Enclausuramentos sentimentais, físicos e fílmicos e a paixão fantasma em “Manji” (1964)

Por Anita Gonçalves

“E, quando enfim comecei a temer que os nossos corações explodissem, senti-me de súbito firmemente apertada nos braços dele.

Gota a gota, gota a gota… que dizem eles? Gota a gota, gota a gota… Ah, já sei, Mitsuko, Mitsuko, Mitsuko…, chamam a pessoa que me é tão querida. Tokumitsu, Tokumitsu… Mitsuko, Mitsuko… Sem ao menos me dar conta disso, eu já tinha apanhado a caneta e escrito nos dedos da mão esquerda incontáveis Mitsukos, um a um, desde o polegar até o mindinho.”

(Voragem, Junichiro Tanizaki)

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Em Manji (1964) de Yasuzo Masumura – adaptação do romance de mesmo título (1931) de Junichiro Tanizaki (em português, traduzido como “Voragem”) – temos, como premissa, uma história de amor proibido entre duas mulheres. No centro de tudo, Sonoko, a narradora que conta sua história a sensei (um suposto escritor), e Mitsuko, por quem Sonoko se mostra devota e perdidamente apaixonada, não havendo palavras que de antemão a descrevam, apenas seus olhos e sua beleza hipnótica. Juntas, elas vivem um relacionamento íntimo e intenso que se torna cada vez mais enclausurado, complexo e tempestuoso devido a um emaranhado de fatores externos e, sobretudo, internos (e fílmicos) que influenciam, amplificam, acometem a relação e os sentimentos que a constituem. A partir do contexto claustrofóbico que ambienta o filme e reitera seu caráter trágico, estamos diante de uma situação progressiva de desconfiança incessante e ausência de discernimento, marcada pela prevalência e comando dos sentimentos, do espectro da paixão revelado nas imagens, nos corpos, gestos e expressões emocionados.

Tudo se inicia na escola de pintura para mulheres onde Sonoko estuda – mulher da elite, parece que a arte lhe serve mais como um passatempo, livramento do tédio e do seu próprio casamento, com o qual se mostra muito insatisfeita. É nesse contexto que o filme apresenta uma aula durante a qual as alunas desenham a Deusa Kannon (Deusa da Misericórdia) a partir de uma modelo-viva. Nessa circunstância, o corpo da modelo – do qual não se espera ser mais do que uma base à perscrutação, ao estudo – ao ser filmado por Masumura, consagrado nos planos, anuncia a dimensão do desejo e da reverência que paira sobre todo o filme e conduz a experiência da narradora. Nesse contexto, uma infidelidade estética no desenho de Sonoko cativa a atenção do professor, que nota nele um semblante distinto daquele que possui a modelo. Sonoko justifica-se ao professor: “Eu concebi meu rosto ideal (…) Era para mostrar a espiritualidade da Deusa da Misericórdia”. Ela havia desenhado, inconscientemente, quase como uma sina, Mitsuko Tokumitsu, também aluna da escola. Assim, o que marca esse prelúdio emocionado do encontro das duas personagens e determina, dali em diante, a dinâmica conturbada e intensa do relacionamento e a própria narrativa e experiência de Sonoko, são a primazia – desde o princípio – dos desejos, imaginários, ideais e sentimentos (da subjetividade) da narradora e a ambivalência das personagens. No caso de Mitsuko, mistificada por um lado e submetida à condição de “criação” por outro. No caso de Sonoko, detentora da linguagem falada, uma vez que é a narradora da história, mas também subjugada aos próprios sentimentos, uma vez que sua experiência é fundada e inteiramente movida por eles.

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Por outro lado, existe a influência externa e a obrigação social: a partir do ocorrido na aula de desenho, boatos sobre um suposto romance secreto entre Sonoko e Mitsuko começam a se alastrar na escola, induzindo um primeiro encontro das duas e contribuindo, ao que parece, à concretização do relacionamento apaixonado. No entanto, essa influência externa não surge apenas como pretexto da união, mas, pelo contrário, também como um empecilho ao relacionamento, na forma das obrigações e convenções sociais. Diante de um Japão cada vez mais ocidentalizado, além da obrigação matrimonial de Sonoko, ela e Mitsuko estão inseridas em uma sociedade que julga como imoral o amor entre mulheres e que se torna refém tanto da noção de separação entre vida pública e vida privada como também da ótica judaico-cristã acerca do tópico sexual. Isso implica na privação do desejo, no constante medo acerca do julgamento moral e, apesar de uma primeira idealização do âmbito privado das relações por parte das personagens (cultivam no dia a dia costumes e condutas ocidentais), em um relacionamento enclausurado que só existe entre as limitações das quatro paredes, distante dos olhares e julgamentos da sociedade.

Essa questão encontra a própria câmera observadora de Masumura, que compreende e circunscreve muito bem o suposto espaço privado e a vida secreta, ao mesmo tempo que questiona essa condição pelo simples fato de filmar (ou buscar filmar) a relação, de retratar o que não deveria ser contemplado, o que deveria ser omisso e velado. Nesse sentido, as cenas de sexo do filme são apenas sugestivas; o erotismo, na forma do desejo, está sempre implícito nas imagens. Frequentemente, é uma câmera que espia os corpos através daquilo que pauta, sutilmente no plano, a noção de aposento como aquilo que limita e retém: através de cortinas, de mobílias desfocadas não identificáveis, biombos, do shoji e fusuma – que ganham aqui uma dimensão de parede/barreira muito forte (diferente da sua função de fundir espaços privados distintos e torná-los unos e públicos, reforçando a dinâmica coletiva da vizinhança, em “Bom Dia” de Yasujiro Ozu, por exemplo).

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 Mesmo possuindo um caráter de câmera espiã em algum grau, o que lhe pressupõe uma relação intrínseca com o mundo externo (alguém que espia, a própria concepção e condição do realizador), a câmera aqui não representa uma determinada “sobriedade” em relação à dinâmica tempestuosa que domina o quadro, não possui um senso de convicção e de estabilidade sobre a atmosfera de incerteza e de instabilidade. A câmera é tragada para o universo das paixões sobre e a partir do qual Sonoko – com sua condição poética inicial de “criadora” – narra. Masumura pactua com ela e busca criar imagens em primeira pessoa; imagens que imprimem sua paixão, seus sentimentos, suas impressões e sua narrativa pessoal/sentimental – como se tudo isso, por sua vez, determinasse o quadro.

Ao mesmo tempo que Sonoko possui um aparente controle sobre o que consta nas imagens, sobre a linguagem falada que é transmutada e recriada em linguagem cinematográfica, ela é uma personagem regida pelos próprios sentimentos e submissa a eles. O enquadramento de Masumura, aliado à passionalidade de Sonoko, dá ao enclausuramento pela paixão e sentimentos uma dimensão arquitetônica e física (a partir da ausência de espaço), intensificando a sensação claustrofóbica e reiterando a ausência de contexto através dos enquadramentos fechados, do plano-sentimental-espacial: apesar de o contexto histórico, cultural e social do Japão ser como um subtexto motivador à questão do enclausuramento, ele se vê praticamente aniquilado no plano, o qual corpos, expressões e gestos emocionados ocupam quase que totalmente; ou como se os sentimentos, por serem tão intensos e excessivos, fossem demasiadamente volumosos para o pequeno espaço fílmico (marcado pela limitação das quatro paredes/do plano), tomando o oxigênio e espremendo as personagens, deixando-as imensas e sozinhas no quadro e no quarto, asfixiadas, insanas.

Em um dos momentos iniciais do filme, quando Sonoko mostra a sensei uma fotografia das duas juntas, o rosto de Mitsuko ganha um plano só seu, como se ela estivesse não só encarando a câmera que a fotografou em determinado momento, mas encarando, sobretudo, a câmera espiã de Masumura. Mitsuko se revela através dos olhos e da beleza de Ayako Wakao, atriz por quem Masumura é aficcionado e que, através do que ela concede de si às imagens (sua beleza, seus gestos, suas expressões), define em absoluto a personagem que interpreta: hipnotiza a câmera (Masumura) como hipnotiza Sonoko; sabota a ordem fílmica e supera sua mera condição de personagem diegética através da atriz. Assim, Mitsuko estabelece um contato com o que há através da câmera, com o externo/extraplano, com o que não sofre do enclausuramento pelo plano-espacial-sentimental.

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Como seu olhar (e a própria Sonoko) em sua narrativa sugerem, já se pode presumir o suposto feitio manipulador de Mitsuko, enquanto Sonoko exprime uma certa ingenuidade e vulnerabilidade. Nesse contexto, o que justifica a subversão da ideia de “criação submissa à criadora” é, paradoxalmente, o fato de Mitsuko só existir no filme enquanto criação idealizada de Sonoko (o rosto ideal da pintura), reflexo de seus desejos e, principalmente, por se tornar sua própria paixão: assim como os sentimentos de Sonoko a aprisionam, Mitsuko – a nível deles – também possui um domínio definitivo sobre sua amante. Isso é o que vai pautar toda a experiência e maneira com a qual Sonoko encara o relacionamento, no sentido de sua devoção (deusificação) e submissão à amada.

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Assim, pode-se discorrer também sobre a atmosfera desatinada do filme. Quanto menos noção de espaço, de ambiente, de contexto – ou seja, quanto maior a claustrofobia, a asfixia, a supremacia dos corpos emocionados e do âmbito privado sobre o âmbito público – menor é a capacidade dos personagens de discernir sobre o caráter e as intenções uns dos outros. Sonoko, a única voz que podemos realmente ouvir (enquanto narradora), atinge um estado tormentoso de receio e angústia, constantemente questionando a índole de Mitsuko. Tudo se acentua com a entrada de outros dois personagens no relacionamento (Watanuki – pretendente de Mitsuko – e Kotaro – marido de Sonoko -, formando um quadrado amoroso), o que deixa todos cada vez mais espremidos no quadro lotado de sentimentos que se entrecruzam e se mesclam com intenções secretas (das mais amáveis às mais perversas), complexificando o relacionamento e encaminhando-o ao seu fim trágico. Nesse sentido, o exagero melodramático que aqui existe pode tanto marcar a intensidade do amor, do desejo e da paixão – dos sentimentos no geral -, como tornar uma mentira ainda mais mentirosa, encenada.

O clima constante de dúvida e desconfiança não se limita ao universo enclausurado do filme, excede e atinge a experiência do próprio espectador: nem em Sonoko – por narrar movida e possuída pelos sentimentos, inseguranças e ideias próprias sobre cada uma das figuras – devemos confiar. Sonoko é realmente ingênua e Mitsuko manipuladora? Como podemos garantir que, enquanto narra, Sonoko, que também se mostra perversa em vários momentos do filme, não deturpa ou omite fatos? Devemos confiar nas imagens e no que é exibido nelas?

Masumura, pactuado com Sonoko e, portanto, movido e movendo o filme pela paixão e por tudo que ela magnetiza, não nos dá respostas. Ao real detentor da linguagem aqui vigente não interessa o valor crível da imagem e sim seu potencial expressivo: amplifica a narrativa à expressão fílmica dos sentimentos, desejos, ideias, paixões. Temos aqui a estética que emerge da vazão que tem a dúvida não-elucidada, da claustrofobia estimulante à propagação indomável dos sentimentos: a expressividade e a beleza dos corpos, gestos e rostos emocionados; até mesmo a poesia plástica nas cores, na caligrafia e nas estampas das correspondências trocadas pelas amantes.

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O final trágico conjecturado: em determinado momento, quando o relacionamento está configurado em um triângulo amoroso entre Sonoko, Mitsuko e Kotaro – emocionados e totalmente alheios à realidade -, todos os fatores externos (e internos) fazem do suicídio passional a única saída. Esperançosa de que enfim encontraria na morte um estado puro e eterno ao amor, Sonoko é surpreendida pela desilusão: a única que continua viva e cativa; a união das amantes não sublima. (Teria Mitsuko a enganado?)

Prenunciando o desfecho desde o início, Sonoko narra sua experiência, sobrecarregando no coração inquieto e no corpo cansado todo o acúmulo sentimental do filme; apaixonada por uma aparição profetizada por sua narração. Criadora do que ali alguma vez existiu ou não existiu, ela permanece tomada pelas incertezas e, sobretudo, enclausurada à sua paixão – Mitsuko, Mitsuko, Mitsuko… -, que agora é mais do que memória ou saudade: um fantasma sagrado que a assombra, quimérico e imenso nas imagens.

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