A paixão segundo a morte

 

Por João Lucas Pedrosa

“As mãos são como feitas para a eloquência,
como se quisessem expressar nossos sentimentos.
Mas os pés não falam como as mãos, porque eles ancoram a vida”

Kazuo Ohno, Treino e(m) poema

Imagem-1

Por três vezes, a cantora-compositora Mitski e a diretora Zia Anger se uniram na feitura de videoclipes. Em abril de 2016, lançaram Your Best American Girl, o primeiro hit da nipo-estadunidense, com seus ecos simbólicos de retumbante ocupação feminina e asiática num nicho musical até então quase exclusivamente branco e masculino: o indie rock. Em 2019, se unem para os singles Geyser e Washing Machine Heart, de seu mais recente álbum “Be the Cowboy”. A conexão mais explícita entre os três é a presença das mãos da artista como canal sublimatório – em duas delas, de frustração romântico-sexual -, que acaba por ser o epicentro de uma intrincada articulação entre desencaixe sociocultural, construção psicosexual e vigor artístico. Pela similaridade temático-estética entre o primeiro e o último videoclipe da parceria – mas mais pelo bem da concisão textual -, vou me ater aos dois primeiros.

Your Best American Girl começa como uma publicidade antes do “ação”: Mitski olha para baixo usando o celular, vestida elegantemente em frente a um fundo infinito branco, varrido por um homem branco. Uma mulher branca entra para espirrar laquê em seu cabelo e retirá-la de sua introversão, e uma figurinista vem arrumar seu terno. Vem o contraplano: um rapaz branco, biótipo modelo, usando regata. Ele olha para a câmera e seu olhar é o “ação” para o plano de Mitski. Ela olha de volta, sorrindo, e um foco de luz se acende sobre seu rosto. A sua imagem é o resultado de uma manufatura, de camadas de produção que escondem sua forma bruta; a do rapaz é uma imagem dada, já pronta o bastante em seu despojamento. Os dois planos são frontais e se espelham ao mesmo tempo que embatem. Entre eles não se cria intimidade – não se faz proximidade, sequer contiguidade espacial, apenas oposição. Nesta “publicidade” o que os liga é o olhar do público, os verdadeiros olhares de volta. É uma simples abordagem de flerte, mas com uma barreira de olhar público entre as duas partes.

Imagem-2

Imagem-3

A linguagem do clipe ganha, assim, uma abordagem sociológica que muito lembra o documentário de Shirley Clarke, Retrato de Jason (1967). Integralmente formado por planos frontais singulares (variando entre close/médio/americano) do malandro e performer de boate Jason Holliday, o filme observa-o contar suas histórias de vida, piadas e mentiras sob efeito crescente do álcool e de seu baseado. Clarke sabe do poder de envolvimento sociopático de Jason, e como ele aprendeu a encantar para distrair o coletivo do ódio que sente dele – e nele desferir uns golpes no processo -, e passa o filme tensionando sua capacidade de perniciosamente envolver o extracampo (novamente nós, o público). Por meios e motivações diferentes, mas assim como Jason, Mitski tenta vender-se. Ele se vende para sobreviver e se aproveitar do que/de quem fornece. Ela se vende pela simples validação aos olhos do homem do imaginário comum – os que ocupam a tela sem esforço, os que se impõem como norte das demais imagens.

Mas ela fracassa: um travelling out revela a entrada em plano de uma mulher branca, biótipo modelo e traje hippie no enquadramento do rapaz. Ela envolve seu pescoço com o braço e eles continuam olhando para Mitski, cujo movimento de câmera revela mais espaço branco, ressaltando seu alheamento. O contraplano não é mais uma promessa, mas um imperativo: veja, não seja parte. Veja, você não é parte. É uma imagem fora de alcance, sua entrada é proibida. O casal começa a se olhar e se acariciar, e a cantora olha para a mão com que acenava. O refrão quebra com o par branco se beijando ardentemente e a cantora o reproduzindo em sua própria mão, enquanto acaricia seu queixo e cabelo com a outra. Eis a primeira presença das mãos como projeção do outro: o braço se estende para fora e a palma da mão para dentro, numa falsa alteridade. Aqui, ela é medida paliativa de uma desesperadora carência. Não é a última vez que veremos este gesto.

Imagem-4

O beijo dos amantes brancos fica cada vez mais lascivo (língua na língua, língua no peito) e mais estilizado (surgem luzes coloridas, bolhas, um pirulito que alterna entre as duas bocas, um vento pelos cabelos da mulher, uma bandeira dos Estados Unidos). Um corte para o sorriso de Mitski e um tilt down mostra que está agora com um vestido dourado, tocando um solo de guitarra (a mão operando de outra forma o mesmo fim: a sublimação). Os movimentos paralelos (Mitski cantando/o casal se pegando) continuam e, enfim, um plano conjunto com a cantora, concretiza o movimento que a montagem prenunciava: Mitski no centro, olhando para nós enquanto canta, e os amantes ao fundo, como satélites e como fantasmas, assombrando sua performance e impedindo seu protagonismo livre. O carisma da guitarrista-vocalista se esvai, e um chicote sai do beijo publicitário para a guitarrista entregando seu instrumento a um membro da equipe e se retirando do estúdio (ocupado por uma equipe inteiramente branca) no decorrer da última nota da música.

Imagem-5

O desvelar metalinguístico é relativamente frequente – e um tanto hiper utilizado, apesar das variantes a cada vez – nos clipes de Mitski; o que não surpreende, pois a própria imagem é fonte de neuroses e obsessões nas letras de suas canções. Existe o muso romântico idealizado, inalcançavelmente superior – “Você é o único/Você é tudo que eu sempre quis”- e a sua existência falha, indesejada pela raiz – “A sua mãe não aprovaria o jeito que a minha mãe me criou”. O clipe de Zia Anger articula essa visão como sintoma de um centro vertiginosamente branco (equipe, elenco, fundo) de produção de imagens – um sintoma da branquitude. Mitski se retira, estabelecendo um primeiro gesto visual positivo em meio à sua poesia masoquista e auto-humilhante. Your Best American Girl é, afinal, uma canção de término: hesitante e auto-depreciativo, o eu-lírico da música escolhe a defesa insegura da forma como sua mãe a criou (“mas eu sim/eu acho que sim”), com o risco de ser também a justificativa para se odiar demais para ficar com aquele rapaz. Mitski surpreendeu-se quando o clipe ganhou interpretações políticas acerca de sua ocupação no nicho indie pop, mas é tanto involuntária quanto inevitável a política que jorra de sua trova suicida.

*********

A canção Geyser foi lançada com o videoclipe de Zia Anger em maio de 2018. Foi o primeiro single liberado do álbum “Be the Cowboy”, de pegada visivelmente mais pop que os álbuns anteriores. O desespero das repetições e circularidades típicas em Mitski combinam perfeitamente com as mesmas repetições dos hits pop chiclete, e agora misturam-se com sintetizadores e algumas melodias que parecem otimistas. Mas às repetições obsessivas, a compositora alia oscilações tonais (e talvez semitonais, mas não ousaria dizê-lo por ignorância das terminologias musicais) que fazem de suas canções não círculos, mas espirais – daí a vertigem de sua musicalidade. Nobody é provavelmente o mais notório exemplo do procedimento.

Na época de concepção da tour, a cantora se interessou pela dança japonesa butô, originada do pós-guerra. Apesar das inúmeras vertentes decorrentes de sua gênese, o estilo se inspirava na fraqueza do ser, e de seus efeitos potencializadores quando o corpo é tomado como significante opaco (e, portanto, de significado oculto, expandido) no ato de dançar. Nascia, assim, uma arte corporal da loucura, da senilidade, da dor, da doença (os corpos atrofiados dos envenenados pelo mercúrio nas águas japonesas influenciaram poses e movimentos nos anos 1960). O que nela teria interessado a Mitski foi o desenho de emoções caóticas retratadas por gestos precisos e repetitivos – princípios similares aos de sua composição -, e uma rígida coreografia inspirada no estilo foi incorporada a seus shows. Mas voltemos a Geyser.

Um caso extremo, a canção levou dez anos para ser lançada – ainda que se possa encontrá-la no YouTube cantada ao vivo em 2014, quatro anos antes do lançamento. É também uma canção de devoção: “Você é meu número um/você é quem eu quero/e eu recusei toda mão/que me acenou para vir.”. A estrofe é repetida mais duas vezes (com sutis mudanças lexicais), como uma oração. Segundo a artista, porém, a música não é dedicada a uma pessoa, mas à música, seu maior amor.

O clipe abre de um fade in do vermelho. Poderíamos limitar a cor ao simbólico (paixão, sangue, sedução, etc), mas perderíamos de vista a potência de sua vibração. Um impulso de vivacidade que, gradualmente, dá lugar a uma imagem dessaturada: Mitski sozinha num declive de terra, sob um céu nublado. Uma fusão destoante, estranha aos olhos. Ela está de cabelo preso e usa um traje monástico aberto sobre sua roupa. A atmosfera é despojada, quase sacra. O plano geral se aproxima da cantora angulando levemente para a direita, para então contorná-la pelo outro lado. Enquanto ela canta olhando para a câmera, quebrando a quarta parede, o mundo gira ao seu redor. Num gritante oposto a Your Best American Girl, Geyser é feito num dinâmico plano-sequência em amplo espaço aberto. Não mais uma zona psicosexual, mas um movimento existencial. Mitski está sozinha, mas jogada no mundo, na natureza não convidativa pelo bom tempo ou pelo verdejante, e a câmera dialoga com ela, com o redor e com o espaço entre os dois.

Imagem-6

Quando a câmera dá uma volta de 180º em seu entorno, vemos escombros no mar, algo similar às vigas de um píer (seriam as ruínas do estúdio? O declive de terra é curvo embaixo, como o fundo infinito, mas, por sua vez, tem um limite visível, palpável). Mitski vira uma mão para o céu e então para si – a falsa alteridade novamente – e segura-a com a outra para lhe cantar seu devoto louvor: You’re my number one/You’re the one I want. Para a mão a qual compõe, com a qual pratica sua religião. Sai de plano, deixando os escombros protagonizarem alguns segundos. Uma panorâmica para a esquerda revela uma extensa fileira das vigas e um proeminente aprofundamento do plano em camadas de presença, que são jogadas para fora de vista quando a câmera volta a centralizar Mitski e a terra úmida no fundo. Ela é cercada de vazio novamente. No primeiro capítulo de Transcendental Style in Cinema, Paul Schrader investiga as confluências da tradição zen na contenção estética de Yasujirô Ozu. O primeiro traço marcante é o princípio mu, referente à negação, ao vácuo. “A folha branca de papel é percebida apenas como papel, e papel permanece. Apenas preenchendo-o ele se torna vazio”. A ausência passa a operar como elemento positivo, pois é um qualitativo enfatizador da presença que ela cerca. Igualmente opera Geyser, e o vazio em volta da cantora reforça sua solidão, e acima de tudo sua existência.

Imagem-7

Mas Mitski é uma artista do Sagrado pelo fracasso no Profano, e sua arte depende também dos gritos de seu corpo. Ela olha para a câmera, sedutora, descobre o traje monástico do ombro, contrai o corpo em dor e sai correndo. O traje monástico cai sobre a terra, e mais à frente ela também. A câmera se torna lenta enquanto ela rola na lama, engatinha, para e respira. A câmera se afasta, volta a se aproximar e dá uma volta em seu eixo enquanto Mitski desesperadamente usa as mãos para cavar o chão, e grita enfiando a cabeça na terra. Travelling out com ela abaixada. Corte seco para o vermelho. O clipe termina.

Susan Sontag em “O artista como sofredor exemplar” discorre sobre o escritor como quem “descobre o uso do sofrimento na economia da arte”. Ela parte dos diários de Cesare Pavese, e da proeminência de suas frustrações amorosas na construção de um projeto estético ascético, encerrado com o suicídio do autor. O clipe de Mitski mostra um movimento similar. Já constituído e estabelecido o vigor artístico, as pulsões não se esvaem. Há uma contradição suicida em que a positividade de sua expressão depende da extrema negatividade. Um enfiar os dedos ferida adentro, infeccionando-a para que a dor ative os ápices metafísicos do corpo. A autodepreciação e a carência tornam-se veículos de expressão de uma inquebrantável vontade: a expressão da pulsão de morte vira o motivo de vida. Mitski torna-se o veículo de uma paixão ao mesmo tempo transitiva e intransitiva, moldada mas inata e, dentro de sua privação de pertencimento, um vórtice incontrolável de conexão com o público. Poderíamos chamar de Sagrado o infinito atingido pela vertigem do si? “Esses garotos todos parecem que estão na porra duma igreja”, disse uma vez o músico John Doe, atônito com a concentração do público da cantora. Eles estavam mesmo.

Imagem-8

FacebookTwitter