal qual a protagonista que orbita em temporalidades indefinidas.

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Mostra de Tiradentes: A Mesma Parte de Um Homem (Ana Johann)

a mesma parte de um homem

Por Chico Torres

Toda a lógica de A mesma parte de um homem se sustenta em uma ideia de transição. Transição do desejo, do corpo, do medo. Tudo parece fluir dentro dessa concepção de que, através de acontecimentos traumáticos, mudanças se instauram e transformam toda a realidade das personagens, principalmente da protagonista Renata (Clarissa Kiste). Uma mulher retraída dentro de um ambiente rural e marcado pela violência, se descobre possuidora de desejo, de voz, de vontade, ainda que tudo isso se dê através da presença de outro homem.

Em seu primeiro ato, temos uma atmosfera ora explícita, ora sutil de medo, abuso sexual e violência doméstica. O ambiente familiar é marcado por uma presença masculina maléfica, na figura de um pai que domina tudo o que está ao seu redor. Por outro lado, o medo que existe em relação ao ambiente externo, presente obcessivamente em Renata e que paira por toda a primeira parte do longa, não é devidamente trabalhado ao ponto de embarcamos junto com ela em sua angústia.

Com a chegada de Lui (Irandir Silva) logo se percebe que esse medo do externo não será relevante para o desenvolvimento do filme, mas sim a relação daquelas mulheres com o estranho que logo ocupa, sem grandes complicações, o lugar de esposo e pai.  A aposta no estranhamento e na falta de respostas muito claras sobre diversos acontecimentos ao longo do filme, conferem originalidade à obra, já que nos escapa certos psicologismos previsíveis. Não se descobre exatamente quem é aquele homem que “chega”, do mesmo modo que mãe e filha não revelam em nenhum momento o segredo que guardam de Lui. O longa está cheio desses elementos que provocam dúvida quanto ao caráter e motivações de todos os personagens, mas que são bem aproveitados à medida que povoam todo o filme, criando uma atmosfera bizarra e de abertura interpretativa.

 Essa quebra de expectativas nos ajuda a focarmos no que parece ser o objetivo central da obra: o modo como ocorre a transição de Renata em relação ao seu desejo, à sua vontade. As cenas de sexo são filmadas magistralmente e marcam o quanto a questão da descoberta sexual é um ponto fundamental. É assim que se estabelece a transição. Renata passa a descobrir o prazer e a se impor diante do novo esposo, dando vazão aos seus desejos e vontades. A fotografia e o corpo da personagem vão gradualmente se transformando: ela começa o filme apagada, curvada e com medo, mas termina iluminada, sentindo as novas possibilidades atingidas através do afeto e do sexo, ainda que timidamente. Um filme que, apesar de estar pincelado por alguns elementos pouco convincentes, é bem-sucedido ao desenvolver, através do bom uso da fotografia e do trabalho dos atores, uma ideia sutil de transição que revela descobertas pessoais há muito reprimidas.

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Mostra de Tiradentes: Kevin (Joana Oliveira)

Kevin_joana oliveira

Por Chico Torres

Kevin, de Joana Oliveira, me remete ao cinema de Hong Sang-Soo, sobretudo ao The woman who ran, seu filme mais recente. A premissa é semelhante: uma mulher que, longe de casa e do ambiente familiar, dialoga com algumas amigas sobre diversos assuntos cotidianos. Por trás dessa banalidade aparente, o filme expõe algumas questões acerca de dilemas femininos há muito conhecidos, sem nunca perder de vista a subjetividade das personagens, o que imprime originalidade e verdade à obra.

Se The woman who ran é uma ficção com ares documentais, Kevin é um documentário constituído por diversos aspectos ficcionais, expondo com muita potência esse limite tênue entre gêneros. Conhecendo alguns detalhes da produção do filme, se descobre, por exemplo, que ele foi feito em duas etapas, com duas viagens à Uganda. O filme passa a sensação de que Joana fez uma viagem relativamente curta e na ausência de seu esposo, Gustavo Fioravante, que aparece apenas no começo do filme, ainda no Brasil. Mas Gustavo, além de personagem, fez também o desenho de som do longa, estando em África nas duas ocasiões. Esse é um exemplo entre tantos, mas serve para mostrar o quanto Kevin é construído dentro de um controle e rigidez que se afasta, em alguma medida, da imprevisibilidade do documentário, daquela tentativa de capturar o real em detrimento do bom acabamento e do resultado esperado. Pelo contrário, o filme não possui quase nenhuma ranhura ou entrave em sua construção, mas nem por isso perde a naturalidade e a sinceridade que se dão através do encontro entre as duas personagens.

O longa carrega o nome de Kevin, mas sua protagonista é Joana. Somos apresentados primeiro aos seus dilemas e é sua jornada pessoal que sustenta todo o filme, além de olharmos Kevin a partir do ponto de vista da diretora/personagem. Entretanto, como no filme de Hong Sang-Soo, as questões emocionais de Joana não só vão sendo reveladas de maneira sutil através de seu convívio com Kevin, mas são atravessadas por sua presença, sua vida, suas falas.  E aquilo que Kevin expõe à sua amiga, inevitavelmente, acaba por se relacionar com questões sobre interculturalidade e interracialidade. Desse modo, Kevin cresce em protagonismo à medida que vamos conhecendo sua realidade de mulher negra, mãe solo e africana com vivência na Alemanha.

Essas duas instâncias, a subjetiva e a política, nunca se conflitam porque não se separam, funcionando sempre através dos diálogos e do cotidiano dividido entre as personagens. Mais do que uma história de uma amizade, Kevin é sobre a história de duas mulheres que vivem realidades completamente díspares, mas que através do afeto se reconhecem, se somam e se acolhem dentro de seus dilemas, como na cena em que ambas caminham sobre os trilhos do trem e percebem que de mãos dadas conseguem um melhor equilíbrio para seguir o caminho.

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Mostra de Tiradentes: Rosa Tirana (Rogério Sagui)

açucena

Por Chico Torres

O sertão alegórico e fantástico é uma das fixações do cinema brasileiro. A ideia de que, em detrimento de todo o vazio, morte e desamparo, há espaço para a cor, para a beleza, para o encantamento, repetindo a velha história de que o sofrimento, ainda que endureça, é o que conduz o caráter de um povo que é essencialmente bom e criativo. O desejo de fantasiar, nesse sentido, parece estar sempre ligado ao clichê da esperança: esperança da chuva, esperança da comida, esperança do trabalho. Dedicar-se a esse tipo de fabulação e, provavelmente, cair no erro de produzir formas fetichizadas ou romantizadas do Nordeste e do sertão, há muito tempo se tornou um lugar comum do cinema e sobretudo da televisão, criando um tipo de produção específica que pode ser sintetizada, em seu estágio de máxima realização, com a minissérie Hoje é dia de Maria.

Ainda que o longa se utilize de aspectos mais contemplativos desde o seu início, quase que equilibrado com a sua tentativa de dar uma jornada à protagonista, o que se tem é a utilização da contemplação e também da fantasia de modo vazio e meramente pictórico. Todos os personagens do filme estão esvaziados de humanidade, de uma história particular, e o que realmente se destaca é a beleza dos quadros e algumas incursões não usuais da fotografia. Mas não se ultrapassa essa fronteira. Fica-se com a impressão de que o filme existe para a fotografia e para a direção de arte, não o contrário.

Rosa Tirana parece ser mais uma dessas obras que reitera a ideia de um sertão encantado sem a devida responsabilidade quanto às implicações que esse tipo de projeto pode suscitar. Essa responsabilidade não existe por alguma necessidade de estabelecer um papel político para a arte, mas é importante quando se quer falar de um lugar, de um povo, de uma cultura específica, de algo que tem o real como referência e que agora está sendo retratado por um grupo de pessoas que geralmente não possuem relação alguma com aquela realidade. Pode parecer bobagem, mas é um tanto chocante ver, por exemplo, a personagem de Rosa, que vive em extrema pobreza, possuir uma bolsa de couro nova e impecavelmente trabalhada. Apesar de sair um pouco fora da curva por seus aspectos de fantasia e contemplação, Rosa Tirana entra no rol dos filmes que colore e fantasia o sertão sem olhar devidamente para as pessoas que habitam aquele mundo.

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Mostra de Tiradentes: Rodson ou (onde o sol não tem dó)

on the rocks

Por Chico Torres

Rodson ou (onde o sol não tem dó) procura se estabelecer dentro de uma rebeldia cyberpunk tropical, explorando, através de excessivos efeitos visuais e sonoros, ideias de desbunde, ironia e revolta. Sustentado pela estética de um cinema marginal, o longa narra a odisseia futurista de Rodson, um jovem que sai pelos confins de um Brasil dos anos 3000 em busca de sua realização pessoal.

Ainda que parta de uma ideia clara de desconstrução radical, tendo no lisérgico e no lixo o princípio de seus inúmeros efeitos visuais e sonoros, Rodson possui uma narrativa tradicional: a da jornada do herói. É perceptível a tentativa de sair desse espectro narrativo na inserção de pequenas rupturas ou interrupções estabelecidas através de esquetes, mas a sua estrutura básica é linear e simplista. Outro dado que faz o longa perder em potência como obra disruptiva, é a constante necessidade, como se diz em literatura, não de mostrar, mas dizer. Ainda que isso revele a existência efervescente de um grupo, por outro lado revela exatamente o desejo de se afirmar como coletivo e de levantar explicitamente a bandeira de seus princípios. Essa necessidade leva a uma romantização que acaba se contrapondo negativamente às possibilidades niilistas da obra, o que a poderiam levar para um nível maior de abertura. Por fim, há também um dizer que corresponde às agendas políticas atuais que, mesmo sendo tratadas com alguma ironia, servem como uma espécie de domesticação do filme, o tornando uma obra quase complacente.

Mesmo flutuando entre essas duas esferas contrárias, Rodson é interessante pela extrema criatividade e variedade de seus recursos. Diante dessa pulsante diversidade sonora e visual, percebe-se um intenso desejo de criar, de dar vazão a algo que estava represado (e, de alguma forma, é esse o desejo do próprio personagem: se realizar em seus impulsos criativos). Tudo isso, aliado à sua ótima noção de ritmo, fazem do longa uma experiência que nos leva a pensar sobre as inúmeras possibilidades de um cinema que se desenvolve através de uma força coletiva que, retomando propósitos vanguardistas, encontra na escassez a fonte primária de sua criatividade.

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Mostra de Tiradentes: Açucena (Isaac Donato)

açucena

Por Chico Torres

Um filme sobre uma outra percepção do tempo. Um tempo dilatado, que vai de encontro ao tempo cronológico porque é um tempo de espera, de contemplação, de suspensão. Açucena coloca o espectador em uma ambientação que, pouco a pouco, desvela os mistérios que cercam a personagem mítica apenas de modo parcial, pois a revelação não está disponível nem para os que convivem intimamente com aquela presença difusa.

A atmosfera infantil, onde flutua uma casa rosa repleta de bonecas, é completada pelo trabalho sério e zeloso daqueles que fazem acontecer o aniversário, compreendido na acepção plena de um ritual que deve ser cuidadosamente preparado. Açucena, eternamente com 7 anos de idade, habita não apenas Mãe Guiomar, mas é como um ser onipresente dentro daquela comunidade que de modo extremamente delicado cuida dos preparativos da festa: pequenas roupas que são construídas, o reparo das bonecas, o portão e a casa pintados, os detalhes da decoração, tudo gira em torno desses afazeres, como se cada gesto devotasse à Açucena aquilo que devidamente lhe cabe: respeito, sacrifício, entrega.

Percebe-se que o processo de construção é tão importante quanto a realização do aniversário em si. Desse modo, o ritmo do filme é lento e não há o compromisso tranquilizador do ato de revelar (ainda que possa ser compreendido como um documentário de suspense), mas sim o de se incorporar àquela temporalidade. A fotografia procura acompanhar esse tempo de latência e mistério, nunca enquadrando de modo resolutivo e convencional, mantendo-se em distância respeitosa para que aquele microcosmo exista sem interferências externas. A paciência e o excesso cenográfico de toda aquela preparação são incorporados aos planos do filme, fazendo de Açucena um caleidoscópio inundado por várias tonalidades de rosa.

O fundamento é o tempo que permite uma dedicação séria à realização do brincar, da alegria, as pedras de toque das religiões de matrizes africanas. O existir dentro dessa realidade onírica da infância, na qual o adulto deve devoção, cuidado e afeto, se reforça pelo caráter mítico e ancestral. Açucena surge como a infância eternizada que se espalha beneficamente pela comunidade, reforçando experiências integradoras através de gestos de cuidado em nome de uma celebração.

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Mostra de Tiradentes: Subterrânea (Pedro Urano)

subterraneaPor Chico Torres

 

Sou a pedra que caiu do céu
E virou peça de museu
Que ardeu em grande fogaréu
Mas que sobreviveu

(Trecho de Bendegó, canção de Renato Frazão e Cláudia Castelo Branco)

A pedra falava
Ao longo das eras
Sempre baixinho
Ninguém suspeitava
Que no meio da pedra
Tinha um caminho

(Trecho de Pedra de iniciação, canção de Thiago Amud)

 

Subterrânea surge como alegoria para denunciar diversos acontecimentos ocorridos no estado do Rio de Janeiro que fazem parte tanto de sua fundação quanto de seu aspecto sociopolítico atual. Todos esses acontecimentos, expostos através de uma série de metáforas, falam, em síntese, sobre o desequilíbrio entre homem e natureza, ou sobre o desequilíbrio do homem consigo mesmo. A obra parte da premissa de uma natureza mineral que, ao ser explorada, enterrada ou destruída por um ideal de progresso, gera a própria ruína humana.

Já de imediato, percebemos um cinema de gênero. Somos levados pelo estudante Leo (Negro Leo) e por sua tia e professora de geologia Stein (Susana Stein) em uma aventura exploratória que procura desvendar os símbolos gravados em pedras encontradas aos arredores da região do extinto Morro do Castelo. Em paralelo a esse aspecto fabulesco, Subterrânea também se desenvolve como documentário, o que reforça seu tom de ironia e denúncia. Todas as buscas de Leo e Stein caem nas mesmas conclusões: o homem é o destruidor de si mesmo porque não consegue se enxergar como parte da própria natureza. Ao destruir, implodir, demolir, o ser humano alimenta o motor que acelera a sua própria destruição, já que esse passado latente, mais cedo ou mais tarde, vem cobrar a dívida.

O filme passeia por diversos temas que exploram a ideia de que essa natureza subterrânea e mineral pode nos indicar um caminho (ou pelo menos entender que o caminho traçado até agora está errado), à medida em que acompanhamos o seu processo de destruição. Vemos como o meteorito de Bendegó “sobreviveu” ao incêndio do Museu Nacional: a sua resistência e presença nos servem como marco simbólico de um apagamento não apenas material, mas de todo um registro cultural e científico que viraram pó. Vemos, ao acompanhar parte do processo da demolição do Morro do Castelo e a lenda do seu tesouro, a história atual do Rio de Janeiro, pela relação entre religião e poder, seja através dos Jesuítas no passado colonial, ou do poder dos neopentecostais no presente capitalista. O fantasma de Lima Barreto parece ser o guia para o verdadeiro caminho por entre esse passado apagado, mas que ainda resiste sob os escombros da história. Esse aspecto fantasmagórico e sombrio se reforça, ainda que de maneira menos significativa em relação ao tema que norteia o filme, com a presença da estudante Clara (Clara Choveaux), personagem que simboliza os casos de suicídio acontecidos na UERJ. Uma denúncia sobre o processo de desmonte das pesquisas nas universidades federais e suas consequências aterradoras.

O arrasamento de tudo como processo de desenvolvimento. Maceió, capital de Alagoas, serve como o exemplo mais atual dessa constatação: a Brasken, empresa de exploração do sal-gema, foi responsável pela destruição de bairros inteiros a partir ano de 2019, desabrigando centenas de famílias de suas casas devido à exploração inadvertida do minério. Nascem cidades fantasmas de ações como essas. É assim que a natureza cobra, revelando que o avanço é também o prenúncio do fim. E, como é citado no início do filme por Leo, uma referência a Eduardo Viveros de Castro, quem paga primeiro com esse aniquilamento são os povos indígenas, os negros, os empobrecidos, todos eles são especialistas em fim de mundo, já que para eles o mundo acaba diversas vezes e sistematicamente. Mas a ruína está para todos que fazem parte desse jogo civilizatório em nome do progresso. E o que resta fazer? Ressuscitar os mortos, recontar a história e entender o caminho que está inscrito nas pedras.

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